1Após a emancipação das colônias ibéricas na mais meridional das Américas um problema se pôs como fulcral e urgente naquele turbulento século XIX: o da delimitação das fronteiras entre as várias Repúblicas, algumas Colônias europeias não-ibéricas e um vasto território monárquico nos trópicos.
2A cartografia dessas movediças linhas discursivas das fronteiras era/foi um jogo delicado de lidar com mapas e acordos herdados, topônimos de diferentes línguas, geografias eivadas de descrições minuciosas e prévios enganos de escala.
3A diplomacia, que se constituiu junto com a violência legítima do Estado e os argumentos jurídicos vinculados à noção de soberania, produzia cartografias. Os diplomatas, a exemplo do Barão da Ponte Ribeiro (1795-1878) buscavam, colecionavam e fabricavam com auxiliares em seus diversos arquivos, numerosas oficinas e variados levantamentos de campo, os mapas necessários para a razão científico-técnica das melhores provas e demonstrações, o justo direito territorial das nações que representavam.
4O “Mapa dos Limites do Imperio do Brazil com o Paraguay”, de 1872, coordenado pelo conselheiro Duarte da Ponte Ribeiro que sela, após a Guerra contra o Paraguai, as fronteiras entre o Império do Brasil e aquela República devastada pelo conflito, é um excelente exemplo de como jogar com essas cartas que mapeiam cursos d’água, topônimos diversos, acidentes do terreno e limites quase divinamente naturais das marcas territoriais entre países, povos e jurisdições.
5A nossa intenção é demonstrar como se baralham, em um só mapa, as cartografias herdadas dos acordos ibéricos, aquelas realizadas por cartógrafos não-ibéricos sobre os mesmos territórios luso-hispano-americanos e aquelas produzidas pelos novos Estados em processo de definição territorial.
6Procura-se a combinação entre operar os dados já existentes, validar cientificamente os que pudessem ser contestados e produzir novos elementos de verdade cartográfica segundo os mais modernos métodos científicos e técnicos existentes à época.
7A desconstrução do mapa de 1872 deseja apontar para o movimento contextual de sua constituição, pensando o uso que a ele foi dado e os personagens, técnicas, saberes e instituições envolvidos em sua elaboração.
8Em princípio concordamos com a ideia de uma “diplomacia cartográfica”, que opera o processo de reivindicação das possessões territoriais e as suas fronteiras a partir de duas operações conjugadas de manejar os antigos mapas e produzir mapas novos.
9O mapa de 1872 é um desses mapas novos, erguido sobre um trabalho que cruza imagens e representações vindas do passado ibérico e sobre elas constitui os planos de intervenção que realizam diversos levantamentos militares, por vezes, demasiado específicos e de grande escala.
10Os mapas do período colonial, portanto, servem como referentes dos quais se parte para as explorações, como se fossem redesenhados aos pedaços e consorte os interesses contextuais mais imediatos acabam por apontar.
11A riqueza dos topônimos e do traçado dos curso de água nas fronteiras em litígio durante o século XIX, reforça a ideia de um programa de reconhecimento do território para o qual convergem o trabalho dos diplomatas cartógrafos (a exemplo de Duarte da Ponte Ribeiro) e Engenheiros-Geógrafos formados nas instituições militares e civis que se sucedem, como a Academia da Marinha, a Academia Real Militar, a Escola Central e a Escola Politécnica.
12É possível dizer que os mapas coloniais herdados são a base de um vasto programa político de reconhecimento do território e o ponto a partir do qual se atualiza o próprio argumento cartográfico da diplomacia que busca uma atuação militar no campo da engenharia, que seja capaz de realizar acordos em tempos de paz e delimitar fronteiras sem o uso da guerra. Quiçá, por isso, a geografia levada a cabo pelos militares seja mesmo a base de uma guerra científica para mapear os confins do território.
13O mapa de 1872 serve assim como objeto de prova, portanto, documento sobre o qual assentam os elementos da configuração da fronteira do Império do Brasil com o Paraguai, após o conflito que ocorreu entre 1864 e 1870 e resultou num acordo de demarcação. Serve ainda como objeto de propaganda que a diplomacia utiliza para divulgar a tantos Estados Nações quantos haja no mundo, que enfim o Império tinha razão quanto às dimensões de seu território e que foi assim compelido a proteger o que lhe era de direito por intermédio da guerra. O mapa de 1872, serve igualmente como base para a feitura de outros mapas de propaganda em mais larga escala, como aquele que vai representar o Brasil na Exposição Universal de Viena, em 1873.
14Ademais, um Império que se pretendia tão extenso territorialmente, devia ser capaz de reconhecer o corpo do seu próprio território e mapeá-lo acorde com seus interesses e mediante acurácia técnica e científica que demonstrasse ao Mundo um grau de civilidade similar ao das nações europeias.
15O “Mapa dos Limites do Imperio do Brazil com o Paraguay”, de 1872 (Figuras 1), se situa nesse contexto conhecido como de modernização do território e do Estado, ali onde estão se conformando instituições e comissões científicas voltadas para (re)descobrir o território e vê-lo transitar da condição de Império herdado dos Portugueses à República sob comando de militares politécnicos.
16O Relatório dos Negócio Estrangeiros do Império, publicado em 1874 e que faz referência ao ano de 1872, inicia noticiando que “em janeiro de 1872 foram assignados em Assumpção pelos plenipotenciarios do Brazil e do Paraguay quatro tratados: definitivo de paz, de limites, de criminosos e desertores e de amizade, commercio e navegação” (Relatório, 1874: 1).
17A nosso ver, o mapa organizado por Duarte da Ponte Ribeiro serve a esses fins, por explicitar em suas linhas, onde começava o território monárquico e acabava o paraguaio. Em nosso entendimento, o mapa acompanhou o controle das águas e das terras, daquelas terras aquosas durante boa parte do ano, muito antes que houvesse um mapa para usos diplomáticos que ajustassem os espólios territoriais da guerra.
Figura 1: Carta da fronteira do Imperio do Brazil com a Republica do Paraguay organizada pelo conselheiro Duarte da Ponte Ribeiro, 1872
Fonte: Fundo Francisco Bhering, Arquivo Nacional
18A primeira vez que nos deparamos com uma cópia desse mapa foi no Fundo Francisco Bhering do Arquivo Nacional (Duarte, 2013) e a sua condição e estado bastante lamentáveis, nos chamaram atenção por alguns detalhes.
19Os detalhes diziam respeito a coisas que ainda desconhecíamos (Figura 2), como o fato de o meridiano inicial ser o do Rio de Janeiro e de sua referência ser Paris. Descobriríamos tempos depois, estudando um pouco mais, que os meridianos referentes de cada país até que se estabelecesse o meridiano zero de Greenwich era o das capitais de cada Estado-Territorial. E, descobrimos também que na Convenção de Washington em 1884, mesmo ano em que ocorreu a Conferência de Berlim, Brasil e França se abstiveram de votar com os interesses britânicos como todos os outros países fizeram (Sobel, 1995).
20Depois nos chamou muita atenção a ficha catalográfica do mapa, porque ela atendia exatamente ao termos referidos no acordo diplomático posterior à Guerra Contra o Paraguai e esboçava, não apenas o fato de ter sido organizada por Duarte Ribeiro, que ainda a época não era o Barão da Ponte, mas denunciava haver sido construída explicitamente para este fim.
Figura 2: Detalhes da Carta da fronteira do Imperio do Brazil com a República do Paraguay organizada pelo conselheiro Duarte da Ponte Ribeiro, 1872
Fonte: Fundo Francisco Bhering, Arquivo Nacional
21O outro elemento de fundamental importância, dizia respeito à sua circulação. A carta, antes de chegar às mãos de Bhering e compor o fundo que estava no Arquivo Nacional, havia estado sob a possessão do Clube de Engenharia e denunciava seu possível uso, servir à construção de uma Carta Geographica do Brasil. Provavelmente a Carta do Brasil ao Milionésimo, projeto que no Brasil seria levado adiante pelo próprio Francisco Bhering (Duarte, 2018).
22O relatório dos Negócios Estrangeiros do Império de 1854, anunciavam, por sua vez que Duarte Ribeiro, havia deixado suas funções diplomáticas em 1853, ano em que inicia logo após este período, segundo informações de Gabriel X, negociações com vistas a efetuar troca de mapas com Portugal no que ficou conhecido como Convênio Luso Brasileiro que viria a ser concluído em 1867 (Sousa Neto, 2014).
23O fato é que encontramos, o mesmo mapa de 1872, na Biblioteca Nacional de Lisboa, mas agora com um conjunto de marcações que denunciavam, com forte probabilidade as áreas que haviam sido objeto de maior atenção em seu constructo. E mais, vinha assinado, na parte de baixo, por Duarte Ribeiro (Figura 3).
Figura 3: Carta da fronteira do Imperio do Brazil com a República do Paraguay organizada pelo conselheiro Duarte da Ponte Ribeiro, 1872
Fonte: Fundo Francisco Bhering, Arquivo Nacional
24O mapa assinala duas áreas que haviam já sido objeto de conflito expressos nos Relatórios dos Negócios Estrangeiros do Império de 1856, publicado em 1857 e de 1857, publicado em 1858.
Na proposta a que alludo a linha divisoria do territorios do Imperio e da Republica é assim descrita: O territorio do Imperio do Brasil divide-se do da Republica do Paraguay pelo rio Paraná desde onde começão as possessões do Brasil, e por elle acima até a foz do Iguatemy, seguindo por este rio acima pelo galho principal (deixando ao Norte o seu confluente Escopil) até ás suas mais altas vertentes, e dahi pela linha mais curta a procurar o alto da serra de Maracajú, que divide as aguas do Paraná das do Paraguay. Segue pelos cumes da dita serra, sendo as vertentes de leste do Brasil, e as de oeste do Paraguay, até chegar ás primeiras vertentes do Apa; desce por este rio até á sua confluencia com o Paraguay, desde onde a margem esquerda ou oriental pertence ao Brasil, e a direita ou ocidental à Republica do Paraguay. (Relatório, 1857)
25A Guerra contra o Paraguai se iniciaria em 1864, o que significava dizer que a disputa de limites e a afirmação deles por parte do Império do Brasil haviam se iniciado já quase dez anos antes. O interessante aqui é perceber que um outro mapa, desta feita de 1856, A Carta Geographica de Uma Parte do Império do Brasil organizada por Duarte Ribeiro e o Capitão de Estado Maior Izaltino José Mendonça de Carvalho (Figura 4), tratavam exatamente da porção do território descrito no Relatório do Ministério dos Negócios Estrangeiros publicado em 1857.
Figura 4: Carta Geographica de Uma Parte do Império do Brasil organizada por Duarte Ribeiro e o Capitão de Estado Maior Izaltino José Mendonça de Carvalho [1856]
Fonte: Biblioteca Nacional, Lisboa
26O fato é que, as mesmas representações se repetem nos mapas de 1856 e 1872 (Figura 5), assinalando não apenas que negócios estatais do território envolviam exército e diplomacia, como assinalavam que o Estado Monárquico tinha conhecimentos cartográficos que implicavam a possessão de várias cartas e mapas utilizados para corroborar argumentos bélicos, diplomáticos e econômicos.
Figura 5: Trechos das Cartas da Fronteira do Imperio do Brasil com a Republica do Paraguay de 1856 e 1872
Fonte: Biblioteca Nacional, Lisboa e Fundo Francisco Bhering, Arquivo Nacional
27A possessão desses vários mapas e muitas cartas, pode ser aquilatada pelas diversas janelas encontradas em outro mapa (Figuras 6, 7 e 8), também organizado por Duarte da Ponte Ribeiro e Izaltino José Mendonça de Carvalho, o Mappa Geographico de Huma Parte do Imperio do Brasil datado de 1863.
Figura 6: Mappa Geographico de huma parte do Imperio do Brazil – 1863
Fonte: Biblioteca Nacional, Lisboa
Figura 7: Ficha catalográfica do “Mappa Geographico de huma parte do Imperio do Brazil – 1863
28A ficha catalográfica (Figura 7) do mapa deixa antever a quantidade de documentos que foi consultada e o grau de detalhamento que se dava as fronteiras do Brasil com os países confinantes. A última janela sobre o “Plano da Geographia do Alto Rio Branco” faz referências a trabalho já levantados em 1843 (Figura 8). Ocorre que em 1846, havia um minucioso levantamento em grande escala realizado por Augusto Leveger (Figura 9) que trata exatamente da área mais aguda de conflitos em torno da navegação fluvial e diz respeito às zonas de inundação das sangas do Rio Branco, ali onde estão colocadas várias fortificações paraguaias e brasileiras.
Figuras 8: Janelas do “Mappa Geographico de huma parte do Imperio do Brazil – 1863” que mostram as diferentes fontes consultadas para feitura do referido mapa
Figura 9: Levantamento realizado por Augusto Leveger nas zonas de inundação das sangas do Rio Branco
29Em suma, o diálogo entre os mapas expostos aqui, propõe que a construção do Mapa dos Limites do Império de 1872, revelam, em realidade que o território era esquadrinhado palmo a palmo por cartografias diplomáticas e militares, com trabalhos que iam das coleções de cartas ordenadas para tal fim por figuras como Ponte Ribeiro e por exaustivos trabalhos de campo como aqueles realizados por Izaltino Carvalho e Augusto Leverger por parte do exército.
30A compreensão desse jogo de cartas do território baralha intenções múltiplas, mas a principal delas está em manter as possessões monárquicas e, se possível, expandi-las.
31O domínio do território a partir de sua dinâmica também fluvial, de suas linhas de água, revela uma empresa de grande envergadura, ainda por ser desvendada com o auxílio de uma história da cartografia do território do Brasil desse período.