ROSA ESTER ROSSINI HISTÓRIA DE VIDA (1941-2020)
Rosa Ester Rossini
1. HISTÓRIA DA VIDA ATÉ A UNIVERSIDADE - 1941-1960
Desde o meu nascimento, ocorrido em Serra Azul, convivi com o trabalho da mulher. Minha mãe sempre trabalhou para somar na manutenção da família. Inicialmente, após o casamento, ela costurava sapatos, enquanto meu pai os fazia.
Por problemas de saúde do meu pai, este vendeu a sua parte na sociedade de uma sapataria, a qual já contava com 17 pessoas trabalhadoras, e veio para São Paulo, com a família para se cuidar. Foi operado e ainda, neste período, meu irmão também ficou doente. Por recomendação médica voltamos para o Interior. Residimos alguns meses em Altinópolis, onde, durante o dia, meus pais trabalhavam como sapateiros e, à noite, meu pai tomava conta do Clube. Foram dias difíceis.
Quando eu tinha 5 anos minha mãe foi convidada para trabalhar no Grupo Escolar de Serra Azul como servente. Voltamos para minha cidade natal e minha família iniciou a "vida no funcionalismo público". Meu pai continuava como sapateiro exercendo atividade em casa e à tarde ia ajudar, gratuitamente, minha mãe na limpeza do Grupo. Ela era a única funcionária.
Neste período convivi intensamente com meu pai e com a nonna (avó), quando aprendi a admirá-los muito. Ia buscar lenha "no mato" com ela para a preparação dos alimentos no fogão de lenha. Não íamos sozinhas. Com o tempo várias crianças da área onde morávamos aderiram “à atividade” como se fosse uma espécie de brinquedo. Ficávamos juntas e, para nos proteger, de algum animal ou cobra, ela ia na frente e nós a seguíamos. No cerrado ela nos explicava a importância de cada lenha que selecionávamos e dizia: “estes gravetos são bons para fazer o início do fogo, pois queimam rápido; ao selecionar as madeiras um pouco mais grossas ela explicava, ao fazer o feixe, que estas eram as canafístulas – madeira dura – que mantinha o fogo aceso por mais tempo (por exemplo, faveiro, sucupira, ipê, jacarandá branco, etc.) ”. Depois de todos os feixes prontos ela fazia a rodilha que era um protetor para a cabeça que consistia em pegar, por exemplo, um saco vazio de açúcar, torcê-lo e enrolá-lo como uma rosca, colocá-lo na cabeça e sobre a qual se assenta o feixe de lenha. Para nós, crianças, era um lazer, um prazer, uma alegria.
Com frequência a nonna Esterina ia visitar as amigas na colônia e me levava com ela. Sempre atenta a tudo, as ouvia falar sobre as histórias da “Brava Gente”. O forno de barro que ficava na frente da cozinha era usado para fazer pão ou assar alguma outra coisa. Nas prateleiras havia muitos doces em conserva (goiabada, bananada e doces em calda - laranja, figo, mamão, cidra). No fumeiro havia variedade de carnes e linguiça. Na lata de gordura, carne pronta em conserva.
Via também cortinas nas janelas, jardim cheio de flores na frente da casa e, no quintal, uma verdejante horta cercada para que os animais de pequeno porte não a invadisse. Tudo isto ia me encantando e acabou ficando gravado para sempre na minha memória.
Numa cidade de amigos, os serviços realizados e nem sempre pagos passaram a ser maiores do que os remunerados. Fazendo um balanço entre receita e despesa meu pai percebeu que, sem computar a sua mão-de-obra, estava gastando mais em material do que recebia com o fruto do seu trabalho. Assim sendo, abandonou a profissão e foi ser carregador de lenha em caminhão.
Aos seis anos, num dia 1o de maio, maravilhada com o desfile dos estudantes do grupo, eu me apaixonei pela escola. Chorei muito dizendo que queria entrar no grupo. Minha mãe falou com a Diretora e dias após, dois meses e meio depois do início das aulas, eu fui para a escola. Consegui ser aprovada no final do ano.
Alguns anos depois, surgiu a possibilidade de uma vaga para servente e meu pai também foi trabalhar no Grupo.
Minha carreira de estudante vai ser selada, indiretamente, pelas mãos de Dona Antonietta de Mattos Guaryannas Taveiros, a diretora do Grupo, a quem devemos a democratização do ensino em Serra Azul.
Até 1948 só as famílias de melhor renda enviavam os filhos para o Ginásio e o ensino médio, pois, praticamente, a única opção era o internato. Escolas caras, enxoval, etc. Em outros casos, para as mulheres havia os pensionatos dirigidos por religiosas, muito caros e com horário de fechar as portas à noite às 22 horas. A outra alternativa, para os meninos pobres, era o seminário que, com frequência, desistiam da “vocação” quando concluíam o ensino médio.
Dona Antonieta fez levantamento na cidade de todas as crianças e adolescentes que tinham "pendor" para o estudo. Foi de casa em casa falar com os pais dos futuros estudantes. Usou o seguinte argumento: deixe seu filho(a) estudar e caso os senhores não consigam mantê-los eu os ajudarei. Assim ela preparou todos/as jovens para o exame de admissão ao Ginásio em São Simão. Numa manhã de dezembro, subiram todos no caminhão e foram fazer exame no Ginásio. Quase todos foram aprovados e nesta leva foi meu irmão, quase quatro anos mais velho do que eu. No começo viajavam de caminhão, diariamente, para São Simão, para frequentarem o Ginásio, depois conseguiram uma jardineira, a "Marieta".
Meus pais sempre tentaram agir de forma democrática e quando eu, aos 10 anos, obtive o diploma do Grupo Escolar e não podia prestar o exame de admissão ao ginásio tive que ficar em casa quase um ano. Fui no segundo semestre, sem questionar, para São Simão, na "Marieta", fazer o cursinho para entrar no ginásio.
Sempre lutei para conquistar meus objetivos. O primeiro grande exemplo ocorreu em outubro de 1952 quando comuniquei à minha família, na hora do almoço, antes da partida da jardineira, que eu ia, a partir daquele dia, morar em São Simão. Diante dos olhares atônitos do meu pai, da minha mãe e da nonna, eu lhes expliquei que a professora, Dona Zoé, disse que eu precisava estudar mais, caso eu quisesse entrar no ginásio e teria, portanto, que dedicar mais tempo ao estudo e ainda receber ajuda da professora. Uma coleguinha me convidou para ficar na casa dela em São Simão. Assim eu saí de casa. Um mês depois meu pai foi ver onde e como eu estava. Quando entrou no escritório e me viu estudando, chorou de emoção.
Em 1953 já estava frequentando o ginásio em São Simão, pois havia sido aprovada no exame de admissão.
Fiz o ginásio, viajando diariamente para a cidade vizinha. No percurso via o café ser substituído por pastagens e eucaliptos. A jardineira quebrava muito e quase diariamente chegávamos a São Simão ou a Serra Azul a pé. Percorríamos trechos de terra-roxa ou de areão. Comecei a perceber nitidamente diferenças de paisagem.
Em Serra Azul, da minha casa, eu via o café ser substituído pelo algodão e ambos já começavam, também, a ser substituídos pela cana. Durante as férias eu ia com a nonna, na Fazenda Paraíso, colher algodão e/ou ia buscar lenha nas áreas de que estavam sendo retiradas partes da mata remanescente para o cultivo deste produto. Íamos diretamente na mata buscar lenha, conforme já referido. Conosco, agora, se juntavam outras mulheres e muitas crianças. Era uma festa, mas eu ainda não percebia que já estava colaborando para a manutenção da família.
A vida era difícil, o salário se atrasava e meu irmão fazia o Curso Normal no Instituto de Educação Moura Lacerda, em Ribeirão Preto. O dinheiro para ele não podia faltar, mesmo considerando que morava na casa do tio Umberto.
No ginásio de São Simão poucos professores haviam cursado a Universidade. O professor James Noronha de Souza havia frequentado a Universidade de São Paulo e cursado Geografia, a professora Maria Sabina Kundman, professora de Francês, também tinha o diploma da USP. Eles se individualizavam.
A influência do professor James foi decisiva para a definição e reforço da minha opção futura. Ele explicava as mudanças da paisagem. Com o uso obrigatório do Atlas em todas as aulas, ele nos mostrava o Brasil e o Mundo. Devo, entretanto, ressaltar que o primeiro mérito pela minha escolha profissional foi devido à nonna que me despertou o prazer de conhecer a paisagem, o trabalho das pessoas e como viviam longe de suas terras e o que e como faziam para sobreviver. Eu me decidi, já na segunda série ginasial, por fazer GEOGRAFIA.
Ganhei muitos beliscões da minha mãe a cada vez que dizia que ia ser professora de Geografia. Como é que a filha dos serventes ia ser professora de ginásio se as filhas da Dona Antonieta eram professoras primárias e nenhuma mulher na cidade tinha ido além do Curso Normal? O braço ficava roxo e eu "como a mulher do piolho" - teimosa - dizia: eu vou ser Professora de Geografia.
Cada vez que eu ia com a nonna visitar as amigas na colônia da Fazenda Paraíso aumentava meu encantamento com o pão quentinho feito no forno de lenha, com as carnes dependuradas no fumeiro, com a horta cheia de verduras, com o pomar carregado de frutas, com o jardim cheio de flores. Cada família era dona de uma "fatia" de terra que ia desde a estrada, passando pela casa até o topo da cuesta.
Os italianos vindos no final do século XIX - minha família chegou em 30 de dezembro de 1889, no Porto de Santos–foram levados, depois de passarem pela Hospedaria dos Imigrantes em São Paulo, para o município de São Simão, no Distrito de Serra Azul para o trabalho na lavoura de café. Trabalhavam sob o regime de colonato e recebiam, por ano de trabalho, pelo número de pés de café que cuidavam, guardando proporcionalidade entre o número de pés de café e o tamanho da família. Recebiam a casa, um pequeno quintal no entorno da casa onde lhes era permitido criar pequenos animais (cercados) e cultivar verduras, frutas e flores, além de poderem plantar, por exemplo, milho e feijão no intervalo entre uma fileira e outra dos pés de café. As despesas na venda da fazenda eram pagas, geralmente, superfaturadas, no final do ano, quando do acerto de contas.
Muitos conseguiram fazer um pequeno "pé de meia" e, mais tarde, com o loteamento das propriedades, na década de 40, feito pela Companhia de Imigração e Colonização - CAIC - compraram os lotes e passaram a ser donos da terra. Minha família, bem antes desse período, no início do século, já havia conseguido pagar as dívidas no armazém da Fazenda Paraiso, saído do campo e ido para Serra Azul montar um pequeno comércio.
O nonno, Andrea, morreu de acidente de carroça, aos 27 anos, em 1911, quando ia levar "despesa" nas fazendas e meu pai, com 7 meses de idade – e seus dois irmãos foram criados por um tio – Umberto – que, não tendo conseguido manter o comércio, foi ser mestre de obras.
Voltando à década de 40, alguns italianos venderam para "mineiros" seu lote e foram se estabelecer na cidade e/ou migraram para outros locais como Ribeirão Preto ou São Paulo.
Eu queria entender como era tão diferente a terra cultivada pelos "oriundi" e aquela cultivada pelos naturais da terra. Eu queria entender por que os solos eram diferentes. Eu queria entender porque as pessoas eram diferentes. Eu queria entender porque uns tinham muito e outros trabalhavam e se submetiam e continuavam pobres. Só a Geografia, da "Maria Antônia", segundo Seu James, poderia me dar respostas a essas indagações.
Disse para meus pais que queria cursar o Colegial, mas, na ótica deles, eu tinha que me profissionalizar. O máximo que eles imaginavam que poderiam "me dar" era o diploma de Professora Primária.
Na década de 50, as professoras gozavam de grande status e eu seria uma delas. A profissão já havia se feminilizado. Na classe do meu irmão, que havia se formado no ensino profissionalizante em 1957, havia apenas dois rapazes.
Fui para o Curso Normal em Ribeirão Preto e, neste ano, introduziram o vestibular; era o ano de 1958. Neste, mesmo ano, alguns dias após o início das aulas, recebi um telefonema do Diretor do Ginásio de São Simão me convidando para ir para lá, pois acabara de ser criado o Curso Normal. Agradeci e fiquei no Ginásio Estadual e Escola Normal Oficial "Otoniel Mota" de Ribeirão Preto. Foi uma das decisões mais acertadas de minha vida.
Ao contrário de meu irmão, não aceitei morar em casa de parentes. Fui para uma pensão mista, era mais barato que pensionato. Naquela pensão, na Américo Brasiliense, já havia morado a Maria Helena Antuniassi, de quem 20 anos depois fiquei amiga aqui em São Paulo, através do Centro de Estudos Rurais e Urbanos. Era a pensão da Dona Antoninha, viúva, que mantinha quartos coletivos de aluguel para poder manter os filhos estudando. Um deles era o hoje conhecido Major Curió.
Minha vida mudou completamente em Ribeirão Preto. Conheci e me tornei amiga do "grupo das pobres". Ainda, nesta época, mesmo o curso Normal oficial, porque era mais difícil, era freqüentado por filhos de família de classe média e alta. Nós, a Baccega, a Deisi, a Stella, a Litamar, a Santa, a Lourdinha, a Du, etc., éramos filhas de assalariados, pobres.
Todas nós lutávamos, de alguma maneira, para sobreviver. Eu recebia o dinheiro da pensão que era "retirado" do salário dos meus pais. Meu irmão já trabalhava na Clipper, em Ribeirão Preto. Não seguiu a carreira do magistério, embora tivesse tudo para ser bom professor, pois não pôde lecionar, considerando que só no final de fevereiro iria completar 18 anos. Depois de casado, ajudava muito a esposa no preparo do material das aulas. Era excelente desenhista e, enquanto eu estava no ginásio, ele fazia meus trabalhos de desenho e pintava meus mapas.
Em Ribeirão Preto a convivência com as amigas pobres foi uma dádiva. A Baccega, sempre amiga, era a líder do grupo. Dava aulas particulares de português, reunia a equipe na casa da tia,(sua mãe havia morrido de câncer no ano anterior), na Vila Tibério, para os estudos de grupo. Fazíamos debates com os "colegas" do clássico.
Os professores do "Otoniel Mota" eram excelentes, na sua maioria. Um bom número formado pela Universidade de São Paulo. Toccari de Assis Bastos, Florianete de Oliveira Guimarães mostravam o que era ser um professor consciente, engajado.
Nestes três anos eu tentava sobreviver diminuindo as despesas para minha família. Meus pais pagavam a pensão e eu dava aulas particulares para crianças da Escola de Aplicação do "Otoniel Mota". Descobri também com a Deise e com a Stella que se jogasse basquete para a equipe da cidade poderia viajar. Nas refeições, nas cidades onde se realizavam os jogos, era permitido pegar a sobremesa da semana (chocolates, balas, doces). Treinava quase todas as tardes na "Cava do Bosque". Foi um período agradável. Fomos vice-campeãs dos Jogos Abertos do Interior, realizados em Santo André, em 1959.
Continuava ouvindo e recebendo orientação do professor James que agora morava em Ribeirão Preto. Ele me emprestava livros, me orientava e eu me preparava para o vestibular na "Maria Antônia".
No dia 26 de dezembro de 1960 eu e meu pai viemos para São Paulo para eu fazer o cursinho. Os professores eram estudantes do último ano ou recém-formados pela Universidade de São Paulo.
Também não foi fácil convencer meus pais que eu queria fazer faculdade. Afinal eu já era professora. O sonho deles havia se concretizado. O anel de pedra verde seria o símbolo dessa realização. Meu pai fez empréstimo para a compra da jóia. Consegui com que a mesma não fosse adquirida e o dinheiro do empréstimo me fosse dado para eu "passar dois meses" em São Paulo. Abrimos um crediário na Clipper e eu comprei um "banlon" azul, um par de sandálias havaianas. Tomamos o Cometa e chegamos em São Paulo.
Minha tia queria que eu ficasse na casa dela em São Paulo, no bairro de Pinheiros, mas eu argumentei que sempre havia morado em pensão e preferia continuar nessa situação porque tinha mais liberdade para usar o meu tempo. Venci e fomos procurar uma pensão nas imediações da Maria Antônia. Acertei, porque quando começaram as aulas chegaram as "meninas" universitárias do interior, já residentes no casarão da Marquês de Itu: Cidão (São Roque), Clemência (Piracicaba), Ilza (Bauru), Takako (Bauru), Marlene (Bauru), Maria Rosa (Gonçalves), Lúcia Comenho (Avaré), Madalena...
Prestei o vestibular para a Geografia na Universidade de São Paulo. Fiz todos os exames, escrito e oral - Geografia Geral e do Brasil, História Geral e do Brasil, Português e Inglês - todos eliminatórios. Fui passando em todos, mas fiquei no último, inglês. Quase morri de chorar. Telefonei para Serra Azul, na casa de um "amigo", para informar. A minha sorte, uma vez que eu não havia passado no vestibular, foi a forma pela qual meu pai foi informado da minha primeira grande derrota.
Soube que havia outro vestibular de Geografia no "Sedes Sapientiae", Faculdade paga. Telefonei para a professora Maria Sabina, que nesta época já morava em São Paulo e ela veio ter comigo, me consolou, me incentivou e me ajudou no pagamento da inscrição. Prestei exames e fui aprovada.
2. A CHEGADA NA UNIVERSIDADE... 1961-1964
Enquanto fazia o vestibular na Cidade Universitária conheci o professor Araújo. Tínhamos "uma história ligada a Ribeirão Preto". Foi "amor à primeira vista". Ele passou a ser a minha referência. Também no vestibular conheci a Lia, amizade que preservo até hoje.
Comecei a frequentar a Geografia do "Sedes". Apenas preenchi um formulário para pedir bolsa. Não foi preciso fazer mais nada. A dificuldade econômica estava transposta. Foi a minha primeira bolsa de estudos.
Durante o ano em que frequentei o "Sedes Sapientiae", fiz amizade com várias colegas, que me marcaram muito.
Foi o primeiro contato que tive com escola não oficial. As cônegas, pela sua abertura, pela amizade, pelo apoio logo me cativaram. A Madre Maria Ângela - Irmã Lêda -, a Madre Maria da Paz - Irmã Ana Maria -, a Madre Ana Maria - Irmã Lúcia -, a Madre Claret - Irmã Valdete -, Irmã Olívia, Irmã Carmelita, foram tantas que conheci e de quem fiquei amiga que acabaria por estender demais "minhas memórias". Todas foram muito importantes e quase me tornei uma delas. Faltou-me coragem e força.
Em abril de 1961, a inflação se acelerava, a mensalidade da pensão aumentava, a situação ficou muito difícil. A opção foi montar uma "república". Fizemos reunião e organizamos o grupo.
A caminhada para encontrar um apartamento foi grande. Ninguém alugava apartamento para moças, estudantes e do interior. Depois de muitas negativas, encontramos um apartamento. A proprietária era a educadora Chiquinha Rodrigues. Foi a única que acreditou em nós.
No dia 16 de maio mudamos para a rua das Palmeiras. Talvez essa república tenha sido a primeira ou uma das primeiras de mulher. Fazíamos depois da meia-noite, única hora em que todas as moradoras estavam em casa, duas reuniões mensais: uma para prestação de contas e outra cultural. Cada mês uma das "meninas" falava sobre tema de sua "especialidade". Foram, provavelmente, os dez melhores anos de minha vida.
Praticamente todas as moradoras eram estudantes da Universidade de São Paulo. Foram me convencendo a mudar, e a Lúcia me convidou a assistir, à tarde, aulas, na Cidade Universitária. No final do ano eu consegui a transferência para o Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo, na Cidade Universitária.
Ainda no mês de maio de 1960, meu pai escreveu me convidando a voltar para Serra Azul e ser professora substituta no Grupo Escolar. Dizia ele que a situação estava difícil e que já havia diminuído o consumo de cigarro, os sapatos precisavam ser substituídos, etc., que não dava mais, especialmente porque os gastos aumentaram muito com a doença da nonna. Pensei bastante e escrevi a ele dizendo que não precisava mais enviar dinheiro.
Fizemos reunião na república e a Takako me arrumou uma atividade: preceptora dos filhos de uma família japonesa. Recebia pouco, mas sobrevivi. Na rua das Palmeiras a contribuição mensal se referia aos gastos com o apartamento e consumo coletivo de café. Fiquei mais de seis meses comendo batata temperada com sal e limão; era a alimentação mais barata.
Na Cidade Universitária eu me realizei. Passava o dia todo lá e fui considerada uma aluna aplicada. O professor Araújo percebeu minhas dificuldades, não falou nada, mas agiu prontamente. Passei a dar aula particular para os filhos dele - José Marcos e Eliana.
Ele me levava da Geografia para a casa dele, na hora do almoço, para que eu desse aulas para as crianças. Elas não precisavam, mas foi a forma discreta que meu amigo encontrou para que eu me alimentasse. Todas as tardes, também, com a mesma discrição, me convidava para tomar no bar da Geografia uma média com pão e manteiga. Passei também a dar aulas para Stela, filha da Dona Nice. Grande parte dos meus problemas alimentares estavam resolvidos.
Sempre que o professor Araújo podia ele me arranjava um "bico". Assim passei a colaborar de forma mais efetiva com ele, levantando material para a Tese de Livre Docência que estava elaborando e também para a pesquisa sobre a Baixada Santista.
Fiquei totalmente envolvida com a vida universitária e profissional. Em 1962 dava aula de admissão na escola que seria criada no bairro do Butantã, trabalhava no levantamento do material sobre o Porto de Santos, especialmente nas férias, passava o dia todo no Departamento de Geografia e, no domingo, junto com as cônegas, Madre Maria ßngela, Madre Ana Maria e Madre Maria da Paz dava aula de religião em Santo André.
Minha primeira grande excursão aconteceu em janeiro de 1963. O professor Aziz organizou uma viagem pelo Vale do São Francisco. Quanto aprendi! Visitamos as Cidades Históricas, chegamos a Pirapora, descemos o rio no "Venceslau Braz" até Juazeiro, na Bahia. Foram dias memoráveis. Todas as noites o professor reunia os mais de trinta estudantes da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – Sedes Sapientiae - e da Universidade de São Paulo que estavam viajando, fazia uma exposição e recomendava leituras. Chegamos a Juazeiro e em Petrolina tomamos um trem para Salvador. Foram três ótimos dias no Hotel Paraíso. Visitamos a Petrobrás, que financiava nossa estada na cidade. Alugamos um micro-ônibus, pois alguns dos estudantes "esticaram" a viagem e voltamos para São Paulo. Foi a minha primeira e proveitosa viagem geográfica. O professor Aziz foi assim, o professor que com seu brilho incontestável, nos mostrava como o ser humano interferia na paisagem re/produzindo um novo espaço. Com grande categoria integrava sociedade e espaço.
Eu já estava perfeitamente inteirada na vida universitária, exalava geografia, até cansava as "meninas da República" de tanto falar do meu curso. Estava irresistivelmente apaixonada pela geografia. O grupo dos deslumbrados era formado pela Lia, Olmária, Sebastião e eu. Não perdíamos nenhuma excursão, não perdíamos nenhuma conferência; a geografia era nosso alimento.
Em 1963 eu já havia me tornado sócia da Associação dos Geógrafos Brasileiros - AGB/São Paulo e não perdia as reuniões que aconteciam na cidade, na sede da rua 24 de Maio. Em julho de 1963 aconteceu a Assembleia Anual da Associação dos Geógrafos Brasileiros - AGB. Foi realizada na Bahia - Jequié - sob a presidência do professor Milton Santos.
Fizemos inscrição, fomos selecionadas, mais uma vez o professor Araújo colabora para o avanço da minha profissionalização, pois quando fui me informar dos custos ele já havia pago minha inscrição que incluía hospedagem e alimentação.
Rumamos para Jequié numa perua comandada pelo Tomotoshi. Éramos sete: Diva, Lia, Sebastião, Manuel de Souza, Tomotoshi, um primo deste e eu. Percorremos a Rio-Bahia recém-asfaltada. Era por ela que viajavam, agora, os "paus-de-arara" que se dirigiam para São Paulo.
Em Jequié participei da equipe de trabalho comandada pela professora Nice Lecocq Müller. Fui responsável pelo subgrupo: "A área de influência de Jequié". Fazia parte da equipe o jovem Roberto Lobato.
A Associação dos Geógrafos Brasileiros - AGB, juntamente com o Departamento de Geografia, foram a minha escola de aprendizado. Trabalhávamos, lado a lado, comandados pelos maiores expoentes da geografia do Brasil. Nunca mais perdi reunião da Associação dos Geógrafos Brasileiros - AGB. Fui depois às Assembleias que se realizaram em Poços de Caldas (1964), Congresso no Rio de Janeiro (1965), Blumenau (1966), Franca (1967), Montes Claros (1968), Vitória (1969), I Encontro Nacional em Presidente Prudente (1972), Congresso da Associação dos Geógrafos Brasileiros - AGB em Belém (1974), II Encontro Nacional em Belo Horizonte (1976), Fortaleza (1978), Rio de Janeiro (1980). A partir dessa data assisti apenas aos III, IV e VIII Encontros da Associação dos Geógrafos Brasileiros - AGB no Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador, respectivamente.
A paixão pela Geografia aumentava cada vez mais. Queria conhecer tudo, queria me "especializar" em tudo. Em 1963 fiz estágio com os professores Maria Alice dos Reis Araújo e José Bueno Conti, no Instituto Geográfico e Geológico, e com o doutor Nelson Rodrigues no Instituto de Medicina Tropical. Neste mesmo ano, a convite da Marinita, comecei a ensinar geografia no Colégio Estadual Antônio Raposo Tavares, de Osasco.
Assisti também, em 1964, ao curso optativo de Orientação à Pesquisa coordenado pelos professores Léa Goldenstein, José Ribeiro de Araújo Filho e Renato da Silveira Mendes. A área escolhida para o desenvolvimento do trabalho interdisciplinar foi o "Bairro Industrial do Jaguaré". Nesse curso comecei a aprender a trabalhar em equipe. Foi um ano de pesquisa e mais tarde a professora Léa e eu redigimos o trabalho "O Bairro Industrial do Jaguaré", cuja publicação só viria a ocorrer em 1972, através do Boletim Paulista de Geografia, número 47.
Para completar foi criado o Instituto de Geografia da Universidade de São Paulo, em 1963, e através do convite formulado pelos professores Aroldo de Azevedo e Pasquale Petrone comecei a trabalhar na pesquisa sobre "O Abastecimento da Cidade de São Paulo em Produtos Hortifrutigranjeiros". Foi um ano de levantamento de dados junto ao Entreposto Municipal da Cantareira. Copiávamos, por amostragem de 10%, as notas fiscais com a discriminação dos produtos, do volume, da procedência e a empresa ou cooperativa responsável pela emissão da nota. Diariamente, o mais eficiente e responsável motorista - senhor Sulino - nos levava ao mercado. A equipe era constituída por todos os pesquisadores, estagiários e geógrafos do Instituto de Geografia: Seabra, Judith, Maria Enokida, José Luís, Lia e eu. Um pouco mais tarde a professora Diva se integra ao grupo.
Chega 64. Eu trabalhava no dia 31 de março, com a professora Diva, corrigindo os originais do livro organizado pelo professor Pasquale Petrone, fruto de trabalho interdisciplinar, "Baixada Santista". Na "República" onde eu morava fizemos reunião e a partir daí a casa se "encheu" de gente com "culpa no cartório". Pensávamos apenas que tínhamos que apoiar as pessoas que pensavam como nós.
Não perdia nenhuma excursão promovida pelo Departamento. Ia a todas as obrigatórias e mesmo às outras. Lia, Sebastião e eu não perdíamos nenhuma oportunidade.
Sabíamos que ia haver uma excursão e íamos ao ponto de saída do ônibus para ver se sobrava algum lugar. Os professores resolveram, em uma reunião do Departamento, de uma forma discreta, para diminuir nossa participação repetida, exigir sempre relatório. Isso não nos abalou, continuamos a ir em todas elas e fazíamos relatório. Acabamos "incomodando" até nossos colegas com nosso desejo de participar sempre.
A vida transcorria e eu trabalhava dia e noite com o objetivo de "crescer", assim concluí o bacharelado e licenciatura em Geografia em 1964.
3. O ENSINO E A PESQUISA... 1965-1988
O ano de 65 foi o mais importante, do ponto de vista profissional: "Dante Alighieri", PUC - "Sedes Sapientiae", "São Bento" -, Concurso de Ingresso, Congresso no Rio de Janeiro, Instituto de Geografia.
No início do ano foi criado o Curso Normal no Colégio "Dante Alighieri" e o professor Pasquale Petrone me convidou para assumir as aulas de Geografia.
No mesmo ano a professora Cacilda também me convidou para ensinar Geografia do Brasil na Faculdade "São Bento", pois ela começava a deixar as aulas de lá e no fundo me preparava para assumi-las, integralmente, o que aconteceria em 1967.
No "Sedes Sapientiae" os alunos do Curso de Ciências Sociais não estavam muito satisfeitos com a professora de Geografia. Como eu mantinha contato, aos domingos, com as Cônegas de Santo Agostinho e como elas estavam acompanhando meu interesse pela geografia e sabiam que eu ia iniciar o trabalho na PUC "São Bento" e no Colégio Dante Alighieri, me convidaram para assumir a Disciplina de Geografia Humana para o Curso de Ciências Sociais. Neste Departamento, mais tarde, eu seria eleita a Coordenadora (1970-71).
Neste mesmo ano de 1965 foi realizado o concurso de ingresso para o Magistério Oficial do Estado de São Paulo. Do concurso faziam parte as seguintes provas eliminatórias: escrita e leitura pública da mesma, didática e prova prática de cartografia.
A banca examinadora foi constituída pelos seguintes professores: José Ribeiro de Araújo Filho, Diva Beltrão de Medeiros e o representante do Ensino Oficial, Miguel Chammas.
Mesmo tendo sido classificada em primeiro lugar, não consegui escola na Capital. Mesmo assim, ao ingressar, pude conciliar, em parte, meus interesses, pois ensinava à noite no Instituto de Educação Estadual "Washington Luís", em Moji das Cruzes.
Em 1963 fui nomeada para auxiliar de pesquisa no Instituto de Geografia. O meu conflito surgiu em 1965, quando nós, os estagiários, ficamos sabendo que havia duas vagas para geógrafos/as e tinham sido convidadas pessoas que não estavam nem vinculados à pesquisa e nem ao ensino superior. Sentimos que, já formados, esses dois cargos deveriam ser preenchidos por concurso e nós nos submeteríamos a ele. Isso não aconteceu e pedimos demissão: José Luís, Maria Enokida e eu. Os/as geógrafos/as não foram admitidos. Mais tarde o Adilson A. de Abreu foi nomeado. Apesar desse problema, eu continuei, agora "estagiando", sem bolsa, no Instituto de Geografia. Colaborei na monografia sobre "O Tomate", escrevi sobre "A Alface no Abastecimento da Cidade de São Paulo", colaborei na pesquisa de campo sobre "As funções urbanas nas proximidades do Mercado Central de São Paulo", texto redigido por Adilson Avansi de Abreu.
Em 1966, quando assumi as aulas como Professora Efetiva de Geografia Geral e do Brasil, reforcei ainda mais minha preocupação voltada para os estudos populacionais. Viajava no trem de subúrbio com o professor Maurício Tragtenberg e conversávamos muito sobre o tema Migração. Víamos e participávamos da luta daquelas pessoas, em bom número migrantes, que tentavam sobreviver, como nós.
Em 1966-67 fiz curso de Pós-Graduação no velho regime e recebi o certificado em 1968, pois realizei o trabalho final da disciplina de Geografia Urbana sob o título “ A perda do emprego dos “colarinhos brancos” na Inglaterra”.
A efetiva Pós-Graduação, no Departamento de Geografia da USP, sob orientação do professor José Ribeiro de Araújo Filho, comecei em 1967, quando assisti a vários cursos para obtenção dos créditos com vistas à defesa de Dissertação de Mestrado, que tinha acabado de ser implantada. Assim sendo comecei a Pós-Graduação.
Paralelamente às atividades de ensino continuei assistindo aos cursos ministrados por professores convidados pelo Departamento de Geografia e pelo Instituto de Geografia. Em 1963 o professor Monbeig ministrou o curso sobre Geografia Regional da França e Problemas da Agricultura em Regiões Tropicais; em 1964 o professor Philippe Pinchemel sobre Geografia Urbana e Planejamento Regional; professor Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro sobre Climatologia Dinâmica e o professor Guy Lassere sobre Fitogeografia; professor Antônio Rocha Penteado sobre o Mundo Tropical, em 1965; Sociologia Rural pela professora Lia Freitas Garcia, Cartografia pelo professor André Libault, em 1966; Planejamento Regional e Regionalização pelos professores Michel Rochefort e Jean Labasse, Colonização no Sul do Brasil pelo professor Jean Roche e População Brasileira, pelo professor Moisés Kessel, curso patrocinado pela Associação dos Geógrafos Brasileiros - AGB, em 1967, no Departamento de Geografia da USP que sediava a AGB/SP.
Prestei concurso e fui aprovada em 1967 no Colégio de Aplicação Professor "Fidelino de Figueiredo" da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Teria sido uma experiência única caso eu tivesse conseguido o comissionamento pleiteado. Como meu dia só tinha 24 horas tive que abandonar a ideia de trabalhar lá, pois continuava sendo professora da PUC - "Sedes Sapientiae" e "São Bento", do IE "Washington Luís" de Moji das Cruzes, fazia Pós-Graduação, assistia a vários cursos, etc.
No final de 1967, por sugestão da colega Marina Piza de Sampaio Góes – a Marinita – fiz minha primeira viagem de avião e internacional. Fui com um grupo de brasileiros participar de estágio internacional sobre didática da Geografia em Sèvres – França. Conhecemos as melhores técnicas de ensino, falamos sobre nossos trabalhos e no retorno assumi as aulas de Prática de Ensino de Geografia e coordenação do Colégio de Aplicação do “Sedes Sapientiae”.
Com a vinda do professor Pierre George para ministrar Ciclo de Conferências sobre Geografia Urbana e África do Norte, "transferi", por dois meses, em 1968, as aulas da PUC - "São Bento" para a USP. Tive alguns problemas com isso e acabei me desinteressando pela Faculdade "São Bento". Pedi demissão. Coincidentemente várias alunas pediram transferência para o Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo. Dentre elas, a Nilde Pinheiro, a Arlete Moises, a Cida Serapião, etc.
No início de 1969, estavam criando o Instituto Municipal de Ensino Superior de São Caetano do Sul e a professora Maria Alice dos Reis Araújo me convidou para ministrar as aulas de Geografia Humana do Brasil, enquanto ela ensinava Geografia Humana. Foi uma experiência gratificante. Tínhamos a mesma orientação e uma aproveitava os exemplos da outra, deixados no quadro-negro, para fazer as amarrações das aulas que transcorriam teórica e metodologicamente com muita semelhança.
Surgiu a possibilidade de contratação de uma pessoa no Departamento de Geografia. Desde 1965 o professor Araújo vinha interessado na minha admissão pela Universidade de São Paulo. Todos os professores me conheciam muito bem e sabiam do meu interesse científico. Houve discussão no Conselho do Departamento e todas as pessoas presentes aprovaram a minha indicação. O catedrático de Geografia do Brasil, em cuja área eu ia trabalhar, argumentou que “mulher casa, tem filho e não faz carreira”. Não fui contratada. Nova oportunidade só foi acontecer em julho de 1970, quando o referido catedrático já havia se aposentado em 1968.
Menos de um ano depois eu entregava e defendia sob orientação do professor Araújo a dissertação de mestrado intitulada "Serra Azul, o homem e a cidade".
Obedeceu à linha até então desenvolvida pela geografia da época, isto é, o trabalho monográfico.
Nesta pesquisa já comecei a trabalhar, na geografia, com a mão-de-obra volante. Talvez um dos primeiros trabalhos voltados para este tema e o primeiro do Departamento de Geografia da USP, onde, inclusive, já apresentei no texto os dados do trabalho específico da mulher e do homem.
Após a defesa do Mestrado, em 1971, a convite da professora Terezinha Fram comecei, por sugestão da professora Maria Alice dos Reis Araújo, a trabalhar também na Secretaria da Educação, coordenando o projeto denominado "Caracterização Socioeconômica dos Municípios do Estado de São Paulo", com vistas à implantação do ensino profissionalizante no Estado (Lei 5692/71).
Neste trabalho, apesar das dificuldades econômicas para a pesquisa, elaboramos vários documentos e mais tarde, com acompanhamento da Lia Reismann, foram publicados os mapas com a denominação de "Cartogramas Básicos para Planejamento Educacional".
O trabalho foi realizado de 1971 a 1974 com a colaboração de Lia Reismann, Teluko Yonemoto, Helena Mirabelli e Aparecida de Godoy, professoras comissionadas. Contou ainda com a colaboração mais efetiva dos estudantes Ana Fani Alessandri, Amélia Luiza Damiani, Tânia Bondezan, Lúcia Araújo Marques, Adalberto Leister, Nelson Bacic Olic. Estes dois últimos, récem-formados. Ainda tivemos a colaboração preciosa, por um período de mais de um ano, da professora Nice Lecocq Müller. O trabalho na Secretaria de Educação, apesar de sofrido, pois que, neste longo período, nem a metade do tempo os estagiários e eu recebemos qualquer remuneração. Foi, tenho certeza, uma verdadeira escola para muitos estudantes, na realidade, foi uma Iniciação Científica.
Para mim, o convívio com Dona Nice e a experiência adquirida fora do mundo acadêmico foram muito proveitosos.
O mais importante foi que, a partir deste material, alimentei o projeto de minha tese de doutoramento.
Utilizei na redação da Tese, cerca de 10 cartogramas, vinculados diretamente ao estudo da população.
Envolvida com as leituras dos trabalhos de Jacqueline Beajeu-Garnier e Pièrre George na Europa e Elza Keller, pioneira nos estudos de população no Brasil, além de José Francisco de Camargo, enveredei de forma concreta por esse caminho.
O trabalho desenvolvido foi constituído de duas partes. Na primeira foi feito estudo evolutivo da ocupação do espaço paulista, dando uma espécie de continuidade à Tese de Doutorado do professor Camargo, que analisou a população até 1950; eu o estendi até 1970. Na segunda parte apresentei pesquisa feita pela Fundação Plano de Amparo Social - Fundação PAS - que se referia a "Populações Marginais" e, com autorização da Fundação aproveitei parte dos dados e desenvolvi o tema sobre a questão do trabalho volante na agricultura. Neste momento a penetração mais intensa das relações capitalistas no campo tinha deixado marcas profundas. A migração campo/cidade assumiu proporções enormes no Estado e no País e a presença do volante, residindo na periferia das cidades e voltando diariamente para o trabalho no campo, era um fenômeno novo na paisagem e que foi implementado, em especial, a partir da Legislação Trabalhista para as pessoas trabalhadoras no campo em 1963 – Estatuto do Trabalhador Rural. Em 1964, foi publicado o Estatuto da Terra, que favorece a implantação da Reforma Agrária. Em 2020 ainda permanece quase como “letra morta” em relação ao número de famílias necessitadas e daquelas atendidas.
O trabalho de Maria Conceição D'Incao sobre o "Bóia-Fria, Acumulação e Miséria" ocupava as manchetes. Todas as áreas voltadas para as Ciências Humanas desenvolviam este tema.
Assim foi que, em outubro de 1975, defendi a tese de Doutoramento, sob orientação do professor José Ribeiro de Araújo Filho. Participaram da banca os professores Pasquale Petrone, Wanda Silveira Navarra, José de Souza Martins e Fernando Salgado. A Tese foi defendida com o título"Contribuição ao Estudo do Êxodo Rural no Estado de São Paulo", onde dei o destaque para o trabalho de homens e de mulheres no corte da cana.
No final de novembro, aniversário da minha cidade natal, a Prefeitura, para comemorar o Ano Internacional da Mulher, através de minha pessoa, homenageou todas as mulheres. Foi, talvez, a maior honra recebida, pois, cada uma tem o seu significado específico e único. Neste momento eu percebi efetivamente que tinha sido pioneira em Serra Azul e provavelmente aberto a porta para outras mulheres alçarem vôo e conquistarem espaço. Tinha sido a primeira mulher a ter bicicleta, a entrar na Universidade, fazer carreira universitária. Em 1984 inauguraram, sob grande emoção para mim, na Escola Estadual de 1o e 2o Graus, a Biblioteca Professora ROSA ESTER ROSSINI.
A partir de 1975 fiquei definitivamente voltada para os estudos de população e, de forma mais intensa, preocupada com o tema da mão-de-obra volante, com o destaque para o trabalho específico de Homens e de Mulheres.
Tendo sido publicado o tempo integral, em fevereiro de 1976, tive que me afastar da PUC, de São Caetano e ficar exclusivamente na Universidade de São Paulo.
Merece ressaltar que, com a fusão das Faculdades "São Bento" e "Sedes Sapientiae" em 1970, eu havia retornado à PUC (São Bento), ensinando Geografia Humana - Geografia da População - para os alunos dos cursos de Ciências Sociais e História. Trabalhava também com o curso de geografia, coordenando estágios dos alunos de Prática de Ensino de geografia e ministrava aulas desta disciplina para os alunos do período da manhã, o que vale dizer, para os alunos do "Sedes Sapientiae".
Foi um período bastante profícuo, pois aprendi a trabalhar com o colega Fauze Saadi nos cursos que programamos, em conjunto, para os Departamentos de História e Ciências Sociais.
Ainda na PUC me foram dadas muitas responsabilidades, as quais eu desenvolvia com enorme prazer: Coordenação e organização do currículo para alunos de complementação em geografia para os formados em Estudos Sociais, Reformulação do Currículo de Geografia em conjunto com a professora Maria Alice dos Reis Araújo Fischer, preparo das questões de geografia para o vestibular da PUC, etc.
A partir de 1976 fiquei exclusivamente trabalhando no Departamento de Geografia da USP. Se por um lado a saída da PUC, em especial do elo que me ligava ao "Sedes Sapientiae", foi traumatizante, por outro, a partir desta data pude me dedicar mais aos estudos populacionais.
Foi nesse período que comecei a frequentar o Centro de Estudos Rurais e Urbanos a procura de intercâmbio, pois o meu trabalho na geografia era muito solitário. Era a única que trabalhava mais diretamente com População. Ao mesmo tempo passei a frequentar mais reuniões científicas além daquelas realizadas pela Associação dos Geógrafos Brasileiros - AGB.
A convivência com Eva Blay, Lia Fukui, Maria Isaura Pereira de Queirós, no CERU, abriram novas perspectivas para meus estudos.
Neste período conheci a professora Maria Luíza Marcílio, pioneira nos estudos de demografia histórica no Brasil, e ela me abriu as portas para maiores intercâmbios. Participei de mesa redonda com o tema "Relações entre a Marcha da Ocupação do Estado de São Paulo e o Café", no Congresso da União Internacional para o Estudo Científico da População - IUSSP - 1977, no México. Por sugestão da mesma colega fui ao Rio de Janeiro apresentar trabalho e também participei da criação da Associação Brasileira de Estudos Populacionais - ABEP -, em 1977, sendo, portanto, sócia-fundadora, da qual em 1980-82 fui tesoureira.
Assisti a quase todas as reuniões sobre "Mão-de-obra Volante", realizadas anualmente em Botucatu, sob a coordenação das professoras Maria Helena Rocha Antuniassi, Sonia Maria P. P. Bergamasco, Leonilde Sérvolo de Medeiros e José Graziano da Silva.
Nesta mesma época me integrei intensamente na Associação dos Geógrafos Brasileiros - AGB/São Paulo, tendo sido diretora por duas vezes, além de ter exercido de 1961 a 78 praticamente todos os cargos. Na Associação dos Geógrafos Brasileiros - AGB/Nacional, também participei do Conselho Diretor, praticamente de 1970 a 78, após ter sido alçada à sócia efetiva, tendo sido secretária e tesoureira por dois mandatos.
Com a defesa da tese de doutoramento, surge outra preocupação básica, isto é, a orientação de alunos de Pós-Graduação. O Programa de Pós-Graduação autorizou, em 1977, nível mestrado e em 1979, nível doutorado, assim como o ensino da Disciplina Geografia da População - A População Paulista, em nível de Pós-Graduação.
A orientação de alunos e a participação em bancas examinadoras representam momentos de enriquecimento intelectual e significativa oportunidade de atualização científica. Trabalhando com os pós-graduandos, tenho tido oportunidade permanente de reciclagem e de abertura para vários temas na área de população.
Finalmente devo ressaltar que por indicação da professora Elza Keller passei a ser membro efetivo por duas gestões - 1980-84 e 1984-88 -, da Comissão de Geografia da População da União Geográfica Internacional - UGI. Nesta Comissão tive a oportunidade de conhecer pesquisadores de todo o mundo que trabalham com o tema de minha especialidade.
Em função de minha vinculação com a Comissão de Geografia da População, organizei em 1982 reunião intermediária da UGI que ocorria centralizada no Rio de Janeiro, mas com reuniões distribuídas por todo o país devido à diversificação de Comissões. A de Geografia da População ocorreu, em duas etapas – São Paulo e Rio de Janeiro – dela participando os membros da Comissão de Geografia da População e demais participantes.
Foi penoso, pois com pouca experiência internacional recebi uma dezena de professores do exterior para debater questões de População. Vieram pessoas da Inglaterra, França, Suíça, Itália, Moçambique, Índia, Argentina e Chile, além dos brasileiros. Do Departamento de Geografia, de forma mais efetiva, atuaram as colegas Inês Geraiges, Maria Regina Sader e Nice Lecocq Müller (profa. aposentada). Neste evento de 1982 realizei a primeira mesa redonda sobre Geografia e Gênero no Brasil que contou com a presença de Janet Momsen (coordenadora do Grupo de Trabalho Geografia e Gênero da UGI), Jane Benton, Mônica Osthaeder, dentre outras personalidades.
A participação nessa Comissão permitiu tanto maior intercâmbio com pesquisadores como possibilidade de publicação em revistas internacionais. Valeu a pena.
A criação do Grupo de Trabalho sobre Geografia e Gênero da UGI do qual participei, desde o seu início, possibilitou nova frente de envolvimento, de estudo, de pesquisa e de trabalho e de ousadia, pois, a mulher não era ainda categoria de análise na geografia.
Iniciei, oficialmente, minha primeira pesquisa sobre o tema em 1977 (projeto de pesquisa para o Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa – RDIDP, junto ao Departamento de Geografia), mas como a mulher não representava ainda categoria de análise para a geografia fiquei por longo tempo procurando o caminho para a integração. Em 1983, consegui, pela primeira vez a Bolsa de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, na categoria B. Reapliquei a mesma pesquisa em 1985, o que me permitiu avaliar as mudanças ocorridas nestes quase dez anos de maior engajamento da mulher na força de trabalho.
O fio condutor foi encontrado. Através da categoria trabalho foi possível a integração. O aprofundamento dos estudos nos permitiu entender melhor essa categoria de trabalhadoras discriminadas. Em 1988 entreguei e defendi a Tese de Livre-Docência com o título "Geografia e Gênero: a mulher na lavoura canavieira paulista". Da banca participaram os professores José Ribeiro de Araújo Filho (presidente), Milton Almeida dos Santos (USP), Manuel Correia de Andrade (UFPE), Antonio Olívio Ceron (UNESP Rio Claro) e Lêda Maria Pereira Rodrigues (PUC – São Paulo).
Do concurso fizeram parte as seguintes provas: Aula Teórica, Aula Prática, Prova Escrita, Defesa da Tese e Avaliação do Memorial. O resultado final deixou-me radiante, pois foi média 10,0 (dez).
Enquanto pesquisava participei de reuniões na Itália - Cagliari – Sardenha - primeira reunião internacional sobre Geografia e Gênero da Comissão de Geografia da População da UGI - estabeleci intercâmbio com pesquisadores da Inglaterra, dos Estados Unidos, da Suíça, da Itália, da França, de Portugal. Os estudos de Geografia e Gênero começam a interessar as pessoas pesquisadoras da Geografia. Assim é que em 1988 o grupo de trabalho se transforma em Comissão de Geografia e Gênero na UGI, do qual, a convite de Janet Momsen, da Inglaterra, fiz parte como representante da América Latina e já, em abril de 1989, foi realizada a primeira reunião científica na Inglaterra, em Durham.
No Brasil, desde 1985, por iniciativa da professora Eva Blay, oito professoras da Universidade de São Paulo (Eva Blay (FFLCH), Elizabeth Lobo (FFLCH), Vera Soares (I Física), Ruth Cardoso (FFLCH), Maria Amélia Azevedo (I Psicologia), Dulcília Buitoni (ECA), Miriam L. Moreira Leite (FFLCH), e Rosa Ester Rossini (FFLCH),criaram o Núcleo de Estudos da Mulher e, em 1988 adotou-se a denominação de Núcleo de Estudos da Mulher e Relações Sociais do Gênero (NEMGE), do qual participo até hoje. A primeira coordenadora foi a Professora Eva Blay.
De 1984 a 88 coordenei o curso de Pós-Graduação em Geografia Humana no Departamento de Geografia, o qual foi rico em experiência. Aprendi muito.Ainda na coordenação do curso, já com mais conhecimento das formas de obtenção de financiamento para vinda de professores, pudemos contar com a presença de importantes geógrafos, como a dos professores Manuel Correia de Andrade e Pedro Pinchas Geiger. Vieram ainda financiados pela FAPESP os professores Jean P. Damais, Daniel Noin, Alain Lipietz, da França, os professores Carlos Carreras e Eugênio Garcia Zarza, da Espanha, e a professora Maria Nazaré Roca, da Iugoslávia. No mais na coordenação vieram ministrar cursos e proferir conferências os professores Manuel Araújo de Moçambique, Maria Beatriz Rocha-Trindade de Portugal e Maria Aparecida de Moraes de São Carlos.
A convite da professora Maria Isaura Pereira de Queiroz, participei como membro do Conselho Técnico e Científico do CERU, de 1985 a 1988 e do Conselho Deliberativodo NAP-CERU até 1998. Também em 1985 foi criado, por iniciativa da professora Maria Luiza Marcílio, o Centro de Estudos de Demografia Histórica da América Latina - CEDHAL - do qual participei como representante do Departamento de Geografia até 2008, quando me aposentei.
A Professora Ebe Reale, coordenadora do Programa de Estudos de Problemas Brasileiros, em 1985, fez-me um convite de difícil resposta em função do momento político em que vivíamos (Ditadura Militar), o qual consistia em coordenar, em nível de graduação, o referido programa junto à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, constituído por 700 estudantes. Conversei com várias pessoas. Uma delas, o jornalista Granville, que já havia estado preso por dois anos, disse: “Se ela fez o convite e lhe deu autonomia é ver para crer. Nós só podemos avaliar durante o desenvolvimento da atividade. É um ato de coragem”. Aceitei o desafio, convidei pessoas competentes para proferir palestras, independente da opção política. Foi um sucesso. Deu tudo certo. Valeu.
Por iniciativa da professora Elza Keller, desde 1985 desenvolvemos no Departamento de Geografia - antes Instituto de Geografia - o projeto do “Atlas da População do Estado de São Paulo”, financiado pela FAPESP e CNPq do qual ela foi coordenadora geográfica e eu coordenadora geral.
A elaboração deste trabalho, que foi o primeiro deste gênero no país, recebeu apoio da Fundação SEADE e Secretaria de Economia e Planejamento, graças ao interesse da professora Neide Patarra, diretora de Estudos Populacionais da Fundação SEADE - SP. Devido a diversos problemas, finalmente em 1995 foi publicado.A coordenação do Projeto, sua conclusão e publicação, representam o coroamento dos esforços e do interesse pelos estudos populacionais.
A redação da tese de Livre Docência se prendeu muito a este trabalho, pois quase todos os cartogramas, nela apresentados, foram extraídos desse projeto.
4. O CNPq, A DESCOBERTA DO PIBIC E AS NOVAS POSSIBILIDADES – 1988 – 2010...
Uma das grandes realizações e consagrações profissionais ocorreu em 1988 com a eleição, promovida pelo CNPq, junto à comunidade de bolsistas de produtividade em pesquisa e dos Programas de Pós- Graduação em Geografia para a indicação de nomes para a seleção pelo Conselho Deliberativo de uma pessoa para participar como Assessora de Geografia Humana e Regional junto ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), na vaga aberta com a saída do professor Manuel Correia de Andrade. Meu nome foi o selecionado.
Foram dois anos altamente gratificantes: o trabalho em Brasília; o estudo e análise dos projetos; a constatação do que estava sendo produzido na Geografia. A convivência com os técnicos do CNPq foi maravilhosa. Em 1989 fui eleita para representar o Comitê (Geografia Humana e Regional, Planejamento Regional, Arquitetura e Urbanismo e Demografia) junto à Comissão Coordenadora dos Comitês Assessores do CNPq.
Desde o final de 1989 participo, junto às instituições que integram o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica do CNPq, como membro representante dos Comitês Assessores junto à Área de Ciências Humanas e Sociais do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica. Através desse programa, colaborando na seleção e ou avaliação das bolsas, tive oportunidade de viajar por todo o Brasil. Participei de trabalho nos Módulos U. E. Maringá/Londrina (Londrina), U. F. Bahia (Salvador), U. F. Minas Gerais/Viçosa (Belo Horizonte), F. U. A. Amazonas/INPA (Manaus), U. F. Pará/Maranhão e U. E. do Maranhão (São Luís), U. F. Mato Grosso/U. F. C. Acre/U. N. I. R. Rondônia (Cuiabá), U. F. Pelotas/Santa Maria/Rio Grande (Pelotas), U. F. Santa Catarina/U. E. Santa Catarina (Florianópolis), U. F. Uberlândia/Goiás/Mato Grosso (Campo Grande), U. F. Pará/Maranhão/FCAP/UEMA (Belém), U. F. Minas Gerais/Viçosa (Viçosa e Belo Horizonte). A partir dessa atividade apresentei na SBPC do Rio de Janeiro (1991) trabalho de comunicação coordenada a respeito do Programa ("Mudança de Vento: do 'Balcão’ para a Universidade. O Programa Interinstitucional de Bolsas de Iniciação Científica"). A partir de meados da década de 90, as instituições começaram a fazer, cada uma, de forma independente, a sua seleção e avaliação. Os pedidos de ingresso junto ao Programa por parte das instituições de ensino e pesquisa pipocavam. Prazerosamente eu me multipliquei para colaborar com as instituições que me convidavam para participar como representante dos Comitês Assessores do CNPq junto à área de Ciências Humanas e Sociais, segundo a norma estabelecida pelo CNPq em que tanto para o processo de Seleção como para o de Avaliação deveria haver uma listagem de pesquisador/as fornecida pelo CNPq, constituído por bolsistas de Produtividade em Pesquisa-Pq-Nível 1A, que seriam os representantes dos Comitês Assessores das três grandes áreas do conhecimento – Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, Ciências Exatas e da Terra e Ciências da Saúde e Biológicas. Cada instituição deveria convidar pelo menos uma pessoa pesquisadora, de cada área do conhecimento. No início foi muito difícil, pois as instituições nos viam como fiscais e não como colegas, com mais experiência do que eles em pesquisa, e que estavam ali colaborando na análise dos projetos e na proposta do subprojeto específico para o/a estudante. Foi difícil e ainda hoje continua, pois torna-se necessário explicar ao Professor/a, que cada solicitação não é uma parte do projeto mais amplo, mas um subprojeto específico para o/a estudante se iniciar na pesquisa e que não é o volume de trabalho que vai definir a qualidade do subprojeto.
Declarei que tinha dois amores – Geografia e PIBIC – em um dos textos que escrevi. Um deles é o PIBIC – Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica. Por ele tenho viajado por todo o país e contribuído com minha experiência. De 2004 até 2009 participei da Comissão Nacional de Avaliação da Iniciação Científica – CONAIC – sob a coordenação do Prof. Isaac Roitman que muito tem contribuído para o aperfeiçoamento do Programa e a descoberta de novos talentos. Considero o PIBIC o Programa de maior sucesso do CNPq. No início eram 350 bolsas por módulo, bem modesto. A “ginástica” era grande no momento da seleção, pois em geral, eram, no mínimo, três universidades. Com o tempo, o programa foi ganhando significado pela sua descoberta pelas Universidades e pela percepção de que ele era o caminho para o futuro. Pipocavam motivações de ingresso no Programa, para a participação. As universidades necessitavam demonstrar sua capacidade de orientação: professores titulados, tempo integral de uma boa parte do corpo docente e publicação de artigos e livros indexados. Em 2004 foi dado mais um reforço ao PIBIC, pelo Presidente do CNPq, Professor Erney F. Plessmann de Camargo com a implantação do PIBIC Junior do qual fazem parte estudantes das escolas públicas dos ensinos médio e fundamental. Em 2005 foram criados tanto o PIBIT – Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Tecnológica bem como o PIBIC Jr. Foram incluídas também participações do ensino fundamental. Para se ter uma ideia da importância destes programas, em 2010 eram cerca de 100.000 bolsas usufruídas pelos estudantes, sendo 28.000 pelo CNPq e o restante por Universidades, Fundações de Amparo à Pesquisa e outras fontes. Hoje, (2020), apesar da estagnação e até diminuição dos números do CNPq, o forte apoio tem sido dado pelas Universidades. Acrescente-se ainda o forte empenho dos/as estudantes que atuam junto ao programa na condição de voluntários/as.
Entre 1990 e 1995, fui representante do Brasil como membro da equipe do Foro de Iberoamérica coordenado pelo Professor Eugênio Garcia Zarza, da Universidade de Salamanca. Estive na Espanha apresentando trabalhos "A População Brasileira: Trabalhar e Sobreviver". A exposição foi apreciada de tal forma que o convite foi renovado até o final do programa. Apresentei trabalho sobre Migrações – II Jornadas de Estudos Geográficos Iberoamericanos com o tema: “A peregrinação do cidadão à procura de cidadania. Brasil. Migração Nacional e Internacional”, Evolução da População, Urbanização e outros temas, todos publicados.
Por iniciativa das Professoras Miriam Moreira Leite, Lia Fukui e Lucila Brioschi com reuniões e palestras quinzenais, foi constituído o Grupo de Estudos de Gênero, de 1995 até 2005, no NEMGE, com reuniões quinzenais, do qual participei durante todo o período de vigência. Lamentavelmente, com a transferência da Reitoria para o prédio onde o NEMGE estava alojado, perdemos o espaço e ainda não reconquistamos outro equivalente, mas começa a aparecer uma luz no final do túnel, um espaço para a discussão de trabalhos sobre o tema Mulher está em compasso de espera.
Orientei dissertação de Mestrado sobre o tema ("Mulher na Indústria Têxtil Paulistana" – Yná Andrighetti) e tese de Doutorado (Marlene Maria da Silva. A participação da Mulher na pequena produção agrícola do agreste pernambucano) e a elas se seguemmuitas outras orientações.
Em julho (1991) foi realizada reunião sobre a Questão Regional e os Movimentos Sociais na América Latina, na qual coordenei os trabalhos sobre o tema Mulher. A reunião foi patrocinada pelo Departamento de Geografia da USP, Departamento de Cartografia e Análise da Informação Geográfica da UNESP - Campus de Rio Claro, UGI - Grupo de Trabalho sobre Geografia e Gênero e NEMGE (Núcleo de Estudos da Mulher e Relações Sociais de Gênero).
Assim é que, além dessas atividades, embora as pessoas estudiosas sobre o tema Mulher ainda sejam pouco numerosas na Geografia, tenho levantado a bandeira sobre o tema e feito várias palestras, por exemplo: CERU, Faculdade de Botucatu, UNESP - Rio Claro, F U A – Amazonas, Barcelona (Espanha), Buenos Aires e Tandil (Argentina), Bogotá (Colômbia), Cidade do México (México), bem como em todos os eventos do PIBIC, Congressos e Reuniões Científicas. Nunca perco a oportunidade de inserir a discussão sobre gênero.
Um dos trabalhos mais difíceis na minha carreira foi a participação na Comissão Examinadora do Concurso para efetivação docente junto ao Departamento de Geografia da F.F.L.C.H. da USP, em 1988. Foram 24 candidatos, todos colegas e de excelente nível. Julgar é tarefa difícil especialmente quando se trata de colegas de trabalho. Todos mereciam o primeiro lugar, mas só um, poderia ocupá-lo. Felizmente tudo transcorreu na maior normalidade e a banca, após o exame do currículo, do memorial, da aula e da leitura da prova conseguiu chegar a um resultado classificatório. Participaram também da banca os professores José Pereira de Queiroz Neto – Geografia - USP - e José Sebastião Witter – História – USP.
A vinda para o Departamento do professor Milton Santos, em 1983 e, em seguida, da professora Maria Adélia A. de Souza colaborou para com que se tomasse um novo rumo de criação no Departamento. O espírito aberto de ambos, a criatividade e o coleguismo deram novo impulso aos projetos. A cobrança no bom sentido tem sido extremamente gratificante e nos impulsiona.
Com a reestruturação do Departamento surgiu a possibilidade de trabalho mais participativo. Integrei-me ao Laboratório de Geografia Política, Planejamento Territorial e Ambiental – LABOPLAN, coordenado por Maria Adélia. No Laboratório, além dos trabalhos individuais atendendo às linhas de pesquisa dos professores envolvidos, elaboramos um projeto de cujo desenvolvimento participaram vários pesquisadores: "Território e Sociedade: As Geografias da Modernidade". Pretendemos nele, "estudar através de múltiplos enfoques, as geografias decorrentes da modernidade, especialmente no Brasil". Os professores envolvidos foram Milton Santos, Maria Adélia A. de Souza, Armen Mamigonian, Maria Regina C. T. Sader e eu.
Deste projeto participei, na condição de coordenadora, por dois períodos de financiamento junto ao CNPq – Projeto Integrado – e só deixei por ter “perdido o pé” quando me deparei em 1996 com vitiligo. Participei também por várias vezes da coordenação do LABOPLAN, até minha aposentadoria, em 2008, após 44 anos de dedicação integral ao Departamento de Geografia da FFLCH da USP. Isto não quer dizer que “dependurei as chuteiras”, pelo contrário, continuo trabalhando intensa e gratuitamente na orientação de estudantes – IC, TCC, Mestrado, Doutorado e Supervisão de Pós-Doctor, além da gratificante participação na condição de Bolsa de Produtividade junto ao CNPq além muitas colaborações para participar de bancas, concursos, avaliações, pareceres, etc.
Voltando às atividades junto ao LABOPLAN ressalto que com o término do programa do Projeto Integrado do CNPq cada professor passou a solicitar, individualmente, Bolsa de Produtividade em Pesquisa (Pq), os bolsistas de IC, Apoio Técnico e verba. Aproveito a oportunidade para declarar que desde 1983 tenho a felicidade de usufruir de bolsa de Pq e, a partir de 1985, na Categoria 1A e em 2003 recebo também o GRANT. Talvez seja a pessoa em atividade que detém, no Departamento de Geografia da USP, bolsa por mais longo período. A partir de 2010 a solicitação de bolsa, na categoria 1A, passou a ter vigência por um período de 5 anos. Prêmio concedido a bolsistas experientes. Isto quer dizer também que tenho o aval para participar do PIBIC como membro do Comitê Externo e até mesmo de Comissões nomeadas pelo CNPq. Penso que esta última concessão, pelo período de 03–2020 a 02-2025 será minha última solicitação, pois estarei com 84 anos.
Voltando à década de 90 merece destaque minha participação junto ao Núcleo de Estudos da Mulher e Relações Sociais de Gênero – NAP/NEMGE-USP. A Profa. Eva Blay permaneceu como Coordenadora até o final de 1988 quando assumiu importante posição junto à Organização das Nações Unidas para, em Viena, coordenar atividades de Gênero. E, de 5/10/89 até 1/02/91, a professora Eva assumiu a condição de Senadora por São Paulo por ser a 1ª Suplente de Fernando Henrique. Assim sendo, alguém tinha que assumir o NEMGE e por aclamação fui a escolhida. Trabalhei duramente de 10/1988 até fevereiro de 1996 exercendo a coordenação do NEMGE e até 2008 fui membro participante do Conselho Deliberativo. Durante o período organizamos eventos, orientamos bolsistas e estabelecemos convênios, atividades várias de interesse das questões de gênero e continuamos na luta, mesmo com o NEMGE apenas presente on-line.
Do Convênio realizado com o Ministério de Educação e Desportos e Universidade de São Paulo – NEMGE - sob a coordenação do Prof. Ary Plonski coordenei a pesquisa que redundou na Publicação “Ensino e Educação com Igualdade de Gênero – Guia prático para professoras e professores do ensino fundamental e médio”. O Guia foi publicado em 1996 tendo como autoras Rosa Ester Rossini (Coordenadora),Rochelle Saidel, Sonia Calió e Isamara Lima de Jesus. Em 2006, na comemoração dos 10 anos foi lançada a 2ª edição, revista e ampliada.
Estes engajamentos possibilitaram com que eu adquirisse maior visibilidade nacional e passasse a ser mais conhecida pelo meu envolvimento com a questão de gênero na Geografia. Este “viés” possibilitou a algumas pessoas certa confusão teórica: “Você não trabalha com geografia agrária, mas com mulher”. O meu esforço de mais de 40 anos, no Departamento de Geografia, para muitos colegas, pode ter valido pouco. Fora dos muros do Departamento, valeu muito e há demonstração nacional e internacional desta minha bandeira de lutas: dar visibilidade aos estudos de gênero na geografia.
Em 1989, foi publicado o edital de abertura de concurso para Professor Titular junto ao Departamento de Geografia da FFLCH da USP. Apenas duas professoras do Departamento de Geografia, (Rosa Ester Rossini e Maria Adélia Aparecida de Souza), eram credenciadas para a participação neste concurso, pois o pré-requisito era ter defendido tese de Livre-Docência. Como percebi que a Professora Maria Adélia não estava se preparando para a inscrição neste concurso, fui perguntar a ela o motivo pelo qual não estava se inscrevendo pois, sabidamente, ela possuía mais títulos de atividades e maior produção científica do que eu. Para minha satisfação, a sua ética e generosidade falaram mais alto. Naquela época, no departamento de geografia era respeitada a precedência da data, na defesa da Livre-Docência a quem já a havia defendido. A vaga para Professor Titular se devia a aposentadoria da Professora Olga Cruz. No ano seguinte, 1991, com a aposentadoria da Professora Léa Goldenstein e abertura de novo concurso a Professora Maria Adélia teve a chance de se inscrever ao concurso para Professora Titular. A partir daí, em todos os concursos há vários candidatos com banca escolhida e aprovada pelo Conselho do Departamento de Geografia (pela composição da banca tanto para Professor Titular como para ingresso à carreira de Docente no Departamento de Geografia é, com frequência, previsível o resultado).
Em dezembro de 1990 prestei concurso para Professora Titular de Geografia e fui aprovada com a nota máxima (dez). Como membro da Banca de Concurso participaram os Professores Milton Santos (presidente), Manuel Correia de Andrade, Eva Blay, Antonio Olívio Ceron e Lêda Maria Pereira Rodrigues. Pela primeira vez não pude contar com o Meu Professor, Meu Orientador, Meu Amigo, Prof. José Ribeiro de Araújo Filho, a quem devo boa parte de minha história de vida acadêmica e científica, pois seu estado de saúde estava bastante precário.
O ingresso nesta nova categoria – MS6 – na Universidade de São Paulo foi o passaporte para outras conquistas: financiamento para a pesquisa, orientação a mais estudantes, mais bolsistas, aumento de convites para participação em bancas de concurso público, etc. Aproveito ainda para reproduzir, no encerramento, a fala do Professor Milton Santos, presidente da Banca do Concurso para Titular de Geografia – Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo: “- Agora, na condição de Professora Titular a senhora recebe o passaporte da LIBERDADE. Pode falar o que quiser!”.
Continuei no Programa de Pós-Graduação trazendo professores do país e do exterior para ministrar, em nível de pós-graduação,disciplinas e/ou cursos: Maria Aparecida de Moraes (UNESP) e Ivone Gebara para ministrarem curso sobre gênero, Manuel Araújo de Moçambique da Universidade Eduardo Mondlane, para ensinar sobre a África Sul-saariana, Maria Beatriz Rocha-Trindade da Universidade Aberta de Lisboa que proferiu o curso sobre Migrações, Eugênio Garcia Zarza da Espanha que ministrou a disciplina “A terceira idade produz emprego”, dentre outros.
Com estes contatos profissionais e outros engajamentos, participei de vários convênios internacionais pelo programa Alfa como, por exemplo, com a Universidade de Salamanca, Universidade de Barcelona – Espanha, Universidade Eduardo Mondlane – Moçambique, este último coordenei até 2006 quando passei a “batuta” ao Prof. Wanderlei Messias da Costa por recomendação do Prof. Manuel Araújo.
Em 2005 fui agraciada pelo Ministério da Ciência e Tecnologia do Governo Federal com a Ordem Nacional do Mérito Científico na condição de Comendadora. Este reconhecimento nacional de minha atuação profissional foi extremamente honroso considerando que, no Departamento de Geografia da USP, apenas o Professor Milton Santos detinha o título na condição de Comendador desde 1995 (segundo seu currículo) mas em 2005 recebeu a comenda Grã-Cruz. No Brasil, são pouquíssimos/as os/as geógrafos/as que as receberam. Também em 2005, meu colega Eduardo Yázigi fez-me uma surpresa inesquecível. Honrou-me dedicando o livro “Deixe sua Estrela Brilhar – criatividade nas ciências humanas e no planejamento” (apoio do CNPq e publicado pela editora Plêiade), com os seguintes dizeres: “A inefável Rosa Ester Rossini (...como a fascinação do canto doce).
Por falar em honraria, neste mesmo ano a Câmara Municipal de Serra Azul me homenageou reconhecendo minha luta em benefício da ciência e minha luta para conquistar um “lugar ao sol” considerando que venho de família humilde – servente de escola pública – e consegui, graças ao meu esforço, ascender ao mais alto grau na academia – Professora Titular – e na mais significativa universidade do país – Universidade de São Paulo. Aproveito também para destacar que, apesar da ocupação do meu pai ter sido muito modesta ele se individualizou tanto na atividade que, por indicação do vereador José Carlos Gomes, foi aprovada pela Câmara Municipal de Serra Azul e inaugurada em 28 de abril de 2000 a Escola Municipal de Educação Infantil – EMEI Ramiro Rossini. Em 2 de agosto de 2014, recebe a denominação de Escola Municipal de Educação Básica – EMEB Ramiro Rossini. Em 2020, são 300 crianças matriculadas de 5 a 7 anos de idade. Talvez seja o único servente no mundo que tenha recebido esta honraria.
Pelo envolvimento desde 1990 junto ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica - PIBIC – CNPq recebi inúmeras homenagens o que me torna cada vez mais responsável pelo programa. A Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 1999 me ofereceu uma placa pelos 10 Anos de Dedicação ao PIBIC; em 2001 o mesmo ocorreu com a Universidade Católica Dom Bosco de Campo Grande – MS; em 2010 a UFAM também me homenageou pelos 20 anos de participação no PIBIC.
Nada mais agradável do que encerrar um período da vida com a GLÓRIA de o Programa de Pós-Graduação Geografia, Gênero e Sexualidade da Universidade Federal de Rondônia, na coordenação da Profa. Dra. Maria das Graças Silva, em 30/05/2010, ter dado meu nome – Rosa Ester Rossini – a uma das salas de trabalho e que fica defronte à de Josué de Castro.
5. O PRESENTE E O FUTURO – 2008...
Para ter mais “autonomia de voo” e dedicar mais tempo, tanto ao Programa Institucional de Iniciação Científica – PIBIC – do CNPq e instituições conveniadas, como aos orientandos de IC, TGI, Mestrado, Doutorado, Pós-Doutorado (supervisão) e aos estudos e trabalhos de pesquisa, assim como aos projetos de vida em andamento, tomei a decisão de solicitar aposentadoria após 44 anos de atividades na Universidade de São Paulo, pois minha primeira contratação foi como auxiliar de pesquisa no recém criado Instituto de Geografia da USP, em 1963.
Não foi o ponto final, mas o ponto de partida para novas empreitadas. O PIBIC, que representa, para mim, o programa de maior inclusão científica, cultural e social, me absorve boa parte do ano nas atividades de seleção e de avaliação de Projetos e Subprojetos específicos de pesquisa. Vale “esclarecer” que muitos jovens se descobriram participando do PIBIC, se envolveram de tal forma com a pesquisa que, a partir de sua realização, continuaram no aprofundamento da temática, tanto no desenvolvimento do TGI (Trabalho de Conclusão de Curso), na Dissertação de Mestrado e na Tese de Doutorado e, em cada um deles, pela competência apresentada, obtiveram, por mérito, financiamento através de bolsas de estudo. Muitos foram além, tanto na instituição original, no país e no exterior; partiram à procura de mais conhecimento sobre a temática escolhida. Muitos, também prestaram concurso e, por mérito, foram aprovados e, portanto, “entraram pela porta da frente” da Universidade, na condição de professores/as ou pesquisadores/as, tanto da mesma universidade que lhes ensinou os primeiros passos da pesquisa como em outra Universidade ou Instituto de Pesquisa, ambos Pública e continuaram trilhando os passos da pesquisa agora na condição de orientadores, tanto de IC como de outras titulações (Mestrado, Doutorado, por exemplo). É muito comum, participando de processos de avaliação por este enorme país, encontrar jovens professores/as que, emocionados/as, dizem: “Professora, a senhora já me avaliou outras vezes nesta ou em outra instituição (mencionando o nome), agora a senhora vai avaliar o meu/minha orientando/a”. Acrescente-se ainda que, no caso de terem optado por exercer atividade fora da academia, os/as jovens que participaram da IC, na empresa onde trabalham ou na condição de executivos, sempre se individualizam devido ao aprendizado e experiência de trabalho em equipe e também de resultado de estudo e pesquisa individual e específica.
Assim sendo, o Programa não é de Assistência Social, mas de motivação e de competência científica e do qual qualquer estudante, não importando a condição socioeconômica e origem étnica pode e deve participar. Esta é uma das minhas “bandeiras” de luta: o PIBIC.
Participei intensamente desde 2007 no engajamento do Programa de Pós-Graduação do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo junto ao Programa Interinstitucional da CAPES – Dinter e Minter – e Universidade do Estado do Amazonas, a partir da solicitação do Prof. Marcílio de Freitas, Secretário de Estado de Ciência e Tecnologia do Amazonas, e, posteriormente, reforçado pela reitora da Universidade Estadual do Amazonas – UEA, Professora Marilene Correa da Silva a qual ofereceu todas as condições para a realização plena do programa. Apesar de ser recomendação da CAPES que programas de Pós-Graduação com o mérito científico notas 5 a 7, como o do Departamento de Geografia – nota 7 - colaborassem para a formação de quadros nas universidades emergentes, houve muita resistência de professores/as dos Programas de Pós-Graduação em Geografia Física e Geografia Humana do Departamento de Geografia da USP para participarem de orientação aos colegas tanto em nível de doutorado como de mestrado da Universidade do Estado do Amazonas - UEA e da Secretaria da Educação do Estado do Amazonas. Resistências foram rompidas e cerca de 40% dos professores se fizeram presentes. O apoio irrestrito veio da Profa. Sandra Lencioni que, depois de minha aposentadoria, assumiu a coordenação do Programa.
No início de 2009, tomei a decisão de reduzir “quase integralmente” minha biblioteca, doando, no total, 54 caixas de livros – tamanho mudança. Enviei numa primeira leva, 30 caixas contendo livros para a UNIR e em outra remessa, poucos meses depois, mais 11 caixas, tendo, no primeiro caso, ocorrido certo desvio de boa parte dos livros, por tê-los encaminhado, por sugestão institucional, à Fundação Rio Mar e não ao Departamento de Geografia da Universidade de Rondônia – Porto Velho – RO. Continuo armazenando caixas – tipo mudança – aguardando que colegas de Rondônia as levem para a UNIR. Em 2017 o Professor Josué da Costa Silva preparou mais 13 caixas que correspondiam ao acervo de Didática da Geografia doado pela Professora Lúcia Araujo Marques. Pela gentileza dos Professores Rosangela Hilário e Wendell, da UNIR, em 2018, despacharam os volumes diretamente à instituição e os abriu publicamente. Assim sendo,o novo endereço da minha biblioteca passou a ser a Universidade Federal de Rondônia pelo carinho e respeito que tenho recebido dos/as colegas. No novo prédio da UNIR os estudantes passarão a ter um espaço com um acervo que foi meu e que muito me ajudou a trilhar o caminho do ensino e da pesquisa.
Professora e Professor são todos iguais, apaixonados/as por livro. Assim sendo, restaram em 2009, na minha casa seis estantes de livros “imprescindíveis”. Hoje – 2020 – os “livros se multiplicaram” e já há 20 estantes repletas de livros.
Tive também a honra de receber homenagens em 2009 no Encontro de Geografia Agrária ocorrido na USP em São Paulo, e, no final de 2010, no Encontro Nacional de Geografia Agrária, realizado na Universidade Estadual do Paraná – UNIOESTE, Francisco Beltrão – PR, no qual proferi a palestra de encerramento do Evento.
Após minha aposentadoria intensificaram convites para participar, na condição de supervisora, do acompanhamento, discussão de pós-doutorandos, mesmo já tendo feito esta atividade anteriormente, desde 2004, junto ao Núcleo de Estudos da Mulher e Relações Sociais de Gênero. Com bolsa apoiada pela Fapesp, tive a honra de realizar a supervisão do pós-doctor de Sonia Alves Calió, uma das poucas geógrafas que sempre trabalhou com a questão de gênero.Assim sendo, concluí muitos programas na condição de supervisora, por um período de um a dois anos cada um: Professor Paulo Esselin, da UFMS – 2007 a 2009 – e do Professor Carlos Martins Jr., também da UFMS – 2012 a 2014. Abrindo um parêntese, destaco a supervisão, em 2010, à Professora Dra. Alice Y. Asari, da UEL – Universidade Estadual de Londrina, com o tema dos dekasseguis. Desde 1985, eu me envolvi com este assunto e aproveito a oportunidade para inserir uma pequena história que esclarece e aprofunda o engajamento com o tema. Talvez eu tenha sido a primeira pessoa que, sem ascendência oriental, tenha publicado o primeiro trabalho na geografia do Brasil sobre os dekasseguis. Orientei – mestrado e doutorado – ReimeiYoshioka que, após o mestrado, foi o primeiro diretor do CEATE – Centro de Atendimento ao Trabalhador Migrante para o Exterior – e com o qual discutia também muito este assunto; orientei – especialização – Wanda Ueda, cuja mãe aplicou, no Japão, os questionários que utilizamos para explicar o envolvimento/engajamento das pessoas do Brasil que migraram “temporariamente” a procura de trabalho para o Japão e que lá, “no calor da hora”, se manifestavam a respeito da vida e trabalho; Yoshikazu Yamochi, professor da Universidade de Tenri (Província de Nara), que realizou o mestrado no Brasil, em 1991, sob minha orientação, em 1995, convidou-me a conhecer sua universidade e proferir palestras sobre o Brasil, no Instituto Latino Americano da Universidade, cujos estudantes entendiam, um pouco, da comunicação em língua portuguesa. Estando lá, aproveitei a oportunidade, com a colaboração dele, para entrevistar muitos dekasseguis do Brasil e o que mais me chamou a atenção foi o número de casamentos “oportunistas”, isto é, como, em geral, o homem não tinha etnia japonesa, fazia acordo com uma jovem de origem japonesa propondo casamento para poder migrar para o Japão à procura de trabalho. O acordo rezava que ela o acompanhava e ele se obrigava a repassar, mensalmente, 30% do salário recebido. Caso ele não cumprisse o contrato, realizado em cartório no Brasil, ela poderia denunciá-lo e ele não mais poderia permanecer no Japão (pode ter sido um acaso terem me indicado apenas mulheres que tinham este histórico); Ricardo Hirata – doutorado, na sua pesquisa no Japão, realizou cinco perguntas de interesse para o meu trabalho em andamento e, Marcelo Hideki – Iniciação Científica, cujos pais, no Japão, aplicaram 40 questionários que foram úteis para desvendar alguns itens de nossa pesquisa individual. Engajei-me no tema, a partir dos anos 80, quando percebi que a migração para o trabalho de colheita da cana era muito semelhante aquele dos migrantes à procura de trabalho no Japão. Acrescente-se que a palavra dekassegui quer dizer migrante temporário. Os problemas, as dificuldades de ambos, são muito semelhantes sendo que a grande diferença é o valor monetário recebido no final de cada mês, por parte da pessoa trabalhadora no Japão e pela mão de obra volante na agricultura canavieira no Brasil, com destaque para a macroárea de Ribeirão Preto, localizada no Estado de São Paulo.
Retornando aos colegas de diferentes universidades que, como pós-doutorandos, realizei a supervisão, Carlos Alberto Póvoa da Universidade Federal de Uberlândia, 2016, Yoshiko Sassaki, da UFAM, 2017 e José Januário de Oliveira Amaral, 2018, todos permaneceram por um período de dois anos e muito contribuíram não só apresentando trabalho no Laboratório de Planejamento Territorial e Ambiental – LABOPLAN – do Departamento de Geografia da USP, como realizando pesquisas de interesse para o seu projeto específico. Destaco também o acompanhamento de jovens estudantes durante um período de mais de 10 anos contínuos que na primeira década do século XXI, com a Iniciação Científica, passando pelo Trabalho de Conclusão de Curso (TGI), Mestrado, Doutorado e Pós-Doutorado. São eles: Elisa Pinheiro de Freitas (2016), Danton Leonel Bini (2018), Aline Lima Santos (2019) e Mateus de Almeida Prado Sampaio (2019).
O Programa de Pós-graduação em Geografia Humana autorizou-me em 1976 a orientação no nível Mestrado e em 1978 em nível de Doutorado. Até o presente – 2020 – orientei: 28 mestrados; 38 doutorados. No conjunto das orientações, acrescente-se, ainda, monografia de Conclusão de Curso de Aperfeiçoamento/Especialização - 5; Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação – 16; Iniciação Científica – 63; Supervisão de Pós-Doutorado – 11.
A vida renasce e se transforma a cada dia, a cada ano. O trabalho se multiplica. “Chovem” projetos ou programas para dar parecer – FAPESP, FAPEAM, FAPESPE, FAPEMato Grosso, FAPERN, UNB, USP, CNPq, UNIR, UERN, UFABC, UFPB, UFCG. Os convites para participar de Bancas em nível de mestrado e de doutorado – qualificação e defesa – muito me honram, pois todas são de muito bom nível. Apesar de receber convites de todo o Brasil, vale destacar a intensidade e frequência dos oriundos dos estados do Amazonas – UFAM; Pernambuco – UFPE; Rio Grande do Norte – UFRN; Rondônia – UNIR; Ceará – UECE; Mato Grosso do Sul – UFMS, dentre outras.
A partir da primeira década do século XXI, com o novo procedimento das Universidades Federais em relação a concursos, tenho participado de Bancas de Concurso de Ascensão à Carreira Docente na Categoria de Professor/a Titular: Gisele Aquino Pires do Rio – UFRJ, 2015; Vitória Regia Fernandes Gehlen – UFPE, 2015; Marilene Correa de Silva Freitas – UFAM, 2017; Nelson Matos Noronha – UFAM, 2017; Jaira Maria Alcobaça Gomes – UFPI, 2017; Yoshiko Sassaki – UFAM,2017; José Januário de Oliveira Amaral – UNIR, 2017; Rosa Mendonça de Brito – UFAM, 2017; Josué da Costa Silva – UNIR, 2019; Françoise Dominique Valery – UFRN, 2019; Iraildes Caldas Torres – UFAM, 2019; Maria Francinete de Oliveira – UFRN, 2020.
Uma das maiores satisfações da vida acadêmica é também o ofício de escrever, publicar, participar de eventos e de grupos de pesquisa. Participei de 2010 a 2015 como colaboradora do Observatório do Desenvolvimento: Monitoramento e Avaliação do Programa de Desenvolvimento Sustentável de Territórios Rurais na Zona da Mata Sul de Pernambuco, coordenado pela Professora Vitória Gehlen, que coordenou a Cátedra Desenvolvimento IPEA/CAPES, tendo como patrono o Professor Manuel Correia de Andrade e que, com sua aposentadoria, perdi a pista sobre a cátedra, mas o trabalho, de certa forma, continua tanto pelos ex-orientandos da Professora Vitória como também com as pesquisas de duas Doutoras, minhas ex-orientandas, Maria Rita Ivo de Melo Machado, da UFRPE e Lúcia Ferreira Lirbório, do Instituto Pedagógico de IPPE e que também ministra pós-graduação na UFPE.
No final de 2011, no Seminário Latino-Americano de Geografia e Gênero: Espaço, Gênero e Poder – Conectando fronteiras, Pré-encontro da Conferência Regional da União Geográfica Internacional – UGI – sob a coordenação as Professora Joseli Maria Silva, da UEPG, a mais representativa dos estudos de gênero e sexualidade do Brasil, fui homenageada na qualidade de precursora dos estudos de gênero na Geografia do Brasil.
No dia 8 de maio de 2012 fui surpreendida ao receber a agradável notícia dada pela minha colega geógrafa, Helena Ribeiro, diretora da Faculdade de Saúde Pública da USP, que eu era uma das 5 professoras da USP agraciada pelo Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo com a Medalha da Imperatriz Leopoldina, pela passagem do dia da Mulher. Estas medalhas tinham permanecido “guardadas”, por 50 anos, por conta da perda da chave do cofre, e isto a torna ainda mais valiosa.
Mais uma vez pela minha participação, engajamento e dedicação ao PIBIC em “Seminário FAPEAM 20 anos”, ocorrido em 10 de julho de 2013, recebi o Diploma de Menção Honrosa pela colaboração, durante todo este período, não só com o PIBIC, mas também como membro da Comissão Científica do PIBIC da UFAM e da FaPEAM.
Em 31 de novembro de 2012, a reitora em exercício, Professora Dra. Maria Cristina V. de França, da Universidade Federal de Rondônia, me honrou com a entrega do título de Doutora Honoris Causa, cujo processo inicial havia sido encaminhado pelo ex-reitor, Professor Dr. José Januário de Oliveira Amaral (um dos dois “meninos” que apoiei, conseguindo bolsa do CNPq, quando ele e o Professor Dr. Josué da Costa Silva, já matriculados no Departamento de Geografia da USP, para realizarem Pós-Graduação na USP – Mestrado – e que após aguardarem por dois meses a bolsa souberam que os processos nem sequer havia saído da Universidade e sido encaminhados à CAPES, que oferecia duas bolsas a cada Departamento de Universidade emergente para a formação de quadros. Assim sendo, estavam se despedindo dos Professores da USP).
A Congregação da Universidade de São Paulo aprovou o meu ingresso junto ao Programa de Professor Sênior junto ao Departamento de Geografia no dia 21 de fevereiro de 2013, o qual, até o presente (2020), eu o mantenho (A cada dois anos é necessário fazer relatório das atividades e nova proposta. O processo é avaliado por uma comissão; em seguida o parecer é discutido no Conselho do Departamento de Geografia e depois pela Congregação da FFLCH-USP). É a forma que me permite continuar na ativa nas seguintes atividades junto ao Departamento de Geografia: orientação de TGI – 1 e 2 e IC. Vale ressaltar que desde minha aposentadoria continuo dando minha contribuição na Pós-Graduação – Mestrado e Doutorado – ministrando disciplina e participando de colóquios semanais com os/as estudantes de pós-graduação e IC. É sempre conveniente ressaltar que, na USP, após a aposentadoria, continuamos a trabalhar sem remuneração; trabalhamos pelo prazer de poder contribuir, em especial, com a pós-graduação, possibilitando a entrada de mais pessoas no programa USP porque, além de ser de bom nível, é gratuito. Minha opção principal tem sido o apoio aos estudantes de outros estados do país.
Em maio de 2013 (de 22 a 23), o Departamento de Geografia, Programa de Pós-Graduação em Geografia e o Grupo de Pesquisa Produção do Espaço Urbano do Instituto de Geociências da Universidade Federal da Bahia realizaram, sob coordenação da Professora Dra. Maria Auxiliadora da Silva, o Seminário Nacional de Geografia, que teve como objetivo discutir relevantes temas contemporâneos da Geografia Brasileira desenvolvidos por docentes-pesquisadores de reconhecido prestígio nacional e internacional. Foram 18 professores/as homenageados/as e fui um dos nomes cujo texto foi elaborado pelo Professor José Bueno Conti.
Recebi, em setembro de 2013, o Diploma de Menção Honrosa em “reconhecimento pelos relevantes serviços prestados à FAPEAM-AM (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas)” e para a qual continuo contribuindo. Devo ressaltar que desde que a Professora Marilene Corrêa da Silva gestou a ideia de implantação da FAPEAM participei de inúmeras discussões e sugestões. Desde sua implantação tenho contribuído na avaliação de projetos de pesquisa para concessão de bolsas, avaliação de processos a partir de Editais de Auxílio à Pesquisa ou em Convenio da FAPEAM e Secretarias, Ministérios, etc.
Sou muito grata ao CNPq pelas oportunidades que tem proporcionado às pessoas para a realização da titulação, de aprendizado para a pesquisa, de bolsas de produtividade em pesquisa de Edital Universal, dos quais tenho me aplicado e obtido sucesso. Em outubro de 2014 fui surpreendida, graças ao empenho e convite feito pelo CNPq, para a redação do texto por parte de Elisa Pinheiro de Freitas e colaboração na redação de Ana Elisa Pereira e José Fonseca da Rocha Filho, com a síntese do meu currículo publicado no Portal do CNPq destacando o pioneirismo de minha atuação científica. Na 4ª edição do portal “Mulheres Pioneiras na Ciência” constam, pela primeira vez, duas geógrafas: Bertha Becker (falecida em 2013) e Rosa Ester Rossini. A luta continua. Espero continuar apresentando o novo no meu trabalho. É oportuno ressaltar que, em 1971, na dissertação de mestrado discuti, na geografia da USP, a questão do trabalho da mulher e do homem na agricultura canavieira de Serra Azul, no estado de São Paulo, sob a ótica do materialismo histórico e dialético. Na tese de doutorado, em 1975, mantive o fio condutor, agora discutindo o tema para o estado de São Paulo, sobre a mão de obra volante na agricultura.
Em 1988, na tese de Livre-Docência, consegui aprofundar a discussão sobre a questão de gênero na geografia assim como em outros estudos e pesquisas realizados, como os já referidos, possibilitando dar visibilidade à mulher como trabalhadora, tendo como fio condutor o trabalho. É, através dele, no âmbito de minhas pesquisas, que evidencio como o espaço vem sendo produzido e reproduzido através do trabalho de homens e de mulheres. Valorizo muito a luta das pessoas trabalhadoras não só na reivindicação do direito como pela igualdade e equidade de gênero.
Em 2015 meu coração quase parou ao ter sido honrada tanto pela Universidade Estadual do Ceará como pela Universidade Federal do Piauí com o título de Doutora Honoris Causa, não apenas pelo meu histórico de atividades, como pelo meu engajamento junto ao PIBIC-CNPq/Universidade assim como pela participação e envolvimento nos eventos institucionais de Universidades.
No dia do geógrafo, em 2015, fui convidada junto ao Núcleo de Análise Urbana (NAU), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e mais uma vez fui surpreendida pela gentileza dos/as colegas ao me oferecerem uma placa, não só pelo dia do/a geografo/a, mas também pelo pioneirismo nos estudos de Gênero na Geografia Brasileira.
Parece que o tempo flui muito rápido. Mesmo considerando os inúmeros trabalhos realizados, o saldo aparece quando “costuramos” o que fazemos e fizemos e percebemos que trabalhamos muito. Em 2016, com financiamento do CNPq para pesquisa e publicações, o Grupo de Pesquisa “Geografia e Gênero” publicou, pela Annablume, o livro “Dinâmicas Contemporâneas do Espaço Agrário Brasileiro: modernidade técnico-científica e diferentes usos do território”.
Em 2017 tive a honra e satisfação de ser homenageada pelas pessoas organizadoras do livro “Diálogos ibero-latino-americanos sobre geografias feministas e das sexualidades”, organizado por Joseli Maria Silva, Márcio Ornat e Alides Baptista Chimin Junior, com a seguinte dedicatória: “Para a geógrafa Rosa Ester Rossini, pela inspiração, coragem e eterna luta”. Foi lançado pela editora TODAPALAVRA – PR, P. 6, ISBN: 978-85-62450-48-8.
2019 foi um ano de muito trabalho e de muitas realizações e alegrias. Em março, comemorando o dia da mulher, foi aberta em Cuiabá a “Amostra Cultural 300 Mulheres – Letras, História e Equidade – Uma celebração de presença feminina na história dos 300 anos de Cuiabá”. Academia Mato-grossense de Letras – Casa Barão de Melgaço, da qual sou uma das mulheres integrantes da Amostra.
Em maio recebia o I Prêmio CREPESG de Iniciação Científica – Congresso Regional de Grupos de Pesquisa em Geografia. “Homenagem em consideração à contribuição à Instituição Científica de Estudantes de Geografia”. Placa de Honra oferecida no II CREPESG – Guarabira-PB.
Em julho de 2019 recebi em sessão solene do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, o Diploma de Sócio Honorário “conferido à Exma. Sra. Rosa Ester Rossini para que possa gozar de todas as regalias e direitos que lhe são outorgados pelos Estatutos”. Diga-se que é mais do que uma honraria, considerando que o IGH-AM foi fundado em 23 de março de 1917 e o Diploma de Sócio Honorário recebido foi o 18° título oferecido.
Reservo carinho especial à Universidade Federal do Amazonas – UFAM, considerando que, desde a primeira vez que lá estive, no início de 1990, todos os colegas sempre me receberam muito bem assim como valorizaram sempre minha participação , em especial, junto ao PIBIC/UFAM/CNPq e em setembro de 2019, recebi homenagens e proferi palestra de encerramento do 5º Encontro de Políticas Públicas para a Pan-Amazônia e Caribe - 5° PPPAC, sob a coordenação da Professora Heloisa Helena Correa, realizado no Instituto Natureza e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas, campus de Benjamin Constant.
Na participação do IV Seminário Latino Americano de Geografia, Gênero e Sexualidades realizado na Argentina – Tandil – fui homenageada na abertura do evento, em 13 de novembro de 2019, “por ter sido a precursora dos estudos de gênero na geografia do Brasil”. Durante o evento participei também de várias entrevistas.
No ano de 2020, com a chegada do COVID-19 no Brasil, tivemos que mudar a rotina, isto é, passamos, desde março, a trabalhar em casa. O estado de São Paulo, assim como o Brasil inteiro foi violentado tanto com a ocorrência de pessoas infectadas como de elevado número de mortes. Para se ter uma ideia da agressividade do vírus, até a presente data, 16 de outubro de 2020, no mundo são 38.394.169 de casos confirmados com 1.089.047 mortes e no Brasil são 5.140.863 de casos confirmados com 151.747 mortes. As aulas foram suspensas, todas as reuniões e eventos, defesas de tese, etc. estão sendo realizadas sob forma de videoconferências, utilizando variados tipos de plataformas, como o Google Meet, por exemplo. O trabalho não parou e não para. Tínhamos programado a publicação de um livro para março/abril de 2020 pela editora da Universidade Federal Rural de Pernambuco, graças ao apoio dado pela Professora Maria Rita Machado, da mesma universidade e participante da equipe. Agora são dois: Volume I - “Terra e trabalho: usos e abusos do espaço agrário brasileiro” e Volume II – “Terra e trabalho: Territorialidades e desigualdades”, ambos organizados por Rosa Ester Rossini, Maria Rita Ivo de Melo Machado e Mateus de Almeida Prado Sampaio. Estas publicações são resultado do financiamento da concessão apoiada pelo CNPq – Projeto Universal – Título – Geografia e Gênero: trabalho e produção no campo brasileiro: competitividade econômica e resistência no século XXI – 06/2017 – 05/2020. Como resultado do fechamento de tudo, inclusive da editora da UFRPE, e do enclausuramento, o livro se multiplicou.
Anexando aos engajamentos, há novo projeto em execução que é a transformação da chácara que possuo e moro quando vou lá em Serra Azul-SP, em Laboratório de Pesquisa para as crianças e adolescentes das escolas da cidade e arredores. O pontapé inicial já foi dado: o plantio e conservação das plantas de cerrado, a contratação de uma pessoa que sempre cuidou da terra e do verde, a construção de um galpão e implementação de mesas e bancos de marmorite, banheiros (M e F) e cozinha para preparar alguns alimentos ao receber as crianças ou adolescentes e ensiná-los a “ler” a paisagem... Já comuniquei a municipalidade e a minha família que consta do meu testamento o repasse de chácara a Serra Azul, como extensão da Escola Municipal de Educação Infantil Ramiro Rossini, hoje denominada de Escola Municipal de Educação Básica Ramiro Rossini, e que deverá ter sempre a função de educação e motivação às crianças e adolescentes.
Sonhar é possível e “o mundo é cheio de possibilidades” (Milton Santos).
Viver é mudar e variar, pensando sempre no social, na perspectiva de colaborar para com que os jovens acreditem no futuro, como eu sempre acreditei, e o transformem de modo a existir igualdade e equidade de gênero, proporcionando a transformação do sonho em uma realidade concreta.
Para finalizar, sem concluir, uma história de vida vai além da história vivida pela pessoa, posto que ela continua através dos estudos e pesquisas realizados pelos/as discípulos/as que desdobram nossas ideias através da criação ou fortalecimento de grupos de trabalho, de estudo e de pesquisa, gestando novas ideias - produzindo ciência.
ROGERIO HAESBAERT DA COSTA MÚLTIPLOS TERRITÓRIOS DE MEMÓRIA
Rogério Haesbaert
SÍNTESE BIOGRÁFICA PROPOSTA:
1- DETALHES BIOGRÁFICOS E CONTEXTO HISTÓRICO
Composição familiar: terceiro de 4 irmãos (dois casais), pai (José Flores da Costa) descendente de portugueses, mãe (Eulita Haesbaert da Costa) descendente de alemães
Trajetória espacial/residencial: 1958- São Pedro do Sul (RS); 1958-1963- São José do Louro (zona rural vizinha à então vila de Mata); 1964-1967: Mata (emancipada de General Vargas em 1965); 1967-1969: General Vargas (denominada São Vicente do Sul em 1969); 1970-1982: Santa Maria (5 bairros diferentes); 1982-atual (exceto 1991-92 e 2002-03): Rio de Janeiro (bairros: Santa Tereza, Fátima, Copacabana, Botafogo); 1991-92: Paris; 2002-2003: Londres.
Percurso estudantil pré-universitário: 1965-1966: Grupo Escolar de Mata; 1967-1969: Escola Estadual Borges do Canto/São Vicente do Sul; 1970-71: Colégio Estadual Coronel Pilar/Santa Maria; 1972-1975: Colégio Estadual Profa. Maria Rocha/Santa Maria (ensino profissionalizante: Tradutor e Intérprete – 1973-1975);
Atuação profissional: auxiliar de empacotador – Lojas Riachuelo (Santa Maria, 1972); atendente no Crédito Educativo da Caixa Econômica Federal (UFSM, 1978-79); professor de Geografia: curso preparatório LT (Santa Maria, 1977); Fac. Ciências e Letras Imaculada Conceição (Santa Maria, 1980-82); UFSM-curso de férias (Santiago, 1981 e 1982); Colégio Pentágono Bahiense (Rio de Janeiro, 1983-84); Colégio Andrews (Rio de Janeiro, 1984-1985); Secr. Educ. RJ (Rio de Janeiro, 1985); PUC (Rio de Janeiro, 1985-87); Col. Brig. Newton Braga/Min. da Aeronáutica (Rio de Janeiro, 1985-87); Universidade Federal Fluminense (Niterói, Graduação: 1985-2019, Pós-Graduação: 1999-atual); Universidade de Buenos Aires (Bs. Aires, Pós-Graduação: 2017-atual); professor visitante nas universidades: Paris VIII, Toulouse-Le Mirail, UNAM-CRIM (Cuernavaca), Colegio de Michoacán (La Piedad), Politécnica Salesiana (Quito) e Antioquia (Medellín)
2- PRINCIPAIS CONTRIBUIÇÕES PARA A GEOGRAFIA BRASILEIRA
- Datas e locais de constituição da carreira na Geografia: 1976-1979: Licenciatura em Geografia / 1977-1980: bacharelado, Universidade Federal de Santa Maria; 1982-1986: Mestrado em Geografia, UFRJ; 1990-1995: Doutorado em Geografia Humana, USP (1991-92: estágio doutoral no Instituto de Ciências Políticas-Paris); 2002-2003: Estágio pós-doutoral na Open University, Milton Keynes, Inglaterra.
- Pesquisas expressivas realizadas que marcaram o perfil acadêmico: A Campanha Gaúcha e o resgate da identidade regional (mestrado); Gaúchos e Baianos: modernidade e desterritorialização (doutorado); O mito da desterritorialização (pós-doutorado); Globalização e regionalização – regiões transfronteiriças entre países do Mercosul; Sociedades de In-segurança e des-controle dos territórios; Território como categoria da prática numa perspectiva latino-americana.
- Autores de que recebeu influência: geógrafos: Bertha Becker (orientadora de mestrado; organização de livro e evento); Milton Santos (professor no mestrado e doutorado; pesquisa no mestrado); Jacques Lévy (supervisor em estágio doutoral); Doreen Massey (supervisora em estágio pós-doutoral; tradução de livro, eventos); não-geógrafos: Gilles Deleuze e Felix Guattari (livro “O mito da desterritorialização”); Michel Foucault e Giorgio Agamben (livro “Viver no Limite”): pensadores descoloniais latino-americanos (livro “Território e Descolonialidade”).
- Algumas parcerias de pesquisa ao longo da carreira – Brasil: Lia Machado (Faixa de Fronteira – Min. da Integração Nacional); Carlos Walter Porto-Gonçalves (livro “A nova desordem mundial”); Ana Angelita Rocha (biografia de Doreen Massey); Sergio Nunes e Gulherme Ribeiro (livro “Vidal, Vidais”); Fania Fridman (grupo CLACSO e livro Escritos sobre espaço e história); Frederico Araújo (livro Identidades e territórios); Argentina: Perla Zusman (UGI e livro “Geografías Culturales”); Chile: Pablo Mansilla (Univ. Católica de Valparaíso, projeto de pesquisa).
- Livros marcantes da carreira: RS: Latifúndio e identidade regional (P. Alegre: Mercado Aberto, 1988); Des-territorialização e identidade: a rede “gaúcha” no Nordeste (Niterói: EdUFF, 1997); Territórios Alternativos (Niterói e São Paulo: EdUFF e Contexto, 2002); O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004, editado em espanhol pela ed. Siglo XXI); Regional-Global: dilemas da região e da regionalização na Geografia contemporânea (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010; editado em espanhol pela CLACSO/UBA em 2019); Viver no limite: território e multi/transterritorialidade em tempos de in-segurança e contenção (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014; editado em espanhol em 2020 pela ed. Siglo XXI); Território e Descolonialidade: sobre o giro (multi)territorial/de(s)colonial na América Latina (Buenos Aires: CLACSO, 2021)
3- AVANÇOS TEÓRICOS E CONTROVÉRSIAS
- Maiores contribuições conceituais e metodológicas realizadas: debates sobre região/regionalização (rede regional e região como arte-fato), regionalismo e identidade regional/territorial; território, multi/transterritorialidade e des-territorialização, contenção e exclusão/precarização territorial; debate modernidade-pós-modernidade; influência, na Geografia, das filosofias (pós-estruturalistas?) de Deleuze e Guattari, Foucault e Agamben; pensamento de Doreen Massey; pensamento descolonial na Geografia latino-americana.
- Principais controvérsias, críticas e embates sobre a produção científica realizada: debate sobre território para além de suas perspectivas estatal (incluindo as noções de multi/transterritorialidade e corpo-território) e funcional (incluindo a dimensão simbólica do poder) – criticado por Antonio Carlos Robert de Moraes; desterritorialização como precarização territorial, território e região como categorias de análise, da prática e normativas; influências “pós-modernas” e/ou pós-estruturalistas – debate com Blanca Ramírez (México) sobre o estruturalismo de “O mito da desterritorialização”
Decidi aproveitar a oportunidade deste convite para fazer um balanço autobiográfico de trajetórias que, em maior ou menor grau, formaram minhas múltiplas geografias vividas. Não se trata exatamente de uma “egogeografia”, nos moldes propostos por Jacques Lévy pois, como afirmam Yann Calbérac e Anne Volney, num número especial da revista “Géographie et Cultures”:
Para além da (auto)bio-geografia de geógrafo que visa, pelo relato de vida, compor uma figura de pesquisador(a) ao ancorá-lo nos lugares em que a carreira se desdobra, ou além da abordagem egogeográfica inspirada por Jacques Lévy, que pretende construir a autoridade de um(a) autor(a) graças a um retorno sobre sua produção científica, este número [estas memórias, no meu caso] convida[m] a explorar as múltiplas relações entre o ego (dimensão identitária do sujeito epistêmico) e a geografia (conjunto de conhecimentos e de métodos) (Calbérac e Volnev, 2015).
Redigir um memorial acadêmico (como fiz em 2015 para concurso de professor Titular) ou como, neste caso, um conjunto múltiplo de memórias, numa “autobiografia”, não é tarefa fácil, pois nossa lembrança é sempre seletiva e nem sempre aquilo que nos parece mais relevante – ou “crítico” – o seria sob o olhar de um outro. Realizar um balanço e uma análise crítica de nossa contribuição é ainda mais temerário. Corre-se todo o tempo o risco da falta e/ou do egocentrismo. Nossas trajetórias são moldadas não apenas pelo que é possível transpor em relatórios burocráticos, mas se revestem da dimensão do vivido que, muitas vezes, é a única capaz nem tanto de explicar, mas, pelo menos, de fazer compreensíveis nossas opções e feitos, não apenas no âmbito pessoal mas também na esfera mais estritamente profissional-acadêmica. Da mesma forma que as categorias analíticas que racionalizamos não podem ignorar seu uso enquanto categorias da prática, no senso comum cotidiano (pois é com elas que, em última instância, agimos), também devemos pensar nossos caminhos numa íntima associação entre construção intelectual e práticas da geografia vivida. Talvez nem tanto mas um pouco concordando com Clarice:
É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo. Ou pelo menos o que me faz agir não é o que eu sinto, mas o que eu digo. (Lispector, 1943:11)
Por isso, acredito que somente um conjunto de memórias onde se cruzem sensibilidade e razão, experiência concreta e reflexão teórica, é capaz de revelar a riqueza labiríntica desses percursos. Com o cuidado, sempre, para não cair nem no esquecimento que ignora pontos e personagens significativos, nem na pretensão e/ou na arrogância que enaltecem exageradamente algumas de nossas realizações.
Romper com a dicotomia entre o subjetivo e o objetivo, a emoção e a razão, pois essa ordenação de memórias permite – ou melhor, poderíamos dizer, “exige” – a sua permanente imbricação é, portanto, um dos grandes méritos de uma autobiografia ou mesmo de um memorial. Como se trata sobretudo de uma tarefa individual, podemos lembrar o que nos afirma o saudoso geógrafo e amigo Maurício Abreu em seu artigo “Sobre a memória das cidades”:
O espaço da memória individual não é necessariamente um espaço euclidiano. Nele as localizações podem ser fluidas ou deformadas, as escalas podem ser multidimensionais, e a referenciação mais topológica do que topográfica (ABREU, 1998:83). (1)
Nesse sentido a literatura e seus escritores também podem ser acionados para nos recordar que não é nada fácil, e mesmo contraproducente, buscar “linhas” ou regularidades numa história pessoal, ainda que pelo viés acadêmico. O grande Guimarães Rosa, por exemplo, nos alerta que “as lembranças da vida da gente se guardam em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimentos, uns com os outros não se misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância” (2) . Isso nos faz lembrar também da leitura genealógica foucaultiana, que privilegia as rupturas e as descontinuidades. Quando se trata de memória, fica ainda mais difícil encontrar um fio condutor que demonstre a continuidade da lembrança. Ela é feita em pedaços, e somente o menos importante é que permite falar em continuidade. O novo efetivamente emerge nos momentos de descontinuidade com o que já estava concebido, repetitivamente dado.
Talvez pudéssemos pensar também que na própria vida concreta os momentos de fato relevantes são aqueles que rompem com as continuidades e estabelecem rupturas. Nesse sentido, o novo, o que inaugura uma nova etapa ou descoberta, só pode brotar do sentido do “fazer diferença” que representam determinados momentos – e lugares, eu acrescentaria. Quem/aquilo que “faz diferença” em nossas vidas é quem/aquilo que nos instiga à mudança, rumo a outras perspectivas de mundo. E quem
faz diferença, obviamente, é o Outro. Daí uma marca que posso identificar, desde agora, na minha trajetória: a busca do Outro que eu fui buscar, através da Geografia, pela diferença que fazem os nossos múltiplos espaços de vida – relembrando imediatamente a noção de espaço de Doreen Massey como a esfera da multiplicidade. Daí a proposta de intitular este relato “Múltiplos territórios de memória”. São muitos os referentes espaciais que moldam nossas trajetórias e que permitem um processo de des-reterritorialização plural e constante.
Como afirma Assmann, pesquisadora na área de estudos culturais:
"Após intervalos de suspensão da tradição, peregrinos e turistas do passado retornam a locais significativos para eles, e ali encontram uma paisagem, monumentos ou ruínas. Com isso ocorrem “reanimações”, mas quase tanto o lugar reativa a recordação quanto a recordação reativa o lugar (Assmann, 2011)."
Com Assmann, deduz-se que lugares viram quase “sujeitos” pois, ao serem observados, podem instigar determinadas sensibilidades e ações. Assim, estamos bem acompanhados quando identificamos, em espaços do nosso passado – ou do passado que se condensa no presente (lembrando a “acumulação desigual de tempos” de Milton Santos), a força de determinados referenciais concretos que, imbuídos de um profundo simbolismo, podem provocar em nós uma espécie de atualização de viagem no tempo.
Gostaria de tecer primeiro as linhas gerais e as bases primeiras do ambiente vivido e familiar que permitirão, ao longo do percurso, transmitir um pouco da minha interpretação pessoal sobre vínculos importantes que possibilitaram construir a condição de geógrafo. Geógrafo que se envolveu com problemáticas e conceituações tentando pensá-las com um olhar de algum modo próprio, o que resultou em algumas contribuições e na inserção em debates mais amplos em nível da Geografia brasileira e, hoje, também, estrangeira, especialmente a latino-americana.
Mas há um roteiro proposto e, com base nele, elaborei uma síntese inicial, esperando não esquecer itens, muitos deles desdobrados também ao longo do texto. Em resumo, parto da ideia de ruptura geográfica ao longo da trajetória intelectual e de vida para delinear, de saída, alguns momentos fundamentais de mudança – ou, em termos mais especificamente geográficos, de des(re)territorialização – a saber:
1. A mudança do interior semirrural do Rio Grande do Sul (morei em zonas rurais e duas pequenas cidades, de 1.500 e 3.000 habitantes) para o polo regional que é Santa Maria, centro militar, estudantil e religioso. Essa mudança, aos 12 anos, representou uma grande abertura intelectual. Numa leitura simplista, poderia afirmar que se tratou de um salto do local para o regional – como cidade universitária, Santa Maria também me abria os olhos para as escalas nacional e mundial, auxiliado por meu radinho de ondas curtas e por meus correspondentes estrangeiros e de diversas cidades do Brasil.
2. A saída de Santa Maria, aos 23 anos, para realizar o mestrado no Rio de Janeiro, e aí permanecer – costumo dizer que saí direto do interior do Rio Grande do Sul para a megalópole, sem “estágio” em metrópole; toda uma alteração de modo de vida – e de identidade – se verificou aí, relativizando o regional e afirmando, definitivamente, o nacional (de nuança carioca).
3. A residência de um ano em Paris, durante o chamado doutorado-sanduíche, levou-me a desenvolver uma outra perspectiva sobre o Brasil e, pela primeira vez, fez-me confrontar com uma identidade latino-americana. Uma década depois, com o pós-doutorado, somou-se o ano de residência em Londres, cidade ainda mais global e cosmopolita, contribuindo para mudar uma perspectiva sobre o mundo, numa interação entre suas múltiplas escalas.
Nasci no final dos anos 1950 (31 de março de 1958) no interior semirrural do Rio Grande do Sul – a pequena São Pedro do Sul, da qual não guardei lembranças, pois com poucos meses de vida minha família (então com um casal de irmãos) mudou para a zona rural de Mata, vila que só se emanciparia de General Vargas (depois denominada São Vicente do Sul) em 1965. Ali nasceu outra irmã – somos uma família de quatro irmãos – e foi onde passei meus primeiros cinco anos de vida. Uma vida marcada pela atividade no campo e pelo contato com a grande família de avôs, tios e primos Haesbaert que viviam na localidade chamada São José do Louro . (3) Enquanto a família de meu pai era descendente de portugueses que povoaram a chamada Campanha Gaúcha, minha mãe descendia de migrantes alemães – meu tataravô (Johan Peter Haesbaert), proveniente de Hamburgo, na Alemanha, foi o primeiro pastor luterano na fundação de Novo Hamburgo.
A união de meus pais revela um pouco a integração entre Serra (“Colônia” ítalo-germânica, minifundiária e agrícola) e Campanha (de herança luso-espanhola, latifundiária e pastoril) que marcou a história do Rio Grande do Sul. Esse legado migrante e esse encontro de geografias marcaria também a minha trajetória acadêmica até o doutorado, e ajuda a compreender um pouco porque região, identidade, território e des-territorialização estiveram sempre no centro de minhas investigações.
É interessante perceber que, desde pequeno, sem uma razão clara, até porque estava envolvido concretamente num ambiente geográfico bastante limitado, sentia-me atraído por espaços distantes e desde muito cedo a curiosidade por saber o que se passava em outros cantos do mundo se revelou muito forte, o que incluía o meu inusitado interesse por mapas. Aos seis anos de idade, mesmo morando na zona rural, meus parentes e algumas visitas se divertiam me convidando a subir num banquinho e “discursar” sobre cidades e países distantes. Um tema recorrente era o Rio de Janeiro e o Pão de Açúcar, conhecido através de capas de “folhinhas”, os calendários da época. A partir dos sete anos passei a pedir como presente de aniversário e Natal lápis de cor e cadernos com paisagens na capa para neles (re)desenhar mapas e descrever diferentes regiões do mundo. Dos nove para os dez anos cheguei a redigir, manuscrito, um “almanaque mundial” de países para a biblioteca da escola.
É curioso relembrar o quanto, na infância e adolescência, a ansiedade (às vezes até a angústia) me tomava na busca por uma alternativa a um mundo que muitas vezes me parecia por demais acanhado e opressor. Minha inusitada paixão pelos mapas e descrições de lugares e a leitura/escrita como “diversão predileta” me tornavam de certa forma um estranho nesses ambientes onde transitava, lugarejos cuja condição urbana – ou urbanidade – era ficção dentro da alargada definição político-administrativa de urbano como toda sede de distrito (“vila”) ou município (“cidade”), independente da população.
No interior do Rio Grande do Sul, marcado por uma forte cultura de raízes patriarcais e machista, as barreiras do controle social eram ainda mais cerceadoras. Isso me leva a imaginar que também podemos discutir uma espécie de desterritorialização em nível pessoal, mais subjetiva ou psicológica, quando também individualmente nos vemos como que descontextualizados do espaço-tempo em que vivemos e ao qual, de início sem nenhuma alternativa de escolha, fomos atrelados.
A mudança da zona rural – São José do Louro – para a vila de Mata veio acompanhada da minha entrada na única escola local, o “Grupo Escolar”. Embora diminuta, sem nenhuma rua calçada, a vila – que se emanciparia no ano seguinte à nossa chegada – era servida por trem, uma grande atração, que me amedrontava e seduzia ao mesmo tempo. O trem significava a conexão mais vigorosa com o mundo, o vínculo com o desconhecido, a grande abertura para outras geografias. Uma diversão era, do alto da coxilha, contar os vagões do trem; outra, reunir pilhas velhas transformadas em trens deslocados em sulcos pelo chão. A chegada do “P”, o trem de passageiros, mobilizava o vilarejo.
Lembro de meu aniversário de seis anos e a coincidência com a dita “revolução”, o golpe militar de 1964. Foi minha primeira viagem de trem, com meu pai, convidado por minha tia e madrinha, que aniversariava um dia antes e que residia em São Pedro do Sul. Viagem de apenas 30 quilômetros, mas que para mim pareceu enorme. Lamentei foi antecipar a volta, todos atentos à “ameaça de guerra” e a mobilização do exército na vizinha Santa Maria, cidade que, na época, dizia-se, abrigava o segundo maior contingente militar do Brasil, dada sua posição geopolítica equidistante das fronteiras então mais sensíveis do país, com a Argentina e o Uruguai.
A religiosidade era forte. Fiz a “primeira comunhão” aos 7 anos de idade e compareci a uma reunião convocada pelo pároco com jovens voltados à “vocação sacerdotal”. Para lugarejos rurais ou quase rurais como aquele, o seminário, localizado num centro regional da Campanha, Bagé, era a grande oportunidade para garantir educação gratuita e o prosseguimento dos estudos, já que em Mata só havia “ensino primário”, até a atual quinta série. Lembro da enorme frustração quando o padre me considerou muito criança para decidir sobre o sacerdócio, deu-me um livreto ilustrado sobre a vida no seminário e mandou-me de volta para casa.
Minha família era marcada pela instabilidade financeira e pela des-reterritorialização: ao longo de meus primeiros 20 anos de vida mudamos 10 vezes, numa média de uma mudança de residência a cada dois anos. Com isso, mudava também a escola, e os transtornos eram grandes. Apenas para um exemplo, ao mudarmos de São Vicente do Sul (então chamada General Vargas) para Santa Maria eu havia estudado francês como segunda língua e fui obrigado, nas férias, por minha conta, a estudar inglês para poder acompanhar os estudos. Ao nos mudarmos de Mata para São Vicente do Sul, meus irmãos mais velhos que, para estudar, moravam com os avós em Santa Maria, tiveram uma enorme perda ao trocarem uma excelente escola pública pelo único “Ginásio” de São Vicente do Sul. Ali, mesmo no início da adolescência, estudando à noite, eles começaram a trabalhar – minha irmã como balconista numa livraria e meu irmão vendendo passagens na estação rodoviária. Eu, mesmo entre nove e dez anos, também consegui um trabalho como vendedor de revistas a domicílio. Em Santa Maria, aos 14, teria meu primeiro emprego com carteira assinada, como auxiliar de empacotador.
Uma grande frustração de meu pai era eu e meu irmão não nos envolvermos com ele nas “lides campeiras”. Autoritário e com um severo e muito próprio senso de justiça, meu pai era um típico representante da cultura gaúcha pastoril, e nossa reação, como que negando a vida do campo, ele muito criticou. Relutou muito em mudar para uma cidade maior para que pudéssemos estudar. Minha mãe, ao contrário, sempre gostou de ler e estudar, mas não teve a oportunidade de ir além da terceira série (dizia que havia aprendido na escola rural tudo o que a professora sabia). Ela é quem nos estimulava para que buscássemos outro caminho. Assim, foi graças ao auxílio dos filhos formados (meu irmão é médico e minha irmã mais velha, como eu, professora universitária) que meus pais tiveram uma velhice mais tranquila.
Não eram raras as reações enérgicas e mesmo violentas de meu pai a uma resposta contrária a comandar uma carreta e uma junta de bois ou a colocar os arreios e fazer um percurso (que ele nos forçava) a cavalo. Aos seis anos eu já tinha a tarefa, todas as tardes, de buscar o terneiro no campo, o que pra mim representava uma provação, pois era comum o bezerro sair em disparada e eu, para a indignação de meu pai, chegar em casa chorando porque não havia logrado o intento.
Minha identificação, definitivamente, não era com o ritmo e a tranquilidade do campo que meu pai tentava, a muito custo, nos impor. Preferia a agitação dos centros urbanos – mesmo que uma cidade “de verdade”, como a vizinha Santa Maria, fosse apenas alcançada nas férias a partir de uma muito esperada viagem de fusca proporcionada por um tio que ali residia. Em casa, inovações tecnológicas como luz elétrica e rádio só chegariam por volta dos sete anos de idade. Desenhava-se assim, gradativamente e com muita dificuldade, uma nova geografia, para mim muito mais múltipla e estimulante.
O professor de Geografia do 1º ano do então Ginásio (hoje correspondente à 5ª série, pois na 4ª realizei o então temido “exame de admissão”) convidou-me para um concurso em plena praça de São Vicente do Sul durante a Semana da Pátria, onde até o prefeito e o pároco locais formulavam perguntas. Ganhei como prêmio um dicionário de quatro idiomas ilustrado com mapas e entrada grátis para o cineminha local por dois anos. Lembro que isso me fez ficar muito conhecido, mas a sensação era a de ser percebido como alguém “fora do lugar”, que vivia na biblioteca ou enfurnado nos livros.
A paixão pela Geografia continuou se fortalecendo e a nova mudança, para Santa Maria, cidade média de mais de cem mil habitantes à época, sede da primeira universidade pública do interior do país, fundada em 1960, representou a primeira grande ruptura na minha trajetória de vida. Ali também, logo após a chegada, participei de vários concursos sobre Geografia (através de um programa de rádio chamado “Música e Cultura”, cujo prêmio era um determinado valor para gastar numa loja de roupas da cidade). Foi aí que me deparei com a clássica Geografia dos livros didáticos de Aroldo de Azevedo, que eram indicados para leitura pelo programa.
Logo depois da chegada a Santa Maria, criei o “Clube Amigos da Quadra” entre os vizinhos de quarteirão e passei a organizar um jornalzinho mimeografado, que tinha até “patrocinador” (um dos vizinhos que trabalhava numa concessionária de automóveis). A partir daí comecei a pensar se faria também o vestibular para Comunicação Social – “também”, porque para Geografia nunca tive dúvida. Cursar “Tradutor e Intérprete” como ensino profissionalizante no “Científico” (atual ensino médio) também foi mais um estímulo para escrever. Acabei publicando algumas crônicas no diário “A Razão”, todas elas de natureza geográficas.
O quanto um ambiente social e geográfico representa condição básica na trajetória de quem pertence às classes subalternas às vezes só é devidamente percebido quando nos deparamos com algumas situações concretas. Algum esforço a nível individual, é claro, deve ser considerado, mas, além do fato de ele obrigatoriamente ser muito mais árduo no caso dos subalternos, as condições do que, simplificadamente, denominamos “ambiente social e geográfico” é fundamental, sobretudo no que se refere às oportunidades favorecidas pelo Estado em termos de ensino público de qualidade e empregos e/ou bolsas como garantia de alguma autonomia financeira.
Na impossibilidade de realizar grandes viagens, eu acabava viajando por mapas e enciclopédias. Durante um tempo passava todos os sábados na biblioteca pública de Santa Maria. Numa família grande, de 14 tios e inúmeros primos, felizmente pude contar também com a ajuda de parentes distantes: uma prima de Criciúma, em Santa Catarina, patrocinou minha primeira viagem para conhecer o mar, sozinho, aos 11 anos (com troca de ônibus em Porto Alegre); um primo que se aventurou a trabalhar numa companhia de navegação no exterior e foi parar na Suécia pagava os fascículos de minha coleção de Geografia Ilustrada e, de vez em quando, me presenteava pelo correio com exemplares (muito esperados) da National Geographic. Nesse circuito é importante acrescentar ainda, mais tarde, um presente fundamental na minha formação: no início do ensino superior, escrevendo ao IBGE, fui brindado com uma coleção de dezenas de exemplares do Boletim Geográfico e da Revista Brasileira de Geografia.
Outra fonte básica de informação e que me proporcionou “viajar” por lugares muito distantes, fazendo uma espécie de conexão local-global pré-internet, foram os correspondentes postais. Depois de uma argentina que conheci na rodoviária de São Vicente do Sul e que me enviava folhetos da agência de turismo em que trabalhava, de uma chilena de Valparaíso (a partir de anúncio em diário de Porto Alegre, e que só recentemente fui conhecer pessoalmente), expandi amplamente o número de correspondentes ao colocar anúncio numa revista do Rio de Janeiro destinada ao público jovem e onde propunha “trocar selos, mapas e postais”. Cheguei a receber mais de 100 cartas e mantive cerca de 30 correspondentes durante vários anos, alguns deles do exterior, como Canadá (que depois me visitou em Santa Maria), Alemanha (que depois visitei em Nuremberg) e México. Essa foi a primeira forma que encontrei para, de algum modo, partilhar múltiplas territorialidades, conhecendo outras culturas e preparando o terreno para contatos que puderam se materializar, tempos depois, com viagens efetivas pelo Brasil e pelo mundo.
Em síntese, essa foi minha “entrada”, na infância e na adolescência, no universo geográfico dos mapas e da descrição de lugares, regiões e países, que me levou a desenvolver uma grande admiração pela Geografia – nem tanto a “ciência geográfica”, que eu ainda mal conhecia, através de mapas e descrições elementares, mas a geografia cotidiana, vivida, que tanto afeta o senso comum através da simples curiosidade por saber o que se passa em outros cantos do mundo e do quanto é rica – e desigual – a diferenciação do ecúmeno terrestre.
Essa multiplicidade de territórios que, concreta ou virtualmente, iam se sobrepondo na minha trama de vida, sem dúvida ajuda a entender a força futura de minha percepção da multi ou mesmo transterritorialidade de tantos grupos sociais – alguns diriam até, da condição multiterritorial inerente à condição humana. Condição essa que, dependendo da situação econômica e cultural, não só permite vivenciar, concomitantemente, múltiplos territórios, como também oferece distintas – e profundamente desiguais – possibilidades de transitar entre territórios diferentes. De algum modo, desde pequeno, desconfortável com a territorialidade que me era imposta, estive em busca de um outro espaço, e esse outro, eu descobriria ainda na adolescência, na verdade, também era parte de mim mesmo. A desterritorialização que vivíamos com tanta troca de residência era experimentada também subjetivamente: meu território era múltiplo, e Santa Maria seria apenas o começo de uma longa trajetória de busca e trânsito por múltiplas territorialidades.
A Geografia que recebi em minha formação básica na Universidade Federal de Santa Maria, na segunda metade dos anos 1970, em pleno ensaio para a saída da ditadura militar, foi basicamente uma Geografia tradicional e amplamente descritiva. Mas, pautado numa herança “enciclopédica” (ao memorizar as capitais, o desenho e características dos diferentes países do mundo), eu não condenava essa Geografia. O que me indignava eram professores que, como a esposa e a filha do reitor (professoras de Geografia medíocres que, por nepotismo, se tornaram docentes universitárias), usavam uma descrição tão elementar e inútil que suas aulas se transformavam num exercício de paciência e comiseração. “Virou lenda” a leitura em sala de aula, durante mais de um mês, da carta de Pero Vaz de Caminha na disciplina de Geografia do Brasil.
Alguns professores, entretanto, como os de Geomorfologia (o geógrafo e exímio desenhista Ivo Muller Filho) e Geologia (o geólogo Pedro Luiz Sartori) foram marcantes. A tal ponto que nos dois primeiros anos minha inclinação maior foi pela Geografia Física – até hoje com carga inicial mais forte na maioria dos cursos de graduação. Já no segundo semestre do curso assumi a monitoria de Mineralogia e Petrografia, o que me levou, mais tarde, a ser convidado pelo professor Pedro para um inesquecível trabalho de campo com coleta de amostras de rochas em todo o planalto catarinense, de Chapecó, no oeste, a São Joaquim, no leste do estado (4).
Também graças a essa formação uma das primeiras disciplinas que ministrei no ensino superior (na FIC – Faculdade Imaculada Conceição, hoje Universidade Franciscana, em Santa Maria) foi Mineralogia. Um currículo que em nada parece se relacionar com as linhas de pesquisa que segui logo depois, mas que marcou de tal modo minha formação que a isso delego a constante preocupação em não dicotomizar sociedade e natureza, Geografias Física e Geografia Humana. Isso já estava evidente em um de meus primeiros artigos de divulgação, “Pela unidade da Geografia”, publicado no diário Correio do Povo, de Porto Alegre, em 1979; (5)
Eram tempos complicados, politicamente turbulentos, com o início da “abertura”, e geograficamente agitados, com a disputa entre uma Geografia quantitativa de matriz neopositivista, dita também pragmática, por suas ligações com o planejamento, e uma Geografia crítica de matriz marxista, recém chegada ao contexto brasileiro. Em Santa Maria, de certo modo uma “periferia distante”, ainda dominada por uma Geografia “tradicional” e descritiva, eu vivia um duplo dilema. Difundida desde o final dos anos 1960 no Brasil, especialmente na UNESP-Rio Claro, no IBGE e na UFRJ (onde ainda em 1982 fui obrigado a fazer provas de Matemática e Estatística para ingressar no mestrado), a chamada Geografia quantitativa só apareceria no final do curso de graduação e a novata Geografia crítica marxista simplesmente, na UFSM, não existia.
O ingresso na primeira turma do curso de bacharelado (curiosamente denominado “curso de Geógrafo”, como constava até na pasta vendida pelo Diretório Acadêmico) deu-se após novo exame vestibular, depois de já ter cursado um ano de licenciatura. A conhecida hesitação dos cursos de Geografia, Brasil (e mundo) afora, entre as áreas de Ciências Humanas e Exatas/Naturais chegou ao extremo de colocar-se o curso de bacharelado num Centro (o de Ciências Matemáticas e da Natureza como ocorre, por exemplo, com o curso de Geografia da UFRJ) e o de licenciatura em outro (Filosofia e Ciências Humanas, como na Geografia da USP).
O contexto político da época também merece ser comentado, principalmente porque estive envolvido diretamente com a política estudantil, presidindo um Diretório Acadêmico. A politica altamente conservadora do período militar fazia com que a grande maioria do movimento estudantil, principalmente em universidades interioranas como Santa Maria, fosse cooptado pela Arena, o partido governista (e sua fictícia oposição, o MDB, que assegurava a máscara democrática do regime). Durante vários anos experimentei o ocultamento pela mídia do que se passava no país, especialmente para quem vivia no interior e sem acesso às raras mídias de oposição, associado a uma avalanche de publicações governamentais (algumas gratuitas, como a revista “Rodovia”, que eu recebia). Infelizmente só fui adquirir efetiva consciência política através de um radinho de ondas curtas (onde sintonizava programas em português de rádios como Deutsche Welle, Central de Moscou e Rádio Pequim), com alguns correspondentes estrangeiros que enviavam artigos de exilados brasileiros (como Francisco Julião, das Ligas Camponesas, no México) e, já no terceiro ano de universidade, a participação, fundamental, no Congresso Nacional de Geógrafos de Fortaleza em 1978.
O fascínio pelas viagens, quaisquer que fossem, por lugares diferentes, faz parte do meu envolvimento, desde a infância, com uma espécie de “heterotopia” que bem mais tarde fui descobrir, primeiro em Foucault, depois em Lefebvre – na verdade este antecedendo àquele em termos de proposição. Para Lefebvre, em sua teoria do “espaço diferencial”, comentada em “A Revolução Urbana”, a heteropia é o “o outro lugar e o lugar do outro, ao mesmo tempo excluído e imbricado” (2004:120) – e que, ele fazia questão de enfatizar, não era representada pela separação, pela segregação que, mesmo lado a lado, distancia, e sim pelos contrastes, superposições e justaposições – uma espécie de multiterritorialidade. Para este autor, as diferenças e a heterotopia, condizente com minha atração pelas cidades, referia-se basicamente ao urbano, pois “as diferenças que emergem e se instauram no espaço não provêm do espaço enquanto tal, mas do que nele se instala, reunido, confrontado pela/na realidade urbana” (2004:117).
Como lugar de encontro e sobreposição de diferenças, dirá Lefebvre, “todo espaço urbano teve um caráter heterotópico em relação ao espaço rural” (2004:117) – embora hoje, com as novas tecnologias, nem tanto. Para uma criança e adolescente como eu, morador do campo e de embriões de cidades, as diferenças brotavam de uma apropriação do espaço em que era impossível segmentar a diferença que o próprio espaço dito natural incorporava, “produzia”, e a diferença mais estrita dessa perspectiva urbana lefebvreana. O espaço, em maior ou menor grau de urbanidade, para mim, até hoje, é um “potencializador de diferenças” (ou da multiplicidade, como diria Massey [2008]) – o espaço geográfico, em seu mais amplo sentido, efetivamente, “faz diferença” – ou melhor, pode fazer diferença, dependendo da sensibilidade e do “afeto” (a capacidade de afetar e ser afetado) constituinte da geo-história de cada um de nós.
A ida ao III Encontro Nacional de Geógrafos, em Fortaleza, foi outro momento de ruptura muito representativo. A viagem foi realizada com grande dificuldade – consegui dinheiro emprestado com meu avô e tive o apoio de amigos correspondentes ao longo dos quatro dias de percurso. O momento mais aguardado era o do retorno de Milton Santos ao país, depois de muitos anos de uma espécie de autoexílio no exterior. A mesa-redonda que ele dividiu com Maurício Abreu, representante de outra linha teórica, a geografia quantitativa neopositivista de matriz norte-americana, tornou-se até hoje um momento emblemático da Geografia brasileira. Maurício se tornaria depois meu professor no mestrado e um de meus maiores amigos . (6) O Encontro de Fortaleza também me proporcionaria a leitura da cópia clandestina de “A Geografia, isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra”, de Yves Lacoste, fotocopiada e distribuída durante o evento por estudantes da Universidade Federal Fluminense.
Com relação à ruptura com a visão tradicional e conservadora de Geografia veiculada pelo curso, ressalto dois fatores principais: meu empenho em participar desses eventos da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB), fundamentais na minha formação extracurricular, e o contato com professores externos, alguns convidados especialmente para ministrar módulos de disciplinas do bacharelado que não encontravam docentes no nosso próprio Departamento, como “Geografia Teorética” (um dos nomes equivocados da Geografia quantitativa neopositivista) e “Geografia Aplicada”.
A primeira foi ministrada por Dirce Suertegaray, uma de nossas poucas professoras com pós-graduação (nesse caso, mestrado na USP), contratada como colaboradora já que estava vinculada também à Unijuí (universidade desde então reconhecida por posicionamentos críticos). Dirce, que depois foi também diretora da AGB, é hoje uma das mais reconhecidas pesquisadoras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. “Geografia Aplicada”, ministrada de forma concentrada, coube aos geógrafos convidados Aluizio Capdeville Duarte e Luiz Bahiana, do IBGE/Rio de Janeiro. Destaque especial teve Aluízio Duarte, responsável depois, via correio, pela orientação de minha monografia de conclusão de curso, relativa à delimitação da área central de Santa Maria. Ele havia realizado pesquisa, referência relevante, sobre a área central do Rio de Janeiro e teve, depois, participação importante no debate que travei sobre a questão regional durante o mestrado na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Com base na herança dos encontros e cursos da AGB, até hoje incentivo muito os estudantes a participarem desses eventos, fundamentais para fortalecer o espírito crítico e estimular a abertura para novos horizontes teóricos. Os encontros e cursos promovidos pela AGB, tanto em nível nacional quanto estadual (a sempre atuante AGB-Porto Alegre), foram, assim, imprescindíveis na minha formação. Foi num desses encontros estaduais, em Caxias do Sul, que tive travei meu primeiro contato pessoal com Bertha Becker, depois minha orientadora de mestrado na UFRJ.
Meu grande dilema intelectual na graduação foi que, ao mesmo tempo em que me deparava com autores, principalmente geógrafos ligados ao IBGE e à UNESP de Rio Claro, que abraçavam uma Geografia neopositivista ou quantitativa que eu praticamente desconhecia, também tomava conhecimento da renovação crítica proporcionada pela Geografia de fundamentação marxista, representada principalmente pelas figuras de Yves Lacoste em sua “revolucionária” perspectiva de uma Geografia “para fazer a guerra”, e Milton Santos, o grande geógrafo brasileiro que retornava de sua espécie de exílio e que acabaria sendo meu professor durante o mestrado na UFRJ e o doutorado na USP.
Como as mudanças nunca são lineares e unidirecionais, não se pode esquecer do convívio concomitante com a crítica, de caráter mais epistemológico (e menos político-ideológico), da chamada Geografia Humanista – aqui mais conhecida, à época, como “Geografia da Percepção”. Nesse sentido foi muito importante um minicurso ministrado em 1980 pela geógrafa Lívia de Oliveira, uma das pioneiras desse pensamento na Geografia brasileira. Também ficou nítida para mim a relevância dessa perspectiva mais subjetiva do espaço quando de uma crítica que foi feita a meu trabalho sobre a delimitação da área central de Santa Maria, no Encontro da AGB em Porto Alegre, em 1982 . (7)
Um outro momento de ruptura espacial que representou uma transformação efetiva no meu modo de ver a Geografia – e o próprio espaço vivido – foi o saída de Santa Maria para cursar o mestrado no Rio de Janeiro, “com a cara e a coragem”, em 1982. Na verdade, minha intenção inicial era cursar pós-graduação na Universidade de São Paulo – principalmente pela maior identificação com a linha teórica crítica ali predominante. A opção pelo mestrado na UFRJ, mesmo com seus temidos exames de Matemática e Estatística, deu-se em função, fundamentalmente, de três fatores: a forma mais democrática de seleção – um concurso geral e aberto – ao contrário da USP, onde o ingresso era (e ainda é) feito diretamente com o orientador e suas vagas; o antigo fascínio pela cidade e o fato de já ter conhecido a geógrafa Bertha Becker, que me estimulou a candidatar-me ao mestrado em sua instituição.
A escolha pelos temas da diferença/desigualdade regional e da identidade pode ser vinculada às experiências vividas no interior do Rio Grande do Sul. Em primeiro lugar, percebendo o encontro entre duas visões de mundo, muitas vezes antagônicas, simbolizadas pelas geografias e histórias diversas de meu pai e minha mãe. Enquanto o primeiro representava o velho “gênero de vida” gaúcho-campeiro, identificado com a pecuária extensiva e o latifúndio e amplamente moldado pelas práticas do chamado tradicionalismo gaúcho, minha mãe carregava uma herança imigrante da “Serra” minifundiária, pautada na ética protestante da ascensão social pelo trabalho, principalmente o trabalho agrícola.
Em segundo lugar, acredito que essa minha aproximação com o tema identitário (que se estenderia até meu doutorado) teve relação também com a busca por explicar a questão identitária representada, em nível mais individual, pela nem sempre fácil relação travada com meu pai e, através dele, com a identidade regional em seu conjunto. A identidade vista enquanto processo ambíguo e contraditório está, assim, indissociavelmente ligada às dinâmicas de diferenciação, pois só se constrói o “idêntico” (ou o “semelhante”) pela construção, concomitante, do diferente. Esse jogo permanente entre identidade e diferença está moldado sempre, é claro, como enfatizado na dissertação de mestrado em relação à identidade gaúcha, por um histórico de desigualdade e poder onde hegemonia e subalternidade se conjugam na imposição daquilo que Gramsci, reunindo coerção e consenso, definiu como bloco hegemônico ou bloco histórico – neste caso, também, um bloco agrário.
Ao falar dessa construção teórico-conceitual não há como, agora, através dessas memórias, não retomar meandros da própria relação com meu pai, sempre contraditória. Minha relação com seu espaço de referência identitária, a Campanha gaúcha, seria moldada por uma profunda ambiguidade, entre a atração e a repulsa. Vagar por aquele horizonte aberto do Pampa era um convite ao desafio (misto de fascínio e temor) pela abertura permanente para o novo, o ilimitado, e pela sensação de vulnerabilidade e não ocultamento do que ainda está por surgir. Os imensos latifúndios são ao mesmo tempo símbolo de liberdade e de dominação, através das cercas impostas sobre o modo de vida livre dos povos originários. Meu pai também portava, um pouco, essa representação: rígido, intempestivo, temido e marcado por uma afetividade reprimida, um forte e muito próprio senso de justiça, ao mesmo tempo que imerso em uma recorrente situação de fragilidade econômica.
O mestrado na UFRJ e a vivência da cidade do Rio de Janeiro para um gaúcho do interior do Rio Grande do Sul foi um dilema e um enorme aprendizado. A dificuldade da adaptação foi grande, mas o Rio era também um espaço profundamente estimulante, onde tive o privilégio de viver experiências marcantes, incluindo as políticas, como a campanha eleitoral de Brizola e as manifestações pelas Diretas-Já. Com as dificuldades financeiras, não conseguindo sobreviver apenas com a bolsa e a poupança que havia construído, tive de recorrer a vários empregos, começando por dar aulas para o “1º Grau” (da 6ª à 8ª séries) em Jacarepaguá e Botafogo, fazendo concurso para o magistério estadual (aulas para adultos no Sambódromo) e para o ministério da Aeronáutica (aulas para 2º Grau no Colégio Brigadeiro Newton Braga, na ilha do Governador) e também dando aulas na PUC-Gávea, para só enfim, em 1986, ingressar na Universidade Federal Fluminense.
Entre os professores do mestrado, além dos geógrafos Bertha Becker, Maria do Carmo Galvão, Roberto Lobato Corrêa e Maurício Abreu, da socióloga Ana Clara Ribeiro e do filósofo Hilton Japiassu, tive o privilégio de ser aluno de Milton Santos, durante sua rápida passagem pela UFRJ. No período em que cursei sua disciplina, fui convidado para trabalhar em sua pesquisa sobre as transformações urbanas na cidade do Rio de Janeiro, mais especificamente as consequências do Projeto Rio, que então se desdobrava na área do Complexo de favelas da Maré. Esse projeto implicava na remoção de um grande número de famílias da zona de palafitas para conjuntos habitacionais – agora mais próximos, dadas as críticas sofridas pelas remoções para áreas distantes, efetuadas na década de 1960 (caso, emblemático, da Cidade de Deus) . (8)
Milton Santos teria um papel importante na minha formação. Primeiro, pelo significado de sua fala no Encontro de Geógrafos de Fortaleza, em 1978. A partir daí, as leituras de livros como “Por uma Geografia Nova”, “O espaço dividido” e “Economia Espacial: críticas e alternativas” (que ganhei de meu pai como presente de formatura) foram decisivas. Além do convite para a pesquisa na favela da Maré, no congresso da AGB em Porto Alegre (1982) ele me apresentaria o geógrafo Jacques Lévy. Uma década depois, com o próprio incentivo de Milton (e uma carta de apresentação que até hoje muito me orgulha), Jacques Lévy se tornaria meu orientador durante a bolsa de doutorado sanduíche no Instituto de Estudos Políticos de Paris. Tentei a orientação de Milton no doutorado, na USP, mas ele estava sobrecarregado de orientações. Destaco, entretanto, suas relevantes contribuições através da disciplina que cursei e de sua participação no exame de qualificação, além do generoso prefácio que fez ao livro que resultou da tese, “Des-territorialização e identidade: a rede ‘gaúcha’ no Nordeste” (Haesbaert, 1997) (9) . No doutorado tive a orientação do geógrafo Heinz Dieter Heidemann, cujo grupo de debates muito me estimulou durante o período em que, mesmo morando no Rio de Janeiro, viajava semanalmente para o doutorado na USP.
As atividades desenvolvidas com Bertha Becker durante o mestrado também devem ser ressaltadas. Com ela participei de projetos e organizei eventos, com destaque para um encontro internacional da UGI, em Belo Horizonte. Um desses eventos resultou no livro “Abordagens Políticas da Espacialidade” (Becker, Haesbaert e Silveira, 1983), com a participação dos geógrafos Edward Soja, Arie Schachar, Walter Stöhr e Miguel Morales. A pesquisa de mestrado resultou no livro “RS: Latifúndio e identidade regional” (Haesbaert, 1988), tendo como principal contribuição a elaboração de um conceito de região a partir da realidade econômica, política e cultural da Campanha gaúcha. (10)
A questão regional atravessou diretamente minha vida acadêmica ao longo de toda a década de 1980 e tem a ver não apenas com o regionalismo e a identidade regional vividos, mas também com a aposta em uma Geografia minimamente una e “integradora”. Começou pela publicação do livro “Espaço & Sociedade no Rio Grande do Sul” (Haesbaert e Moreira, 1982) e de um breve artigo sobre a regionalização do Rio Grande do Sul (na ótica centro-periferia), em 1983. A questão seria retomada em pelo menos três livros na década de 1990: “Blocos Internacionais de Poder”, de 1990 (com diversas reedições), “China: entre o Oriente e o Ocidente”, de 1994a, e “Globalização e Fragmentação no mundo contemporâneo” (como organizador e autor de dois capítulos), em 1998 (com segunda edição atualizada em 2013).
Esses últimos, juntamente com “A Nova Desordem Mundial”, escrito com o colega Carlos Walter Porto-Gonçalves, em 2006, constituem o resultado, em grande parte, de minha inserção, desde 1985, na Universidade Federal Fluminense, na área de “Geografia Regional do Mundo” – uma área pouco valorizada em termos de pesquisa se comparada com outras áreas da Geografia, pelo menos no Brasil. Por isso esses trabalhos de divulgação, de ampla inserção paradidática (“Blocos Internacionais de Poder” foi adquirido em programa governamental para bibliotecas escolares), vieram preencher uma lacuna, especialmente em relação ao ensino, onde são temáticas recorrentes, mas com grande carência de bibliografia. Abriram também perspectivas mais amplas de minha participação em projetos educativos, como a consultoria ao suplemento cartográfico “Mundo – Divisão Política” (jornal O Globo, 1993), debate e consultorias na TV Futura/Fundação Roberto Marinho (1995-96), e convites para minicursos em instituições como o Colégio Pedro II e a Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro.
Durante praticamente todo meu período de Universidade Federal Fluminense trabalhei com teoria da região/regionalização. Desses debates resultaram artigos como “Região, Diversidade Territorial e Globalização” (1999) e “Morte e vida da região: antigos paradigmas e novas perspectivas da Geografia Regional” (apresentação na UNESP-Presidente Prudente, 2001). Finalmente, em 2010, publiquei o livro “Regional-Global: dilemas da região e da regionalização na Geografia contemporânea”, publicado também em espanhol em 2019.
Como contribuições teóricas, além do conceito de região já comentado, propus a noção de “rede regional” (Haesbaert, 1997), a partir da experiência des-re-territorializadora dos migrantes sulistas (ditos “gaúchos”) no interior do país. No livro “Regional-Global” elaborei a concepção de região como arte-fato, a fim de superar a dicotomia entre região como simples artifício metodológico e a região como fato concreto, evidência empírica . (11) Boa parte dessas proposições teórico-conceituais teve como pano de fundo importantes trabalhos de campo, como os que desenvolvi na Campanha gaúcha, no mestrado, nos cerrados nordestinos (especialmente o oeste baiano), no doutorado, no leste paraguaio (com os “brasiguaios”), durante a primeira pesquisa como bolsista CNPq (1998-2002), e na fronteira Brasil-Paraguai (especialmente no Mato Grosso do Sul) durante o projeto de regionalização da faixa de fronteira desenvolvido junto com o grupo Retis, da UFRJ . (12)
Outro reflexo dessa importância da questão regional em minhas investigações foi o nome dado a nosso grupo de pesquisa, criado em 1994 como “Núcleo de Estudos sobre Regionalização e Globalização (NUREG)”. Somente em 2020, com a entrada de um segundo “líder”, Timo Bartholl, ele teve sua denominação modificada para “Núcleo de Estudos Território e Resistência na Globalização”, mantendo, entretanto, a mesma sigla. O NUREG, juntamente com o PET – Programa Especial de Treinamento, que implantei na UFF em 1996 e em cuja tutoria permaneci por 4 anos, representaram ambientes de intenso debate, intercâmbio e pesquisa, tendo por ele passado inúmeros alunos de graduação, incluindo 18 bolsistas de iniciação científica, 14 bolsistas PET e 20 com trabalhos de conclusão de curso, estudantes de mestrado (29), doutorado (21) e pós-doutorado (9), além de pesquisadores estrangeiros em diversos tipos de intercâmbio.
O primeiro grande projeto fundamentalmente teórico em nossas investigações veio com a pesquisa de pós-doutorado, realizada na Open University (Inglaterra), sob supervisão de Doreen Massey (2002-2003), com quem passou a ser desdobrado intenso intercâmbio pessoal e acadêmico .(13) Refiro-me às reflexões que resultaram no livro “O mito da desterritorialização: do ‘fim dos territórios’ à multiterritorialidade” (Haesbaert, 2004), que pode ser considerado meu trabalho de maior repercussão, já tendo onze edições em português e duas em espanhol (editora Siglo XXI, México). Este livro marca a consolidação de uma segunda grande linha conceitual de debates, já aberta antes da tese de doutorado, centrada no território e nos processos de des-reterritorialização.
Embora só se tornem majoritárias na passagem dos anos 1990 para os 2000, as reflexões sobre o território vêm de longa data, remontando à influência dos trabalhos de Bertha Becker, Milton Santos e da leitura de Deleuze e Guattari, nos anos 1980. Bertha Becker incorporava o debate do território, especialmente em seus escritos sobre o papel do Estado e a “ordenação” do território. Um dos livros chave de Milton Santos nesse tema foi “O espaço do cidadão”, de 1987. Assim, em meio à finalização do livro “RS: Latifúndio e Identidade Regional”, escrevi um artigo publicado no suplemento “Ideias”, do Jornal do Brasil, em 1987, intitulado “Territórios Alternativos”. Nele eu destacava a relevância da perspectiva geográfica e as novas alternativas que se colocavam a partir da abordagem de autores como Michel Foucault e Felix Guattari (citando também Castoriadis e Baudrillard).(14) Esse artigo me inspiraria, quinze anos depois, abrindo e dando nome ao livro “Territórios Alternativos” (Haesbaert, 2002).
A preocupação com o território se intensificou na década de 1990, com a publicação de artigos, especialmente em congressos – um deles é precursor, no título e no conteúdo, de proposições muito mais aprofundadas, uma década depois, em “O mito da desterritorialização”. Trata-se de “O mito da desterritorialização e as ‘regiões-rede’” (Haesbaert, 1994b), onde era discutida a íntima relação entre território e rede e a conceituação de território-rede (15). O livro resultante da tese de doutorado (Haesbaert, 1997) trouxe no próprio título a questão da des-territorialização e apresentou o conceito de multiterritorialidade, que seria desdobrado em trabalhos posteriores e representaria uma contribuição importante no nosso campo, inclusive entre cientistas sociais de outras áreas. Era uma época de tamanho domínio do debate territorial que território muitas vezes se confundia com a própria noção de espaço. Tentávamos ali, à luz da experiência migrante, precisar um pouco mais o conceito (16).
A influência dos debates sobre território acabou se expandindo, especialmente com a publicação de “O mito da desterritorialização” (em 2004 no Brasil e em 2011 no México), influenciado pela obra de Deleuze e Guattari (especialmente “O Anti-Édipo” e “Mil Platôs”) e, uma década depois, “Viver no limite”. Neste livro diálogo com ideias como a biopolítica de Michel Foucault e o Estado de exceção de Giorgio Agamben, aprofundando noções como as de contenção, precarização e exclusão territorial. Empiricamente, volto-me para a realidade das favelas do Rio de Janeiro.
Nos anos 2000 cabe mencionar também a participação em debates a nível governamental – além do projeto desenvolvido com a UFRJ para o Ministério da Integração Nacional, já comentado, ocorreu em 2003 a “Oficina sobre a Política Nacional de Ordenamento Territorial”, em Brasília. Ali, debatendo a concepção de território a ser incorporada nessa política, tive a satisfação de discutir com colegas geógrafos como Antônio Carlos Robert de Moraes (que, defendendo uma visão estatal, discordava de minha noção de território), Wanderley Messias da Costa e Bertha Becker. O debate foi intenso, principalmente entre uma visão que eu chamaria predominantemente “de cima para baixo”, das dinâmicas territoriais centrada na própria figura do Estado, e outra mais “de baixo para cima”, focada na vivência/prática cotidianas de seus habitantes. Diversos convites recebidos de áreas externas à Geografia, como a Sociologia, a História, os Estudos Culturais, as Artes, a Literatura, a Economia, a Comunicação e até mesmo a Medicina Social demonstram a amplitude de nossa inserção no debate sobre o território, a territorialidade e os processos de des-reterritorialização.
O diálogo teórico-filosófico que pautava nossas reflexões buscou desde o início questionar as abordagens monolíticas e o autoritarismo de uma ciência objetivista e heterônoma sem, no entanto, menosprezar a busca pelo rigor conceitual, analítico, a permanente retroalimentação entre teoria e prática e, sobretudo, a prioridade à crítica social (17) . Foi assim que estivemos entre os primeiros geógrafos a questionar o excessivo racionalismo “moderno” em leituras materialistas mais ortodoxas e a inserir a dimensão cultural, mais subjetiva, na constituição do espaço geográfico. Evidências disso são artigos como “O espaço na modernidade” (escrito com Paulo Cesar da Costa Gomes em 1988), “Filosofia, Geografia e crise da modernidade” (de 1990) e “Questões sobre a (pós)modernidade” (de 1997), todos republicados em “Territórios Alternativos” (Haesbaert, 2002). No intenso debate que se travava na época entre modernidade e pós-modernidade, uma das proposições foi de que uma perspectiva distinta e transformadora da modernidade envolveria: ... a possibilidade de que, rompendo com os dualismos, se assuma um projeto profundamente renovador, que nunca se pretenda completo, acabado, que respeite a diversidade e assimile, ao lado da igualdade e do “bom senso”, a convivência com o conflito e a consequente busca permanente de novas alternativas para uma sociedade menos opressora e condicionadora – onde efetivamente se aceite que o homem é dotado não apenas do poder de (re)produzir, mas sobretudo de criar, e que a criação é suficientemente aberta para não se restringir às determinações da razão. (Haesbaert, 1990:84)
O estágio de doutorado na França, sob supervisão de Jacques Lévy, entre 1991 e 1992 foi outro momento vivido de clara ruptura de trajetória, principalmente na minha perspectiva de olhar o mundo (aquilo que mais tarde eu definiria como a característica mais marcante potencializada pelo espaço geográfico: a mudança de perspectiva). Na França – e nas inúmeras viagens realizadas a partir dali, especialmente aquelas ao Marrocos e à China/Tibet (ambas em 1992) – pude perceber pela primeira vez uma “identidade latina” – ou “latino-americana” – que, de outra forma, não seria tão nítida (18). Esse impacto das viagens no modo de olhar o mundo – que começara virtualmente com os “correspondentes” da juventude – se fortaleceu a tal ponto que boa parte de minhas economias passou a ser canalizada para essas viagens. Além das muitas viagens a trabalho, onde quase sempre proponho acrescentar uma saída de campo, durante muito tempo planejei viagens de férias nas quais, sem outro compromisso que o de um relato, redigia escritos pessoais e tirava fotos que acabaram servindo como material para dois livros de crônicas: “Por amor aos lugares” (2017) e “Travessias” (2020).
Essas viagens acabavam, de um modo ou de outro, problematizando a minha identificação pessoal e com os lugares. A questão identitária, assim, nunca saiu completamente do meu campo de preocupações. Meu memorial para professor Titular, ao qual recorri para parte deste relato biográfico, termina com o item “De volta ao início: questão de identidade”. Trata-se da busca permanente de um sentido de vida, sempre atrelado ao espaço onde nos movemos. Presente tanto no título do livro de minha dissertação de mestrado quanto no do doutorado, “identidade” é tratada a partir de sua caracterização como processo social (de “identificação”), de sua imbricação indissociável com relações de poder (o “poder simbólico”) e de sua multiplicidade. Assim, desde o artigo “Identidades territoriais”, de 1999, diversos trabalhos aprofundaram o debate teórico da questão, culminando em 2007 com a organização do livro “Identidades e territórios”, num projeto conjunto com Frederico Araújo (IPPUR-UFRJ).
Durante alguns anos dividi com Perla Zusman (UBA) a representação latino-americana do comitê de Geografia Cultural da UGI, tendo como resultado evento e livro (“Geografías Culturales”, 2011), com a presença de geógrafos como Neil Smith, Gil Vallentine, Paul Claval, Jacques Lévy, Vincent Berdoulay, Daniel Hiernaux e Alicia Lindon, além de diversos brasileiros. Em duas realizações do “Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade” (2001 e 2006), organizado pelo departamento de Letras da UFRJ e PUC-Rio, participei como membro da comissão científica e como conferencista, além de ter publicado capítulos de livro. Os eventos promovidos por artistas mineiros na Oi Futuro-Belo Horizonte e no Museu da Pampulha (além de outro, sem publicação, na FAOP-Ouro Preto), resultaram em obras bilíngues onde também publiquei dois capítulos de livro. A artista Marie Ange Bordas, que tem um reconhecido trabalho vinculado a campos de refugiados, estimulada por meu conceito de multiterritorialidade, convidou-me para participar de publicação por ela organizada e de mesa-redonda de lançamento da obra no SESC-Pompeia (São Paulo).
Diversos outros debates envolvendo o tema foram realizados, incluindo análise da identidade brasiguaia, a questão do hibridismo cultural e, um pouco mais recente, uma associação entre transterritorialidade e antropofagia – essa forma muito brasileira, definida no Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade, de “deglutir” o outro e fazer dele, sempre, algo diferente. Maior hibridismo cultural, às vezes moldado de forma violenta e/ou compulsória, como aquele de muitas diásporas migratórias, mescla-se com novas formas de apego a identidades (nacionais, regionais, locais) tidas como fechadas e que, quando vinculadas a um território específico, alimentam o fenômeno dos novos territorialismos. Abre-se um amplo leque de questões, revalorizando a questão cultural-identitária, cultura vista sempre como cultura política, sem falar na mercantilização que até a imagem dos lugares pode transformar em instrumento de compra e venda.
“Não concluindo”, com a questão da identidade (e toda a polêmica que envolve o tema nos nossos dias, incluindo aqueles que questionam o termo e propõem um tratamento teórico “para além da identidade”) podemos dizer que “voltamos ao início”, já que toda a nossa trajetória foi marcada, de um modo ou de outro, pela (des)construção identitária, seja em nível mais pessoal, seja em um nível acadêmico em sentido estrito. Isso para afirmar que nossos caminhos de investigação não podem nunca ser desvinculados das questões com as quais nos encontramos mais direta e pessoal e/ou socialmente envolvidos.
Identidade/identificação lembra também o contexto espaço-temporal em que está inserido nosso pensamento, aquilo que hoje banalizou-se como “lócus de enunciação” ou “lugar de fala”. Pois é a partir da valorização desses contextos geo-históricos ou da nossa geopolítica do conhecimento (como diria, entre outros, Ramon Grosfoguel) que nos inserimos, a partir do debate pós-colonial nos anos 2000 (iniciado com a leitura de Stuart Hall), na abordagem dita descolonial, de bases latino-americanas. A participação em diversos eventos na Colômbia (universidades de Antioquia e Javeriana, de Medellín), na cidade do México, na Argentina (Mendoza e Córdoba, além de cursos ministrados em Tucumán e Buenos Aires), com estadas também em Cuernavaca e Zamora (México, onde conheci a experiência autonomista de Cherán), Quito (Equador, onde visitei uma comunidade cayambe), Lima (Peru) e Chile (com visita a uma comunidade mapuche) – tudo isso me despertou para a realidade latino-americana e acabou me levando a debater o conceito de território a partir do corpo (tal como proposto pelos movimentos feminista e indígena) e a refletir sobre a abordagem descolonial na Geografia. Isso resultou no meu último livro, “Território e descolonialidade”, publicado pela CLACSO/Buenos Aires. De alguma forma é a minha “identidade latino-americana” que finalmente se coloca no centro de minhas preocupações, em todo o jogo político-econômico que coloca a questão territorial numa inédita centralidade.
Dois momentos iniciais que considero decisivos para essa guinada rumo ao chamado giro territorial (que eu denomino também multiterritorial) descolonial na América Latina, além das leituras iniciais sobre pós-colonialidade (que se fortaleceram no pós-doutorado com Doreen Massey, em 2002-2003), foram a redação do livro “Regional-Global”, cuja conclusão coloca claramente a questão, e a organização do “IV Encontro da Cátedra América Latina e Colonialidade do Poder: para além da crise? Horizontes desde uma perspectiva descolonial”, em 2013, juntamente com os colegas Carlos Walter Porto-Gonçalves, Valter Cruz (UFF) e Carlos Vainer (UFRJ). Nesta ocasião foram nossos convidados pensadores chave nessa perspectiva de pensamento, como Anibal Quijano, Catherine Walsh, Alberto Acosta, Edgardo Lander e Luis Tapia.
É importante lembrar ainda que todo esse trabalho acadêmico estava sempre associado a atividades administrativas e em órgãos institucionais, como a vice-coordenação da Pós-Graduação por duas vezes (partilhada com o companheiro Marcio Pinon), a participação por vários anos no comitê do Vestibular e na avaliação PIBIC, além do comitê editorial da editora da UFF. Em nível nacional, participei do comitê assessor da Capes e fui representante de área junto ao CNPq. Participei ainda da fundação e, durante duas décadas, do comitê editorial da revista GEOgraphia. Nela ainda hoje sou responsável pelas seções Nossos Clássicos (que esteve também ligada ao livro “Vidal, Vidais”, organizado com os colegas Sergio Nunes e Guilherme Ribeiro) e Conceitos Fundamentais da Geografia (onde já participaram geógrafos convidados, como Paulo Cesar da Costa Gomes, Sandra Lencioni, Leila Dias, Werther Holzer e Iná de Castro).
Poderia dizer, assim, que fui gradativamente ampliando minha escala geográfica em termos de envolvimento na investigação. Da área central de Santa Maria no trabalho de conclusão de curso aos gaúchos da Campanha, no mestrado, passei aos migrantes sulistas no Nordeste, no doutorado, segui ainda pelos brasileiros (a grande maioria sulistas) no Paraguai. Somente fui deixar o vínculo com os “gaúchos” (e sua/minha identidade) ao incorporar de fato o Rio de Janeiro e sua multiterritorialidade, o que ocorreu basicamente com a pesquisa “Sociedades de in-segurança e des-controle dos territórios”, efetivada entre 2007 e 2013. Foi quando iniciou, também, meu apoio a movimentos populares como o MCP – Movimento das Comunidades Populares, especialmente seu projeto na favela Chico Mendes, no complexo de favelas do Chapadão, uma das áreas mais problemáticas em termos de precarização social no Rio de Janeiro.
A partir de 2014 a escala de pesquisa ampliou-se para o âmbito continental, tratando do “território como categoria da prática social numa perspectiva latino-americana”, consolidando assim a abordagem territorial a partir “de baixo”, de seu uso como ferramenta da prática, política, entre múltiplos grupos sociais subalternos. Como indiquei, essa ampliação veio como consequência tanto da intensificação do diálogo inspirador com colegas como Carlos Walter Porto-Gonçalves e Valter Cruz quanto dos laços com outros países da América Latina, na condição de professor visitante ou como membro efetivo de programas de pós-graduação (caso ainda hoje da Pós-Graduação em Políticas territoriales y ambientales da Universidade de Buenos Aires e do doutorado em Ciências Sociais da Universidade de Tucumán).
Com isso chego ao final dessa “autobiografia”, intitulada “Múltiplos territórios de memória”. Lamento não ter conseguido alcançar plenamente algumas das metas colocadas de início, como não ser “euclidiano” no caráter sequencial e metódico do relato ou não dissociar razão e emoção, teoria e prática. Acabei conseguindo isso um pouco mais ao falar de minha infância e adolescência. Depois a trajetória intelectual acabou sendo priorizada. Mas espero que o leitor entenda – afinal, quem por ventura ler essas linhas, a maioria certamente será de geógrafos, interessados mais na geografia como campo “científico” do que na geografia individualmente vivida. Espero não ter sido por vezes demasiado cansativo – ou mesmo, como ressaltado no início, egocêntrico.
Como uma espécie de “conclusão inconclusiva” – já que biografia, teoricamente, termina apenas com o fim de uma vida (embora saibamos quantas releituras poderão brotar depois) – eu diria que intitulei “múltiplos territórios de memória” por dois grandes motivos. Primeiro, porque nossa memória, como mencionado no início, é sempre seletiva e geo-historicamente situada – em cada momento e local fazemos uma leitura diferente de nós mesmos, explicitando certos pontos e ocultando outros. Segundo, porque a multiplicidade espacial/territorial é a grande marca que posso identificar na minha trajetória de vida.
Assim como falei de múltiplas rupturas a partir das mudanças geográficas e das viagens, múltiplas territorialidades iam se acumulando ao longo do tempo. Algumas enfraqueciam, outras emergiam com força, mas posso dizer que todas elas, em distintos níveis, continuaram sempre fazendo parte de mim. Seletivamente, é claro, mas numa construção híbrida, num amálgama que sempre foi um traço importante que carrego. Somar e sobrepor, mais do que dividir e excluir. Envolver-se e buscar compreender o espaço/território do Outro. Abertura para a multiplicidade do mundo, para a diversidade do outro, que é também a minha. Tarefa difícil, mas cada vez mais necessária, num mundo tão polarizado e excludente.
Na minha história, a geografia, a diferença que é o espaço e que se multiplica através dele, sempre amalgamou paixão e razão. Transpor limites, fronteiras, para desvendar outros espaços, construir novos horizontes, foi um desafio constante que me coloquei. Nem por isso tem a ver com uma espécie de self made man (neo)liberal – que tanto critico. Sem desconhecer a força que o indivíduo tem – ou melhor, pode ter – gostaria de finalizar lembrando o quanto o Outro e o coletivo têm papel na minha trajetória, e o quão pouco eu teria sido sem eles:
- meu pai e seu gauchismo (que, criticamente, me instigou ao longo de tantos anos de estudos), uma relação conturbada, mas ao mesmo tempo uma vida que, prolongada por 91 anos, proporcionou o tempo indispensável para que também nos amássemos;
- minha mãe, estímulo maior, sensibilidade e resistência, a quem eu afirmava em minha dissertação de mestrado: “teu carinho plantou sementes que outros campos (não importa) estão fazendo brotar”;
- minhas irmãs e irmão, cada um a seu modo, solidários na luta por superar as dificuldades de toda ordem, do emocional ao financeiro;
- meus professores, mestres complacentes e/ou desafiadores, e a escola pública, esta que cursei e em que trabalhei quase a vida toda, grandes responsáveis por me possibilitarem romper com a reclusão da minha condição de classe e de gênero;
- meus estudantes, alunos-mestres, especialmente aqueles do grupo de debates, que me ensinam cotidianamente, há décadas, os (i)limites da razão e o quanto a emoção com ela caminha junto e é indispensável para fortalecer e dignificar o trabalho acadêmico;
- meus colegas de universidade, parceiros de tantas batalhas, na gestão e na renovação de nosso departamento, na criação da pós-graduação, na valorização de nossa revista, na promoção de eventos ou no simples diálogo cotidiano dos corredores às bancas de conclusão de curso (quanto aprendizado conjunto).
- meus grandes, “velhos” amigos, batalhadores como eu, cada um com sua história de luta a nos ensinar, pelo exemplo, o quanto a vida é política, e o quanto o afeto é uma das armas mais poderosas que se pode mobilizar;
- meus amigos da ação direta, do trabalho abnegado, da ajuda mútua, das diferentes frentes de luta, que, apesar de tudo, não abrem mão de sua fé em outros mundos/territórios, sempre múltiplos, e que nunca cessarão de, conosco, batalhar por eles.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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NOTAS:
1 Substitui a última palavra, “geográfica”, por “topográfica”, por entender que o topológico é outra perspectiva para a leitura do espaço geográfico.
2 Agradeço a Amélia Cristina Bezerra por essa expressão de Guimarães Rosa.
3 À época, além dos avós, viviam ali 6 de seus 11 filhos. Hoje restam ali apenas primos, sendo que um deles criou um museu (“Fragmentos do tempo”) que recupera um pouco a memória da região e da família.
4 Nesse trabalho ele confirmou sua tese de que os últimos derrames de lava do planalto meridional eram ácidos, dando origem a uma rocha distinta do basalto e que ele denominou “granófiro”.
5 "... sinto-me na responsabilidade não de atentar para uma “nova geografia”, cujo próprio sentido de “nova” é duvidoso, mas de defender seu caráter fundamental (...): a geografia como síntese, (...) de unificação das características fisionômicas e de relação no espaço em que se desenvolvem as atividades humanas. (...) ciência que nunca poderia estar seccionada, como está hoje, em trabalhos “físicos” e “humanos”, como se fazer geografia fosse trabalhar em Geografia Física ou Geografia Humana [grifados "em" e "ou"]. Afinal, o que visam nossos estudos geográficos senão a síntese, a visão global de tudo aquilo que contribui para a explicação de um ambiente, tal como é, e possibilitando prognosticar seu quadro futuro, com base também em etapas passadas?” (Correio do Povo, 17 Ago. 1979)
6 Sobre sua participação nessa mesa, Maurício assim se referiria: “A mesa redonda foi uma experiência que jamais esqueci. Ao contrário de Milton, que era ovacionado a cada ataque que fazia à ditadura cambaleante, que era aplaudido a cada crítica que fazia ao neopositivismo ou ao establishment geográfico, que levava a plateia ao delírio com seu discurso engajado, marxista, até pouco tempo atrás impensável de ser proferido numa universidade sem perseguição política ou mesmo encarceramento, tudo o que recebi da multidão foi silêncio e indiferença. De alguns recebi inclusive o rótulo de ‘reacionário’, e mesmo de ‘imperialista’. Embora não concordando de forma alguma com isso, não havia clima para retrucar. A festa era de Milton e não minha. Ao invés de brilhar, fui eclipsado. Até hoje admiro, entretanto, a coragem que tive ao enfrentar aquela multidão. E continuo gostando muito do trabalho que apresentei naquela tarde”. (ABREU, 1997)
7 O geógrafo paranaense, Lineu Bley questionou-me, a partir de sua perspectiva “humanística”, sobre o objetivismo de minha abordagem. Mesmo reconhecendo a importância da teoria que eu utilizava, destacou que ela ignorava a percepção dos próprios habitantes sobre o que seria a “área central” de sua cidade.
8 Milton propôs a aplicação de questionários (que defini em amostragem de uma centena) junto à Vila do João, conjunto recém inaugurado a cerca de 1,5 km da área residencial original. O discurso era de que com esse “pequeno deslocamento” não teriam ocorrido mudanças negativas importantes na vida dos moradores. A pesquisa demonstrou o contrário, desde o desrespeito a laços de vizinhança e o tamanho (padronizado) das casas até dificuldades no acesso a comércio e serviços. O trabalho foi apresentado no Congresso de Geógrafos de São Paulo, em 1984. Lembro a minha tensão (e ao mesmo tempo honra e gratidão) quando Milton chegou para assistir à apresentação.
9 Neste prefácio ele afirma que o estudo “foi feito com maestria notável, o autor manejando, com propriedade, princípios oriundos da filosofia e de diversas ciências humanas, de modo a produzir uma síntese geográfica com grande riqueza interdisciplinar” (p. 11), “um trabalho sério e documentado, escrito em uma linguagem meticulosa e agradável, mas sobretudo uma análise e uma síntese originais, um estudo fadado a servir como modelo de método (...) e uma importante contribuição teórica à compreensão atual de categorias tão controvertidas quanto as de territorialidade e identidade” (Santos, 1997:12).
10 “... um espaço (não institucionalizado como Estado nação) de identidade ideológico-cultural e representatividade política, articulado em função de interesses específicos, geralmente econômicos, por uma fração ou bloco ‘regional’ de classe que nele reconhece sua base territorial de reprodução”. (Haesbaert, 1988:22)
11 “... qualquer análise regional que se pretenda consistente (e que supere a leitura da região como genérica categoria analítica, ‘da mente’) deve levar em conta tanto o campo da produção material quanto o das representações e símbolos, ideais, tanto a dimensão da funcionalidade (político-econômica, desdobrada por sua vez sobre uma base material-‘natural’) quanto do vivido (simbólico-cultural, mais subjetivo) – em outras palavras, (...) tanto a coesão ou lógica funcional quanto a coesão simbólica, em suas múltiplas formas de construção e des-articulação – em que, é claro, dependendo do contexto, uma delas pode acabar se impondo sobre – e refazendo – a outra”. (Haesbaert, 2010:117)
12 Esse projeto esteve vinculado ao Ministério da Integração Nacional e foi realizado entre 2004 e 2005, através de licitação e foi coordenado pela geógrafa Lia Machado. A participação nesse projeto foi relevante não apenas do ponto de vista de minha primeira experiência direta em projetos governamentais (e consequente diálogo com autoridades como o próprio ministro da Integração Nacional – Ciro Gomes, à época), mas também pelo rico intercâmbio com o Grupo Retis de pesquisa e o trabalho de campo pela região de fronteira entre várias cidades-gêmeas (de Saltos del Guayrá-Guaíra, no Paraná, a Bella Vista-Bela Vista, no Mato Grosso do Sul), incluindo um encontro com lideranças políticas hegemônicas e dos movimentos sociais em Ponta Porã. Seus resultados foram publicados em um livro (Brasil, 2005).
13 Esse intercâmbio incluiu convite para Doreen Massey vir ao Brasil (UFF e ANPEGE-Fortaleza, 2005), tradução de seu livro “For Space” (Massey, 2008), capítulo de livro (em sua homenagem) colocando em diálogo sua concepção de lugar e a nossa de multiterritorialidade (Haesbaert, 2011), participação em mesa-redonda em sua homenagem, após seu falecimento, no encontro da AAG (Boston, 2016) e redação de sua biografia para o livro “Geographers: biobliographical studies” (Haesbaert e Rocha, 2020). A grande amizade com Doreen também me proporcionou viagens de lazer conjuntas, como a que realizamos a Jericoacoara, no Ceará, e ao Lake District, na Inglaterra.
14 Deste artigo, ressalto os seguintes trechos: “Rompendo com uma postura empobrecedora que por longa data marcou as rupturas teóricas radicais ocorridas dentro da Geografia, divisamos hoje um desejo relativamente comum do geógrafo em resgatar suas raízes e assimilar a diversidade com que o novo se manifesta, buscando com isso respostas mais consistentes e menos simplificadoras para as questões que se impõem através da ordenação do espaço e do território. (...) Ao lado da corrente majoritária de geógrafos ainda engajados em torno de teorias universalizantes, simplificadoras, quase sempre, mas ainda assim dotadas de poder explicativo relevante para muitas questões (notadamente de ordem econômica), colocam-se hoje novas exigências teóricas, capazes de responder à dinâmica múltipla e fragmentária do espaço social”. São representativos do momento de mudança que se vivia e do caráter de reavaliação de uma Geografia crítica que deixava de ser monolítica (capitaneada por um marxismo mais ortodoxo) e adquiria rumos mais plurais, com ecos do chamado pós-modernismo e/ou pós-estruturalismo, muito criticados pelo mainstream geográfico brasileiro.
15 “... nunca teremos territórios que possam prescindir de redes (pelo menos para sua articulação interna) e vice-versa: as redes, em diferentes níveis, precisam se territorializar, ou seja, necessitam da apropriação e delimitação de territórios para sua atuação. (p. 209) (...) os territórios neste final de século são sempre, também, em diferentes níveis, ‘territórios-rede’, porque associados, em menor ou maior grau, à fluxos (externos às suas fronteiras), hierárquica ou complementarmente articulados”. (p. 211)
16 “O território envolve sempre, ao mesmo tempo (...), uma dimensão simbólica, cultural, através de uma identidade territorial atribuída pelos grupos sociais, como forma de ‘controle simbólico’ sobre o espaço onde vivem (sendo também, portanto, uma forma de apropriação), e uma dimensão mais concreta, de caráter político-disciplinar: a (...) ordenação do espaço como forma de domínio e disciplinarização dos indivíduos. Historicamente, podemos encontrar desde os territórios mais tradicionais, numa relação quase biunívoca entre identidade territorial e controle sobre o espaço, de fronteiras geralmente bem definidas, até os territórios-rede modernos, muitas vezes com uma coesão/identidade cultural muito débil, simples patamar administrativo dentro de uma ampla hierarquia econômica mundialmente integrada”. (Haesbaert, 1997:42)
17 Ao contrário do que afirmam críticos que, em posições mais fechadas, não concebem abertura para o diálogo, elementos ditos pós-estruturalistas presentes em muitas abordagens podem perfeitamente dialogar com leituras críticas como o marxismo. Veja por exemplo, esta afirmação: “ ... pode-se afirmar que não existe nada de necessariamente antimarxista ou pós-marxista seja no pós-modernismo seja no pós-estruturalismo. Na verdade (...) é possível fazer uma leitura pós-estruturalista, desconstrutivista ou pós-modernista de Marx. Na verdade, o marxismo estruturalista althusseriano teve uma enorme influência sobre a geração de pensadores que nós agora chamamos ‘pós-estruturalistas’ e cada um deles, à sua maneira, acertou suas contas com Marx: vejam-se, por exemplo, as ‘Observações sobre Marx’ (1991) que Foucault faz (...); ou os ‘Espectros de Marx’, de Derrida (1994); ou a tese da mercantilização ‘marxista’ no livro de Lyotard, ‘A condição pós-moderna’. (...) Deleuze [que escreveu ‘O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia’] (...) se via, claramente, como um marxista (Deleuze, 1995:171). Todos esses pós-estruturalistas veem a análise do capitalismo como um problema central” (Peters, 2000:17).
18 Além disso, é claro, a estada em Paris trouxe grandes contribuições intelectuais, especialmente através das disciplinas cursadas na Sorbonne/Collège de France ou na École des Hautes Études em Sciences Sociales (EHESS), ministradas por intelectuais reconhecidos como Cornelius Castoriadis, Pierre Bourdieu, Alain Touraine, Marc Augé e o geógrafo Augustin Berque. Participei ainda dos debates do grupo Europe, dirigido por Jacques Lévy, do Grupo Brésil no IHEAL (Institute des Hautes Études de l’Amérique Latine), dirigido por Martine Droulers, e do Centre des Recherches sur le Brésil Contemporaine da EHESS (nos três participando também como conferencista)