No
princípio era o caos! Reinavam a desordem e a confusão no quadro
territorial brasileiro. Nenhuma norma racionalizadora se impunha em meio
ao tumulto, no sentido de uma razoável caracterização dos âmbitos
geográficos. O Brasil não tinha, dessa maneira, a medida exata de sua
grandeza física, porque lhe faltavam os elementos indispensáveis à
perfeita definição de sua imagem
Observador Econômico e Financeiro, 1940
1O
regime político instaurado após a Revolução de 30 teve como principais
características a centralização, burocratização e racionalização das
ações políticas em torno da esfera estatal, com quebra da autonomia dos
estados. Em comparação ao período histórico precedente, apresentou uma
crescente centralização de poder, em que “o executivo federal não só
comandava as políticas econômica e social, como também dispunha dos
meios repressivos e executivos para executá-las” (Draibe, 1985, p. 62).
2O
processo iniciado em 1930, com a instalação do Governo Provisório, e
ampliado em 1937, quando foi outorgada a nova Constituição, inaugurando o
Estado Novo, trouxe como consequência o reforço do Poder Executivo e da
imagem simbólica do presidente Getúlio Vargas. O contexto político foi
marcado por uma fase de revitalização da estrutura governamental
federal: “velhos órgãos ganharam nova envergadura, estruturaram-se
carreiras, assim como os procedimentos sujeitaram-se crescentemente à
lógica racional-legal” (Draibe, 1985, p. 62).
3O
processo de concentração de poder no Estado expressou-se, também, no
esforço de modernização e centralização dos instrumentos de informação
estatística sobre as riquezas nacionais, a população e a estrutura das
atividades econômicas. Tal esforço vinha com reação a experiências
anteriores em que os levantamentos numéricos realizados de revelaram
precários ou falhos por completo, por falta de fixação dos âmbitos
territoriais do país.
4A
necessidade de criação de um órgão que centralizasse as pesquisas neste
campo levou Mário Augusto Teixeira de Freitas, delegado geral do
Recenseamento do Estado de Minas Gerais, a delinear um modelo de
gerenciamento de informações territoriais em que as decisões
operacionais ficavam concentradas nas mãos de um único gerente, o órgão
coordenador do sistema, que deveria compartilhar com os produtores e
usuários a padronização dos dados a serem coletados (Observador
Econômico e Financeiro, 1940).
5Aprovado o projeto, o Governo criou em 06 de julho de 1934, por meio do decreto no
24.609, o Instituto Nacional de Estatística (INE), instalado somente em
29 de maio de 1936, quando foram regulamentadas suas atividades. Um dos
principais suportes da coesão político-administrativa do governo
Vargas, o INE caracterizava-se por sua estrutura de representações que
contemplava todas as instâncias de governo, podendo ser definido como
agência do poder central capilarizada (Almeida, 2000, p. 61). A atuação
do órgão seria diferente por ter como base uma orientação técnica mais
precisa e unificada para todo o Brasil: “o Instituto teve que acompanhar
uma diretriz política fundada na centralização do poder do Estado, e
que combatia o federalismo das unidades estaduais...” (Gomes, 2002, p.
176).
6Ocorreu,
então, um movimento de renovação da estatística nacional, em termos de
operacionalidade e ampliação da informação. A criação de um sistema
nacional de estatística foi um passo importante, pois conferiu ao
Executivo federal mais consistência no monopólio da informação (Draibe,
1985).
- 1 A Seção de Estatística Territorial da Diretoria de Estatística e Publicidade do Ministério da Agric (...)
7Contudo,
ainda faltava um organismo que se dedicasse, especificamente, aos
levantamentos geográficos realizados por diversos órgãos federais. Em
1931 o Brasil participou oficialmente do XIII Congresso Internacional de
Geografia realizado em Paris, onde travou o primeiro contato com a
União Geográfica Internacional (UGI). Em 1933, o geógrafo francês
Emmanuel De Martonne formalizou um convite de filiação à UGI,
salientando a ideia da constituição de um órgão nacional encarregado da
coordenação dos assuntos relacionados à geografia brasileira. A criação
do Conselho Brasileiro de Geografia (CBG), em 1937, iria atender a esta
solicitação. Incorporado ao INE, o CNG assumia oficialmente a
responsabilidade pelos projetos de reconhecimento do território
brasileiro, em substituição à estrutura então existente.1
Um ano depois, o INE foi renomeado como Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) e o CBG passou a se chamar Conselho
Nacional de Geografia.
8Cabe
ressaltar que a integração técnica entre a estatística, a geografia e a
cartografia deu-se nesse período, principalmente no que se refere à
preparação das equipes de profissionais. Paralelamente a essas
iniciativas no campo da administração pública federal, foi organizado um
aparato institucional acadêmico dedicado à geografia, materializado com
a criação de cursos universitários na Universidade de São Paulo (USP),
na Universidade do Distrito Federal (UDF). Também foram contratados
professores franceses, encarregados de iniciar os geógrafos brasileiros
em padrões profissionais de pesquisa.
9A
função básica do CNG, no início, era a de produzir mapas para os
levantamentos censitários. Havia, pela primeira vez, uma preocupação com
a correta localização das áreas a serem cobertas pelo censo. “A
Geografia e a Cartografia tiveram um papel essencial na melhoria da
qualidade da informação. Os dados dos Censos, de 1940 para cá,
evidentemente, têm um grau de fidedignidade muito maior” (Faissol, 1995,
p.167).
10Instrumento
fundamental para conhecimento do território nacional, a Geografia deu
os primeiros passos como disciplina autônoma no fim do século XIX,
graças à sistematização de Ratzel e Richthofen (Capel, 1981). Como
consequência deste desenvolvimento tardio, muitas vezes seu campo
científico definiu-se em superposição ao de outras ciências que
evoluíram anteriormente, sendo difícil estabelecer os verdadeiros
limites entre esses conhecimentos. O trabalho realizado pelos geógrafos
foi o de apropriação e sistematização de conceitos e teorias,
aplicando-os ao estudo do meio ambiente em seus aspectos fisiográficos,
assim como em relação com os habitantes e as estruturas econômicas e
sociais implantadas.
11Ao
mesmo tempo em que trilhava este caminho científico, a Geografia
prestava-se a diversas utilizações políticas, pois organizava seu
enunciado em torno de questões até então restritas ao Estado, como a
gestão do território e o inventário dos recursos naturais.
Recontextualizados no discurso geográfico, tais temáticas enfatizam as
relações entre poder e saber (Foucault, 1979). De acordo com este autor,
todo exercício do poder é lugar de formação de um saber e, em
contrapartida, todo saber assegura o exercício de um poder. Nessa linha
de raciocínio, não seria despropositado supor que o saber geográfico
apresenta-se como um instrumento bastante útil ao poder, por sua
condição estratégica e capacidade de inventariar o território nacional. O
processo de concentração de poder no Estado, no primeiro governo
Vargas, expressou-se também na intensa formulação oficial de políticas
territoriais explícitas no sentido de se conhecer geograficamente o
país.
12A
partir da oficialização do projeto que dividia o Brasil em grandes
regiões (1942), o CNG expandiu suas atividades aos estudos de geografia
humana e regional com vistas a construir um corpo de conhecimentos
geográficos sobre o país, tanto no plano acadêmico, como no plano
instrumental, orientando ações governamentais de organização
territorial.
13Para
isso, fazia-se necessário identificar numerosos aspectos da realidade
brasileira até então desconhecidos. Para desempenhar com eficiência a
tarefa que lhe fora atribuída, o IBGE implantou no Brasil métodos de
investigação utilizados nos principais centros internacionais da
produção geográfica, tais como as expedições de estudo, baseadas em
observações in loco em diversas regiões. A pesquisa geográfica
de campo permitia observações detalhadas do processo de ocupação do
território e estudos inéditos de transformações espaciais de grande
impacto que vinham ocorrendo no país, como a marcha das frentes
pioneiras e a expansão do sistema urbano. “As excursões geográficas e os
trabalhos de campo passam a ser o ponto alto das novas orientações
didáticas” (Angotti-Salgueiro, 2005, p. 25).
14É
importante destacar que as expedições geográficas proporcionaram
aperfeiçoamento profissional aos técnicos do Instituto e forneceram, ao
Governo Federal, subsídios aos seus projetos de reconhecimento e
intervenção no território brasileiro, mudança da capital federal,
colonização agrícola, regionalização em várias escalas, estudos sobre a
urbanização e diagnósticos ambientais.
15O
IBGE, através do CNG, objetivando atender às necessidades do Governo
Federal, procurou proporcionar treinamento em pesquisas geográficas aos
profissionais que fariam parte do primeiro grupo organizado pelo
Conselho, ainda no processo de implantação do Curso de Geografia da UDF.
Pierre Deffontaines, geógrafo francês que lecionava nesta universidade,
incutiu nos futuros geógrafos uma visão integrada de geografia física e
geografia humana, acima de qualquer orientação especializada (Valverde,
1998).
16Com
base na necessidade de desenvolvimento sistemático dos estudos sobre o
meio geográfico e a atividade humana, o IBGE criou, em 1939, um centro
de estudos destinado a coordenar e estimular pesquisas empreendidas por
seus geógrafos. Desde então, inaugurou-se um período de três décadas
(anos 1940, 1950 e 1960) de práticas profissionais fundamentadas nas
expedições geográficas. As atividades do centro se
desdobravam em reuniões e em expedições com o propósito de realizar
investigações no próprio local. “O fundamental dessas excursões era
essencialmente o levantamento do território, o conhecimento das suas
condições naturais e humanas, as condições terrestres” (Botelho, 1998).
17Francis
Ruellan, geógrafo francês discípulo de Emmanuel de Martonne e
especializado em geomorfologia, tornou-se o grande formador da primeira
geração de geógrafos do CNG, a chamada “velha guarda ibgeana” (Almeida,
2000, p. 183). Entre 1941 e 1956, organizou grandes trabalhos de campo,
considerados por seus alunos como verdadeiros cursos especiais. A título
de exemplo, veja-se o depoimento de Maria Francisca Cardoso (1999):
Nas
excursões [eu] secretariava o professor Ruellan. Tudo o que ele falava
tinha que escrever na caderneta, tomar nota de tudo, medir, ficar
encarregada da câmara clara, aquele aparelho que reconstitui o desenho, a
paisagem, e principalmente providenciar todas as excursões. Tinha que
fazer tudo, desde o seguro de vida, porque as excursões eram perigosas.
Ficávamos acampados, sozinhos no meio do mato.
18A
expedição ao Jalapão, em 1943, marco inicial das pesquisas de
reconhecimento geográfico do território brasileiro, tinha por objetivo o
estudo da região localizada na divisa dos estados de Goiás (hoje
Tocantins) e Bahia. Primeira de uma série de três campanhas sucessivas
em território baiano, a expedição foi chefiada pelo engenheiro Gilvandro
Simas Pereira e incluía em suas atividades o levantamento de
coordenadas geográficas, trabalhos topográficos e observações da
geomorfologia e da geografia humana da área (estas realizadas pelo jovem
geógrafo Pedro Geiger, da Seção de Estudos do CNG).
19Em
1945, o CNG contratou Leo Waibel, professor da Universidade de
Wisconsin, para orientar geógrafos em ocupação e uso do solo em regiões
tropicais, tornando-o, então, referência em estudos no gênero aplicados
ao território brasileiro. Seu vasto conhecimento de geografia agrária
ampliou os horizontes de geógrafos encarregados pelo Governo Federal de
colaborar em projetos de colonização.
20Em
torno de Waibel formou-se um seleto grupo de pesquisa de campo que
propunha um novo enfoque para o conhecimento geográfico. A orientação
era bastante meticulosa, pois ensinava os alunos a organizar notas,
redigir os diários, fotografar, fazer croquis, ver e pensar. Nas
pesquisas, um dos alunos ficava encarregado de observar a paisagem
detalhadamente. Waibel exigia que, primeiro, fossem apresentados os
fatos, depois, as teorias. Dessa maneira, enfatizava seu ponto de vista
metodológico, o de que “em Geografia, como em qualquer ciência concreta,
deve-se aplicar o raciocínio indutivo, as teorias devem adaptar-se aos
fatos e não estes às teorias” (Waibel, 1979, p. 15).
21Primeiro projeto do grupo, o Atlas geral da colonização do Brasil,
localizava áreas que poderiam ser ocupadas por grandes massas de
população deslocadas pelo fim da Segunda Guerra Mundial. Depois veio o
problema da mudança da capital para o Planalto Central, prevista na
Constituição de 1946. Atendendo à demanda governamental de definir o
espaço do Distrito Federal no interior do país, Leo Waibel e Francis
Ruellan conduziram, cientificamente, pesquisas minuciosas nas zonas
previamente escolhidas e estudos geográficos dos sítios adequados, que
lá se poderiam encontrar, para a instalação da futura capital. Foram
sugeridas, entre outras, a área em que hoje está localizada Brasília,
áreas no Triângulo Mineiro e na região chamada Mato Grosso de Goiás
(Comissão de Estudos para Localização da Nova Capital, 1947).
22Observe-se
que os trabalhos efetuados pelo CNG eram realizados num contexto em que
o poder central, através de outros canais, procurava ocupar e valorizar
o interior do país. O Conselho promoveu expedições aos estados de Mato
Grosso e Goiás, região que, em virtude de seus recursos naturais, estava
destinada a desempenhar um papel decisivo na chamada Marcha para o Oeste, linha mestra da política territorial preconizada por Vargas, à qual se creditava o futuro da nação.
23Ainda
como parte do plano geral de pesquisa sobre colonização no Brasil, o
IBGE realizou no Rio Grande do Sul, em 1948, estudos geográficos que
abrangeram a viabilidade para receber os imigrantes. Esse plano exigiu
numerosas expedições geográficas.
24Em
1949, o IBGE assinou um convênio com a Comissão do Vale do Rio São
Francisco para realizar o levantamento geológico e geomorfológico da
bacia do rio e investigar sítios para a construção da Usina de Paulo
Afonso.
- 2 Registros fotográficos que documentavam especificidades das regiões estudadas geraram um arquivo da (...)
Foi
a maior excursão que houve no IBGE, o primeiro trabalho no Vale do São
Francisco, pesquisa de campo com o senhor Francis Ruellan. [...]. Aquilo
foi uma excursão de trabalho e trabalho pesado. Muita coisa surgiu como
documentação fotográfica,2
de conhecimento do Brasil, de formação dos geógrafos, de noção do valor
de excursão de trabalho de campo. Eu não era dessa época, mas quando cheguei tudo girava em torno, quase tudo, em termos de metodologia de trabalho de campo (Sant’Anna, 1999, grifo nosso).
25Em
1953, o geógrafo Lúcio de Castro Soares percorreu toda a área de
transição da Amazônia com o Centro-Oeste e o Nordeste, resultando no
trabalho Delimitação da Amazônia para fins de planejamento econômico
publicado na Revista Brasileira de Geografia. Segundo testemunha José
César de Magalhães (2008), “quando entrei no IBGE em 1953, o Lúcio de
Castro Soares estava terminando de definir os limites da Amazônia Legal
para entregar ao presidente [da República]. Nós fomos ao Palácio do
Catete”.
- 3 A coleção, composta por numerosos volumes, apresenta um retrato do Brasil na década de 1950, do pon (...)
26O
período entre o início dos anos 1940 e final dos anos 1950 é chamado
pelos geógrafos do IBGE de época de ouro da pesquisa de campo, o qual
teria culminado com as expedições geográficas efetuadas em 1956 no XVIII
Congresso Internacional de Geografia e, em 1957, com as pesquisas de
campo que visavam à elaboração da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros.3
27O
XVIII Congresso Internacional de Geografia, promovido pela UGI,
aconteceu no Rio de Janeiro entre 9 e 18 de agosto de 1956. Como parte
desse evento, organizou-se um programa de excursões para que os
congressistas pudessem conhecer as regiões geográficas mais
representativas da realidade nacional, conforme relata Valverde (1998):
Em
1956 se realizou o Décimo Oitavo Congresso Internacional de Geografia
no Rio de Janeiro, que foi na União Geográfica Internacional, o maior
congresso de Geografia de todos os tempos. O primeiro na região
tropical, na faixa tropical e, também, o primeiro no hemisfério sul. Nós
organizamos excursões como guias de geógrafos, fizemos nove excursões e
conduzi um grupo de vinte e dois geógrafos de dezesseis nacionalidades
diferentes, do Rio de Janeiro até o interior do Rio Grande do Sul.
Levamos vinte e um dias no campo. Um dos colegas, o Lúcio de Castro
Soares, levou um grupo para a Amazônia. A maior curiosidade despertou.
Já imaginou os europeus serem conduzidos por um geógrafo para a Região
Amazônica? Uma grande desconhecida. Foi um sucesso extraordinário!
28As
expedições geográficas desse Congresso deram origem a nove livros-guia
que sintetizam o resultado de viagens e pesquisas, proporcionando ao
mesmo tempo uma visão geral das principais regiões do Brasil e a
oportunidade de conhecimento mais pormenorizado da geografia física e
humana das áreas estudadas (Boletim Geográfico, 1956).
29No
final da década de 1960, com a emergência da chamada Geografia
Quantitativa, ocorre uma mudança dos procedimentos metodológicos nos
estudos geográficos, resultando no progressivo abandono do trabalho de
campo, em favor da aplicação de técnicas quantitativas e modelos
matemáticos e estatísticos. Antes deste verdadeiro “divisor de águas”,
no entanto, o IBGE organizou muitas excursões de estudo em todas as
unidades da federação. Afinal, “era preciso redescobrir o Brasil”. As
expedições geográficas foram essenciais no cumprimento da missão do
Instituto – revelar informações sobre a população brasileira e o
território nacional.
30O
mapeamento das expedições geográficas realizadas pelo IBGE no período
entre 1941 e 1968, que em seu conjunto podem servir de referência a
outros pesquisadores que venham a se interessar pelo tema, será
apresentado esquematicamente como anexo. Cabe esclarecer, no entanto,
que não se trata de lista exaustiva. Foram relacionadas somente as
expedições geográficas promovidas ou apoiadas pelo IBGE, que se
encontram registradas na Revista Brasileira de Geografia e no Boletim
Geográfico (identificadas na tabela abaixo pelas siglas RBG e BG,
respectivamente).