- 1 Para este texto o termo mapa foi utilizado num sentido amplo, sem me ater às derivações como planta (...)
- 2 A cartobibliografia é um método que reúne uma série histórica de mapas de uma mesma área para análi (...)
1Os elementos gráficos presentes nos mapas1 são passíveis de interpretação analítica da mesma maneira que aqueles que não aparecem nas representações cartográficas. Da mesma forma que o que está à vista reforça e legitima valores políticos e culturais, o que está escondido ou omisso também indica as hegemonias e ideologias da realidade social circunstancial dos mapas. Este artigo busca olhar e compreender o que era idealizado como indesejado, invisível, na sociedade urbana da cidade do Rio de Janeiro do século XIX. No mesmo momento em que os agentes tomadores de decisão do espaço urbano idealizavam seu ambiente, eles categorizavam seus elementos indesejados. Na linguagem cartográfica, conforme o tracejado de ruas projetadas ou de futuros aterros era desenhado nos mapas, os ambientes insalubres eram omitidos das representações do território urbano – mesmo que ainda permanecessem existindo materialmente. O objetivo deste texto foi elaborar uma breve cartobibliografia2 do Rio de Janeiro de modo a analisar como os ambientes biofísicos deixaram de serem representados dos mapas cariocas no final do século XIX. A análise foi elaborada através de série de mapas urbanos do Rio de Janeiro desde o final do século XVIII até o final do século seguinte. Os mapas estudados encontram-se digitalizados pela Biblioteca Nacional do Brasil e pela Biblioteca do Congresso estadunidense.
2Partindo do pressuposto de que os documentos cartográficos expressam os interesses e preocupações de seus elaboradores (tanto o cartógrafo quanto o patrocinador), vemos que nos dois primeiros séculos desde sua fundação, em 1565, a cidade do Rio de Janeiro teve em seus mapas ícones que representavam elementos não urbanos. A cidade não era o único componente representado, tampouco o principal. Segundo Paulo Knauss (1997), os mapas mais antigos têm maior ênfase no acesso marítimo e menos sobre o povoado, especialmente devido ao interesse nas condições de defesa e de exploração econômica da região. Portanto, ilhas, montanhas, matas e fortalezas sobressaem-se às casas e ruas, naquele que o autor chamou de um período de padrões cosmográficos (XVI-XVII). Por trás do interesse em retratar esses elementos nos mapas cariocas estava a história de fundação do Rio de Janeiro. Construída no século XVI para defesa da ameaça francesa, a cidade consistia em um núcleo fortificado (Bernardes, 1990).
3Até o final do século XVIII, os mapas que mostravam a área urbana apresentavam também elementos da realidade biofísica. O mesmo não pode ser dito para os mapas da cidade do Rio de Janeiro do século XIX em diante. Nesses últimos, a cidade tomou uma posição mais central nos interesses políticos e culturais da nação e do mundo, como veremos adiante. No contexto colonial, a cidade foi representada pelo viés da fortificação militar e de um porto importante para a logística nacional. Esse cenário se transformou com a chegada da família real em 1808, e a efetivação da cidade como capital do Império português em 1815. Como importante porto, nesse momento intensificou-se como ponto estratégico para escoamento dos produtos de exportação, para a chegada de viajantes, migrantes brancos e negros escravizados, e como ponto de parada para longas viagens marítimas para a África ou para o Pacífico. Foi também com as ondas migratórias deste intervalo de tempo que o crescimento populacional se elevou constantemente, resultando na expansão do território urbano pelos arredores (Abreu, 1992). Por esses e outros motivos, os mapas do século XIX passaram a representar a urbanidade carioca com maior destaque para o arruamento e edificações civis das instituições recentes criadas pelo governo português em terras brasílicas (Knauss, 1997).
4A expansão urbana no Rio de Janeiro, assim como em outras grandes cidades, resultou no aparecimento de novos saberes urbanos que repensaram seu espaço. O corpo da cidade passou a ser interpretado pela medicina social e pela engenharia civil. A atuação dessas áreas de conhecimento cresceu com o surgimento de problemas derivados do aumento territorial da cidade, como o aumento de epidemias, o convívio com áreas consideradas insalubres, os planejamentos e obras públicas, a circulação de coisas e pessoas, entre outros. As concepções científicas destas disciplinas estavam articuladas em livros e periódicos e outros textos, assim como nos processos de formação e de socialização nos centros de formação superior. Por trás dessas concepções havia um conjunto de premissas que embasava tais ideias científicas, especialmente a ideologia de progresso e civilização do hemisfério ocidental (Turazzi, 1989; Dupas, 2003). Foi no bojo dessa ideologia que a cartografia passou a ser repensada. Dessa forma, tendo a cidade como principal interesse do cartógrafo na confecção do mapa, o enquadramento do mapa passou a ser o limite urbano e às vezes o suburbano. Enquanto os elementos fora do interesse da urbanidade, apartados da ideologia de progresso e civilização, não eram representados nas plantas, mapas e planos da cidade. Apresentando assim vazios cartográficos para áreas naturais consideradas indesejadas e insalubres, como os ecossistemas alagados de manguezais, restingas, lagoas e várzeas.
5O cerne deste texto reside na compreensão de como os mapas urbanos do Rio de Janeiro do século XIX tiveram as representações de ecossistemas alagados suprimidas, mesmo que ainda coexistissem com o tecido urbano. Afirmamos que a ausência de algo precisa ser vista como interesse histórico, assim como sua presença. Defendemos que os silenciamentos cartográficos destas paisagens, sendo intencionais ou não, resultam de um conjunto de tendências em extinguir as singularidades locais em prol de um estereótipo ambiental urbano. Tais silenciamentos podem ser interpretados como atos deliberados de promoção da cidade como um local mais atrativo para imigrantes estrangeiros brancos e possíveis investidores capitalistas. Dessa maneira, essas omissões reforçaram e legitimaram certos valores políticos e culturais em detrimento de outros. Conforme a cartografia foi sendo incorporada como ferramenta pelo governo imperial e seu corpo técnico de médicos e engenheiros, ela se tornou vinculada a uma subjetividade distinta, representando uma replicação de sua ideologia dominante. Sendo assim, identificamos o silenciamento dos ecossistemas alagados dos mapas urbanos do final do século XIX como parte da pauta ideológica dominante, marcado pelos ideais de progresso e civilização fortemente articulados culturalmente no mundo ocidental (Harley, 1988).
6A paisagem urbana do Rio de Janeiro se conformou por entre morros e ecossistemas alagados, como os manguezais e as restingas. Mesmo que os mapas não mostrem isso. O espaço edificado da cidade no início do século XIX era delimitado pela baía de Guanabara ao norte e ao leste, pela serra da Carioca ao sul e pelo manguezal de São Diogo e outras áreas inundáveis ao oeste. Ao mesmo tempo, pequenos relevos, lagoas e charcos permeavam as ruas e edifícios. Por um lado, era importante representar tais variações no terreno, pois facilitava a tomada de decisões do Estado Imperial para as Obras Públicas – já que esses ecossistemas indesejados obstruíam o crescimento urbano. Por outro lado, esses ambientes eram associados a doenças contagiosas, afastando os interesses de imigrantes e capitalistas interessados em investir na cidade. Sendo assim, torna-se crucial inferir quem poderia ter tido acesso a tais mapas.
7Visando lidar com esses e tantos outros problemas e adversidades que ainda apresentaremos, o presente texto irá se desenrolar como uma abordagem cartobibliográfica para analisar a sequência histórica desses mapas. A estratégia é uma análise comparativa-histórica de distintos elementos imagéticos em uma série de mapas de maneira a perceber conexões e desarticulações entre eles (Beier & Marhtin, 2018). Ao comparar as representações cartográficas dos ecossistemas indesejados ao longo do tempo nos mapas, refletiremos sobre os silenciamentos como uma expressão da ideologia de progresso e civilização no espaço urbano. Será que a representação urbana e os esquecimentos ambientais foram embasados no discurso de modernidade e urbanidade da qual plantas e ecossistemas seriam indesejados? O que a ausência destes ecossistemas indesejados trazia para a presença da retórica cartográfica? O que tal ausência deixava presente?
8A inspiração original deste artigo foi o texto de Stefania Gallini e Carolina Osório (2015), autoras que analisaram quatro mapas urbanos de Bogotá e o silenciamento do ambiente biofísico como indicador do processo de construção de uma cidade moderna divorciada de seu entorno. Essa supressão de informação cartográfica, de maneira deliberada ou inconsciente, representou uma política de segredo ou de censura. Para elas, “silenciar a natureza tornou-se uma arma para domesticá-la” (Gallini e Castro, op. cit.: 93). Os traçados urbanos das vias restringiram os espaços para os ecossistemas aquáticos que, segundo os ideais sanitários e de progresso, deveriam ser aterrados. Mangues, restingas, pântanos eram cada vez menos representados. O processo de modernização das cidades oitocentistas ganhou força com o silenciamento de aspectos naturais na cidade e os mapas foram ferramentas essenciais neste discurso. A leitura de parte desse discurso evidenciou o quanto na representação cartográfica a presença e a ausência se complementaram e interferiram na prática social.
9Diferentemente da cartografia da Renascença, resultante da exploração de novas terras por parte de empreitadas europeias nos séculos XV ao XVII, ou do incremento das necessidades militares de ataque e de defesa do século XVIII, os interesses cartográficos do século XIX progrediram juntamente com a ambição comercial e industrial e as necessidades administrativas e médicas derivadas do crescimento urbano e industrial (Carter, 1979). Nem todos os mapas foram publicados massivamente e vendidos pela cidade, o que pode indicar um pouco sobre as intenções de quem os produziu. Abordaremos mais sobre a análise dos contextos e intenções juntamente com a descrição dos mapas indicados.
10Dentre os distintos documentos cartográficos – como os de campanha, os topográficos, os hidrográficos, etc. –, os mapas urbanos são os que melhor expressam o controle humano sobre seu próprio ambiente. Os mapas que retratavam a cidade no século XVIII convergiram os interesses principalmente para a proteção, indicando fortalezas, topografia e falhas na defesa. Muitas vezes indicando esses elementos em imagens distintas, como um plano urbano, um panorama e um mapa hidrográfico presentes na Planta da Cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro, de 1775. O crescimento dos centros urbanos no século XIX demandou mudanças administrativas e novas simplificações e interpretações sobre seu espaço. As principais cidades de cada país foram transformadas em objetos científicos, laboratórios sociais, de maneira a exercer um controle social mais eficiente. Seja em Paris, Londres ou Rio de Janeiro, os mapas urbanos tornaram-se ferramentas retóricas e instrumentais ímpares na administração urbana (Carter, 1979; Picon, 2003).
11Como vimos no início, os mapas do Rio de Janeiro até o final do século XVIII abordavam a cidade e seu entorno, muitas vezes indicando poucas informações sobre o território urbano, como as ruas, as praças e os prédios importantes. Podemos interpretar que a própria cidade também não estava no centro das atenções em muitos outros aspectos, seja pelo tamanho e grau de importância política e econômica ou pela ainda insuficiente imagem simbólica que a cidade tem como ambiente social de nossa espécie. Isso se modificou com a chegada da Corte Portuguesa ao Rio de Janeiro no dia 07 de março de 1808. Neste mesmo dia, o Real Arquivo Militar foi criado para conservar todos os mapas do Brasil e dos domínios ultramarinos, assim como para reproduzir os documentos cartográficos para servir de base a retificação de fronteiras, planos de fortalezas, novas estradas e outros melhoramentos. Devido aos complexos trâmites de uma fuga às pressas, o Arquivo demorou a se equipar com os objetos e mapas que comporiam o estabelecimento, e os trabalhos de organização institucional foram a prioridade no primeiro momento. Embora a ordem de elaboração do primeiro mapa urbano tenha sido de 1808, a Planta da Cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro, só foi finalizada em 1812 (Brasil, 1808).
Figura 1: "Planta da Cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro" – Ignacio Antonio dos Reis e Paulo dos Santos Ferreira Souto, 1812
Fonte: Biblioteca Nacional Digital – Biblioteca Nacional do Brasil: http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=6676
12O documento (Figura 1) de 91,5 cm por 122 cm foi desenhado por Ignacio Antonio dos Reis e pelo Paulo dos Santos Ferreira Souto, quem confeccionou o clichê em cobre, que a partir de 1813 já se encontrava a venda na loja de Paulo Martin Filho, na rua da Quitanda, número 34, por 6.400 réis (Miranda, 1922). Neste mapa, que tem o Sul como referência, a área urbana foi enquadrada juntamente com os arredores mais próximos do Manguezal de São Diogo a oeste e o subúrbio da Glória ao sul. O terreno foi representado em distintas categorias: a) árvores alinhadas ao longo de algumas ruas dos arredores menos urbanizados; b) distribuição aleatória da vegetação dos morros; c) os sombreamentos para conferir tridimensionalidade aos morros (Figura 2); d) manchas concentradas nas áreas alagadas, como nos mangues, lagoas e várzeas. Ele apresenta as toponímias da Lagoa da Sentinela, do Mangal de S. Diogo e do Saco de mesmo nome, indicando a área de manguezal (d) que delimitava a cidade (Figura 3). Este mapa possui muitas descrições do ambiente biofísico e possivelmente foi elaborado visando os interesses administrativos de expansão urbana futura.
Figura 2: Detalhe dos arredores do morro de Santo Antônio (a) (b) (c), da "Planta da Cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro" - Ignacio Antonio dos Reis e Paulo dos Santos Ferreira Souto, 1812
Fonte: Biblioteca Nacional Digital – Biblioteca Nacional do Brasil: http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=6676
Figura 3: Detalhe do manguezal de São Diogo (d), da "Planta da Cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro" – Ignacio Antonio dos Reis e Paulo dos Santos Ferreira Souto, 1812
Fonte: Biblioteca Nacional Digital – Biblioteca Nacional do Brasil: http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=6676
13Duas décadas depois, a Planta do Rio de Janeiro, A Capital do Brasil, de 1831 (Figura 4), apresentava outra estrutura representacional da área urbana. Embora tenha praticamente o mesmo enquadramento que o anterior, sendo o Norte para cima, o ambiente biofísico aparece menos representado. O mapa de menores proporções (35,8 cm X 47 cm) é de autoria do engenheiro militar Eugéne Hubert de la Michellerie, desenhista que realizou mapas para a litografia de Johann Jacob Steinmann, e foi comercializado pela casa Plancher (Santos, 1939). As áreas alagadas foram indicadas por traços horizontais irregulares enquanto as árvores foram apenas esparsamente representadas nos morros cariocas. As cores presentes foram utilizadas para distinguir as freguesias da cidade, assim como para compor uma alegoria do lado direito: um indígena apoiado sobre o título, segurando um arco e flecha, com uma paisagem da baía de Guanabara e relevo carioca por detrás dele.
Figura 4: "Planta do Rio de Janeiro, A Capital do Brasil" – Eugéne Hubert de La Michelerie, 1831
Fonte: Biblioteca Nacional Digital – Biblioteca Nacional do Brasil: http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=22642
14Este mapa parece ser a base cartográfica para o mapa Pianta della citá di S. Sebastiano di Rio de Janeiro de 1844. É provável que a autoria tenha sido do alferes Eugenio Rodriguez, italiano de Nápoles que acompanhou a chegada da princesa Thereza Christina em 1843. As freguesias também estão com cores distintas e o manguezal também está bem representado - conforme podemos observar a delimitação da área do manguezal, as hachuras de áreas alagadas e o nome Mangue (Figura 4). Embora a qualidade gráfica deste último seja superior. O traçado mais simplificado do Pianta de 1844 e do A Capital do Brasil de 1831 pode ser uma questão técnica da reprodução litográfica e não necessariamente uma escolha deliberada do cartógrafo. Um mapa menor não permitiria uma expressão tão detalhada do terreno, pois o excesso de informação seria entendido como “ruído visual”.
15O ano de 1850 marcou o início de uma forte mudança epistemológica na maneira de se conceber a cidade do Rio de Janeiro. Após uma epidemia devastadora de febre amarela e uma série de debates médicos, uma nova conjuntura sanitária instaurou-se com a criação da Junta Central de Higiene Pública. Os conceitos de higiene e saúde pública permearam outros saberes, como o dos próprios políticos e engenheiros, ampliando a agilidade na tomada de decisões sobre os aterros que extinguiriam os ecossistemas alagados. O capitalista Irineu Evangelista, que viria a ser o Barão de Mauá, junto ao engenheiro inglês William Ginty, propôs em 1853 o aterro do manguezal de São Diogo e a construção do Canal do Mangue. O aterro realizado pelas mãos dos negros escravizados sob jugo da Casa de Correção (1850) foi finalizado em 1862. No entanto, o trabalho utilizou lixo e matéria orgânica e resultou na insatisfação dos moradores do entorno. Nos dias mais chuvosos, o fantasma do antigo manguezal voltava a assombrá-los (Capilé, 2018).
16A decisão de aterrar a área da Cidade Nova já existia desde a década de 1830 e resultou em aterros menores como o que gerou o Caminho do Aterrado. No mapa Plano da Planta da Cidade e Subúrbios do Rio de Janeiro (Figura 5), de José Maria Manso (1850), a área do novo bairro já aparecia sem as características pantanosas. Contando, inclusive, com a demarcação de futuras ruas de maneira tracejada (Figura 6). O antigo obstáculo para o crescimento urbano para o oeste estava fora dessa representação cartográfica. Assim como não estavam presentes os elementos gráficos que denotassem alguma vegetação. O cartógrafo responsável por levantar, aumentar e corrigir foi engenheiro do Instituto Topográfico da República Oriental do Uruguai, habilitado na República da Argentina. O mapa monocromático de 71 cm por 99 cm tem o Oeste como referência e foi impresso em Paris. Embora o enquadramento seja mais abrangente do que os mapas anteriores, muito do entorno da cidade ficou em branco, aparecendo apenas trechos dos rios. Esse espaço em branco permitiu que no canto inferior direito (Figura 7) tenha o ambiente natural retratado por um panorama da baía de Guanabara e edifícios importantes rodeados por uma vegetação diversa.
Figura 5: "Plano da Planta da Cidade e Subúrbios do Rio de Janeiro" – José Maria Manso, 1850
Fonte: Biblioteca Nacional Digital – Biblioteca Nacional do Brasil: http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=25322.
Figura 6: Detalhe de ruas planejadas na Cidade presentes no "Plano da Planta da Cidade e Subúrbios do Rio de Janeiro" – José Maria Manso, 1850
Fonte: Biblioteca Nacional Digital – Biblioteca Nacional do Brasil: http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=25322
Figura 7: Detalhe de panoramas da cidade do Rio de Janeiro presente no "Plano da Planta da Cidade e Subúrbios do Rio de Janeiro" – José Maria Manso, 1850
Fonte: Biblioteca Nacional Digital – Biblioteca Nacional do Brasil: http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=25322
17Em outro mapa de 1850, Planta da Cidade do Rio de Janeiro, o enquadramento é similar aos três mapas iniciais, porém o silenciamento ambiental mantém-se semelhante ao de José Maria Manso. O mapa de 54 cm por 70 cm foi feito pelo Visconde de Villiers de L’ile Adam e foi gravado pelo J. H. Leonard para ser publicado na Tipografia de G. Leuzinger. Ele participou de uma empreitada maior elaborada por um grupo de empresários que constituiu parte da série de cartas topográficas e administrativas das províncias brasileiras publicadas na década de 1850, que seriam um possível atlas físico e administrativo do Brasil (Beier & Marhtin, 2018). No entanto, nem todos os mapas da década de 1850 silenciaram os mangues do oeste. A Planta da muito leal e histórica cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro de 1852 e sua redução no Guia e plano da cidade do Rio de Janeiro de 1858 representou tais áreas pantanosas com o tracejado horizontal genérico, similar ao A Capital do Brasil de 1831.
18Ao que tudo indica, a percepção cartográfica da engenharia militar, com seus currículos e práticas particulares, seguiu os interesses de indicar o terreno local para campanha de tropas e revisão de defesas. A militarização da cartografia foi fundamental para o aumento da habilidade do Estado para fiscalizar e controlar seus recursos, segundo os princípios iluministas do final do XVIII e início do XIX. O currículo dos cursos de engenharia militar tornou-se cada vez mais matematizado, fortalecendo as disciplinas de trigonometria, topografia e cartografia. A escolarização da cartografia militar passou a estar presente também na formação dos engenheiros civis assim que tais cursos foram elaborados, em meados do século XIX. A prática cartográfica vai se tornando mais civil junto ao processo de formação de engenheiros civis (Edney, 1994; Bueno, 2009).
19O ensino de cartografia no Brasil era parte do curso de engenharia. As novidades tecnocientíficas foram incorporadas ao currículo das instituições de ensino de engenharia. Entre continuidades e descontinuidades institucionais, o ensino de engenharia para treinar o corpo de oficiais militares e, depois, engenheiros civis, deu-se na Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho (1792), posteriormente na Academia Real Militar (1810), na Escola Central (1858) e na Escola Politécnica (1874). Mesmo com mudanças disciplinares em diferentes reformas curriculares destas instituições, os temas de interesse cartográfico apareciam desde o primeiro ano com as noções de Trigonometria Esférica e Retilínea, Desenho e Geometria. De um modo geral, no segundo ano, as Geometrias Analítica e Descritiva e Desenho foram disciplinas voltadas para cartografia, enquanto no terceiro ano somente o desenho era destinado à confecção de mapas. Nessas instituições o ensino de cartografia tomou forma no quarto ano dos cursos, com a Trigonometria Esférica, Astronomia, Geodésia, Cartas Geográficas, Geografia Terrestre e Desenho (Silva Telles, 1994). Segundo o documento de criação da Academia Real Militar, o professor do quarto ano explicaria
todos os métodos para as determinações das latitudes e longitudes no mar e na terra, fazendo todas as observações com a maior regularidade, e mostrando as aplicações convenientes às medidas geodésicas, que novamente dará em toda a sua extensão. Exporá igualmente uma noção das cartas geográficas e as topográficas, explicando também os princípios das cartas marítimas reduzidas, e do novo método com que foi construída a carta de França. (Brasil, 1810)
20No caso do primeiro professor deste quarto ano da Academia Real Militar, em vez de seguir as bases recomendadas pela lei – as obras de astronomia teórica de Pierre Laplace, Joseph Lalande e Nicolas Lacaille –, o professor Manoel Ferreira de Araújo Guimarães buscou livros mais recentes, como os de Jean Baptiste Biot e Samuel Vince. Com o tempo, novos temas foram incorporados ao currículo do quarto ano das demais instituições supracitadas, como as noções de refração e instrumentos refletores, ótica, dióptrica, topografia e cartografia, geografia e física. Os anos iniciais mantiveram-se nos princípios matemáticos basilares para ciências aplicadas – como as disciplinas militares, edificações e a cartografia (Carolino, 2012).
21A mesma base geométrica do ensino de engenharia foi apropriada pelo mapeamento e pelas obras públicas e formação de novas ruas e praças. A cartografia antes voltada para os interesses militares tornou-se também uma importante ferramenta para a engenharia civil que se desenhava no século XIX. Depois dos engenheiros militares roubarem a cena da produção cartográfica dos cosmonautas dos séculos XV e XVI, os engenheiros civis se destacaram nas últimas décadas do século XIX (Bueno, 2009). Embora a base curricular de cartografia fosse similar a dos militares, o curso na Escola Politécnica formava os primeiros engenheiros denominados de civis. Dessa maneira outras intenções entraram em cena, o que significou uma série de mudanças nas representações cartográficas, como o silenciamento cartográfico dos ecossistemas alagados que estamos analisando. Ao descortinarmos a criação dos mapas urbanos do final do século XIX vemos as intencionalidades de outros agentes, como as companhias de bondes e as empresas de melhoramentos urbanos (saneamento, loteamento, etc.). Nesse contexto, interessava mais a estes grupos terem as representações de futuras ruas e instalações de esgoto do que das áreas inundadas, então consideradas insalubres e obstáculos ao crescimento urbano.
22Como já dissemos, conforme a cartografia era apoderada pelos interesses urbanos da recente engenharia civil, novas intenções e novos modos de representação foram elaborados. No que tange aos mapas urbanos, as técnicas e representações da antiga tradição militar de fortificação e ênfase no terreno iam se perdendo conforme os interesses urbanos da engenharia civil se faziam mais presentes. A cartografia urbana tornou-se mais permeável aos discursos e às práticas da engenharia civil e da medicina social. A cartografia alinhou-se com outros saberes técnicos para compreender o fenômeno urbano em termos rigorosos e mensuráveis. Compreender e representar como a cidade era organizada, e, acima de tudo, como funcionava, virou uma pré-condição para seu controle (Picon, 2003).
23As ideias médicas permearam tanto a engenharia civil quanto a política governamental. Os conhecimentos sobre a cidade foram influenciados por ideias das ciências biológicas. Como qualquer organismo, a cidade era observada tanto como um arranjo estático de suas partes (anatomia) e uma série de funções dinâmicas (fisiologia). A oposição entre anatomia e fisiologia, estático e dinâmico, estrutura e vida, serviu de guia para o entendimento urbano. O medo das consequências higiênicas dos grandes aglomerados urbanos foi o grande motor para o desenvolvimento de novos saberes médicos e de novos costumes sanitários. A medicina social surgiu em meio ao desenvolvimento das estruturas urbanas de grandes cidades, como Paris. O controle da circulação das coisas, das pessoas e dos cheiros, visava evitar lugares de acúmulo de tudo aquilo que poderia provocar doenças. O discurso médico impregnava o conhecimento sobre a cidade de termos biomédicos, criando analogias para o corpo humano e para o corpo urbano. Essa medicina preventiva buscava produzir e consumir conhecimentos sobre a geografia local, a história, a demografia e outras saberes para compreender melhor tudo aquilo que circunvizinhava o corpo do doente. No entanto, além de produzir conhecimentos articulados com ações preventivas, esse saber médico normatizou a sociedade carioca não somente em seus ambientes, mas também em seus costumes. Uma expressão do poder do Estado articulado com essas elites. Assim, médicos e engenheiros idealizavam o corpo da cidade e de sua população de forma a diagnosticar as “doenças” urbanas e propor “tratamentos” e intervenções “cirúrgicas”. Dos miasmas emanados das lamas cariocas, uma nova concepção de cidade surgia e os mapas urbanos foram uma expressão icônica desse processo (Machado et al., 1978; Foucault, 1979; Costa, 2002).
24A relação de forças, entre os agentes e instituições da cidade e os militares, pendeu mais para os interesses urbanos de obras públicas, saneamento, crescimento urbano e arruamento. Por trás destes agentes há uma forte identidade social com as novas culturas urbanas. Passear, fazer compras, andar de bonde eram atividades frequentemente retratadas em crônicas, teatros, jornais e livros. Representar o novo cotidiano urbano significou também a agência de grupos responsáveis pelas principais tomadas de decisão na cidade. Nesse contexto tornou-se mais presente a ideia de cidade limpa, salubre, civilizada, europeizada, com ruas retas e amplas e sem a presença de grupos ou ambientes indesejados. Os que detêm o poder tiveram a possibilidade de classificar, nomear e definir o que seria representado nos mapas, a partir de uma identidade urbana coletiva. Nesse sentido, os ecossistemas alagados seguiram sendo apagados (Chartier, 1991).
25Na Planta da Cidade do Rio de Janeiro de 1858 (Figura 8), já representava a recém construída linha de bondes Estrada de Ferro da Tijuca, enquanto mantém o apagamento das áreas alagadas da Cidade Nova e o traço dos rios sem suas várzeas. Mesmo com currículo militar em sua formação, o Coronel de Engenheiros Frederico Carneiro Campos (e sua equipe do Arquivo Militar) organizou o mapa urbano com poucos detalhes do terreno. Além de representar possíveis áreas com vegetação nos subúrbios do Engenho Velho a oeste, o mapa tinha também um corpo d’água amorfo e sem nome representado nas proximidades da Casa de Correção (Figuras 09 e 10). Este mapa parece ter sido a base para outros dois mapas elaborados que seriam vendidos como guias urbanos, principalmente por serem dobráveis. Intitulados de Nova Planta da Cidade do Rio de Janeiro de 1864 (preto e branco) e 1867 (colorido), impressos na Tipografia de E & H Laemmert, os mapas de 45 cm por 60 cm podiam ser dobrados para um tamanho de 9 cm por 16 cm (Figura 11). Nos três mapas as toponímias do litoral (praias, portos e trapiches) e de relevo estão presentes, indicando pontos que em outros mapas não foram apresentados, como a pequena faixa de areia da Praia de Pedro I entre Glória e Flamengo, por exemplo.
Figura 8: "Planta da Cidade do Rio de Janeiro" – Frederico Carneiro Campos, 1858
Fonte: Library of Congress: https://www.loc.gov/item/2012593120
Figura 9: Representação de corpo d’água em detalhe da "Planta da Cidade do Rio de Janeiro" – Frederico Carneiro Campos, 1858
Fonte: Library of Congress: https://www.loc.gov/item/2012593120
Figura 10: Representação de corpo d'água em detalhe da "Nova Planta da Cidade do Rio de Janeiro" - s/a, 1867
Fonte: Library of Congress: http://hdl.loc.gov/loc.gmd/g5404r.br000055
Figura 11: "Nova Planta da Cidade do Rio de Janeiro" - s/a, 1867
Fonte: Library of Congress: http://hdl.loc.gov/loc.gmd/g5404r.br000055
26As novas linhas de bondes puxados a burro eram instaladas e, logo depois, passaram a figurar nos mapas urbanos. A ligação entre o centro urbano comercial e industrial e os subúrbios de deleite de uma elite que se afastava de áreas insalubres ampliou o enquadramento da cidade nos mapas urbanos. Os rios dos subúrbios ganharam destaque de cores nos novos mapas, principalmente por sua ausência no centro da cidade. Esse novo recorte espacial, com a inclusão dos subúrbios, consta diversas vezes nos nomes dos mapas, como nos seguintes exemplos: Nova Planta Indicadora da Cidade do Rio de Janeiro e Subúrbios, incluindo todas as linhas de ferro-carris (Figura 12) de Alexandre Speltz (1877) e a Planta da Cidade do Rio de Janeiro e de uma parte de seus subúrbios (Figura 13) de Eduardo Maschek (1885). Nesses dois, e na Planta da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro (1879) de Luiz Schreiner (Figura 14), já apareciam as linhas de bonde das Companhias de Carris de Ferro do Jardim Botânico, São Cristóvão, Vila Isabel e outras – no mapa de Schreiner (1879) e no de Maschek (1885) aparece também uma legenda com traços distintos para cada linha de bonde. Embora novos instrumentos e procedimentos cartográficos utilizados nas instituições de interesse cartográfico – como a Inspetoria de Obras Públicas, o Ministério da Agricultura, o Imperial Observatório, a Marinha, e, principalmente, a Comissão de Triangulação do Município Neutro (1866) – tenham gerado maior precisão dos mapas, o silenciamento do terreno manteve-se como contraponto ideológico. O ambiente biofísico representado deveria ser o que já estava domado, como, por exemplo, o Campo da Aclamação (atual Campo de Santana), Largo da Constituição (atual Praça Tiradentes) e o Passeio Público, todos recém reformulados com os conceitos de paisagismo e jardinagem de Glaziou (Figuras 15, 16 e 17).
Figura 12: " Nova planta indicadora da cidade do Rio de Janeiro e subúrbios, incluindo todas as linhas de ferro-carris" – Alexandre Speltz, 1877
Fonte: Biblioteca Nacional Digital – Biblioteca Nacional do Brasil: http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=39589
Figura 13: "Planta da cidade do Rio de Janeiro e de uma parte dos subúrbios" – Eduardo Maschek, 1885
Fonte: Biblioteca Nacional Digital – Biblioteca Nacional do Brasil: http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=25343
Figura 14: "Planta da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro" – Luiz Schreiner, 1879
Fonte: Biblioteca Nacional Digital – Biblioteca Nacional do Brasil: http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=32962
Figura 15: Representação do Campo da Aclamação, Largo da Constituição e Passeio Público em detalhe da "Nova planta indicadora da cidade do Rio de Janeiro e subúrbios, incluindo todas as linhas de ferro-carris" – Alexandre Speltz, 1877
Fonte: Biblioteca Nacional Digital – Biblioteca Nacional do Brasil: http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=39589
Figura 16: Representação do Campo da Aclamação, Largo da Constituição e Passeio Público em detalhe da "Planta da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro" – Luiz Schreiner, 1879
Fonte: Biblioteca Nacional Digital – Biblioteca Nacional do Brasil: http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=32962
Figura 17: Representação do Campo da Aclamação, Largo da Constituição e Passeio Público em trecho da "Planta da cidade do Rio de Janeiro e de uma parte dos subúrbios" – Eduardo Maschek, 1885
Fonte: Biblioteca Nacional Digital – Biblioteca Nacional do Brasil: http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=25343
27Podemos observar que os cartógrafos envolvidos na elaboração destes últimos mapas também desempenharam outros serviços de percepção e reflexão sobre o território urbano. Alexandre Speltz (1877), capitão de artilharia formado na escola militar do estado maior prussiano aparece no Almanak Laemmert como arquiteto, assim como engenheiro civil, mecânico, agrimensor e geômetra. Embora este mapa tenha sido impresso na litografia de Laemmert, Speltz adquiriu a litografia Rensburg na mesma época de publicação deste mapa. Publicou também o Guia das Estradas de Ferro em março de 1878, onde apareciam as ferrovias de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. O engenheiro Luiz Schreiner, sócio da associação de classe dos engenheiros imperiais, Instituto Polytechnico Brasileiro, publicou seu mapa pelo Etablissement Lithographique de Guill. Greve, em Berlim. Junto ao mapa havia um livro complementar intitulado Indicador das ruas, travessas, becos, praças, edifícios públicos, carris de ferro, & C. da cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro (Schreiner, 1879). Por fim, Eduardo Maschek, engenheiro militar formado na Áustria, atuou como desenhista da Carta Geral do Império de 1862 a 1871, primeira iniciativa cartográfica do território nacional (Capilé & Vergara, 2012) e como engenheiro responsável pelos mapas da Inspetoria Geral das Obras Públicas a partir de 1883, órgão dedicado à administração urbana de ruas, esgotos, obras e afins.
28Observem que estes últimos mapas foram elaborados por imigrantes europeus fora do contexto do poder público do estado imperial brasileiro, embora Maschek tenha trabalhado em atividades de cartografia. Estes mapas circularam tanto no Brasil quanto na Europa e marcavam uma retórica de espaço urbano já conquistado e não a convivência com os ambientes indesejados pela elite carioca. Apagar a natureza significou a possibilidade de expansão urbana sobre uma área representada como vazia.
29A necessidade de ordenar e controlar a cidade requer ferramentas que racionalizem e padronizem o ambiente urbano e facilitem a tomada de decisões. Para ter conhecimento e controle sobre o território da cidade foi preciso reduzir, simplificar nossa visão e representação sobre ele. Enquanto uma categoria sem interesse para políticos, médicos e engenheiros, os ambientes indesejados dos ecossistemas alagados precisavam ser traduzidos para as atividades públicas e particulares. Os envolvidos – políticos, médicos e engenheiros – precisavam reduzir a paisagem de maneira que as propostas de transformações fossem inteligíveis. Comissões, mapas, relatórios e tabelas configuraram a maneira que os ambientes foram traduzidos. Nos casos dos mapas ao longo do final do século XIX, além de reduzir, muitos destes ambientes foram totalmente suprimidos dos mapas.
30O lado bom desse reducionismo foi possibilitar maior compreensão sobre fenômenos e aspectos urbanos, a partir da linguagem específica de mapas, tabelas, relatórios. Os grandes projetos de urbanização do Rio de Janeiro vieram acompanhados de mapas copiados e elaborados para esta finalidade. Essa forma de conhecimento do território facilitou a intervenção material através da própria informação presente e da retórica de controle sobre o espaço biofísico urbano. Simplificação, legitimidade e transformação da paisagem foram operações essenciais na apropriação do ambiente biofísico pelo governo imperial, sendo os planos urbanísticos e seus mapas as principais ferramentas de controle (Scott, 1998).
31Em contraposição, o lado negativo do reducionismo é que ele está suscetível aos interesses daqueles que se responsabilizam pela simplificação das informações cartográficas. Os mapas urbanísticos delineavam aspectos urbanos em suas representações. Futuras ruas e avenidas foram destacadas, assim como as linhas dos bondes. Já os mangues e restingas, antes assinalados como áreas alagadas ou areais, ficaram invisíveis, muitas vezes antes de seu aterro. O controle racional pela elite urbana seguiu os caminhos do silenciamento, mostrando uma cidade pronta a ser ocupada.
32Vimos aqui que a representação do espaço urbano com o silenciamento dos ecossistemas alagados foi o produto do resultado de uma série de discursos e práticas. Para os cartógrafos urbanos, imbuídos da ideologia de progresso e das teorias médicas de insalubridade, a representação não era uma réplica, mas sua eficácia dentro de um contexto de ação. A familiaridade com a idealização do Rio de Janeiro tornou o público que observava esses mapas urbanos mais receptivos à cidade. Quando vemos o mapa estamos idealizando a cidade segundo as representações iconográficas do cartógrafo e suas circunstâncias sociais. O contexto dos discursos e das práticas dos médicos, políticos e engenheiros do século XIX criou condições de idealização de um espaço urbano moderno e civilizado, segundo o imaginário da época. A idealização da cidade foi necessária para sua transformação (Makowiecky, 2013).