-
Título
-
ANA FANI ALESSANDRI CARLOS
-
Nome Completo
-
ANA FANI ALESSANDRI CARLOS
-
Nascimento
-
22 de Maio de 1952
-
História de Vida
-
Pinceladas de uma autobiografia
Ana Fani Alessandri Carlos
Como um viajante a procura das cores, sons e cheiros dos lugares sairei em busca de "minha história". Mas recuar no tempo exige uma direção. Um questionário enviado para esta tarefa traz uma sequência possível, mas temo ter tomado muita liberdade. Com alguns acréscimos, sem muita imaginação, retomo aqui dois textos escritos: Meu memorial do Concurso de professor Titular em Geografia DG-FFLCH-USP realizado em 2004 e meu texto de apresentação no “Seminário de Geocritica” quando recebi o “Prêmio Geocritica” das mãos do professor Horário Capel (Pensar el mundo a través de la geografia: un camino recorrido en la construcción de una "geografia posible"). Conferência realizada quando da outorga do premio Geografia Critica de 2012 e publicada nos Anais do evento: http://www.ub.edu/geocrit/coloquio2012/actas.htm/.
Em ambos, todavia arremato fragmentos de lembranças – um flanar à toa pelo passado - por isso mesmo tortuoso e cheio de imbricações, alguns atalhos, becos sem saída. Fragmentos que se constituem de momentos reais e concretos contemplando um passado delineado e prontamente, reconhecido de uma memória seletiva e, portanto, aleatórios (o que para mim é um mistério).
Posso começar com uma confissão! No ginásio detestava a Geografia. Dona Elza nos fazia decorar nomes de rios e capitais, num estilo terrorista. Até hoje embaralho o nome das capitais nordestinas e dos afluentes do rio Amazonas. Fui salva pelo professor Pedro Paulo Perides no curso clássico no colégio de Aplicação da USP, que me mostrou as possibilidades abertas pela disciplina. Hoje, ao contrário, a Geografia, para mim, é “pura paixão” e aparece como um desafio enquanto possibilidade de pensar o mundo em sua dinâmica transformadora e um exercício de liberdade. Minha vida não se separa da Geografia a não ser nos meus primeiros anos que duraram até o clássico.
A Geografia, claro não foi uma opção muito bem aceita na casa paterna, mas tão pouco questionada. Como era muito estudiosa, meu pai descortinava para a filha um futuro com um diploma de doutor. Diploma este que pude um dia lhe mostrar.
O que me motiva na vida? O ato de descobrir, de querer saber mais sobre tudo o que vejo. Uma verdadeira tragédia, pois nunca me sinto completamente satisfeita! Na realidade o que me motiva é o desejo de experimentar que vem acompanhado pela consciência de minhas limitações.
Há tanto ainda que ler, aprender, investigar, que uma vida é muito pouco. Nesse caso me consola a ideia do professor Petroni segundo a qual “quando achamos que sabemos tudo, estamos, na realidade mortos”. Nesse sentido o que me move é essa busca infindável pelo conhecimento. A liberdade na possibilidade da criação que fascina e aqui se liga a ideia de aventura que ilumina a busca.
Acho que é assim que me defino; uma pessoa inquieta, ávida de conhecimento, sempre em busca de algo, às vezes, difícil de definir. Numa tarde de sábado, enquanto escrevia meu memorial de livre docência, ouvi de meu marido ao fechar o notebook falar pra mim “avancei muito, mas ainda sei muito pouco“. Essas palavras sintetizaram meus sentimentos. Minha ansiedade nesta busca incessante me imerge na angústia e no terror, pois ela transcende a Geografia para me colocar diante da criação humana do mundo e de como, ao longo do tempo esse mundo, em constante construção foi pensado e imaginado. Proust elucida a questão quando afirma que há uma diferença "entre a ardente certeza dos grandes criadores e a cruel inquietação do pesquisador"¹ . Talvez seja por isso que minhas leituras me conduzem/ expulsam do estrito limite do que se chama Geografia para me debruçar sobre muitos campos disciplinares, inclusive na arte (desenvolvi um projeto no CNPq num diálogo entre a “geografia e a arte”).
Para mim me consola a ideia de que a segurança é sinônimo de aprisionamento e que a verdadeira liberdade é aquela que nos permite ousar; pois quando tudo estiver explicado, quando tudo for posto em ordem e fixado de antemão, então evidentemente, não haverá mais lugar para o que se chama desejo. Assim poder pensar, estudar, imaginar como a geografia pode construir uma explicação do mundo tão turbulento, dinâmico e complexo sem a criação de modelos prontos e acabados, é, para mim, um exercício de liberdade, o desejo².
I. São Paulo, minha cidade, onde nasci, vivi e vivo...
“situada num planalto
2700 pés acima do mar
E distando 79 quilômetros de Santos
Ela é uma glória da América contemporânea
A sua sanidade é perfeita
O clima brando
E se tornou notável
Pela beleza fora do comum
Da sua construção e da sua flora
Anúncio de São Paulo, Oswald de Andrade
Na linearidade do tempo, nasci – 22 de maio de 1952- no seio de uma família de imigrantes do norte da Itália que tentavam a sorte em São Paulo, como tantos outros. Na Barra Funda passei as duas primeiras décadas de vida e foi um período tão marcante, tão profundamente vivido nas ruas do bairro (onde aconteciam as brincadeiras e todos os trajetos eram feitos a pé) numa relação tão íntima com meus vizinhos, permeado de momentos tão lúdicos que até hoje, quando penso na minha identidade, é a Barra Funda que me vem à mente, mesmo se hoje ela não se parece, em nada, com a Barra Funda de minha infância e adolescência.
Morava numa das casas de uma vila construída pelo "nonno" anos depois de ter chegado com a família da Itália, ele era de Lucca, minha nonna nascida no Vêneto. As ruas de minha infância na cidade de São Paulo dos anos 50 – início dos 60 era marcada pelo burburinho das vozes das crianças que saíam às ruas, com suas bolas, "carrinhos de rolemã", cordas, patinetes, festejando de tempos em tempos a passagem do "homem da machadinha", (aquele doce rosa e branco duro e açucarado que fazia a alegria de crianças e dentistas e era o terror dos pais); o homem do picolé, ou ainda o homem que trazia uma lata redonda nas costas e um "instrumento barulhento" na mão vendendo bijou; o lindo som do realejo...situações estas, que parecem não ter mais lugar na metrópole do século XXI.
Minha rua, a mesma de Mario de Andrade
“Nesta rua Lopes Chaves
Envelheço envergonhado
Nem sei quem foi Lopes Chaves ...
Ser esquecido e ignorado
Como o nome dessas ruas.
Minha casa, onde morávamos eu, meus 2 irmãos, meus pais e os nonos do lado paternos se situava no número 123, da rua Lopes Chaves. Mais tarde descobri que Mario de Andrade ali havia vivido, numa carta recebida de um antigo professor de literatura que, ao escrever para meu endereço, não se conteve em falar que este lhe lembrava do grande escritor. Se hoje o novo engole, incessantemente, as formas onde se escreve o passado de modo veloz; as mudanças no bairro vislumbradas, no período de minha adolescência eram lentas e graduais e não chegavam a produzir traumas. Vivíamos o tempo cíclico na vida cotidiana entre casa, a escola (próxima de casa) e o lazer na rua depois das “lições de casa” que aos poucos foi invadido pelo tempo linear.
Junto comigo, o bairro ia crescendo e se transformava, mas antes, ia se modificando a vida das pessoas. Eu brincava nas ruas do bairro com minhas amigas, e aos poucos, os carros teimavam em tomar o lugar das nossas brincadeiras. As cadeiras que tomavam conta das calçadas, ocupadas por nossos pais, teimavam em desaparecer. A chegada da televisão no bairro enchia a todos de curiosidade e colocava os adultos diante da telinha que teimava em não “retrucar“. No começo ela não acabava com os encontros dos vizinhos, lembro-me que, como a minha casa era uma das poucas a apresentar a novidade, é para lá que alguns vizinhos se dirigiam depois do jantar e a sala se enchia de gente. Mas em pouco tempo a televisão prendeu cada um na sua sala sozinho, assistindo a sua televisão, sem olhar para o lado ou conversar com ninguém abrandando as relações de vizinhança. Outro ponto importante da vida do bairro italiano que se perdeu eram os encontros nas esquinas nas portas dos bares para a conversa depois do jantar e que iluminavam as ruas.
A atenuação da sociabilidade ia aos poucos sendo marcada pelo fim de atividades que aconteciam nos bairros, com o fim das relações de vizinhança provocada pela televisão. As ruas iam se tornando perigosas pelo adensamento dos automóveis, tirando as crianças das calçadas. Mas as mudanças iam atacando o tempo cíclico. Penso no fim das procissões, onde todos se encontravam e percorriam as ruas do bairro com uma vela na mão, iluminado o percurso; o fim das quermesses que marcavam o período das festas juninas e suas fogueiras que esquentavam as noites de inverno; o fim do “cordão do camisa verde e branco” que à época do carnaval usava as ruas do bairro como palco de seu ensaio - trazendo atrás de si várias crianças e adolescentes. Transformado em escola de samba passou a ensaiar, para o carnaval, numa quadra fechada e com ingressos pagos. Nos dias de Carnaval não há mais o agrupamento de moradores na Rua Conselheiro Brotero para ver as fantasias dos integrantes da escola, saindo para o desfile.
Como os bairros centrais da metrópole a Barra Funda também implodiu, e muitas casas deram seus lugares para outros usos. Estamos hoje muito distantes da paisagem descrita por Mário de Andrade em Paulicéia Desvairada e Lira Paulistana onde São Paulo ainda aparecia calma e a garoa ainda era sua marca.
Na casa de minha avó materna (em frente à vila onde morava) está instalada, hoje, a doceira Dulca (construída através do remembramento de dois antigos terrenos ocupados por casas construídas nas primeiras décadas do século XX). A vila, onde morei, ainda está lá, não foi derrubada, mas arrasada, sem vida alguma. A farmácia da esquina com sua decoração do início de século, toda em madeira, balcão de mármore, portas de vidro branco desenhados, e chão quadriculado em branco e preto, deu seu lugar a uma loja de automóveis. Não sei no que se transformou o "armarinho" grande e colorido pela profusão das linhas e lãs que decoravam as prateleiras; como minha nonna fazia crochê, íamos lá com frequência.
Na charutaria do seu Diogo, em meio a um cheiro que penetrava na narina de forma agressiva aonde comprava uma parte dos artigos de papelaria que precisava, deixou de existir há muito tempo. O açougue do seu Duílio também não existe mais, tanto quanto a linguiçaria, a sapataria, a tinturaria, a padaria. Mas o que mesmo senti falta foi da Dan Top, a fábrica de chocolates que ficava na rua Barra Funda inundando-a com um cheiro delicioso (que até hoje pareço sentir, como lembrança de um dos cheiros da infância) quando por lá passava com minha mãe e minha irmã. Hoje, nem a Kopegnagen com seu "dona benta" consegue reproduzir "aquele maravilhoso gosto da infância" (ou será que o gosto era mesmo ruim, mais, na infância os cheiros e gostos ganham dimensões especiais). Também não existe mais a casa Di Piero, um pastifício que funcionava na mesma rua com suas paredes cobertas de gavetas com tampo de vidro, mostrando uma infindável quantidade de "formas de macarrão" feitas nos fundos e abastecendo as cozinhas para o "almoço das macarronadas das quartas e dos domingos", e das sopas servidas no jantar do cardápio italiano de minha família. O depósito onde comprávamos Tubaína (os refrigerantes eram mais caro) aos sábados (o refrigerante só era permitido nos finais de semana, nos outros dias uma gota de vinho e açúcar, na água, acompanhava a refeição da garotada), também, há muito tempo, não existe.
As ruas, antes arborizadas e silenciosas, perderam a cor, e foram invadidas pelos carros, estacionados em todas as suas extensões de suas guias. O tráfego de veículos também se intensificou. A quantidade de carros contrasta com a ausência das crianças e dos moradores. Mudou, fundamentalmente, os cheiros, as cores, os ruídos, há uma imensa ausência (se é que se pode quantificar a ausência). O espaço lúdico se tornou uma "coisa estranha". Foi, não é mais. Lembro-me aqui do o filme Avalon (dir Berry Levinson,1990) e da música Peramore de Zizi Posi (1997, aonde as mudanças nas formas urbanas, sustentadoras da identidade, ao desaparecem dá a sensação de que, sem elas, “nunca tivemos existido”. Nesse sentido, o passado enquanto experiência e sentido daquilo que produz o presente se perde enquanto o futuro se esfuma na velocidade do tempo da transformação das formas. Parece haver uma urgência, neste processo.
Vejo São Paulo se transformando ao longo de minha vida. As ruas dos bairros centrais se esvaziam as da periferia agora correm o mesmo risco com as milícias e o narcotráfico que vieram normatizar e impor sua lógica àquela de uma área marcada pela violência do processo de urbanização poupador de mão de obra, feito com altas taxas de exploração de força de trabalho que expulsou para a mancha periférica os trabalhadores. Hoje a periferia é mais complexa, nas franjas da metrópole, as ações do imobiliário em busca de terrenos escasso na macha urbana vem construindo grandes condomínios fechados por altos muros, segurança ameaçadora com limites bem definidos.
Das brincadeiras e da prática de esportes, sem uniforme e regras rígidas, praticadas nas ruas e em lugares improvisados, me vi agora praticando vôlei e tênis em clubes fechados. Os esportes fazem parte de minha vida e são momentos importantes e uma forma de arte que se revela em movimentos criativos e expressivos e como sou um pouco obsessiva vejo-os também como momentos de aprendizado – adoro aprimorar meus movimentos - além de fazer amigos, rir muito e relaxar. Tenho um time de vôlei (que, evidente se renova) há mais de 30 anos, participando, inclusive de campeonatos; além de jogar tênis – já neste esporte sou bem melhor- pelo menos é o que detecto dos gritos do treinador de vôlei.
II. Rupturas
Dois fatos marcaram minha formação. O ingresso no colégio de Aplicação da FFLCH foi decisivo abrindo novas e abrangentes perspectivas. Ali o debate "corria solto". Os alunos eram instigados o tempo todo a participar das aulas. Queria morrer quando ali cheguei depois de um árduo exame de admissão baseada numa música de Chico Buarque! Morri! Eu que vinha de um colégio tradicional tinha dificuldades em entender como as coisas aconteciam na sala de aula. Em primeiro lugar todos os alunos participavam das aulas, traziam sugestões, debatiam, criticavam, enfim não aceitavam facilmente as ideias apresentadas o que de início me deixava aturdida. Era estimulante, mas também assustador, para uma pessoa tímida que vinha de uma família operária, que havia estudado em colégio de freiras e pertencia a uma classe diferente dos outros alunos. Acho que foi essa diferença que uniu, profundamente, os “iguais”: Amélia, Tânia (ambas descendentes de famílias de migrantes italianas e também moradoras na Barra Funda, como eu), Lucienne e Silmara, com quem havíamos cruzado no ginásio egressas do colégio Macedo Soares.
As leituras também eram outras e discutíamos o que se passava no mundo real, nos fazendo mergulhar nos momentos difíceis que marcava aquele final de década de 60. A ditadura militar, o AI5, a perda das liberdades individuais, a censura nos jornais (o Estadão vivia enchendo suas páginas com receitas e mais receitas de bolo no lugar aonde os sensores faziam seus cortes); houve um ano em que assistíamos aula com 2 guardas na porta com metralhadora (o colégio era perigoso para o regime militar). Vivíamos intensamente este momento em que os debates ocorriam à solta, os livros eram escondidos, e a união era uma forma de resistência. O teatro também passa a fazer parte da minha vida, as aulas de teatro eram estimulantes e a frequência ao teatro, até então fora de meu universo (até então só tinha visto Édipo Rei numa das últimas apresentações de Cacilda Becker), criou novas perspectivas. Cheguei mesmo a fazer parte de um grupo que escreveu uma peça de teatro a partir de um livro de Campos de Carvalho, "O púcaro búlgaro". Nos finais de semana tínhamos ensaio com Antônio Fagundes e frequentávamos a casa de Sílvio Zilber.
Aprendemos a trabalhar em grupo (e aqui construímos um grupo (mencionado, acima, que acabou atravessando a vida, penetrando outros momentos, e que existe até hoje, intensamente)). Varávamos noites deliciosas (barulhentas e com muitos petiscos deliciosos que a Tânia trazia da padaria do seu pai) fazendo trabalhos uns mais interessantes que o outro. Durante muitos anos fomos absolutamente inseparáveis na escola, nos cursos de francês (na Aliança Francesa), depois na faculdade, fizemos teatro juntas, saíamos à noite, tudo que fazíamos, parecia ter o sentido novo da descoberta.
O universo do diálogo criado nas salas de aula, as aulas, nossas noitadas, eram ricas e estimulantes e marcaram uma adolescência diferenciada: mais intelectualizada. Uma adolescência diferente.
Tão novo e estimulante quanto o Aplicação foram os 18 anos (1976 a 1993) que participei do grupo de pós-graduação coordenado pelo professor José de Souza Martins no Departamento de Sociologia. Naquelas "manhãs de sextas-feiras", criou-se ao longo do tempo, uma amizade e carinho muito grande, todos os que ficaram foram profundamente influenciados pelos debates a partir das leituras que fizemos e que não eram poucas. Durante 12 anos lemos as obras de Marx (quase todas) depois as de Henri Lefebvre (algumas). Nossa formação ganhou profundidade, nos formamos nesses 18 anos e a partir daí formamos os nossos alunos, na mesma direção teórico-metodológica. Com o professor Martins aprendemos a ler criticamente um texto, a debatê-lo em profundidade, fomos contaminados por sua preocupação teórico-metodológica e com sua seriedade.
De Marx começamos lendo o Capital (primeiro na edição do Fondo de Cultura do México, depois anos mais tarde relemos na versão da Siglo XXI - edição crítica, mais completa, cheia de notas preciosas); o capítulo inédito do capital; depois lemos Os Grundrisse, As teorias da mais valia, A Miséria da filosofia, Os manuscritos econômicos e filosóficos, A questão judaica e o 18 Brumário. "Encerrada esta etapa, decidimos em conjunto que ela deveria ter desdobramento e continuidade na leitura de um marxista contemporâneo de envergadura clássica" escreve modestamente Martins na apresentação do livro "Henri Lefebvre e o retorno a dialética". Na realidade foi o mestre quem sugeria a leitura de Henri Lefebvre.
À época dizia que Lefebvre era um marxista sério que tentava percorrer o caminho de Marx diante das interrogações da história, um conhecimento que interrogasse a realidade e que a superasse; e alertava: não de forma petrificada. Lefebvre era-nos apresentado também como um autor rico e crítico capaz de pensar o espaço e o tempo na sua modernidade.
Para fechar quase duas décadas de estudos organizados pelo Professor José de Souza Martins foi realizado um seminário “A Aventura intelectual de Henri Lefebvre, em 14 de maio de 1993, publicado, em 1996 com o título de "Henri Lefebvre e o retorno à dialética". Para Martins” Lefebvre retomou o que de mais importante havia em Marx - seu método e sua concepção de que a relação entre a teoria e a prática, entre pensar e o viver, é uma relação vital (e datada) na grande aventura de fazer do homem o protagonista de sua História".
O que começou como um seminário de estudantes de pós-graduação terminou como um seminário de professores universitários. Esse caminho de aprender o mundo mudou “minha forma de fazer geografia”, dando-lhe sentido e prolongando minha experiência do Aplicação. Esse caminho aberto na minha formação marca profundamente minha investigação e minha atividade na formação dos estudantes.
III. Construções
É necessário esclarecer que só entrei em contado com as obras de Lefebvre no final dos anos 80 o que significa que a minha construção teórica sobre a produção do espaço veio, como aconteceu com Lefebvre, de uma profunda reflexão sobre a obra de Marx. Foi assim que em 1979 defendi a dissertação de Mestrado ‘”Reflexões sobre o espaço geográfico” focando o papel do conceito de produção elaborado na obra de Marx, a partir do debate sobre a relação homem-natureza.
III. Construções
É necessário esclarecer que só entrei em contado com as obras de Lefebvre no final dos anos 80 o que significa que a minha construção teórica sobre a produção do espaço veio, como aconteceu com Lefebvre, de uma profunda reflexão sobre a obra de Marx. Foi assim que em 1979 defendi a dissertação de Mestrado ‘”Reflexões sobre o espaço geográfico” focando o papel do conceito de produção elaborado na obra de Marx, a partir do debate sobre a relação homem-natureza.
Nessa dissertação construí a tese que persegue minha pesquisa até hoje: a produção do espaço é uma produção imanente a produção da vida humana. Produto da história seu conteúdo é social. Nesse momento desloca-se a investigação da localização dos fenômenos no espaço à produção social do espaço apontando a sociedade (desigual) como sujeito produtor do espaço. Uma inversão teórica apoiada no materialismo dialético.
A noção de produção do espaço se desdobra da relação homem-natureza ato civilizatório, superando a compreensão de uma Geografia centrada na localização e distribuição das atividades e dos homens no espaço ou no território em direção à análise da produção deste espaço como produto social e histórico.
No Doutorado (A re-propdução do espaço urbano, EDUSP, São Paulo, 1994) desenvolvemos a tese de que ao produzir sua existência os homens produzem não só sua história, conhecimento, processo de humanização, mas também o espaço. Um espaço que em ultima instância é uma relação social que se materializa formalmente em algo possível de ser apreendido, entendido e aprofundado. Um produto concreto: a cidade.
O espaço, enquanto dimensão real que cabe instruir coloca-se como elemento visível, representação de relações sociais reais que a sociedade unia em cada momento do seu processo de desenvolvimento e, consequentemente, essa forma apresenta-se como história especificamente determinada; logo concreta. O produto espacial expressa às contradições que estão na base da sociedade através da segregação que tem sua lógica no desenvolvimento desigual das relações capitalistas de produção.
Ao longo do processo histórico, portanto, os homens deixam suas marcas acumuladas no espaço, dando-lhe particularidades que compõem a existência comum dos homens inscrevendo-se no espaço ao mesmo tempo em que o criam como obra civilizatória. Ao reproduzir sua existência, a sociedade reproduz, continuamente, o espaço, dando-lhe um caráter histórico. Assim se elabora a premissa de que o processo de constituição da humanidade contempla a produção do espaço, permitindo formular a tese segundo a qual a "produção do espaço" é condição, meio e produto da ação humana. Este movimento triádico sugere que é através do espaço (e no espaço), que, ao longo do processo histórico, o homem produziu a si mesmo e o mundo como prática real e concreta. Objetiva em sua materialidade, tal prática permite a realização da existência humana através de variadas formas e modos de apropriação dos espaços-tempo da vida. Ao se realizar nesse processo, a vida revela a imanência da produção do espaço como movimento de realização do humano (de sua atividade). Com isso quero dizer que a relação do homem com a natureza não é de exterioridade, uma vez que a atividade humana tem uma relação prática com a natureza como reação e resposta, apoderando-se das coisas como construção de um mundo e de si mesmo em sua humanidade. Ao longo do processo histórico constituidor da humanidade, o espaço se encerra como uma das grandes produções humanas, superando sua condição de "continente".
Essa produção espacial expressa, portanto, as contradições que estão na base da sociedade, e que, sob o capitalismo, traz determinações específicas no âmbito de uma lógica do desenvolvimento espacial desigual fundado na concentração da riqueza que hierarquiza e normatiza as relações sociais e as pessoas no espaço. Em seu desdobramento, a noção de produção permitiu chegar à compreensão do espaço-mercadoria e de sua reprodução com o desenvolvimento do capitalismo. Portanto, o civilizatório, traz em si aquilo que o nega, o espaço (produção social) torna-se uma mercadoria, como todos os produtos do trabalho humano. Nesta condição, a produção social do espaço coloca-se como momento de exterioridade em relação à sociedade aparecendo e se representando – no plano do vivido - como uma potência estranha (a obra humana se opõe ao humano) isto é, como momento do processo de alienação derivando-se nas lutas no espaço pelo espaço.
Nesta perspectiva, a produção do espaço envolve vários níveis da realidade que se apresentam como momentos diferenciados da reprodução geral da sociedade; aquele da dominação política (imposição da lógica do estado na produção do espaço como se pode ver através de planos e politicas públicas voltadas ao espaço), das estratégias do capital objetivando sua reprodução continuada (os processos de acumulação tem o espaço como sua condição tornando-o uma força produtiva para o capital) e aquela das necessidades/desejos vinculados à realização da vida humana em sociedade. Estava assim aberta a perspectiva da construção de uma metageografia.
O caminho traçado por minha investigação, portanto não se refere à construção de uma “geografia urbana”, mas foca uma geografia que pretende compreender a realidade que tem por determinação o urbano.
III- A grande reviravolta na Geografia – os anos 70
Se de um lado a construção de minha investigação tinha como ponto de partida as leituras de Marx, por outro encontrava a Geografia num ambiente extremamente rico estimulante, coisa que hoje não mais vivenciamos. A década de 70 marcou o cenário geográfico com profundas transformações; a geografia estava na berlinda.
Iniciei minha pós-graduação em 1976, num momento de grande "agitação intelectual", os geógrafos começavam a questionar o legado da chamada "geografia clássica". A crítica a este pensamento estava fundando na ideia de que a Geografia até então descrevia os fenômenos espaciais, sem uma preocupação maior com sua análise, isto é, a teoria ocupava um lugar secundário e a dimensão do empírico imperava.
Questionava-se seu poder explicativo e os trabalhos monográficos com forte teor descritivo. O debate metodológico tomava conta de todos os ambientes, os debates eram acalorados, naquele momento era o materialismo histórico que abria e apoiava os debates que colocavam em xeque o entendimento do espaço e o papel do homem na análise geográfica. Permitiu, também, pensar de outro modo à articulação entre as disciplinas abolindo-se as fronteiras entre as mesmas buscando-se um novo entendimento do mundo e provocado profundas transformações na Geografia.Baseado no materialismo histórico, o que se convencionou chamar de “geografia crítica" passa a fundamentar, no Brasil, a esmagadora maioria dos trabalhos na área de Geografia Humana a partir dos últimos anos da década de setenta, como a Geografia produzia um conhecimento sobre o espaço e como se poderia entender o mundo através da Geografia. Ariovaldo Umbelino de Oliveira, Ruy Moreira, Carlos Walter Porto Gonçalves agitavam o cenário da geografia brasileira com seus escritos. O contato com Ari na USP era fonte de inspiração. Mas o debate acolhia uma ampla diversidade de geógrafos, não necessariamente relacionada à chamada “geografia crítica”. Pasquale Petroni, Pedro Pinchas Geiger (seu livro sobre a Rede Urbana), Fanny Davidovich (as análises urbanas) eram mentes ativas e estimulantes.
Manuel Correa de Andrade (e seu inspirado livro “A terra e o homem no Nordeste) questionava se a geografia deveria ser mero devaneio intelectual ou se deveria fornecer condições para a racionalização da organização do espaço brasileiro, oferecendo uma contribuição à solução dos problemas brasileiros. Milton Santos aparecia no cenário da Geografia brasileira com textos estimulantes convocando à reflexão em direção a uma “outra Geografia” . Lembro-me que, numa de suas passagens por São Paulo, Ariovaldo promoveu uma reunião com poucas pessoas em sua casa para conversar com o mestre sobre os rumos da Geografia no momento em que era publicado “Por uma nova Geografia”. Puro estímulo intelectual!
A produção de um saber geográfico se move no contexto do conhecimento que é cumulativo (histórico), social (dinâmico), relativo e desigual. O dinamismo no qual está assentado o processo de conhecimento implica em profundas transformações no pensamento geográfico. Essa era o que esses anos traziam para o debate.
Estimulada por este debate debrucei-me no trabalho de investigar os conteúdos e sentidos do que, para a Geografia, era o espaço. Esta questão me perseguia em 1975 quando terminava meu curso de graduação. Foi assim que aprofundei meus estudos. Naqueles anos, por outro lado, a Geografia Quantitativa ganhava espaço no cenário nacional principalmente no IBGE e na UNESP em Rio Claro; na USP os professores, em sua esmagadora maioria se posicionavam contrário à ideia de que com a "quantitativa a geografia se transformava numa ciência". Aqui as questões teóricas já invadiam a sala de aula colocando "novas perspectivas". A geografia aparecia em seus profundos vínculos com a história e a sociologia; distante das preocupações com a quantificação dos fenômenos. Período de debates estimulantes foi o estágio com a prof. Rosa Ester Rossini na secretaria da Educação como estagiária de graduação mobilizados também por Nice Lecoq Muller convidada do grupo. Ali o debate em torno da chamada “Geografia Quantitativa foi abertura necessária ao contraponto com a “geografia da USP”’. Ainda na graduação o estágio com Luiz Augusto de Querioz Ablas no Instituto de pesquisas econômicas- IPE- abriu-me para a importância da relação entre geografia-economia a ponto de ter seguido alguns cursos de graduação na faculdade de Economia na USP.
No período de pós-graduação vive intensamente o debate sobre o que achávamos que seriam as questões fundamentais da geografia. Dividi esses momentos com muitos colegas, mas em especial com Sandra Lencioni. Encontrávamos todas as tardes na casa dela, liamos, debatíamos, refletíamos sobre a Geografia no mundo em que vivíamos. Com ela aprendi a amar chá e fazer dele um ritual de relaxamento e encantamento. Ela também me introduziu no gosto pela caneta tinteiro, ela me deu a primeira de presente e depois desse gesto fiz uma coleção que mantenho numa linda caixa no meu escritório. É relaxante o ato de encher as canetas de tinta e escolher uma para escrever, começando o dia de trabalho. Costume esboçar meus textos no papel, fazer resumos de leituras, em folhas soltas escritas com “caneta de pena” com tinta de cor “violet”. O ato de ler-refletir-escrever é lúdico para nós duas e a caneta de pena acrescenta um sentido mágico a essa atividade.
O período de 1975, quando nos formamos até 1982 foi de intensa atividade aonde nos debruçamos na leitura dos chamados clássicos da geografia: La Blache, Brunhes, Demageon, Derruau, Deffontaines, Peirre George, Kayser, Guglielmo, dentre outros e quando ambas entramos no corpo docente do DG e dividíamos a mesma sala (G4) esse debate se estendeu e ganhou força. Respirávamos Geografia e também escrevemos juntas alguns artigos, dois delas foi publicado agora na revista ETC, coordenada por Ester Limonad. Também nos debruçamos numa pesquisa sobre os conteúdos do “regional” numa publicação da época. Formamos um grupo de pós-graduandas que se reuniam frequentemente para estudar e trocar ideias no espaço onde hoje é a sede da AGB, cedido pelo DG.
No início dos anos 80, como professores do DG, junto com Tonico e Wanderley criamos por algum tempo um grupo de estudos em nossa sala. Lembro-me de uma tarde em que estávamos os quatro trabalhando o professor Armando – grande estimulador de nossos debates - entrou na sala e disse que queria organizar um seminário para discutir o momento em que estávamos vivendo na Geografia e perguntou aonde seria interessante realizar o seminário. Marotamente Wanderley sugeriu o Rio de Janeiro; mas os paulistas fizeram o seminário em três dias: sexta, sábado e domingo, acabando com uma possível ideia de desfrutar das lindas praias cariocas. O seminário “Dialética e Geografia" foi um marco importantíssimo, naquele momento aonde o debate em torno das possibilidades da análise geográfica a partir do método dialético foram delineadas. O professor Armando também sintetizou num texto publicado no Boletim Paulista de Geografia as mudanças que estavam ocorrendo, principalmente na USP.
Tonico, Sandra e eu também participamos junto com o professor Armando numa mesa do Congresso da AGB que houve 1980 na PUC Rio de Janeiro. Nesse período também participamos todos mais Wanderley numa mesa da AGB – são Paulo no DG originando o número 1 da revista – de pouca vida- chamada Borrador.
Para mim "fazer Geografia" neste momento significou "sair da Geografia" muitos me diziam que estava me transformando em socióloga, até hoje, ainda alguns não me acham geógrafa, mas o que tenho a dizer é que desde 1975 tenho a consciência e a vontade e, quem sabe a pretensão de "ser geógrafa" entendendo por isso, a tentativa de pensar o mundo moderno a partir da análise espacial. Minha dissertação de Mestrado, minha tese, minhas pesquisas, perseguem o conhecimento do espaço em seu sentido amplo, e nessa busca, encontrei a produção do espaço enquanto produção humana, portanto a análise espacial passa pela "produção do humano".
Quero crer que fiz parte de um momento precioso e rico da Geografia - aquele do debate acalorado e profundo sobre os caminhos da análise geográfica a partir da crítica a geografia clássica tendo na sua base o caminho aberto pela leitura marxista do mundo. A controvérsia era profundamente estimulante o que não impedia a existência de "vários marxismos” tanto quanto as possíveis leituras que as obras de Marx permitiam o que se colocava como problema quase intransponível.
IV- Aprendendo “em outros lugares”
Realizei dois curtos "séjours" de pesquisa em Paris, o primeiro em 1989 um ano e meio depois de meu doutorado, sob a orientação do professor Olivier Dolffus da universidade de Paris VII. Naquele momento a tese de doutorado havia deixado muitas questões em aberto. As leituras me conduziam, agora, para entender o modo como à geografia urbana pensava a cidade nos finais dos anos 80, quais os caminhos teóricos metodológicos que se abriam a pesquisa sobre a cidade; quais os temas emergentes.
O professor Milton Santos com quem convesava muito no DG, um dia no corredor me disse que estava « eu fazendo muita política « (era representante da FFLCH no Conselho de represnetante da ADUSP) e me pediu para avisar meu marido, com quem ele tinha trabalhado, que ele iria me enviaria para um pós-doc em Paris I. E assim ele, com sua grande generosidade, orgzanizou meu séjour junto ao porfessor Dolffus e conversou com seus amigos para que me recebessem -o que me abriu inúmeras portas -, e foi assim que fiz um grande número de entrevistas com pesquisadores. E entrevistei muitos geógrafos e pude trabalhar em bibliotecas e visitar livrarias. O contato com o professor Claval sempre foi muito estimulante, já naquela época conversávamos sobre as relações entre a geografia e a literatura. Desta época a amizade com a geógrafa Martine Droulers permitiu acalorados debates e décadas de convivência. Topalov também foi uma das pessoas que me deu muitas ideias no curso que seguia na Sociologia. Nessa época seguia curso do Claval com Paulo Cesar- foi ótima nossa convivência e com ele descobri o “panaché”.
O segundo "séjours" foi um convite do professor Georges Benko da Universidade de Paris I, neste momento ao contrário do primeiro foquei meu trabalho numa pesquisa bibliográfica visando à elaboração da tese de Livre docência. Aqui o contato com o professor Roncayolo, foi central.
Como estava em Paris com Silvana Pintaudi (professora da UNESP) dividindo o mesmo “studio”, montamos uma grande biblioteca (dividíamos literalmente o espaço com muitos livros). Passávamos as manhãs trancadas lendo os livros em silêncio e depois saíamos para livrarias e bibliotecas, agora, debatendo muito, tornando o "séjours" mais profícuo e estimulante. Nosso debate e minhas investigações versavam sobre as leituras que focavam a cidade propriamente dita, mas referiam-se, sobretudo, ao caminho da análise do urbano no contexto do processo de mundialização da sociedade que se torna cada vez mais urbana.
Outras “andanças” marcam o fato de que os encontros nos permitem aprender e não só ensinar ou mostrar o que se “sabe ou aprendeu”. Nesse caso cito que foi como professora e coordenadora de convênios; Paris coordenado CAPES-COFECUB, Barcelona, coordenando CAPES-MECD, depois outras voltas a Barcelona- numa delas aproveitando o silêncio e a ausência das tarefas burocráticas, escrevi meu livro “O espaço urbano”. Desse encontro inicial se desdobrou importante intercambio que ainda mantenho com a prof. Nuria Benach, a convite de quem dividi a edição do livro “Horácio Capel: Pensar la ciudad em tempos de crisis” (volume 7 da coleção Espacios Critics, Icária, Barcelona, 2005). Também viajei a convite de colegas, ministrando cursos para Medellin (2 vezes), Bogotá, Buenos Aires. Na cidade do México assumi a cátedra Elisé Reclus. Ao longo de duas décadas venho acompanhando os colóquios organizados por Capel “colóquios de geocritica”, além da participação em outras redes de pesquisa. Saliento, aqui o diálogo com o grupo da revista de estudos lefevrianos -“La somme et le reste” - coordenado por Armand Ajzenberg, em Paris.
Nosso processo (estendido) de formação se realiza em momentos entrecruzados por atividades as mais diversas, no convívio com colegas de dentro e de fora da Geografia, quase todos vinculados à Universidade, montando um quadro profícuo ao debate a troca de ideias, o contato com o Diferente e com o que difere. É assim que destaco minhas participações na ADUSP, SBPC e AGB. O diferente marca uma riqueza ilumina a prática, provoca amadurecimentos. Na SBPC, quero lembrar que trabalhei com o professor José pereira de Queiroz, na ADUSP pude me sentir membro do grupo PARTICIPAÇÃO e na AGB-SP trabalhei com colegas como a Odette Seabra, Arlete M. Rodrigues e Regina Bega.
V- O diálogo sem o qual não se produz ciência
Ao longo de quase 2 décadas um fórum de debates se tornou importante para o meu trabalho e, formação: no princípio era o grupo que fundou e organizou os primeiros 7 “Simpósios de Geografia Urbana”, e depois que o SIMPURB, ganhou o Brasil, o grupo se reuniu entorno do GEU- grupo de estudos Urbanos. Faz parte do grupo Roberto Lobato Correa, Mauricio de Abreu, Jan Bitoun, Silvana Pintaudi, Maria Encarnação Sposito, Pedro Vasconcelos e um pouco depois se juntou ao grupo inicial, Marcelo Lopes de Souza.
Esse fórum foi de fundamental importância por dois motivos; primeiro porque se trata de um grupo de pesquisadores que pensa de modo diferente; optando por caminhos teórico-metodológicos diversos o que abre um leque de perspectivas analíticas. Em segundo lugar é o modo como o debate se estabelece: criticamente. Sem crítica não há produção de conhecimento - e esse exercício é levado muito a sério. Nos simpósios de Geografia Urbana, os trabalhos eram analisados e debatidos em profundidade e, nesse processo crítico a reflexão se aprofundava e a pesquisa se confronta com renovados desafios. Como pensamos diferente (mas nos respeitamos), os simpósios aconteciam com discussões tão acaloradas que os recém-chegados achavam que nos odiamos e não entendiam como, depois dos debates, saímos todos rindo para almoçar ou jantar juntos. O que caracterizava o simpósio de urbana é que não havia sessões simultâneas (às vezes um ou outra mesa de comunicações, mas não era a regra) e todos participavam ativamente do simpósio inteiro juntos assistindo e participando dos debates fazendo com que a discussão fluísse de uma mesa para outra e retomada noutro dia, e mais davam origem ao simpósio seguinte.
Na coordenação do GT Teoria Urbana Crítica – no Instituto de Estudos Avançados- IEA/USP – tenho estimulante contato com um grupo interdisciplinar que se matem através da troca de experiências de pesquisa em torno da compreensão da realidade urbana no movimento constitutivo de uma teoria critica mergulhando nas contradições que movem o mundo. Das contradições urgem as possibilidades de metamorfoses da vida, assim parte dos debates se realiza em torno do direto á cidade - direto à vida como momentos dialéticos da reprodução da acumulação capitalista hoje.
VI. O trabalho no DG-FFLCH-USP
Minha carreira, como professora, começou, na realidade, na Escola de Sociologia e Política. Um ano depois em 1982 entrei depois de minha terceira tentativa no DG-FFLCH-USP juntamente com o Tonico e neste mesmo ano dividimos uma disciplina.
O ambiente que tenho vivido há quase 4 décadas no DG só pode ser definido por uma palavra: liberdade. Liberdade de ensinar do jeito que pensava, investigar com minha escolha quanto a teoria e ao método, para criar grupos de pesquisa, organizar atividades acadêmicas, trabalhar com grupos e alunos, etc. Nunca tive tolhido meu exercício de liberdade, sem a qual acredito não há possibilidade de realização de um trabalho acadêmico. E pude desempenhar algumas tarefas que acredito serem fundamentais ao meu trabalho (não sem dificuldades, mas sem obstáculos intransponíveis). Por exemplo, a partir de uma crítica que tínhamos ao programa de pós-graduação no DG, no início dos anos 80 fizemos (à época era aluna de pós e professora) um amplo movimento de discussão e debate em torno do programa de pós-graduação em Geografia. Embasados por vários seminários sobre o tema, elaboramos análises e a partir do DGUSP, mobilizamos todos os outros programas de pós no Brasil. Com o apoio do professor Rui Coelho, (então Diretor da FFLCH), Selma Castro e eu coordenamos o primeiro encontro nacional de Pós-graduação em Geografia, a partir desta primeira realização outros 3 aconteceram (Rio Claro - UNESP - Rio de Janeiro - UFRJ - Santa Catarina - UFSC).
Outra atividade pioneira que me vi envolvida foi, com a organização do I (e do VII) Simpósio nacional de Geografia Urbana. O primeiro realizado em outubro de 1989, fato que surgiu a partir de uma mesa redonda que coordenei numa das sessões da SBPC do ano anterior tendo Silvana Pintaudi e Arlete Moysés como convidadas. Saímos da reunião da SBPC em 1988, acreditando que estava na hora de discutirmos a pesquisa em Geografia Urbana realizada no Brasil, e levamos a ideia para o Encontro de geógrafos da AGB que se realizou em Maceió, no mesmo ano. Ali no bar do hotel Arlete e eu nos reunimos com outros colegas – Roberto Lobato Correa, Maurício de Abreu, José Borzachilello da Silva, para discutimos a ideia e concluímos sobre a necessidade de fazermos um balanço sobre os últimos 50 anos de pesquisa em geografia Urbana brasileira. Ali mesmo fizemos um levantamento dos pesquisadores na área (em cada região do país) e começamos a fazer os convites. Cada um teria como tarefa estudar a produção geográfica sobre a cidade, de sua região - o que não era fácil. Deste primeiro simpósio saiu um livro bastante significativo. O importante é que ao longo destes anos o grupo vem aumentando a cada novo simpósio se somam novos pesquisadores. Mas há um grupo fundador (Roberto, Maurício, Pedro, Arlete, Silvana, Geiger, Aldo, Fanny e eu) que acabou, ao longo deste período, construindo uma sólida e profunda amizade que tem feito deste s encontros um momento de profundo debate e de reflexão.
Outra experiência é a possibilidade de ter colocado em prática uma ideia que tinha há tempos, a de fazer uma revista de pós-graduação a GEOUSP. A revista surge inicialmente com a ideia de intercâmbio e para dar visibilidade ao conhecimento produzido e que se realizam, prioritariamente, nos cursos de pós-graduação. Afinal naquele momento nosso Departamento tinha 430 alunos matriculados em seus dois cursos de pós-graduação (sendo que 283 na área de Geografia Humana), e apresentava um volume de pesquisa não negligenciável enquanto contribuição à construção do pensamento geográfico brasileiro. Hoje a revista mudou seu perfil abrindo-se para os pesquisadores de outros lugares e temáticas.
Pude ainda no DG ousar, foi assim que, em 1988 resolvi fazer um vídeo com meus alunos, a ideia era trazer para a sala de aula um conjunto de depoimentos sobre a possibilidade de se definir a geografia apoiada num conjunto de imagens sobre a metrópole de São Paulo. Era evidentemente, um trabalho amador, com muitas falhas técnicas, pois foi feito no DG com os equipamentos que dispúnhamos à época e com poucos conhecimentos técnicos sobre como faze-lo. Todavia acabou sendo um material didático usado por professores da rede estadual de ensino em São Paulo.
Na universidade se associam dois momentos importantes do papel do professor aquele em que ensina e forma pessoas, cidadãos abrindo-lhe os horizontes de um mundo rico em movimentos-transformações e aqui temos a sala de aula como o locos privilegiado do exercício da crítica, da possibilidade da manifestação da diferença, num espaço de afirmação da criatividade, motivado e alimentado pela paixão pela descoberta e de estímulo à reflexão passei quase 40 anos. Esse foi o tempo dedicado à graduação. As aulas de pós-graduação não se interrompem neste momento de “aposentadoria” (iniciada no fatídico ano de 2020) e com ele o trabalho de orientação; b) o trabalho de orientação – aquele que se abre à compreensão aprofundada do mundo sobre o qual nos debruçamos como um fragmento explicativo do mundo em suas contradições e possibilidades é a forma mais estimulante de nosso trabalho As atividades realizadas tanto com os alunos de graduação quanto de pós-graduação são momentos de reflexão e aprendizado; c) com minhas pesquisas pude construir uma compreensão sobre a realidade brasileira lida através de São Paulo e com esta compreensão preparar aulas de modo a que o conhecimento aqui produzido fosse inspirador de novas leituras. A independência de um país se apresenta na sua capacidade de produzir uma leitura original do mundo em que se vive. Uma explicação produzida em suas fronteiras. Infelizmente se dá mais importância ao que se produz no exterior e sabe-se muito mais sobre o que se produz “lá fora” do que o que se cria no Brasil.
Nessas três atividades – impossíveis de serem separadas - certamente aprendi muito, mas quero crer que trouxe uma contribuição em cada uma delas, que só os outros podem avaliar.
Quero acrescentar alguns outros momentos que considero importante, para mim. A vida no DG também se associa, para mim, ao Labur- laboratório de geografia Humana - foi um ponto também importante de reunião de pesquisadores da Geografia e de fora, reunindo alunos da graduação e da pós, mas não necessariamente composto por estudantes da geografia, pois todas as atividades estão sempre abertas a todos, sinalizando o questionamento da disciplinaridade e o espírito público da Universidade.
GESP- grupo de estudos de Geografia Urbana crítica- criado em 2001 que começou comigo e meus orientandos- reúne, hoje, diversos pesquisadores (os mesmos que eram estudantes e hoje são profissionais de muitas universidades brasileiras, da USP ou que se encontram no exterior) em torno do objetivo de desvendar os conteúdos da urbanização tendo como foco de análise os fundamentos que explicitam a desigualdade vivida concretamente no cotidiano da metrópole tendo como perspectiva a construção de uma “geografia crítica radical”. Entende-se por “crítica radical” a disciplina capaz de revelar as contradições constitutivas do processo desigual da produção contemporânea do espaço, e que, ao potencializar o “negativo” desse processo, propõe um caminho profícuo para elucidar os conteúdos não revelados da luta pelo “direito à cidade”. A proposta do GESP envolve a produção de um conhecimento sobre o urbano a cidade e o processo de urbanização como um compromisso de analisar a realidade urbana em seu movimento contraditório e enfocando os conteúdos que explicitam a desigualdade vivida concretamente, essa crítica visa a construção de um projeto de “uma outra cidade”; uma outra sociedade urbana como destino do homem; trazendo como consequência a necessidade de uma reflexão que elucide nossa época, focando a análise na reprodução sócioespacial.
Pensar o mundo através da geografia. Pensar a geografia numa perspectiva critica através da compreensão da produção do espaço. Apoia-se na hipótese segundo a qual a reprodução do espaço urbano, no mundo moderno, aprofunda a contradição entre o processo de produção social do espaço e sua apropriação privada. O grupo também produz a coleção de livros metageografia.
“Pelos corredores”: as cenas do cotidiano nos corredores e “na rampa” como falamos é muito diversa e rica. Nos cruzamos o tempo todo, debatemos, trocamos bibliografia e angustias sobre os destinos da universidade, da geografia e do pais e rimos juntos. Deste modo o cotidiano do DG, com nossas reuniões tem sido também um lugar profícuo de debates e tenho também aprendido muito - isto quando não descambam para o lado meramente burocrático, pois aí elas viram tortura. Mas nesses anos todos tenho me sentido parte de uma "comunidade" de diferentes. Nos primeiros anos, todavia, foi muito difícil, e neste momento foi de fundamental importância os logos "papos" com o Bocchicchio, a acolhida sem reservas das conversas com o professor Pasquale Petroni e sem dúvida as conversas e os conselhos do professor Carlos Augusto, com quem aprendi a fazer relatório. Frequentadora assídua da sala do professor, tive o privilégio de ouvi-lo falar sempre com entusiasmo sobre seu trabalho e de suas análises sobre geografia, literatura e arte. Mesmo aposentado, em suas votas ao DG, tenho o privilégio dos encontros com ele.
VII – Contribuições?
Isso normalmente eu deixo para os outros. Isto é, nossas contribuições devem ser medidas-avaliadas por aqueles que entram em contato com nosso trabalho e nos leem. Nenhum de nós pode fugir dessa situação de ser avaliado. Mas seguindo à risca a solicitação que me foi feita posso elencar a construção de dois movimentos de minha investigação que penso serem originais e podem induzir ao debate. Posso também me lembrar do que fiz com paixão e que penso estão aí rendendo frutos, pois fazem parte do presente. Destas destaco as ideias iniciais de construção de um encontro de pós-graduação – realizado com Selma Castro, antes da criação da ANPEGE, mas que deu origem à ANPEGE; a criação da GEOUSP, cujo trabalho inicial divido com Rita Ariza da Cruz ainda estudante que me ajudou nos 20 anos de minha coordenação assumindo quando saí da mesma; e a ideia inicial de realização de um simpósio para discutir as pesquisas em geografia Urbana, cujo esboço realizado na reunião da AGB de Aracaju, deu origem ao primeiro SIMPURB organizado na USP, em 1989. E finalmente, foi minha a ideia de criação do GEU, grupo de estudos Urbanos; bem como do GESP e do Grupo de teoria Urbana Critica do Instituto de Estudos Avançados da USP.
A estas atividades posso acrescentar um conjunto grande de livros organizados. E aqui quero fazer uma ressalva. As organizações destas obras não se reduzem a reunião de autores compondo uma obra, mas a ideia de que a produção do conhecimento e coletiva e de que a reunião e o debate de pessoas pensando o mundo de forma convergente – dando visibilidade a um pensamento residual-ou divergente a reunião critica de tendências é importante para mover o pensamento e a pesquisa- o que desfaz a ideia de organização como simples reunião.
Como exemplo, cito: a) o livro “A produção do espaço urbano: agentes e processos, escalas e desafios” (publicado pela Contexto, São Paulo: 2011) organizado junto com Marcelo Lopes de Souza e Maria Encarnação B. Sposito) feito pelo GEU (aonde publiquei o capitulo: Da ”organização à produção do espaço no movimento do pensamento geográfico”); b) a partir de debates com os autores tanto da ideia do livro quanto dos textos publicados, a coleção metageografia - composta de 4 livros e um dossiê na GEOUSP- onde se estabelece uma leitura marxista-lefevriana da cidade e do urbano produto de um grupo de estudos. “Crise urbana”, volume 1 São Paulo: Contexto, 2015 (edição em inglês: “TheUrban crises”. São Paulo: Contexto, 2015, e-book) - site: www.gesp.fflch.usp.br (em inglês); “A cidade como negócio”, Editora Contexto, volume 2 São Paulo:2015 Edição em inglês - Edições FFLCH - editora eletrônica - site: www.gesp.fflch.usp.br ; “Justiça espacial e o direto à cidade”, volume3, Editora Contexto, São Paulo:2017; “ Geografia Urbana Crítica: teoria e método”, volume 4 Editora Contexto: São Paulo2018. Dossiê “Henri Lefebvre e a problemática urbana” in GEOUSP, GEOUSP Espaço e Tempo (Online), [S. l.], v. 23, n. 3, p. 453-457, 2019. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/geousp/article/view/164015; c) os 3 volumes da coleção Geografias de São Paulo produzido pelos professores do DG-USP visando apresentar a partir de suas pesquisas uma análise da metrópole de São Paulo na data de seus 450 anos de fundação (Carlos, Ana Fani A e Oliveira, A.U de (org), Geografias de São Paulo: 2 volumes Editora Contexto, São Paulo, 2004).Aqui publiquei capitulo em que apresento o movimento de passagem da hegemonia do capital industrial ao financeiro como elemento definidor de uma nova realidade urbana (São Paulo :do capital industrial ao capital financeiro, volume 2 – A metrópole do século XXI); d) dando visibilidade a pesquisa de professores do mesmo DG-FFLCH-USP entorno da ideia de “necessidade da Geografia” no mundo de hoje (“A necessidade da geografia, Editora Contexto, São Paulo, 2019).; e) há ainda livros organizados como produto de debates acadêmicos realizados a partir de convênios de investigadores, como os dois realizados com a Universidade de Barcelona, destes cito Urbanização e Mundialização: estudos sobre a metrópole, (Contexto, São Paulo,2004), aonde está meu capitulo “A reprodução da cidade como negócio”); f) Dos livros organizados como reunião de pesquisas, apresentadas em evento, cito três livros produtos dos SIMPURBs nos quais participei da organização: “Caminhos da reflexão sobre a Cidade e o urbano” (EDUSP, São Paulo, 1994), “Dilemas Urbanos” Com Amália Inês Geraiges Lemos, Contexto São Paulo, 2003; “Geografia Urbana: desafios contemporâneos” com Angelo Serpa, EDUFBA, Salvador,2018).
Ainda seria ainda importante ressaltar meu trabalho no tema do ensino da geografia. Destaco: a) participação no projeto do DG-FFLCH /Secretaria da educação de São Paulo no programa de formação e professores, coordenado pelo professor Gil Sodero de Toledo, nos anos 80 em que viajávamos pelo Estado de São Paulo ministrando cursos. Desse conteúdo ministrado produzi dois livros paradidáticos publicados pela Editora Contexto Espaço e Industria (1988) e A cidade (1992) além da coordenação de vários livros voltados ao Ensino da Geografia como “A geografia na sala de Aula”, “Novos caminhos da Geografia” e “Reformas no mundo da Educação, todos de 1999; b) coordenação de cursos versando sobre o Ensino da geografia em várias versões da “ Bienal do livro” em São Paulo a convite da Câmara Brasileira do Livro aonde pude conviver com vários colegas como Aziz Ab´Saber, Manuel Correia de Andrade, Ariovaldo Umbelino de Oliveira, Nidia Pontuchka, dentre outros.
7.1 Contribuições no âmbito do pensamento geográfico
As pesquisas realizadas ao longo de minha vida acadêmica visam à construção não só de uma compreensão sobre a realidade brasileira no movimento constitutivo da sociedade urbana – lida a partir de São Paulo- como a elaboração de uma teoria capaz de revelar uma “leitura do mundo” através da Geografia como disciplina. Assim cheguei à construção do conceito sobre o espaço no âmbito da Geografia a partir de minhas angustias de formanda, como apontei antes.
Faz-se, para mim necessário iniciar com um esclarecimento importante: essa construção conceitual se tece tendo por fundamento a obra de Marx e antecede minhas leituras da obra de Lefebvre e, portanto, seus conteúdos e percursos são diferentes – há, todavia divergências e encontros e o dado interessante de que estávamos eu e Lefebvre nos debruçando sobre os conteúdos da “produção do espaço” quase no mesmo momento: ele publica o livro em 1974, minha dissertação em 1978 e eu entro em contato com a obra de Henri Lefebvre somente em 1986, no curso do professor José de Souza Martins. Foram longas horas e inúmeros dias na biblioteca das Ciências sociais da USP nos anos de 1975-1977 quando elaborava minha Dissertação de mestrado “reflexões sobre o espaço geográfico” defendida em 1979 que me debrucei sobre uma bibliografia completamente nova e difícil sobre a formulação “do conceito de espaço”: da filosofia até Einstein o caminho foi tortuoso e sofrido. O ponto de partida, todavia foi à leitura dos chamados clássicos da geografia francesa de minha formação uspiana. O debate sobre o espaço atravessa a Geografia e é chocante ainda ouvir colegas afirmarem que o debate sobre a produção do espaço foi introduzida por Henri Lefebvre, à Geografia e não construída no desenvolvimento do próprio pensamento geográfico, como desdobramento necessário. Talvez o mergulho no conceito – mais restrito- de território tenha impedido essa compreensão.
O conceito de produção do espaço se desdobra, em minha formulação da relação homem-natureza como ato civilizatório, superando a compreensão de uma Geografia centrada na localização e distribuição das atividades e dos homens no espaço ou no território em direção à análise da produção deste espaço como produto social e histórico. Corresponde a uma prática socioespacial real que se revela produtora dos lugares, e que encerra em sua natureza um conteúdo social dado pelas relações sociais que se realizam em espaços-tempos determinados. Na escala do lugar, ilumina a existência de uma vida cotidiana na qual se manifesta a vida. Assim, o pressuposto: as relações sociais têm uma existência real enquanto existência espacial concreta que trazem como consequência sua produção: produzem, efetivamente, um espaço, aí se inscrevendo e se realizando.
Desse modo, a elaboração do conceito tem uma dimensão abstrata, mas indissociavelmente vinculada à práxis humana que se define como socioespacial. Nesta perspectiva, o espaço produz-se e reproduz-se como materialidade indissociável da realização da vida, elemento constitutivo da identidade social, como processo civilizatório. A formulação do conceito tem como conteúdo a tríade aonde a produção do espaço como movimento do mundo é a condição, meio e produto da reprodução da sociedade ao longo da história.
A tríade se constrói no movimento do método que dá centralidade a noção de produção social do espaço como desdobramento da relação sujeito-objeto. A produção do espaço, enquanto condição/meio e produto da sociedade aponta novos conteúdos ao abrir o pensamento a totalidade social. A tríade revela a reprodução social bem como a espacialidade das relações sociais. Parece muito claro ao longo da produção do conhecimento geográfico, a ideia de que não existe sociedade a-espacial (Milton Santos, 1979, Di Méo,2000, Carlos, 2011) todavia a Geografia parece ainda não ter superado a condição da materialidade absoluta do espaço, impedindo a consideração da teoria social.
Considerando que a produção do espaço traz como consequência sua reprodução, deparamo-nos com a necessidade de pensar o movimento da história que a explicite e, nesse sentido, a noção de reprodução se desdobra daquela de produção decorrente da necessidade de compreensão do movimento constante da realização da sociedade (o que não significa só linearidade, mas fundamentalmente, simultaneidade; relação dialética entre o tempo cíclico e o tempo linear; entre continuidade e descontinuidade; entre ruptura e crise; centralidade/periferia; concentração/dispersão; obrigando-nos a pensar os termos da reprodução da sociedade hoje (sob a égide da reprodução capitalista) em suas possibilidades e limites definidos. Neste conteúdo, sujeito e objeto vão se revelando. O espaço como condição envolve e supera a ideia de materialidade. Certamente as atividades humanas se distribuem no espaço, mas há relações sociais ao mesmo tempo a atividade envolve um conjunto de ações e uma dialética espaço-tempo. O espaço como condição da produção social aponta para a dimensão material. Isto é o espaço como materialidade envolvendo necessidades/ representações/desejos; relações de classe e poder que percorrem todo o processo.
Materialidade envolve o movimento da história – o trabalho morto acumulado pelo processo de transformação constante da natureza em espaço humano da reprodução deste espaço ao longo do processo histórico – trabalho acumulado da sociedade produtora do espaço contempla acúmulos construídos pelos tempos passados do trabalho e da ação prática dos homens restituídos/presentificados/atualizados como infraestrutura que são também produtos do conhecimento e das representações de mundo.
Mas essa dinâmica espacial realiza-se numa estrutura, tem uma forma; adquire funções individualizadas dependendo do tempo. Portanto essa dimensão material contempla planos e níveis que se relativizam, isto é, não é um mero espaço construído. Há simultaneidade/dialética na produção e reprodução; mas há também uma escala a ser pensada em articulação de escalas espaço-temporais. Reunidas todas as qualidades aparecem como diferenciação/desigualdade dos lugares e entre esses mesmos lugares no tempo marcando diferenças nas escalas espaço-temporais. Envolvem uma totalidade que foge do material para incorporar o universo dos sujeitos produtores em sua relação com esta materialidade. Como condição o espaço adquiri também a forma e função de capital fixo para a reprodução da acumulação.
b) como meio o espaço é mediação na ação que produz a vida que revela a sociedade em ato. É a atividade como conhecimento/técnica/divisão social. A relação com a natureza não é direta requer mediações – trabalho, conhecimento, técnica, divisão, representação, etc. Envolve pensar o sentido estrito e lato do termo produção bem como aquela de produto como obra. Por outro lado, as relações comportam escalas – no e do espaço e no e do tempo. A Produção da cidade ilumina/esclarece representações da sociedade sobre o mundo que por sua vez tem um sentido politico, quer dizer relações com interesse de classe.
c) como produto - A cidade como forma do trabalho humano, momento indissociável da produção do espaço significa, o que sintetiza o produto das relações sociais e suas determinações históricas. Como terceiro termo da tríade revelar-se-ia o mundo e a realidade social em suas contradições, limites e possibilidades. As contradições que surgem dessa produção se revelam no produto: segregação socioespacial; privação; lutas e projeto – todos situando-se na práxis. O livro “A condição espacial” (Editora Contexto, São Paulo: 2011) sintetiza essa construção (outras publicações: anafani.com.br).
Esse conceito de espaço como produção social tem também norteado minhas reflexões sobre o turismo no movimento da realidade que produz o espaço como mercadoria a partir da venda de uma particularidade natural, cultural ou construída artificialmente. Cito, aqui, dois capítulos de livro daqueles que mais gostei de escrever: a) O turismo e a produção do não-lugar” in Turismo: espaço, paisagem e cultura que organizo junto com os professores Eduardo Yázigi e Rita de Cássia Ariza da Cruz (HUCITEC, São Paulo, 1996) e “Turismo e patrimônio: um aporte geográfico” In Geografia, Turismo e Patrimônio Cultural: identidades e ideologias (Anablume, São Paulo, 2017 a convite da professora Maria Tereza Duarte Paes.
7.1.2 A metageografia (ou “geografia marxista-lefevriana” como definiu Maurício de Abreu)
Como consequência deste caminho de produção sobre uma teoria do “espaço da geografia” (sintetizado no capítulo “ Uma geografia do espaço” no livro A necessidade da geografia, Contexto, São Paulo: 2019) e do debate com os autores da geografia construí o que venho chamando de “metageografia” que se revela como um momento de exigência do pensamento crítico a partir da crítica à produção do conhecimento da Geografia baseada na necessidade de construção de uma nova inteligibilidade do mundo iluminando as contradições vividas pela sociedade que aparecem na vida cotidiana como privação dando centralidade ao conceito de “produção do espaço”, uma vez que é no espaço que se pode ler as possibilidades concretas de realização da sociedade, bem como suas contradições que aparecem nas lutas no espaço, pelo espaço.
A construção de um pensamento crítico sobre a produção do espaço no mundo moderno revela o aprofundamento das contradições decorrentes da reprodução da sociedade, num momento de generalização da urbanização, da passagem da hegemonia do capital industrial ao capital financeiro e de uma sociedade eminentemente urbana.
O método dialético, como caminho do pensamento que compreende o mundo, ilumina o laço entre teoria-prática em suas contradições, deslocando a análise do plano da epistemologia para o da prática, com redefinição dos conteúdos de alguns conceitos objetivando desvendar o “campo cego” sob o qual se realiza a investigação urbana. Neste sentido, a metageografia, propõe: a) uma nova inteligibilidade que fornece um ponto de partida para a reflexão, o movimento contraditório da realidade que funda a dialética do mundo. Esse delineamento busca, como horizonte de pesquisa e como percurso teórico-metodológico, elucidar os fundamentos do movimento que explica a realidade atual, que se realiza, também, como movimento do pensamento crítico; b) um caminho capaz de realizar o movimento, no plano do pensamento geográfico, que vai da "organização do espaço" à análise de sua "produção social". Essa orientação traz exigências teóricas que redirecionam a pesquisa, focando um mundo construído socialmente – isto é o espaço como produção história e social através da realização da criação do humano; c) a análise das contradições que eclodem sob a forma de lutas no espaço e pelo espaço, com aumento de tensões de todos os tipos que escancaram uma vida cotidiana em sua privação, controlada e vigiada. A compreensão da práxis encontra aí os resíduos capazes de ganhar potencialidade e se transformar num projeto de metamorfose da realidade; d) a consideração dos resíduos presentes nas ações cotidianas com potencialidade para superar as condições de privação. No plano do conhecimento propõe-se a superação da sua produção ideológica que permite a reprodução do sistema e de suas especializações. Como exigência teórica , a metageografia se propõe superar: a) a redução da problemática urbana àquela da gestão pública da cidade e a insuficiencia da crítica da proposta da “gestão democrática” ao empreendedorismo urbano (“La utopía de la Gestión Democrática de la Ciudad. Scripta Nova (Barcelona), Barcelona, v. 9, n.194, 2005 ou “A ilusão da transparência do espaço e a fé cega no planejamento in Revista Cidades vol 6.10, Presidente Prudente 2004) ;
b) a compreensão da cidade enquanto quadro físico, ambiente construido criando políticas públicas que reproduzem as condições de privação do humano; c) a interpretação da cidade enquanto sujeito de ação que domina a investigação urbana- (“Seriam as ciudades rebeldes in Geografia Urbana: 30 anos de SIMPURB, Editora Consequência,RJ,2020) ; d) a existência de uma renda da terra urbana (A condição Espacial, op cit) e) o obscurecimento da propriedade e ausência de critica à “ função social da propriedade” ( A privação do urbano e o direto à cidade em Henri Lefebvre, in Justiça Espacial e o direito à cidade, op cit); f) o entendimento da cidade reduzida a uma escala de tamanho; g) a segregação tratada como apartamentos/separações des grupos sociais no espaço da cidade (“Geografia crítica radical e a teoria urbana” in Geografia Urbana Crítica, op cit) ; h) a violência urbana tratada como criminalidade (“Epacaio urbano y violência” in Violencia y desigualdad Neuva Sociedade, ADLAF, Buenos Aires, 2017); i) o turismo que encobre o consumo dos lugares na cidade em função de uma determinação histórica esvaziada (acima citado); j) o direto à cidade tornado política pública e a perda do horizonte utópico (“Em nome da cidade (e da propriedade in anais geocritica, ww.edu.geocrit, xivanafani).
Nos dias de hoje, o sentido da crítica e do pensamento crítico se associa a uma crise prática real, produto das metamorfoses do mundo moderno, em que a lógica do crescimento – sob várias representações, como aquela do progresso (que funda a ideia de qualidade de vida) - produziu o aumento da riqueza gerada em lugares e classes concentradas no espaço e na sociedade. No caminho aqui proposto, a análise geográfica do mundo seria aquela que caminharia na direção do desvendamento dos processos constitutivos da reprodução da sociedade em sua dimensão espacial aonde as contradições exigem outras respostas de superação que a exigência as políticas públicas não responderiam. A superação das condições que imobilizam a realização do humano se realizaria pela construção de um “direto ao espaço” em confronto com o projeto do Estado e das políticas e projetos que o sustentam – sob diversas formas - revelando a dominação do Estado e de sua lógica sobre a sociedade; c) pensar o caminho para a transformação radical da sociedade sinaliza a construção de uma crítica radical do existente como de, através do ato de conhecer, desvendar os significados mais profundos das condições que impedem este mundo de se efetivar enquanto lugar da realização plena da humanidade.
Penso que esse caminho da produção de uma teoria sobre o espaço e a análise metageografia se encontra esclarecida no livro, “Espaço-tempo da vida cotidiana na metrópole”, menção honrosa Jaboti, editado em sua primeira versão pela Editora Contexto, São Paulo, 2001 e em versão corrigida, online, de 2018 http://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/388
O mundo se move e nós nos transformamos todos os dias, e assim, como assinala Arteau, tudo que ainda não nasceu pode vir a nascer, desde que não nos contentemos em ser simples órgãos de registro. (Antonin Arteau, “O teatro e seu duplo”, São Paulo Martins Fontes, 2006). A compreensão radical e necessária do mundo é uma forma de luta, portanto um posicionamento político.
Notas
1 - Marcel Proust, À sombra das raparigas em flor, tradução Mario Quintana, Rio de Janeiro, Editora Globo, 1987, página 12
2 - Dostoiewsky, Notas do Subsolo, página 40