- 1 Ao falar em “institucionalização” da geografia, não se quer de forma alguma negligenciar a importân (...)
1É
senso comum o quanto as décadas de 1950 e 1960 assinalam dois
processos, bastante interligados e até então inéditos na história
territorial de um país de passado colonial e marcadamente
agroexportador: a urbanização, com largos fluxos migratórios do Nordeste
para o Centro-Sul, e a industrialização (certamente tardia e
dependente), apoiada em capitais norte-americanos e fundada em
propósitos keynesianos, típicos das economias do segundo pós-guerra.
Enquanto arquiteto da infraestrutura material para o território, ao
Estado caberia, dia a dia, num clima “desenvolvimentista”, de (suposta)
superação do subdesenvolvimento, elaborar políticas públicas para a
“racionalização” dos processos supracitados; as quais, numa palavra,
poderiam ser traduzidas em um conjunto de métodos e procedimentos: o
planejamento, para cuja consecução – e como característica da própria
“racionalidade” do capitalismo (Habermas, 1969, 1973; Weber, 1944) –
haveria de construir-se uma série de órgãos e quadros burocráticos.
Destes, interessa aqui destacar o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE). Consolidado entre os anos de 1934 e 1938, o IBGE
somou-se à criação da Universidade de São Paulo (1934) e da Universidade
do Distrito Federal (1935) como exemplo da institucionalização da
geografia no Brasil.1
Destaca-se aqui o quanto esses processos receberam uma inequívoca
influência francesa (Peixoto Massi, 1991), a exemplo das chamadas
“missões” universitárias; no caso da geografia, traduzidas pela
colaboração de professores como Pierre Deffontaines e Pierre Monbeig.
Precisamente nos anos de 1950-60, a geografia brasileira passa a se ater
a questões relacionadas à racionalização e organização do território
(principalmente em perspectiva regional), numa paulatina mudança de
rumos, para o qual se somaram diversas perspectivas teóricas, tais como:
a geografia quantitativa (de matriz anglo-saxônica), a economia
espacial – a exemplo das teses de François Perroux (1967) – e
(novamente) a geografia francesa. Diversos geógrafos, como Michel
Rochefort, Pierre George, Jean Tricart, Bernard Kayser – inclusive
atestando uma difícil transição no seio da própria produção geográfica
nos meios universitários franceses, marcada, já a partir dos anos de
1940, por incertezas em relação à antiga solidez do “método regional”
(Claval & Sanguin, 1996), como se sabe, fortemente marcado pela obra
de Paul Vidal de la Blache – mantiveram amplo contato com os meios
acadêmicos brasileiros, IBGE aqui incluído, principalmente após o XVIII
Congresso da União Geográfica Internacional, realizado no Rio de
Janeiro, em 1956.
2Grosso
modo, por pouco mais de uma década, intensificou-se um intercâmbio
entre geógrafos dos dois países, ao mesmo tempo em que o Estado, no
Brasil, assumia uma vertente modernizadora e autoritária (ainda mais com
a ditadura militar instaurada em 1964), para a qual o completo domínio
“técnico” do território punha-se como projeto geopolítico urgente,
salientando-se nele uma prática de planejamento regional (Bomfim, 2007),
cujo núcleo idealizador partiu exatamente de órgãos como o IBGE; porém,
num ambiente político cada vez mais complexo, se lembrada a inegável
vertente marxista da geografia francesa dos anos de 1960 (ainda que com
seus limites [Escolar & Moraes, 1989; Pedrosa, 2010]), agora, em
contraposição com o regime autoritário no Brasil. Como se deveria pensar
o planejamento e a regionalização doravante? Essas dúvidas foram fruto
de um importante seminário: A regionalização do espaço no Brasil, transcorrido entre 20 e 22 de novembro de 1968 em Bordeaux.
- 2 Pois é fundamental recordar que Pierre George, por exemplo, foi um profissional da geografia por di (...)
- 3 A despeito da erudição da obra de Capel (1988) e a grande contribuição trazida à história do pensam (...)
- 4 Um dos geógrafos franceses mais presentes (e influentes) no IBGE na década de 1960, Michel Rochefor (...)
3Pretende-se
neste texto, portanto, seguir os passos do IBGE em relação: ao
planejamento, às contribuições teórico-metodológicas dos geógrafos
franceses para os meios institucionais brasileiros2
e as transições sofridas no interior do Instituto nesses derradeiros
anos transcorridos, fundamentalmente, do golpe de 1964 à virada para a
década de 1970. Trata-se, pois, de um estudo de caso objetivando a
valorização do próprio contexto de construção da geografia nacional, a
qual, embebida obviamente por influências externas, expressa, por outro
lado, contradições tipicamente relacionadas à formação de um Estado de
capitalismo tardio e de passado colonial (Moraes, 1991; Mary,
2010), instrumentalizado na década de 1960 através de diversos órgãos e
empresas estatais, de forma a encontrar, pela via do planejamento, as
condições internas de “superação do subdesenvolvimento”, de aplainamento
das desigualdades regionais, de difusão territorial da industrialização
etc. Portanto, “seguir os passos”
do Instituto significa analisar as complexas e ambíguas posturas
teóricas que se amalgamaram no período, pondo em tela duas hipóteses –
não necessariamente inéditas (talvez pelo contrário): a forma como, no
plano teórico, divergentes linhas de interpretação puderam ser
“retrabalhadas” pelos órgãos da burocracia brasileira, sem maiores
dificuldades, sem maiores constrangimentos – num apontamento para a
despolitização do discurso científico; e, em seguida, o esforço aqui de
demonstrar como essas próprias ambiguidades teóricas dos geógrafos em
destaque no período, indicam, para além de uma leitura estanque das
“escolas”, “correntes” e periodizações da geografia, costumeiramente
difundidas,3
muito mais interpenetrações e influências mútuas de “correntes”, muitas
vezes na produção de um mesmo autor, num mesmo período, ou num conjunto
de obras.4
- 5 Ressalta-se aqui nossa intenção em ir além da valorização excessiva das chamadas “escolas nacionais (...)
- 6 Tratava-se, pois, de uma perspectiva de forte acento na planificação enquanto práxis de construção (...)
4Ao cotejar a geografia francesa e a brasileira nas décadas de 1950 e 1960,5
nota-se um afã pela “aplicação” deste campo do conhecimento, doravante
reivindicado como uma finalidade intrínseca ao caráter sintético da
disciplina, a qual deveria ultrapassar a descrição regional e seu papel
ornamental, plausível apenas como elemento de “cultura geral”, para ser
uma ciência ligada ao planejamento territorial e aos homens de ação
(Juillard, 1958; Tricart, 1958).6
- 7 A rigor, o XVIII Congresso Internacional de Geografia foi o oitavo patrocinado pela União Geográfic (...)
- 8 Como é sabido, considera-se amiúde o período 1871-1914 como o de afirmação de uma escola de geograf (...)
5Esse
impasse bem atesta – tomando de empréstimo a expressão de Claval &
Sanguin (1996, pp. 9-10), a respeito da “época clássica” da geografia
francesa –, as condições de uma geografia, em suma, assinalada pelo
conservadorismo, fechada em relação ao diálogo com correntes
estrangeiras, sendo uma exceção exatamente o Brasil, onde a presença de
profissionais franceses se reaviva – poder-se-ia dizer – dia a dia a
partir de um marco temporal: o XVIII Congresso Internacional de
Geografia, realizado no Rio de Janeiro em agosto de 1956.7
Os anos subsequentes ao Congresso marcam uma “segunda onda” no
intercâmbio entre geógrafos franceses e brasileiros, consideradas no
período anterior tanto a influência das mencionadas “missões” acadêmicas
quanto a consequente (e por muito tempo, irrefutável) supremacia do
paradigma regional da escola vidaliana (ou melhor, de certa leitura – bem tradicional – dessa corrente).8
- 9 A Revista Brasileira de Geografia surge como iniciativa do Conselho Nacional de Geografia, constitu (...)
6Paulatinamente,
as formulações e posições teóricas relacionadas ao planejamento
ganharão força, num percurso atestado pela própria mudança no rol
temático da Revista Brasileira de Geografia (RBG).9
- 10 É suficientemente conhecida a assertiva de Pierre George a respeito da geografia enquanto “história (...)
7Por
outro lado, é possível identificar a fragilidade do discurso de uma
“continuidade” (imutável) da geografia vidalina exatamente na
complexidade teórico-metodológica da temática do planejamento. Pois a
planificação fazia emergir então na geografia uma tentativa de
“adequação” em relação ao mundo industrial. Mais precisamente, àquela
geografia voltada para estudos de uma realidade pré-industrial, se
oporia agora uma preocupação com o presente,10
com os rumos do capitalismo. Rumos que traziam também outra questão à
tona: a desigualdade entre os países “centrais” e uma ampla “periferia”,
subdesenvolvida, pouco ou nada industrializada, rural, em vias de
descolonização, inclusive. Doravante, a geografia (e também a economia, a
sociologia, a história...) debruça-se sobre preocupações relativas ao
“terceiro-mundo”, a superação do subdesenvolvimento surgindo como um escopo central, para cuja consecução – justamente – o aménagement du territoire aparecia como meio para chegar a um melhor equilíbrio entra as desigualdades regionais ou como fim, se a memória aqui recordar, menos que a nova geografia, mas sim um determinado uso da análise espacial por ela preconizada.
8Sugiro nestas linhas que os mencionados pontos (o planejamento na geografia enquanto meio e fim) formam-se a partir de algumas bases. Senão vejamos.
- 11 As políticas keynesianas sugeriam a emissão de títulos públicos em longo prazo, os quais que por su (...)
9A
primeira base refere-se ao planejamento como política econômica;
especialmente como propostas de ação governamental em sua dimensão
territorial (Costa, 2001). Certamente o New Deal estadunidense é o
exemplo mais conhecido e amplo – mas não necessariamente o caso pioneiro
– de um esboço
de planejamento territorial. Mais precisamente, o New Deal foi uma
resposta à impotência dos líderes políticos norte-americanos frente à
Crise de 1929; muito simplificadamente, uma crise de superprodução
somada à emissão descontrolada de ações, motivada em expectativas de
lucro aparentemente plausíveis nos anos de euforia do mercado dos EUA.
Nos chamados “cem dias”, correspondentes
ao início do governo de Franklin D. Roosevelt, priorizaram-se reformas
intervencionistas visando a “reorganizar, um a um, os aspectos da vida
econômica americana” (Schlesinger Jr, 1988, p.16). No bojo de tais
políticas, o Executivo e o Congresso norte-americanos aprovaram, dentre
outras medidas, a criação do Tennesse Valley Authority Act, a qual seria financeiramente fomentada, bem ao estilo das políticas keynesianas, através da venda de títulos públicos.11
10No
que nos interessa mais de perto, a relevância em destacar as políticas
territoriais como um recorte das práticas intervencionistas do Estado –
suposto mecanismo para as crises cíclicas (e inevitáveis) do capitalismo
– consiste na segunda base da esquematização aqui adotada. Trata-se dos
programas de intenções de intervenção territorial a cargo do Estado.
Pelos anos anteriores à Segunda Guerra, tal postura evidenciou-se tanto
em programas de dotação de infraestrutura de transportes no território
(o Brasil sendo um exemplo cabal), como, falando do contexto francês, em
programas de organização regional enquanto política territorial de
emergência logo no seguinte ao fim da 1ª Guerra Mundial, expressando as
primeiras manifestações de uma ideologia de racionalização do “espaço”;
ainda nunca traduzida em inovações conceituais ou teóricas na geografia
(Robic, 1996, p.39).
- 12 O belo trabalho de Felipe Demier (2013) analisa os anos que vão da “revolução” de 1930 ao golpe de (...)
- 13 Política de industrialização, com concentração e centralização de capitais, e alto grau de dominaçã (...)
11Se
pensar e organizar o território racionalmente ainda era algo pontual –
na França essa prática se relaciona, como dito, a uma conjuntura
“emergencial” –, a realidade de crise profunda do capitalismo evidenciou
que se tratava, agora, de uma pauta permanente na agenda dos Estados.
Assim, os anos de 1930 marcam profundamente uma guinada em prol do
intervencionismo estatal. O planejamento como conjunto de “reformas
sociais” e preparação do Estado para dotação de infraestruturas se
aproximará, nas concepções de economistas, geógrafos, dentre outros
profissionais, às formulações que, antes da Crise de 1929 eram
exclusivamente identificadas com os preceitos do planejamento, quais
sejam, as correntes ideológicas de esquerda. Pode-se notar aqui certa
referência do planejamento estatal aos modelos praticados na URSS: a
“lei do desenvolvimento combinado” e desigual (Trotsky, 2007)
relacionava-se certamente a países como o Brasil. Aqui, um caminho
crucial seria percorrido pelas frações da burguesia entre as décadas de
1930 e 1960. Questão demasiado complexa para pormenorizar nestas linhas,
sobre o papel da burguesia no Brasil há de se destacar, entretanto,
como os diferentes interesses em jogo levaram à hegemonia de setores
comprometidos com a “desigual” penetração dos grandes capitais
industriais e financeiros no país, para o quais o contexto do golpe
militar será de útil valia.12 No lugar dos traços “reformistas”, o Estado assumiria um pragmatismo então inédito.13
12Certamente
inserida nesse contexto, no qual o Estado – com relativa autonomia –
tomara para si a tarefa “modernizadora” (fosse de vertente mais
conservadora ou reformista), a geografia teve um papel bastante
relevante na consecução de políticas territoriais, interessando aqui
apontar como o IBGE participou de tal debate.
13Do
conjunto da produção do IBGE viria o testemunho da participação da
geografia no planejamento, através do encontro, complexo em si mesmo,
entre a economia espacial (sabidamente ligada à geografia
anglo-saxônica, na qual exerceu cabal influência) e a geografia francesa
surgida a partir de influências do marxismo e do “terceiro-mundismo”
sobre o repertório mais “tradicional”; contribuições estas que
corresponderiam à principal formulação teórica da interferência dos
geógrafos sobre o planejamento, conforme Geiger (1967a, p.111).
14As
pesquisas sobre rede urbana salientaram-se no Instituto a partir dos
anos de 1960. Desde então, avolumou-se a consciência de uma relação
importantíssima da geografia com o processo de
industrialização/urbanização, o que certamente aproximou o IBGE dos
principais núcleos de decisão em âmbito federal (intermediado quase
sempre pelo IPEA): após 1964, a questão urbano-industrial (associada ao
uso sistemático de estatísticas) conheceu amplo destaque no Instituto.
Nesse sentido, Geiger (1970, pp.67-71) destaca a importância das
técnicas quantitativas, ao lado das influências da geoeconomia francesa no pensamento do IBGE; e que se estenderia ao longo da década de 1970.
15Os
trabalhos em torno do Censo de 1970 também contribuíram
significativamente para a aproximação das formulações do IBGE com o
planejamento. As gestões do General Aguinaldo José Senna Campos
(1964-1967), Sebastião de Aguiar Aires (1967-1970) e Isaac Kerstenetzky
(1970-1979) marcam mudanças importantes no Instituto – sua transformação
em Fundação, a criação de um novo Departamento de Geografia e o Grupo
de Áreas Metropolitanas (GAM), sob a liderança de Speridião Faissol, um
dos geógrafos ibgeanos que no correr dos anos de 1970 mais
radicalizaram as propostas da geografia quantitativa, particularmente em
suas pesquisas sobre redes metropolitanas.
- 14 O Decreto-Lei no 161, de 13 de fevereiro de 1967 instituiu a Fundação IBGE, dividida entre órgãos c (...)
16As mudanças administrativas ocorridas no IBGE entre 1967, como de sua transformação em fundação,14
e 1973, quando a Lei nº 5 878 de 11 de maio regulamentou novas
atribuições ao Instituto, transitam pelas etapas do que se pode
compreender por militarização (Mathias, 2004). Ou seja: poder-se-ia falar em uma porosidade
do Instituto à ideologia e aos desígnios do regime militar, cujas
demandas se tornaram cada vez mais ligadas à estatística e ao
fornecimento de dados sobre o território para a execução das políticas
governamentais. Aliás, nos anos subsequentes ao golpe, o IBGE se
depararia com a presença de verdadeiros interventores militares.
17Enquanto
o general Aguinaldo J. S. Campos (Revista Brasileira de Estatística,
1964, pp. 97-98) destacava a necessidade de reformulação de métodos de
pesquisa e da coordenação dos trabalhos técnicos e administrativos do
Instituto, o tenente-coronel Waldir da Costa Godolphim (respondendo pela
presidência interina do IBGE logo após o golpe de 1964) não deixaria
dúvidas sobre o novo ambiente, como se pode ler em sua mensagem aos servidores do IBGE.
Designado
pelo Excelentíssimo Senhor Ministro da Guerra para responder pela
Presidência do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, de par
com a calorosa saudação que faço ao funcionalismo da Casa, como um de
seus melhores amigos, cumpro o dever de declarar-lhes o seguinte: 1) os
verdadeiros cidadãos brasileiros, de algum tempo a esta parte, puderam
sentir e ver os malefícios da inquietação e indisciplina no País como
prólogo à implantação de um regime atentatório aos sentimentos
democráticos e cristãos do nosso povo. 2) Para eliminar definitivamente
esses fatores de desagregação, a presente conjuntura exige de todos o
máximo de dedicação, devotamento e sacrifício para que, individualmente e
em conjunto, possamos fazer o Brasil elevar-se aos seus mais altos
destinos. 3) No âmbito interno do IBGE, sendo vital um ambiente de
disciplina e dedicação ao serviço para o pronto restabelecimento da
normalidade funcional, conto com a colaboração de todos os servidores da
Casa, ciente de seu patriotismo, estando, porém, firmemente disposta a
administração a, se necessário, tomar as medidas cabíveis para
salvaguardar a ordem e preservar o bom nome do funcionalismo e da
Instituição (Waldir da Costa Godolphim, apud Revista Brasileira de Estatística, 1964, p.3).
- 15 Esse status administrativo vigorava desde a criação do Instituto, cujas origens remontam ao Institu (...)
18Essa
“normalidade funcional” significava a inserção do Instituto na dupla
necessidade que o Estado lhe cobrava: a cartografia e a estatística,
passando pelas citadas mudanças administrativas. O objetivo desejado era
torná-lo mais “ágil”. Na gestão de Agnaldo Senna Campos, tal fim se
somaria ao Plano Nacional de Estatísticas Básicas, estabelecido pelo
Decreto nº 58.226, de 20 de abril de 1966, coordenado por João Paulo dos
Reis Velloso e cuja equipe de elaboração – da qual, aliás, não
participou nenhum geógrafo do Instituto – incluía Sebastião Aguiar Ayres
(do Conselho Nacional de Estatística), Horácio Aulex (oficial da
Marinha), Raul do Rêgo Lima (do Ministério Extraordinário para a
Coordenação dos Organismos Regionais), Eduardo da Silveira Gomes Júnior
(do Banco Central), Isaac Kerstenetzky (então diretor do Instituto
Brasileiro de Economia da FGV) e Arthur Ferreira (da SUDENE). Com o fim
de propor “medidas de caráter executivo ou legislativo necessárias à
[sua] realização”, o Plano apontaria para os problemas de “ausência de
flexibilidade institucional” e de inadequação orçamentária que tolhiam o
IBGE no tocante à sua participação no Sistema Estatístico Nacional
(Sebastião Ayres, apud
Kerstenetzky, 2006a [1970], pp.20-21). Disso decorreram mudanças
administrativas no Instituto. Em 13 de fevereiro de 1967, o Decreto-Lei
nº 161 autorizava a criação da Fundação IBGE, a qual seria aprovada pelo
Decreto nº 61.126, de 02 de agosto do mesmo ano. O Instituto passou a
ser entidade autônoma, sujeita à supervisão do Ministério do
Planejamento e Coordenação Geral, em substituição à sua antiga
vinculação direta à Presidência da República.15
19Mas
a questão sobre a eficácia do Instituto permaneceria. A busca de uma
solução, cheia de idas e vindas, nesse suposto processo de modernização
do IBGE, pode ser vista sob dois pontos: a aposta em uma ligação cada
vez maior do Instituto ao Ministério do Planejamento e a convicção de
que a produção geográfica ibgeana – à parte, claro, as
produções individuais de seus profissionais, como os artigos da Revista
Brasileira de Geografia – deveria se pautar por um maior rigor
teórico-metodológico.
20No
final da década de 1960 nota-se uma passagem da influência de geógrafos
franceses sobre o IBGE para a esfera norte-americana. Ora, a leitura de
tal processo como a transição da geografia ativa para a geografia
quantitativa pode ser tentadora, embora um tanto simplificada – mas não
incorreta –, pois, parece-me, tratou-se mais de um momento-chave nas
relações político-institucionais internas ao IBGE e entre o Instituto e
a política do Estado. Afinal: quais foram as contribuições e
limites da produção do IBGE acerca do planejamento nesses anos entre o
golpe militar e a virada para os anos de 1970 (coincidentes com o AI-5)?
21Procuraremos
apontar para algumas respostas a partir da análise dos métodos e
teorias que sustentaram os estudos para a regionalização no Brasil,
produzidos no IBGE, grosso modo, entre 1966 e 1968.
22A
intenção de programar tecnicamente o território percorreu o pensamento
de geógrafos e de economistas; inclusive de tendências bastante
diversas. Para Walter Isard (apud Ferreira, 1975, p.24), o
conceito de região teria sentido justamente se o delineamento de uma
área tivesse um propósito específico “para além de um exercício
acadêmico”. Claro, esse esboço territorial teria um fim: superar o
“atraso” econômico. Nesse tom, para um economista como Celso Furtado
(1959, pp.10-22), o fito de um programa de desenvolvimento regional
residia em “corrigir” as desigualdades, pensando na “conveniência do
todo” em relação às “partes”, ainda mais em uma economia concentradora –
em termos espaciais e de rendimentos –, como a do Brasil, a qual não
propiciaria a formação de um mercado interno, fazendo com que o país não
passasse da “etapa de crescimento na base de exportação para a etapa de
crescimento na base do mercado interno”.
23A
ideia segundo a qual a traços “arcaicos” contrapunha-se uma sociedade
“moderna, urbanizada, industrializada, dinâmica, progressista e em
desenvolvimento”, tornou-se uma elaboração bastante difundida na
explicação do subdesenvolvimento na América Latina. Sinteticamente, tal
concepção fora plenamente realizada por Rangel (1957) e sua teoria dos
polos externos e internos da economia nacional, na qual surgia o
feudalismo como “obstáculo” ao desenvolvimento, devendo ser eliminado
para dar lugar ao capitalismo progressista; debate alimentado, por exemplo, na percepção de Stavenhagen, em suas Sete teses equivocadas sobre a América Latina,
para as quais os chamados dois polos seriam “resultado de um único
processo histórico”, mantendo relações mútuas entre si; sustentado
relações, pois, tanto as regiões quanto os grupos “feudais” e modernos,
que representavam, assim, o funcionamento de uma “sociedade global, da
qual ambos os polos [seriam] parte integral” (Stavenhagen, 1965, pp.
68-69).
24Relacionada
a esse debate, a definição recorrente à época de regionalização
englobava a leitura “dual” da sociedade, haja vista que seu conteúdo
deveria se voltar para “a difusão maior pelo interior dos países das
formas de vida, da civilização industrial, isto é, da tecnologia, dos
modernos padrões de vida, da industrialização” (Geiger, 1967b, p.35). No
entanto, essa busca de “maior homogeneização do país” sugerida por
Geiger (1967b, p.38) traria consigo, de acordo com Gunnar Myrdal, se tal
processo corresse “espontaneamente”, “fluxos espaciais de mão-de-obra,
capitais e mercadorias” que gerariam efeitos de ressaca nas
outras regiões do país. Estes efeitos, todavia, não eram as únicas
relações inter-regionais que um processo de regionalização racionalizado
devia corrigir numa economia em crescimento. Importantes, também,
seriam os efeitos centrífugos de “difusão de impulso expansivo
dos centros de expansão econômica para outras regiões”, uma vez que, “ao
estimular a demanda [...] em outras regiões [...] a expansão das áreas
em crescimento pode provocar o incremento econômico em outra área”
(Myrdal, 1965, p.33).
25Assim,
para alavancar o desenvolvimento e romper com o que Ragnar Nurkse
chamou de círculo vicioso da pobreza, segundo o qual “uma constelação
circular de forças” tenderia a agir e a reagir, “de sorte a manter um
país pobre em estado de pobreza”, Myrdal propunha a noção de causação circular;
central na construção de uma teoria do desenvolvimento (e do
subdesenvolvimento). Em oposição aos efeitos regressivos, haveria certos
efeitos propulsores (spread effects) – tanto maiores quanto
mais elevados fossem os níveis de desenvolvimento de um país ou região –
“que se [propagariam] do centro de expansão econômica para outras
regiões”. Assim, a estratégia de planejamento consistiria em voltar essa
produção ao abastecimento de indústrias em desenvolvimento, que, se
tivessem número de mão-de-obra suficiente, poderiam gerar efeitos de
indústria de bens de consumo (Myrdal, 1965, p.58). É nesse sentido que,
se a concentração econômica seria uma “lei universal inerente ao
processo de crescimento”, o “desenvolvimento espontâneo, entregue ao
acaso”, tenderia a criar problemas “capazes de acarretar tropeços à
própria formação da nacionalidade” (Furtado, 1959, p.10). Portanto, o
Estado deveria ser convocado a “intervir acentuadamente nos assuntos
econômicos e sociais da nação”, assumindo responsabilidades crescentes,
geograficamente falando, “na localização das atividades produtivas”
(Kayser & George, 1980 [1964], p.322). Sob esse prisma, os geógrafos
se envolveram com a análise regional, cujo cerne, em contraposição às
noções regionais mais estanques, dadas a priori, estava, agora, na
possibilidade de o espaço ser desmembrado “segundo diferentes
critérios”, os quais variariam de acordo com as “intenções explicativas
de cada trabalho” (Gomes, 2001, p.63).
26O espaço de intervenção de um plano.
Quando voltada a reflexões sobre o planejamento, a geografia adotou
amplamente, sobre diferentes bases teóricas, a noção segundo qual a mais
completa definição do conceito de “região” estaria próxima daquela de
uma área programada. A essa definição, muito próxima da ideia
de região-programa, somou-se, principalmente em escalas maiores
(cartograficamente falando), a noção de região homogênea. Dada a
complexidade dessa discussão, cabe retomá-la em alguns aspectos, visando
a apontar dois elementos fundamentais: a discussão em torno dos
mecanismos de regionalização, intrinsecamente relacionados aos temas da
urbanização e da superação do subdesenvolvimento (e seu
alcance) e, por outro lado, a expressão desse debate, o qual pode ser
exemplificado através de trabalhos basilares do IBGE produzidos na
virada para a década de 1970.
27Acepções como as de Max. Sorre, para quem a região seria a “área de extensão de uma paisagem” (apud
Demangeot, 1971), ou as noções tipológicas de “espaços vazios”,
enquanto meio não “submetido à ação humana” (Dollfus, 1972, p.30),
demonstram que entre geógrafos e economistas interessados no
planejamento havia uma acepção sobre o espaço segundo a qual, a cada
“etapa” do desenvolvimento econômico corresponderia um tipo de região.
Noutras, palavras, os três tipos de regiões, mais amiúde trabalhos na
análise territorial (região homogênea, polarizada e região-piloto – ou
região-programa) seriam comparados, respectivamente, a “inspirações”
agrícola, industrial e comercial, e prospectiva, a qual dependeria, por
sua vez, “ou da empresa que busca elevar ao máximo o montante de suas
vendas sob a pressão de um lucro satisfatório, ou da autoridade pública
que busca promover um crescimento harmonioso dos diferentes recursos
regionais e nacionais” (Boudeville, 1973, pp.18-19). O interesse do
planejamento relaciona-se principalmente sobre uma possibilidade
operacional da noção de região, antevista através da região-piloto, tal
como concebida pelos seguidores da economia espacial, e definida enquanto,
[...]
um espaço contíguo cujas diversas partes se encontram na dependência de
uma mesma decisão, como as filiais dependem de uma matriz. Representa
um instrumento colocado nas mãos de uma autoridade, sediada ou não [...]
na região, a fim de que seja atingida uma meta econômica determinada
(Boudeville, 1973 [1961], p.17).
28Depreende-se
daí uma regionalização centrada em uma divisão objetivando o máximo de
eficácia de um programa, o qual se inclui no plano de desenvolvimento do
conjunto de um território. Identificado o “atraso”, uma política
regional eficaz deveria dar conta da estrutura regional de um país, da
organização interna de uma região, do desenvolvimento regional, da
localização industrial e da “planificação física ou organização do
território” (Kayser & George, 1980, pp.324-325).
29Mas,
sendo as “medidas organizadoras que transformam o meio natural em meio
geográfico”, dependentes “tanto da natureza quanto do grau de evolução
econômica e social da coletividade”, o resultado do encontro de um meio e
de técnicas de organização do espaço (Dollfus, 1972, p.34) se daria a
partir de um arranjo (que viabilizaria a integração funcional na
economia nacional) em torno de um polo urbano (Kayser & George,
1980, p.325).
30Se
as regiões homogêneas se comporiam por agregados de “unidades
espaciais”, os municípios, formando unidades maiores (Faissol, 1973,
p.71), a fim de criar, com interesse no planejamento e uso de
estatísticas, “unidades do território [...] maiores que os municípios e
menores que os estados” (Bernardes, apud CNRS, 1971, p.85). Exatamente em consequência disso, a geografia deveria estudar o tipo de região
a cujo território a ser organizado pertenceria, para entender de que
forma haveria de se estruturar (externa ou internamente) um polo
(Geiger, 1967b, pp.43-44). Ou seja, para cada tipologia regional, desde
os espaços indiferenciados, as regiões de especulação, as regiões de
intervenção, as bacias urbanas e as regiões organizadas, conforme Kayser
(1966) ou os setores vazios, sem organização do espaço, os setores de
economia tradicional, e as regiões organizadas, de Rochefort (1971,
pp.133-134), corresponderia uma organização urbana – ou sua ausência –
em função dos respectivos níveis regionais de desenvolvimento
industrial, quase sempre, percebidos em função de “etapas” a serem
superadas, através, da planificação, tais como os estágios
pré-industriais e pós-afluentes, ou de alta tecnologia, propostos por W.
W. Rostow (apud Faissol, 1988, p.86). É fundamental observar, a
partir dessa constatação e a despeito da valorização dada nos trabalhos
do IBGE a aspectos como estrutura urbana e “equipamentos terciários”, o
quanto a chave para a compreensão de suas análises estaria em um ramo
da atividade: o Setor Industrial. Regionalização, expressando-se “pelo
grande crescimento de algumas cidades” tornadas “polos ou metrópoles
regionais e pela intensificação das relações econômicas e sociais entre
estas cidades e as áreas cuja organização elas presidem”, somente
ocorreria por meio do processo de industrialização (Geiger, 1967b,
p.36). No mesmo diapasão, Milton Santos (1967, p.84) afirmaria que,
[no]
cume da hierarquia [urbana] não se encontram mais que exclusivamente os
centros comerciais, mas também os centros industriais. A hierarquia
torna-se um resultado dos diferentes graus de industrialização. É,
aliás, uma ideia a desenvolver, não somente para o Brasil, mas também
para outros países subdesenvolvidos, por oposição ou complementaridade
[àquela] que dá precedência ao terciário como fator de hierarquização
(Santos, 1967, p.84).
- 16 O próprio Etienne Juillard (1971, pp.19-20) classificava a região como “zona de ação de serviços”.
31Por
contra, sem negar o aporte industrial, a geografia na realidade
trabalhou seus conceitos de região fundamentalmente relacionados – como
em seus estudos para planejamento – a conceitos muito próximos aqueles
de Pierre George (segundo o qual a região seria a “zona de irradiação e
de estrutura espacial de uma cidade” [apud Juillard, 1971, p.20).16 A opinião de Lysia Bernardes (referendando à de J. Labasse) igualmente seria a da região como espaço compreendido nos limites do poder de polarização de um grande centro
– área, pois, de “gravitação em torno de um centro” (Bernardes, 1964,
p.3). Speridão Faissol (1973, p.85) relativizava a questão,
compreendendo a produção industrial e sua distribuição, conceitos,
segundo ele, vindos da economia, enquanto instâncias que se
“regionalizariam” por meio de estruturas urbanas e fluxos, materiais e
não materiais, base sobre a qual seria proposto o conceito – largamente
difundido a partir da década de 1970 – de região funcional,
entendida como “agregados de unidades espaciais”, formando unidades
maiores por via de associação que considerasse as “relações entre os
lugares e [sua] complementaridade estrutural” (Faissol, 1973, p.72).
Como discussão aos estudos do IBGE, deve-se resgatar um dos comentários
mais pertinentes no tocante à regionalização. Ao lado da observação de
Milton Santos, chamando atenção para a importância do setor industrial,
valorizado, sim, mas não utilizado como referencial metodológico (afora
em caráter fragmentário, auxiliando a composição das microrregiões
homogêneas), Pedro Pinchas Geiger criticara o sentido meramente
político-administrativo que a “cidade” teria, no Brasil, sendo, os
municípios, frutos mais de políticas dos Legislativos Estaduais que de
um real crescimento da rede urbana (Geiger, 1963, p.7). Tanto a cidade
como forma de agrupamento quanto em seu aspecto quantitativo, relativo
ao número de habitantes, deveriam ser rechaçados.
Este
critério estatístico repousa em convenções que variam segundo o país.
Em si mesmo, não satisfaz. As formas e as funções da aldeia podem-se
manter a despeito de qualquer outra característica, em aglomerações que
ultrapassam de dez vezes as normas mínimas da cidade teórica. As formas e
as funções da atividade urbana podem integrar-se excepcionalmente em
agrupamentos de dimensão inferior ao mínimo estatístico urbano (Pierre
George, apud Geiger, 1963, p.9).
A cidade poderia ser
estudada de acordo com as formas de atividades nela exercidas, o que
ainda não bastaria, porém,[pois isso] não elimina a dificuldade de uma
definição geral de cidade [pois a] rigor, as atividades industriais e
comerciais não se consideram exclusivamente urbanas, muito embora tendam
a introduzir traços urbanos na paisagem, quando localizadas nas zonas
rurais (Geiger, 1963, p.10).
32O
fundamental a notar é que, rebatendo os critérios
político-administrativos, historicamente relacionados à manifestação do
“urbano” no Brasil, Geiger (1963, p.11) trabalharia para uma primeira
determinação da hierarquia dos centros urbanos segundo o grau de
centralidade de uma rede urbana, considerado esse nível a partir da
relação entre população terciária e população ativa total de um lugar.
Sendo ao mesmo tempo, “centro de funções de relação” e “suporte de
atividades industriais”, a cidade, conforme consolidasse seu papel
central em uma hierarquia, poderia transferir para o interior
“iniciativas de progresso”, desaparecendo o “fracionamento da rede
urbana brasileira em unidades estanques” (Geiger, 1963, pp.14/40). Sem
valorizar em sua pauta de discussões grande parte desses temas,
sobretudo, aqueles envolvidos com o debate político-administrativo, o
IBGE faria do estudo das redes urbanas brasileiras seu grande cartão de
visitas, no tocante à sua contribuição para o planejamento brasileiro.
Enquanto teoria, metodologicamente conduzida por diversos referenciais
da geografia e da economia espacial daquele período, o estudo sobre a
questão urbana e a região aproximou-se de uma tradição em pensar o
território segundo o viés da ocupação econômica (e geopolítica), na qual
(questionamentos políticos à parte) à Geografia Ativa somou-se sua
própria reminiscência possibilista e, ainda mais, a “revolução”
quantitativa, as teses locacionais, o pragmatismo econômico ortodoxo e,
como substrato, a retórica militar e conservadora do Brasil Potência,
enquanto o grande espaço a ser conquistado. É sob tais condições que,
pelo menos desde 1966, o IBGE procurou mostrar a aplicabilidade da
geografia para a organização do território, ou mais, para as políticas
públicas, a partir de um conjunto de trabalhos, cujos detalhes são
apontados a seguir.
33Conhecer o espaço era condição a priori
para a definição de políticas públicas; daí o triplo objetivo da
exposição de Michel Rochefort feita no IPEA (1967): apontar as condições
ideais para a planificação (logicamente à maneira dos “países
desenvolvidos”); observar as fragilidades do trabalho então
recém-elaborado pelo CNG (o “esboço dos espaços polarizados”) e indicar
alternativas que, em tese, seriam aquelas adotadas para a pesquisa de
delimitação das microrregiões homogêneas.
34Para
tanto, punha-se como necessária a “organização harmoniosa dos
diferentes centros do espaço nacional”, para que se pudessem dar as
“bases à planificação econômica” (Rochefort, 1967, pp.1/3-4). A
racionalização da organização do território se daria exatamente pela
definição de regiões homogêneas, onde deveria haver uma “semelhança mais
ou menos completa das atividades de produção”, enquanto extravasariam
os limites dessas regiões os espaços polarizados, abarcando “um espaço
heterogêneo nas suas atividades de produção, mas dominado pela
influência de uma cidade principal, cujo poder de polarização
[provocaria] elos de interdependência entre os fragmentos heterogêneos”
(Rochefort, 1967, p.2). Como diria George (et al, 1980,
pp.12-13), deveriam combinar-se na organização do território as regiões
homogêneas – mais ligadas a aspectos “naturais” e à atividade agrícola –
e as “zonas de centralidade regional”, ou o “conjunto do espaço
dominado pelos fenômenos de centralidade e percorrido pelos fluxos de
relação”, para a melhor determinação de áreas “ótimas” para um ponto de
partida ao aménagement du territoire; áreas que nada mais seriam que os polos de desenvolvimento à maneira de Perroux.
35O
IBGE reconhecia esses dois conceitos-chave de polarização e
homogeneidade (ou seja, a existência de regiões homogêneas e regiões
polarizadas) enquanto fenômenos presentes, em intensidades diversas, no
território brasileiro. Exemplificando, defendia-se o conceito de região
homogênea para a Amazônia, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e
Extremo-Sul, sendo o pilar sobre o qual se estruturaria a divisão
regional do Brasil nas microrregiões homogêneas; enquanto se
identificavam polos de crescimento, escolhidos segundo critérios das
teorias de Rochefort, hierarquizando as cidades de acordo com a
infraestrutura do terciário; destacando, em 1º Nível, as metrópoles de
Porto Alegre, Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte,
Salvador, Recife, Fortaleza e Belém (Pereira et al, 1967, pp.84-85), que seriam, aliás, as futuras regiões metropolitanas, instituídas oficialmente pela Lei Complementar no
14, de 8 de junho de 1973, de São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre,
Recife, Salvador, Curitiba, Belém e Fortaleza – tendo sido estabelecida a
Região Metropolitana do Rio de Janeiro pela Lei Complementar no 20, de 1o de julho de 1974. Sobre a seleção de polos, Pereira (et al, 1967, p.86) diria que:
A
seleção dos polos de desenvolvimento partiria de uma distinção
fundamental entre centros de polarização (cidades – em vários níveis
hierárquicos – capazes de dominar uma região através da extensão de seu
setor terciário) e polos de desenvolvimento (locais de expansão de uma
atividade, e que necessariamente não precisariam ser, ao mesmo tempo
[...] centros de polarização).
36O documento Esbôço preliminar de divisão do Brasil em espaços homogêneos e espaços polarizados
foi elaborado conforme Resolução nº 595, de 17 de junho de 1966, da
XXIII Assembleia Geral do Conselho Nacional de Geografia. Escrito sob a
presidência do IBGE do General Aguinaldo José Senna de Campos e tendo
como Secretário-Geral do CNG o engenheiro René de Mattos, como Diretora
da Divisão de Geografia, Lysia Maria Cavancanti Bernardes e como
Coordenador dos Estudos Regionais, Pedro Pinchas Geiger, o documento foi
redigido em sua introdução por Roberto Lobato Corrêa e Fany Rachel
Davidovich, e a delimitação e definição dos espaços polarizados foi
realizada por Maria Francisca Thereza Cavancanti Cardoso, Fany Rachel
Davidovich, Pedro Pinchas Geiger, Elza Coelho de Souza Keller, Roberto
Lobato Corrêa, Hilda da Silva, Ruth Lopes da C. Magnanini, Maria Emília
Teixeira de Castro Botelho, Ignês Amélia Leal Teixeira Guerra, Maria
Helena de Sales B. Moreira, Írio Barbosa, Lúcia Brandão, Rosa Maria
Fucci, Luis Antônio de M. Ribeiro e Ângela Maria C. Lopes. Coube à Seção
de Estudos Sistemáticos e à Seção de Cálculos da Divisão de Geografia a
confecção das tabelas e dados estatísticos (IBGE, 1967).
- 17 Esse equipamento se comporia de: a) comércio de mercadorias; b) serviços bancários e financeiros; c (...)
37Partia-se como primeira etapa da classificação dos centros de polarização sua definição, de acordo com o equipamento terciário polarizador,17
o qual era relacionado com a atividade industrial e a população urbana
do município-polo visando à distinção entre os centros de igual
hierarquia. Destarte, o equipamento era definido com o seguinte
detalhamento de critérios:
-
- 18 O Questionário CNG/EPEA (cujo preenchimento, a cargo das prefeituras, foi aplicado pelos agentes mu (...)
Comércio
de Mercadorias (levando em conta o comércio Varejista – presença de
lojas, escritórios [conforme especificações do Questionário CNG/EPEA]18
e número de filiais de empresas comerciais de outras cidades – e
comércio Atacadista [conforme especificações do Questionário CNG/EPEA]).
-
Serviços
Bancários e Financeiros (considerando o número de estabelecimentos
bancários existentes nos centros; percentagem do valor dos títulos
descontados em relação ao total do país, segundo dados oficiais do
Movimento bancário [1964]; companhias de seguro – de acordo com presença
de sedes, filiais e agências –; e companhias de investimentos; de
acordo com o número de empresas e segundo dados do Banco Central para
1966).
-
Serviços
Administrativos e de Direção (mensurando a presença de órgãos
governamentais federais ou estaduais; a direção administrativa na
atividade comercial; ambos os critérios de acordo com Questionário
CNG/EPEA –; o número de matrizes de bancos – de acordo com o Movimento
Bancário [1964] –; e a direção administrativa na atividade industrial –
conforme Registro Industrial [1962]).
-
Serviços
de Consultoria e Publicidade (medindo a importância das cidades como
centros de publicidade e como centros de consultoria – de acordo com
critérios estabelecidos no Questionário CNG/EPEA).
-
Serviços
de Educação (medidos através da existência e variedade de cursos de
nível superior e da existência de diferentes cursos de nível médio;
tendo como fontes: Ensino Superior [1964]; Ensino Médio, [1964]).
-
Serviços
de Saúde (número de leitos em hospitais; número de médicos
especializados e número de hospitais especializados existentes. Fontes:
Informações Básicas do IBGE [1964]; Questionário CNG/EPEA).
-
Serviços
de Cultura e Lazer (existência de peças teatrais encenadas por grupos
de outras cidades; número de teatros existentes; número de radio
difusoras; número de competições esportivas regulares e de equipes
esportivas organizadas e/ou profissionais, conforme modalidades
desportivas estabelecidas previamente. Fontes: Questionário CNG/EPEA;
Ministério da Educação e Cultura [1964]).
- 19 A atividade industrial seria mensurada levando-se em conta a mão-de-obra empregada (em termos quant (...)
Com
base nas notas obtidas por cada centro, será possível classificá-los
segundo o seu ‘equipamento terciário polarizador’. Por outro lado, a
comparação do nível de equipamento de cada cidade [...] com a atividade
industrial aí praticada [...] possibilitará maior distinção entre os
centros de nível de equipamento terciário equivalente19 (Corrêa & Davidovich, 1967, p.4).
38Como
segunda etapa, haveria de se proceder a uma comparação desse
equipamento com a população urbana e a atividade industrial de cada
cidade (ou de cada polo), o que permitiria estabelecer uma tipologia dos
centros de polarização. Essa etapa, certamente a mais complexa,
estabeleceria os limites das áreas de alcance de um polo, bem como seus
níveis, no caso, distribuídos em três hierarquias, baseadas na
abrangência espacial da influência dos centros regionais (IBGE, 1967,
p.1). Por meio do método de questionário (1ª etapa), do levantamento da
hierarquia dos polos e de seu campo de influência, chegar-se-ia ao
conhecimento das “áreas de atuação dos centros de polarização, através
de fluxos de passageiros e de mercadorias; bem como através das relações
entre as atividades regionais e os centros de polarização [e de seu
respectivo] poder de decisão [...]” (IBGE, 1967, p.5). Na
sequência, seria realizada a delimitação das áreas, cujo resultado
cartográfico seria dado por uma sobreposição de onze cartogramas
seguindo a divisão administrativa estabelecida em 1960, ainda que o
estudo se propusesse a revisar os limites das áreas de influência
conforme os dados sobre a divisão administrativa do Brasil estivessem
atualizados (Corrêa & Davidovich, 1967, p.7).
- 20 Na definição do IBGE (Divisão Territorial do Brasil, 1980, p.IX) as Cinco Grandes Regiões são “exte (...)
39Do
“esboço” feito pelo IBGE em 1967 seguiram-se, já na vigência da nova
estrutura administrativa do IBGE, em que o Instituto Brasileiro de
Geografia dava lugar ao antigo Conselho Nacional de Geografia, os Subsídios à Regionalização, publicados em 1968, e a Divisão do Brasil em Micro-Regiões Homogêneas,
do mesmo ano. Importante notar que ambos os estudos serviram de apoio
para medidas de planejamento público e privado, não apenas durante os
anos de 1970, logo após seu aparecimento, mas, com ajustes, inclusive
contemporaneamente, o que pode ser constatado por duas pequenas e óbvias
observações. De um lado, o estabelecimento das Grandes Regiões20
tem sido o mesmo desde então e, por outro, as microrregiões, ainda que
tidas como insatisfatórias para a análise das transformações pelas quais
o país passou desde a década de 1960, foram pouco mais que atualizadas
– por critérios relacionados à polarização do espaço – nas definições
das 558 microrregiões geográficas que o IBGE passou a adotar a partir do
Censo de 1991; levantamentos censitários cujo material é, de longe, o
mais utilizado e difundido dentre as fontes estatísticas e os dados
gerais sobre o Brasil. Se houve mudanças de critérios para a divisão e
subdivisão regionais do Brasil, muitas de suas bases, especialmente
aquelas em escala cartográfica mais detalhada, tiveram seus estudos
iniciais com os trabalhos realizados pelo IBGE entre o final da década
de 1960 e o início da de 1970. Conforme trabalho de Igor Moreira,
apresentado durante o III Congresso Brasileiro de Geógrafos,
A
despeito da fraqueza metodológica dos subsídios à regionalização, de
Roberto Lobato, o documento do IBGE foi base de trabalhos que buscavam
(sem maiores questionamentos) detalhar e dar elementos para
sistematização das hierarquias regionais, usando dos mesmos critérios
(ensino, serviços de saúde, serviços bancários) [e de cartogramas e
métodos de questionários] (Moreira, 1974, p.42).
40Antes
de avançar na análise dos outros trabalhos do IBGE, importa apontar a
deficiência de um instrumento largamente utilizado, no caso em tela, o
Questionário CNG/EPEA, cujo índice de respostas foi extremamente baixo,
sendo de 0% no Acre, ou 4,3% em Sergipe e somente satisfatória e
amplamente aplicado em municípios de São Paulo, Rio de Janeiro, Santa
Catarina e Paraná – mesmo num estado importante da federação, como Minas
Gerais, o índice não foi maior que meros 39% (Corrêa & Davidovich,
1967, p.7). Houve também dificuldades operacionais na metodologia do
IBGE, referentes à quantificação das exportações, à articulação das
“etapas percorridas” no escoamento de mercadorias, à identificação de
locais de venda – e não só de consumo – de produtos
agropecuários e, fundamentalmente, a problemática em rastrear a
frequência dos fenômenos, questão fundamental para definição dos fluxos,
resultando em um estudo sem “indicação segura sobre o real escoamento
[desses fluxos] no tempo”; contrariando, portanto, a noção de “fluxo”
adotada tanto nos Esboços como nos Subsídios, a qual, vinda de Jean
Labasse, considerava que o critério de sua intensidade somente teria
sentido se medida fosse a “frequentação”, o descolamento espacial, de um
fenômeno – algo já destacado durante as discussões do andamento das
pesquisas do antigo CNG (Davidovich, 1969, pp.66/72).
41Seguindo
orientações de Michel Rochefort (demarcando espaços homogêneos e
espaços polarizados, conforme seminário realizado em 1966) –, conjugando
técnicos do IBGE, SUDENE, SUDESUL, SUDAM, CIBPU e IPEA (em seminários
ocorridos em novembro de 1967) – debaixo da supervisão de Marília
Velloso Galvão e coordenação de Pedro Pinchas Geiger, o Instituto
Brasileiro de Geografia, através de seu DG, incumbiu-se de elaborar uma
nova proposta de Divisão Regional do Brasil, em compromisso com
“a evolução metodológica da ciência geográfica nos problemas de
regionalização, ao mesmo tempo em que se engajava na política oficial do
planejamento [indo] de encontro [aos] apelos que já faziam ouvir em
vários setores ativos da vida nacional” (IBGE, 1970, p.VII).
42As
discussões metodológicas para a Divisão do Brasil em microrregiões
ficaram a cargo de Marília Velloso Galvão, Pedro Pinchas Geiger, Lysia
M. C. Bernardes, Nilo Bernardes, Elza Coelho de Souza Keller, Aluízio
Capdeville Duarte, Speridão Faissol e Fany R. Davidovich. Sendo uma
“unidade elementar”, a região homogênea forneceria substratos para a
definição de diversos agrupamentos, de acordo com o interesse do
planejador e também com base de fornecimento de estatísticas menos
distorcidas (Rochefort, 1967, p.10). Estariam assim definidas as
regiões-programa, como escala de regionalização para efeitos de
intervenção planejadora. Mas seria o IPEA a principal agência a
contribuir, a através de sua produção com vistas à “descrição dos
processos espontâneos ou dirigidos [...] que [conduziriam] o quadro
[...] da organização do espaço”, estudos que norteariam a formulação das
microrregiões homogêneas – as quais viriam “a possibilitar a
reformulação da Divisão Regional para fins estatísticos e didáticos” e
servir de base para produções como as do Censo e do Programa de Ação
Concentrada (PAC), do Ministério do Interior (Sebastião Aguiar Ayres, apud Kerstenetzky, 2006a, p.27).
43Ainda
que em trabalho pouco posterior (Rochefort, 1971) o geógrafo francês
constatasse a ausência das “regiões orgânicas” no Brasil, nem por isso
deixou de salientar a importância de identificá-las, residindo, como
“virtude” do Esboço traçado pelo IBGE, menos o de lograr definir os limites das regiões, por meio dos critérios de polarização e de homogeneização,
considerados, afinal, de aplicação limitada (mas não inviável, note-se
bem) ao caso brasileiro, que o de apontar para o “conteúdo” das regiões.
Havia no âmago das críticas de Michel Rochefort a observação segundo a
qual ao planejamento no Brasil caberia apontar os caminhos para
dimensionar e estruturar a organicidade das regiões (ou seja, dotar o território de uma infraestrutura, obviamente viabilizada num otimismo de desenvolvimentismo econômico), tornando-se o objetivo visado, o aménagement du territoire,
resultado de um processo de busca dos conteúdos regionais com base
(dentre outros critérios) em seleções estatísticas em escala local, em
microescalas; para, em seguida, atingir um ponto em que se fosse capaz
de estabelecer os critérios ideais para a delimitação das áreas de
atuação das políticas públicas. Tratava-se de dar ao planejamento o
dinamismo que, na linguagem de modelos e sistemas posteriormente adotada
pela geografia, corresponderia aos inputs e outputs necessários à planificação como instrumento político-administrativo flexível; aberto.
44Passadas
a etapa preliminar, em que o CNG se lançara aos estudos de delimitação e
demarcação dos espaços homogêneos e os espaços polarizados, era agora a
vez dos estudos visando ao estabelecimento da (nova) divisão regional
do país. E, embora não seja o caso de alongar a análise desses estudos, é
importante frisar os aspectos teórico-metodológicos que os embasaram.
- 21 Dividindo o Brasil em: Norte, Nordeste, Centro, Leste (a qual incluía BA e SE) e Sul (à qual perten (...)
- 22 Esses dois últimos foram extintos pela Constituição de 1946, sendo que Rio Branco e Guaporé passara (...)
45A
Divisão do Brasil em microrregiões homogêneas insere-se nos estudos
para uma nova divisão territorial do país, em substituição daquela que
vigorava oficialmente desde 1940,21
a qual, com algumas alterações – inclusive, ocorridas em função da
criação, na primeira metade daquela década, de territórios, como
Fernando de Noronha, Guaporé, Rio Branco, Ponta Porá, Iguaçu22 – perdurou até a virada para a década de 1970, quando as Cinco Grandes Regiões atuais foram oficialmente estabelecidas.
- 23 Em seu trabalho para o IPEA, Michel Rochefort (1967, p.6) escreveria: “O Conselho Nacional de Geogr (...)
- 24 Tomando-se em consideração: topografia, clima (“pelo método de Gaussen”), vegetação, solos, recurso (...)
- 25 O “potencial humano” relacionava-se a aspectos populacionais diversos: distribuição quantitativa da (...)
- 26 “O exame de associações de culturas e criações que forneceu os graus de especialização [agrícola] f (...)
- 27 Para a definição de espaços de “mesma forma industrial”, concorreram elementos como: “evolução indu (...)
- 28 Buscou-se avaliar, mais que os fluxos de transporte existentes na época, as possibilidades de impla (...)
- 29 “A presença de certas atividades terciárias específicas, como as portuárias, turísticas, religiosas (...)
- 30 A Divisão do Brasil em microrregiões homogêneas é de 1968, mas nos utilizamos de uma edição publica (...)
46Com
foco na necessidade de fornecer bases para a tabulação de dados
estatísticos, em substituição ao uso das antigas Zonas Fisiográficas
(IBGE, 1970, p.I),23 o Instituto Brasileiro de Geografia elaborou suas 361 Regiões Homogêneas, focalizando o “quadro natural”,24 o “potencial humano”,25 a produção agrícola,26 a produção industrial,27 a infraestrutura dos transportes28 e as “atividades terciárias não polarizadoras”.29
Para tanto, elaboraram-se diversos trabalhos cartográficos e
estatísticos: 1) a carta ao milionésimo, “para exame de topografia e de
acessibilidade quanto aos transportes”; 2) a carta geológica, em escala
1:5.000.000; 3) cartas pedológicas; 4) “o mapa de síntese climática com
indicação de limites de diversos fenômenos e índices”, na mesma escala
dos mapas geológicos; 5) mapas de vegetação; 6) “cartogramas de
distribuição da população”; 7) cartogramas sobre a estrutura fundiária;
8) “numerosos cartogramas de produção agrícola (incluindo o extrativismo
vegetal) e a evolução da produção”; 9) tabelas estatísticas sobre a
produção agrícola e, também, de extrativismo; 10) “cartogramas de
distribuição de áreas de pastagem”; 11) “cartogramas de distribuição de
áreas de lavoura”; 12) “cartograma da distribuição de tipos de centros
industriais”; 13) dados obtidos através do Questionário CNG/EPEA (IBGE,
1970, p.II).30
47Individualizadas
as áreas em sínteses produzidas de acordo com os diferentes elementos
em questão, chegou-se a definição de espaços homogêneos para cada um
deles – desde o “quadro natural” até “atividades terciárias não
polarizadoras”. Compreendendo a “forma de organização em torno da
produção”, os espaços homogêneos seriam, pois, definidos através da
individualização de áreas, as quais se identificariam por “certa forma
de combinação dos elementos geográficos, sempre dentro de um determinado
nível de generalização” (IBGE, 1970, p.I). Todo o processo envolvendo a
elaboração de sínteses regionais tinha como base a compreensão da
regionalização como mecanismo “econômico-social”, visando à contribuição
geográfica para as políticas públicas, nos diversos níveis
administrativos.
- 31 Este critério persistiria, por exemplo, ao tomar as bacias como unidades para a aplicação de projet (...)
48Se
a regionalização deveria ser pensada sobre uma área de intervenção, a
noção de região homogênea ia ao encontro de objetivos mais específicos,
na verdade, menos de planejamento em si que de subsídio à planificação,
em uma compreensão segundo a qual perspectivas homogêneas, aplicadas a
bacias fluviais ou a espaços administrativos delimitados, por exemplo,
serviriam “frequentemente de campo de experiência” (Kayser & George,
1980, p.326).31
49No trabalho sobre regiões homogêneas, apesar do destaque dado aos “mecanismos econômico-sociais” (valendo o mesmo para os Subsídios à regionalização),
desperta atenção o peso dado às atividades agropecuárias, não obstante
houvesse no discurso de apelo desenvolvimentista da geografia brasileira
do período o postulado enfático das redes e estruturas urbanas
associadas aos equipamentos terciários. A atividade agrícola bem
expressaria a renda per capita de cada unidade regional e, nos Subsídios, seu estudo não somente foi o mais abrangente e, de longe, o mais detalhado, como, cartograficamente, seria um dos mais próximos à configuração apresentada – em termos de homogeneidade – pelas Cinco Grandes Regiões (ver mapa nº 1).
Mapa nº 1. Subsídios à regionalização: regiões agrícolas.
Fonte: IBGE, Subsídios à regionalização, 1968.
50Não foi em vão, portanto, que as regiões agrícolas ocuparam uma parte central nos Subsídios à Regionalização.
Olindina Vianna Mesquita, Solange Tietzmann Silva e Maria Elizabeth
Corrêa de Sá Távora Maia seguiram as considerações de Rochefort quanto à
centralidade dessa atividade primária para a divisão do território em
regiões homogêneas; reconhecido o aspecto espacialmente unitário da
produção no campo. Posto isso, chegaram à delimitação de 144 subáreas em
19 áreas e 5 regiões agrícolas no território brasileiro (Mesquita,
1968, pp.59-128).
51Por outro lado, enquanto faltara ao Esboço preliminar de divisão do Brasil em espaços homogêneos e espaços polarizados
uma maior consideração sobre as atividades industriais e à
infraestrutura de transportes, abriu-se espaço, nos Subsídios, para, no
tangente à circulação, por exemplo, enfatizar as relações entre
transporte e organização do espaço – em uma leitura que lembraria as
proposições de von Thünen – na argumentação de qualificar as regiões
“segundo a maior ou menor disponibilidade em meios de transporte”,
hierarquizando-as “quanto ao grau de acessibilidade de que dispõem”
(Silva, 1968, p.159).
52A
abordagem acerca da infraestrutura foi igualmente retomada nos
Subsídios, de acordo com a acepção de o setor terciário ser aquele mais
diretamente vinculado ao “estágio de desenvolvimento econômico de um
país”. Ou mais que isso: o seu próprio reflexo, haja vista que,
[...]
a simples análise dos equipamentos terciários permite uma avaliação
[...] da potencialidade econômica de uma região [pois à medida que] essa
potencialidade se avoluma [...] crescem as demandas dos serviços, que
surgem cada vez mais especializados, a fim de atender a uma população
desejosa e capaz deles se servir (Cardoso, 1968, p.171).
53Percebe-se
um vínculo entre a simples existência de atividades terciárias como um
dado de crescimento, tanto de poder aquisitivo, quanto de acesso a esses
serviços, bastando, para isso, que certos centros adquirissem condições
– bem ao gosto das proposições de Michel Rochefort – de se tornarem
“polarizáveis”. Assim, a partir de uma análise quantitativa do terciário
com base em pesquisas do antigo IBE, do Banco Central, do Ministério do
Trabalho e do MEC, seria eleito aquele aporte estrutural mais
significativo (na interpretação de Maria F. T. C. Cardoso [1968,
pp.173-176]), a saber: serviços de crédito; serviços profissionais;
serviços educacionais; serviços culturais; serviços de saúde; serviços
públicos urbanos e organização sindical; chegando-se à conclusão de uma
homogeneidade cartografável em quatro grandes conjuntos – Norte,
Nordeste, Centro-Oeste e Centro-Sul.
54Dulce
Maria Alcides Pinto (1968, p.147) escreveu a respeito de outra
atividade pouco comentada nos “Esboços”: a indústria. Levando em conta,
fundamentalmente, o pessoal ocupado na atividade, dividiu o território
em oito áreas espacialmente assim distintas: 1) áreas de domínio da
indústria alimentar, 2) áreas de domínio da indústria têxtil, 3) áreas
mistas de indústria alimentar e têxtil, 4) áreas em que se combinam as
indústrias têxtil, alimentar e metalúrgica, 5) áreas em que se combinam
as indústrias alimentar, metalúrgica e mecânica, 6) áreas em que se
combinam as indústrias têxtil, metalúrgica e mecânica, 7) áreas em que
se combinam os quatro gêneros [alimentar, têxtil, metalúrgica e
mecânica].
- 32 Ou seja: serviços ligados ao capital, à administração e direção, à educação, à saúde e à divulgação (...)
55Por outro lado, as observações – direta e indiretamente relativas aos Esboços
– feitas por Rochefort e Kayser seriam incorporadas à exaustão por
Roberto Lobato Corrêa, a quem coube redigir o último tema dos Subsídios: a “centralidade”. Tipos de serviços idênticos aos indicados por Rochefort e Hautreux (IBGE, 1967)32 receberiam um tratamento – para falar com Geiger (apud
Machado, 2002 [entrevista]) “pré-quantitativo”, em que três grandes
categorias – produtos industriais, estabelecimentos industriais e
aqueles serviços apontados nos Esboços – seriam passíveis de receber uma
pontuação máxima, a partir da qual Lobato concluiria haver, no Brasil, a
seguinte tipologia espacial: metrópoles ou centros de 1ª ordem
(metrópoles nacionais – Rio de Janeiro e São Paulo, metrópoles regionais
equipadas – Porto Alegre, Recife e Belo Horizonte, metrópoles regionais
subequipadas – Salvador, Curitiba e Fortaleza); centros de 2ª ordem
(“superequipados”; “equipados” e “subequipados”); centros de 3ª ordem –
não subdivididos (Corrêa, 1968, pp.182-185). Buscando adaptar a classificação de Kayser (1966) à rede urbana brasileira, Lobato dividiu-as em “redes organizadas”, basicamente polarizadas pelas duas metrópoles nacionais, mais Belo Horizonte, Curitiba e Porto Alegre e “redes desorganizadas” –
nas quais os “centros de segunda ordem” se fariam mais presentes.
Entretanto, a conclusão pouco avançaria em comparação não apenas aos Esboços, mas também em relação às afirmações dos próprios geógrafos ligados ao aménagement du territoire
(falemos de Rochefort e Kayser) ou de Geiger (1963). Assim (numa
indicação de que, frequentemente, métodos fundados em classificações
matemáticas muito pouco contribuiriam para melhores esclarecimentos),
Como
se pode observar, as diversas redes urbanas que compõem o país
apresentam-se profundamente diferenciadas. Diferentes formas de
desorganização e organização são encontradas no espaço brasileiro,
refletindo a variedade da vida regional num país desigualmente
desenvolvido. As regiões de influência urbana apresentam-se, pois, com
conteúdos diferentes, e os estudos sobre as relações entre cidades e
regiões, feitos na escala de regiões de nível metropolitano ou de
regiões de segundo nível, constituirão a base para uma compreensão exata
da polarização no país (Corrêa, 1968, p.190).
56Mas,
se o estudo de Roberto Lobato procurava seguir as linhas metodológicas
recém-expostas aos geógrafos brasileiros, Olga Maria Buarque de Lima
(1968, pp.37-58), tomando por base critérios como ritmos de crescimento
da população (natural e por “balanço migratório”), estrutura (ramos de
atividade, nível de instrução, estrutura por faixas etárias, expectativa
de vida, composição da população por sexo) e “índices de nível de vida”
– não esmiuçados, aliás – proporia uma regionalização com base neste
critério valendo-se de aspectos formais, os quais não desceriam às
questões, às explicações da dinâmica demográfica brasileira, algo
próximo da geografia da população, conforme trabalhada ainda na década
de 1950. Ademais, os dados – não se olvidando todas as dificuldades para
a obtenção dessas fontes (uma das motivações, por sinal, dos estudos do
IBGE àquela época) –, apontavam para um padrão populacional defasado,
no mínimo, em uns dez anos, em comparação à publicação dos Subsídios à regionalização.
57A
perspectiva adotada pelo IBG de um enfoque fundado em uma presumível
espacialidade homogênea não deixaria de lado o estudo dos domínios
ecológicos, adicionando-lhes, para efeitos de classificação, limites
constituídos por atividades econômicas. Assim, enquanto a Amazônia se
pautava pela configuração “legal” da região, o Sul do Brasil seria
delimitado pela fronteira máxima correspondente à “linha meridional da
cultura cafeeira”; restando à Área Úmida Oriental a configuração próxima
aos limites do clima litorâneo úmido (segundo classificação de Strahler
– grosso modo, do Rio Grande do Norte ao litoral de São
Paulo); ao Brasil Central uma ampla área, de Rondônia a Minas Gerais,
também tendo por critério o clima (tropical), além da vegetação
(cerrado); e ao Semiárido o critério de classificação afeito tanto ao
clima quanto à presença da caatinga (Domingues, et al,1968, pp.19-31) (ver mapa nº 2).
Mapa nº 2. Subsídios à regionalização: domínios ecológicos.
Fonte: IBGE, Subsídios à regionalização, 1968.
58A
empreitada do Instituto Brasileiro de Geografia em convênio com o IPEA
voltava – quase ocioso repetir – a tecer aspectos sobre as
características da organização espacial do Brasil, com vistas ao
planejamento. Se havia no estudo o mérito de estar em sintonia com uma
proposta de inegável contribuição à geografia – a da geografia urbana no
âmbito da Geografia Ativa –, poder-se-ia pensar que a própria
dificuldade em adaptar as propostas acima referidas teria acirrado um
duplo aspecto na relação entre pensamento geográfico e planejamento
estatal no Brasil, a partir da década de 1970. De um lado, o acatamento
veloz (à parte vozes dissonantes, como as do ibgeanos mais
ligados a Lysia Bernardes, por exemplo) à geografia quantitativa e, de
outro, a pragmática concepção, segundo a qual organizar o território
significaria ter, de seus fenômenos, cada vez mais elementos mensuráveis
em termos estatísticos. Mudanças que se aguçariam na gestão Isaac
Kerstenetzky e seu “novo IBGE”. Aliás, conforme o próprio IBGE assumia
em 1968, não obstante a riqueza de dados incorporados ao adotar-se a
metodologia das microrregiões homogêneas, o que aumentaria o “tratamento
analítico” das informações, carecia, aos trabalhos geográficos, “a
aplicação de normas da moderna geografia quantitativa, para a qual se
[fazia] mister a renovação do instrumental técnico de cálculo da Instituição” (IBGE, 1970 [1968], p.V) (destaques nossos).
59Procurei apresentar nas páginas acima tão-somente um
exemplo de resultado prático de um trabalho desenvolvido pelo IBGE para
o planejamento. Os limites dessa práxis envolvendo a geografia ibgeana
e o referencial francês que a embasava então podem ser ilustrados na
sequência deste texto, também para tentar enfocar um material pouco ou
quase nada trabalhado, destacando-se o debate ocorrido por ocasião do
seminário A regionalização do espaço no Brasil, quando houve a
possibilidade de geógrafos e cientistas sociais brasileiros e franceses
debaterem seus pontos de vista sobre métodos de regionalização no
Brasil, em um exato momento no qual a “questão regional” conhecia uma
crise em relação à sua eficácia perante a constituição de políticas
territoriais e também sob um contexto político no qual, importante
notar, via-se uma possibilidade de transição democrática do regime (o
que não aconteceria, porém, como se sabe).
- 33 Os participantes estrangeiros não franceses foram: Manuel C. de Andrade (Universidade do Recife); L (...)
- 34 Os participantes franceses foram: Claude Batailon (CNRS); Jean Cabot (Faculdade de Letras de Poitie (...)
60As
discussões sobre os fatores de regionalização do espaço brasileiro e o
papel das cidades na regionalização do país constituem o cerne do citado
seminário, realizado quando da inauguração do Centro de Estudos de
Geografia Tropical, laboratório financiado pelo Centre National de la Recherche Scientifique
(CNRS) – Centro Nacional de Pesquisa Científica –, localizado na
Faculdade de Letras e Ciências Humanas de Bordeaux. Afora alguns
participantes espanhóis e portugueses, o Seminário de Bordeaux reuniu
basicamente geógrafos e cientistas sociais brasileiros33 e franceses.34
61Conforme
a nomenclatura do próprio laboratório de Bordeaux, o seminário foi
perpassado pelo conceito de Geografia Tropical, modelo de interpretação
devido a Pierre Gourou, relacionado tanto a uma definição do objeto da
geografia enquanto recorte “civilizacional” (ligado a uma relação
homem/meio, daí vastos cortes monográficos redigidos pelos adeptos dessa
corrente), quanto a interesses terceiro-mundistas, repletos de leituras
sobre o subdesenvolvimento entendido como “etapa do crescimento
econômico” (Bruneau & Courade, 1984). Nesse sentido, era inequívoco o
interesse da Universidade de Bordeaux pelo Brasil e pela América
Latina, traduzido na acepção segundo a qual,
- 35 A despeito do Seminário de Bordeaux ter sido realizado em 1968, os anais do evento foram publicados (...)
O
Brasil [ofereceria] um terreno privilegiado para o estudo dos problemas
de organização do espaço: imensidão do país, diversidade de condições
do meio físico, importância dos efeitos “regionalizadores” da história e
dos sucessivos ciclos econômicos, vigor atual do desenvolvimento
urbano, pondo em questão, no Brasil moderno, o esboço das regiões
criadas pelas cidades coloniais [através das] pesquisas [...]
impulsionadas pelos geógrafos e [pelos] organismos de planificação sobre
a região-programa (CNRS, 1971, p.7).35
- 36 Os modelos clássicos de localização, de tradição alemã, como os de Johann von Thünen, Alfred Weber, (...)
62Conceitos como o de região-programa,
nascido do planejamento e do recorte feito pelo Poder Público, visando a
“assegurar um desenvolvimento econômico harmonioso”, eram trabalhados
conjuntamente com os de região homogênea (delineada através de “dados do meio natural ou de uma herança histórica” ou definidos por “certa atividade econômica”) e região heterogênea
(regiões “móveis”, determinadas pela “unidade funcional do papel
organizador” que uma metrópole exerce sobre o meio urbano) (CNRS, 1971,
p.7). Muito caras à Economia Espacial,36
as três definições compuseram o arcabouço teórico sobre os quais se
discutiram os limites acima referidos, quais sejam, as problemáticas
metodológicas das definições e delimitações regionais (noutras palavras,
a questão da regionalização) para a organização do território. Principalmente, atribuía-se a importância da região como área de intervenção, via planejamento (a região-programa, bem entendido); postura que contribuiria para impor a geografia entre os meios científicos – fossem brasileiros ou franceses.
- 37 As comunicações apresentadas no seminário foram as deJuillard, Etienne : Villes et régionalisation; (...)
63Nesse tom, parte das comunicações apresentadas37
no evento voltou-se para um inventário dos efeitos da regionalização
ocorrida, no Brasil, no contexto das economias coloniais e
agroexportadoras. Os trabalhos (por exemplo) de Jean Demangeot (1971) (Milieu naturel et régionalisation de l’espace au Brésil e Guy Lasserre (1971) – em parceria com Milton Santos – (Les plantations tropicales et la régionalisation de l’espace au Brésil –
As culturas tropicais e a regionalização do espaço no Brasil) são
bastante descritivos e, dentro de uma concepção regional de domínio
técnico sobre o “espaço natural”, ligados, direta ou indiretamente, a
definições de região de acordo com as perspectivas de uma geografia de
forte influência da urbanização e simultaneamente com as reminiscências
da geografia vidalina.
64A
“região geográfica” definida “como a zona de irradiação e de estrutura
espacial de uma cidade, a metrópole regional” (Pierre George, apud
Juillard, 1971, p.20), sintetizaria esse espírito: a região, segundo
Jean Demangeot (1971, p.37), por exemplo, equivalia à área de extensão
de uma paisagem, definição tomada de Max. Sorre, Em contraposição, para
Etienne Juillard, a partir de leituras de Jean Labasse, as quais
receberam influências dos modelos locacionais de Lösch e Christaller, os
estudos de regionalização na França teriam superado a visão da região
como “área de extensão de uma paisagem”, definindo-a, por conseguinte,
enquanto “campo de ação de uma série de ‘fluxos’” ou zona de ação de
serviços (Juillard, 1971, pp.19-20). Para esse autor, apontando para a
discussão sobre tipologias regionais:
[...]
pode-se considerar [...] que as cidades [e sua] armadura urbana [...]
são o motor da regionalização. Porém – e isso é de relevância para os
geógrafos e sua ciência das ‘paisagens’ – há cidades não regionalizantes
ou incompletamente regionalizantes. Para ser favorável ao conjunto do
território, a ação das cidades pressupõe áreas rurais dotadas de certa
receptividade, dispostas a associar-se a um crescimento generalizado. O
Brasil, com sua espantosa diversidade de graus de desenvolvimento
através de seu imenso território, é um domínio no qual essas comparações
podem ser particularmente frutíferas (Juillard, 1971, p.23).
65Afora
a admoestação acima contida à região percebida como sinônimo de
“paisagem”, qual seria o contexto acerca das tipologias regionais, tal
como exporiam George, Kayser e Rochefort? Aqui está o cerne do presente artigo.
Pois o núcleo desse debate relacionava-se a uma crítica aos trabalhos
que o Conselho Nacional de Geografia havia empreendido ao longo da
década de 1960, cujos resultados foram expressos, conforme já visto, no Esboço preliminar de divisão do Brasil em espaços homogêneos e espaços polarizados (IBGE, 1967) e nos Subsídios à regionalização (IBGE, 1968).
- 38 A região homogênea corresponderia a um “espaço caracterizado pela repetição correlacionada de eleme (...)
66O
IBGE reconhecia a existência de regiões homogêneas e regiões
polarizadas como fenômenos presentes no território brasileiro em
intensidades diversas. Defendia-se o conceito de região homogênea38
para a Amazônia, o Nordeste, o Centro-Oeste, o Sudeste e o Extremo Sul,
sendo este o pilar sobre o qual se estruturariam a divisão regional do
Brasil e o estabelecimento das microrregiões homogêneas. Já o
estabelecimento de polos de desenvolvimento hierarquizaria as áreas de
influência de diversos centros em três níveis, de acordo com a
infraestrutura do terciário.
67As
observações de Bernard Kayser, enfatizando a necessidade de os
trabalhos geográficos ligados ao planejamento abandonarem o caráter
descritivo e se fixarem “na ação”, questionaram o “valor operacional”
das microrregiões traçadas pelo IBGE, sendo problemática a valorização
da hierarquia urbana pelo critério de equipamentos terciários, haja
vista a grande concentração – quando não exclusividade – desses serviços
tão-somente nas metrópoles nacionais brasileiras (Kayser, 1971,
pp.77-78). Em trabalho anterior, Kayser (1966) constatara a falta de
capacidade de polarização inerente à grande parte dos países
subdesenvolvidos. Questionava-se a própria validade da existência de
regiões nesse conjunto heterogêneo correspondente aos “países
subdesenvolvidos”: o espaço geográfico nesses países “não é, ou não é
completamente, regionalizado”, assinalava Kayser (1966, p.695). Tomando
por base sua tipologia (espaços indiferenciados, regiões de especulação,
regiões de intervenção, bacias urbanas e regiões organizadas), Kayser
advogaria a tese de um caráter superficial dos fluxos no Brasil, país
onde a “estrutura econômica dualista” – com regiões voltadas para fora
convivendo com outras de mera subsistência – somente daria margem a uma
fraca integração, resultando em um “espaço atomizado”, e mais,
provocando, na verdade, dadas essas relações espaciais frouxas, em um
pretenso processo de indução de polos, o enfraquecimento econômico
regional em favor da (re) concentração dos fluxos econômicos na
metrópole nacional (Kayser, 1971, pp.81-82); o que o autor considerava
como uma ambiguidade das zonas de influência no Brasil. Sobre os
critérios adotados pelo IBGE, o autor ressaltaria a disparidade de áreas
contidas em um mesmo nível hierárquico.
A
heterogeneidade evidente nas formas de organização do espaço no Brasil
torna difícil [...] a determinação de ‘regiões polarizadas’ sobre um
modelo comum: que se consulte, para se persuadir disso, a lista de
centros regionais estabelecida pelo conjunto do país, em que Caruaru
(PE), Sorocaba (SP), Juazeiro-Petrolina (BA-PE) e Santa Maria (RS) estão
postas no mesmo nível (Kayser, 1971, p.78).
68Com
mais detalhes, Kayser chamará atenção para o fato de Ribeirão Preto
(SP), com 116 mil habitantes na época e uma produção industrial de Cr$
2,3 bilhões, estar no mesmo nível hierárquico que Juazeiro (BA), com 21
mil habitantes e valor de produção industrial de apenas Cr$ 50 milhões; o
que refletiria a observação de Milton Santos (Crescimento nacional e nova rede urbana: o exemplo do Brasil, apud
Kayser, 1971, pp.78-79), quanto à fragmentação de equipamentos
terciários em um número significativo de centros regionais, igualmente
bastante heterogêneos. Importante notar que, apesar de chamar atenção,
realmente, para a “fragmentação de equipamentos terciários”, em seu
artigo, Milton Santos discorda de Kayser em dois pontos fundamentais: em
primeiro lugar, destaca – e essa análise difere daquela preponderante
nas lentes da geografia francesa – a expansão industrial como fator
fundamental para a “urbanização interior” do país. Assim, “a hierarquia
[urbana] torna-se um resultado dos diferentes graus de industrialização
[,] por oposição ou complementaridade [à interpretação] que dá
precedência ao terciário como fator de hierarquização” (Santos, 1967,
p.84). Além disso, Milton Santos justifica a “mesma rubrica” na
hierarquia urbana de cidades díspares (como as citadas Ribeirão Preto e
Juazeiro-Petrolina), no entendimento segundo o qual seria de relevo,
mais que números absolutos referentes à população e ao nível de
atividade econômica de um município, o seu papel exercido em dada
região. Justamente pelas diferenças de desenvolvimento no interior do
Brasil, pode-se dizer que cidades de diferentes níveis econômicos
exerceriam – regionalmente – influência de amplitude semelhante (Santos,
1967, pp.86-87).
69Porém,
a questão mais complexa a ser resolvida na regionalização do espaço no
Brasil seria quanto à definição dos limites de uma região. O ponto de
partida para a delimitação das microrregiões era a base jurídica,
conforme os três níveis existentes na federação brasileira, adotando-se,
no interior de cada estado, por contra, critérios os mais variados,
desde limites fluviais até rodovias ou entorno de grandes cidades.
Punha-se em destaque, portanto, a discussão sobre descentralização e
centralização do planejamento. Pois bem: tal amarração das microrregiões
à superfície jurídica de um país seria algo “mal adaptado à
planificação moderna”, conforme Kayser (1971, p.83). Em consonância a
essa opinião, Pierre George entendia não haver limites,
[...]
senão sob a forma de limites convencionais, que são limites da
necessidade: fronteiras de Estados e limites administrativos. Cada vez
mais se percebe o perigo que apresenta a consagração desses limites
[político-administrativos] para o desenvolvimento econômico. Limites de
necessidade no plano administrativo, eles tornam-se obstáculos ao
desenvolvimento se deles se fizer quadros de ação [regiões-programas].
Isto acontece cada vez com mais intensidade, já que a ação se exprime
sob a forma de forças – ou de relações de forças – que se projetam sobre
o espaço em linha de força e em fluxos cuja intensidade e potência
determinam a extensão (George, 1964, p.9).
70Justificando
a atuação do Estado na “escolha das localizações” das atividades
econômicas, fora da “égide do liberalismo integral”, Bernard Kayser e
Pierre George (1980) já haviam insistido em uma centralização do
planejamento, interpretando “o regionalismo estreito dos grupos de
pressão locais” como algo “ultrapassado” (KAYSER & GEORGE, 1980,
p.322). Seriam mais “fortes”, portanto, as linhas de força que os
limites dos estados e dos municípios, observação que afirmava, no
limite, a centralização do planejamento. Em contraposição, para Lysia
Bernardes, esses contornos político-administrativos seriam
justificáveis, tendo em vista a não prejudicar, numa regionalização em
favor do planejamento, os interesses dos estados da federação, “mesmo em
um plano de governo federal”. Veja-se a opinião da geógrafa do IBGE
(Bernardes, apud CNRS, 1971, p.85):
A
subdivisão [regional] dos estados [da federação], mesmo dos menores, se
justifica inclusive por uma necessidade de se criar unidades do
território, maiores que os municípios e menores que os estados, para uso
de estatísticas, tendo por base unidades homogêneas.
71No
bojo das restrições de ordem legislativa e constitucional, advindas com
o golpe militar, a “questão da federação” (nuclear, aliás, na história
brasileira) ganhava uma leitura, da parte dos seguidores das políticas
do aménagement du territoire, bastante singular. Os freios
postos pelo regime militar às políticas regionais não coordenadas pela
União, a qual ganhou competência, com o inciso 13 do artigo 8º da
Constituição de 1967, para estabelecer e executar planos regionais,
jamais foram tratados politicamente. Ou seja, na ênfase ao
estudo regional e ao trabalho de campo, despidos de quaisquer traços
políticos, as argumentações de Kayser e George legitimavam um
planejamento centralizado – contrariamente à postura a favor de um
planejamento em nível regional, preconizada por Lysia Bernardes – em
nome da suposição segundo a qual os fluxos e os eixos de polarização
seriam ideias-força; “verdadeiras polarizações”, “comprometidas”, porém,
pelos “problemas de países compostos por unidades federadas”, conforme
referendava Roberto Lobato Corrêa (1967, p.109), ao comentar sobre a
influência da geografia francesa sobre o IBGE.
- 39 Conforme diria o autor, a polarização só é possível em “certo contexto regional em que as densidade (...)
72Outro
tópico acerca do trabalho do IBGE referia-se ao método usado, o qual,
meramente recenseando as populações economicamente ativas e/ou o chamado
equipamento terciário, não provaria em nada a respeito da “influência
real da cidade sobre a região e, em particular, não [daria] nenhuma
indicação sobre fluxos” que eventualmente ligassem “o espaço regional ao
centro” (Rochefort, 1971, pp.127-128). Michel Rochefort considerava
como uma “necessidade” tentar projetar, sobre o espaço brasileiro, “o
esquema de ordenamento usado nos países desenvolvidos”, visando a
pesquisar a eventual existência de “regiões orgânicas”, ou seja, de
acordo com a formulação original do conceito, de Jean Labasse, de
“espaços compreendidos nos limites do poder de polarização de um grande
centro, cada qual organizado por toda uma rede de centros urbanos,
formando o entorno da influência do grande centro” (Rochefort, 1971,
p.127). Contudo, existiriam “regiões orgânicas” no Brasil? Constatada a
dissimetria entre os centros de 1º nível, tornava-se difícil rastreá-las
no Brasil, haja vista que o conceito deveria supor “a existência de
ligações [...] permanentes entre o espaço regional e o grande centro” de
comando; não sendo esse o caso, porém, “de uma grande parte do espaço
brasileiro teoricamente polarizado por uma dessas grandes cidades”
(Rochefort, 1971, p.129). O imenso interior da Amazônia, por exemplo,
não podia ser considerado como uma região realmente polarizada por
Belém. Para Rochefort (1971, pp.129-130), na maioria dos casos, as
grandes cidades brasileiras não manteriam relações diretas com seu
espaço de influência, mas sim, relações tênues, faltando, para uma
polarização efetiva, o desenvolvimento econômico, o aumento do poder de
compra e a efetiva constituição de mercados consumidores locais de
muitas das regiões do Brasil.39
Esses centros urbanos eram demarcados, aliás, a partir de critérios
meramente demográficos, o que resultava em um trabalho insuficiente.
Como enriquecimento de sua metodologia, Rochefort propôs (1971,
pp.133-134) uma tipologia regional heterogênea para o Brasil, na qual,
ao Sul e ao Sudeste, se contrapunham a Amazônia (“setor vazio” e sem
organização do espaço), e os “setores de economia tradicional”, tanto os
de alta ou média densidade demográfica (caso do Nordeste, com a
preponderância de Fortaleza, Recife e Salvador), quanto os de baixa
densidade, nos quais o papel das cidades seria fraco.
73Os
estudos sobre a história do território no Brasil salientariam, não
obstante o caráter predominantemente descritivo acima anotado, a
heterogeneidade regional do país. Guy Lasserre e Milton Santos,
estabelecendo a relação entre culturas e ocupação do território,
associavam as “etapas”, as diferentes temporalidades da economia
colonial, economia agroexportadora (basicamente, a cafeicultura) e
economia “moderna e industrial” (voltada para o mercado interno e a
substituição de importações), a três grandes tipos de região no Brasil:
aquelas em que a atividade agrícola seria incapaz de estruturar uma
região (caso típico da Amazônia), as “velhas regiões agrícolas
açucareiras” (na Zona da Mata nordestina) e as regiões agrícolas de
monocultura, cujo exemplo de São Paulo atestaria a complexidade das
atividades do terciário, da industrialização e – principalmente – da
capacidade de criação de uma rede urbana enquanto consequências de uma
economia agrária alicerçada por relações de produções “modernas”
(Lasserre & Santos, 1971).
74A
condição de São Paulo como região orgânica (Rochefort, 1971), núcleo de
rede urbana (Geiger, 1971) igualmente era confirmada por Pierre George.
Em sua classificação sobre os “grandes setores econômicos e sociais do
espaço brasileiro” (setor vazio – Amazônia; setor de economias
tradicionais e fraca densidade demográfica, setor de economia
tradicional com forte ou média densidade demográfica – Nordeste; Região
Sudeste e Sul do Brasil [George, 1971]), o autor considerava a
existência de fatores, ligados à economia do café, que adensaram o setor
terciário, impulsionando a região Sudeste rumo à industrialização,
tornando-a, pois, “polarizável”, capaz, enfim, de conduzir uma rede
urbana.
75Assim,
estavam demarcados, no final da década de 1960, seja no Seminário do
CNRS, seja na produção do IBGE, os entraves metodológicos que os estudos
sobre regionalização teriam de enfrentar caso sua finalidade fosse (e
era) a de suprir, fornecendo dados quantificáveis, os escopos do
planejamento estatal. À guisa de conclusão do Seminário do Centro de
Estudos de Geografia Tropical, Olivier Dollfus (1971, p.188) sintetizou
os debates ocorridos, reafirmando o conceito de regionalização enquanto “ato político
visando a melhorar o desenvolvimento econômico [e acompanhado]
necessariamente da criação de limites [e] de fronteiras [em seu]
interior”. O “Nordeste pobre, ainda marcado pela economia colonial, a
Amazônia quase vazia e os polos de desenvolvimento modernos que são o
Rio de Janeiro e São Paulo” evidenciavam a dualidade do espaço econômico
do Brasil, cujos problemas deveriam ser corrigidos mediante uma
política focada em uma regionalização em espaços de intervenção do
Estado para a aplicação de políticas públicas. Os atos políticos
subsequentes ao Seminário de Bordeaux corroboraram, no encontro entre a
geografia regional francesa e os desígnios de um Estado autoritário
(ainda que não plenamente “escancarado”), o enfraquecimento da questão
política em favor da “temática regional”. Entretanto, sobretudo após a
ascensão de Isaac Kerstenetsky na presidência do IBGE, o órgão encampou
as críticas como as feitas no Seminário sob a vigência de um projeto de
nação cada vez mais voltado para a tecnificação do território. Postas as
limitações dos métodos oriundos da geografia francesa, as “soluções”
encontradas se aproximariam rapidamente da quantificação e de uma
inconteste influência norte-americana na geografia ibgeana e
nas pretensões do planejamento: o levantamento cartográfico e a demanda
de dados estatísticos, que se tornariam as funções centrais do IBGE. A
virada para a década de 1970 demonstrou uma grande mudança na produção
do Instituto – e mesmo na produção geográfica brasileira –, marcada, a
parir daí, por formulações de autores como Bunge, B. Berry, P. Cole,
Harvey, dentre outros.
Com
a revolução quantitativa ocorrida na geografia, há cerca de 20 anos,
principalmente nos [EUA], Inglaterra e Suécia, o Departamento de
Geografia [da FIBGE] não poderia ficar à margem do acontecimento e,
aproveitando a vinda do Dr. Brian Berry ao Brasil, em 1967, procurou
manter os primeiros contatos com novas técnicas e métodos matemáticos
que vinham possibilitando resultados mais positivos e precisos às
pesquisas geográficas.
Marília Velloso Galvão e Speridão Faissol, A revolução quantitativa na geografia e seus reflexos no Brasil, 1970.
76A
extrapolação das propostas de polarização e das metodologias tais como a
de Rochefort para um somatório das teses de Perroux, Friedmann e Berry,
indica o quanto, a partir do início da década de 1970, o conceito de
polos de desenvolvimento tornou-se o “instrumento ideal e necessário a
gerar uma reversão de expectativas e desencadear um processo de
aceleração do desenvolvimento econômico” (Faissol, 1972, p.52) num país
subdesenvolvido, demonstrando a ampla aceitação, por parte de
administradores e planejadores, de um instrumental analítico o qual,
sobre procedimentos explícita e francamente quantitativos, afirmaria uma
postura neutra do planejamento.
- 40 Segundo Marília Velloso Galvão (apud IBGE, 1972, p.7), o estudo em questão seria uma revisão e reel (...)
77Na intenção de
aperfeiçoar as propostas de hierarquização do território brasileiro,
trabalhadas desde meados da década de 1960, em face de um rápido
processo de urbanização e crescimento populacional, o estudo do IBGE
sobre a Divisão do Brasil em Regiões Funcionais Urbanas (IBGE, 1972)40
valeu-se da teoria dos modelos, através dos quais, justamente
questionando as propostas anteriores, procurava a “funcionalidade” na
estruturação do espaço, no sentido de entendê-la como resultado de
“múltiplas relações” dando forma a um espaço “internamente diferenciado”
(Gomes, 2001, p.64). Incentivou-se o uso de técnicas capazes de quantificar
(absoluta ou relativamente) os fluxos havidos entre os diferentes
centros urbanos brasileiros. Nesse estudo, valorizaram-se, como em
nenhum outro anterior, a tendência das “cidades” à integração das
atividades sociais e econômicas em um “sistema de centros urbanos”
(enfatizando um aspecto não necessariamente inédito nos estudos
regionais do IBGE), segundo o qual,
[...]
a hierarquia urbana fornece elementos para a compreensão da estrutura
territorial do país, dos estados ou das macrorregiões e os subsídios
indispensáveis para a indicação de vantagens e desvantagens locacionais
das diferentes regiões ou cidades para as diversas atividades econômicas
e sociais que objetivam atingir a mais adequada distribuição
territorial [dessas mesmas atividades] (IBGE, 1972, p.9).
78Definido
um sistema hierarquizado de divisões territoriais, o trabalho em
questão assumia seu compromisso com o planejamento, haja vista que a
referida norma serviria de modelo “tanto para uma política regionalizada
do desenvolvimento, como para orientar a racionalização no suprimento
dos serviços de infraestrutura urbana através da distribuição espacial
mais adequada” (IBGE, 1972, p.9). Também,
[no]
campo administrativo [o trabalho do IBGE] pode servir de modelo para
aperfeiçoar a máquina administrativa, eliminando a excessiva
centralização executiva e introduzindo critérios racionais de
localização dos investimentos e das atividades setoriais dos governos
estaduais e federal. Poderá contribuir, assim, para que a atividade da
administração pública aumente sua racionalidade através de uma
organização territorial, tanto na programação das atividades correntes
como na programação dos investimentos necessários à ampliação dessas
atividades (IBGE, 1972).
- 41 O trabalho de Brian Berry consistiu em estudo das redes de transporte, mensurando “movimentos de ma (...)
- 42 A geógrafa Elza Coelho de Souza Keller foi responsável pela elaboração da parte teórico-metodológic (...)
79Ainda
que se valesse das pesquisas diretas – inclusive do Questionário
CNG/EPEA –, a essa altura, o (então) Departamento de Geografia da FIBGE
procurava somar a um método outrora bastante utilizado e com limitações quantitativas,
técnicas empregadas por Brian Berry para análise de estruturas
territoriais a partir de adaptações da Teoria dos Lugares Centrais41
e, para processamento de dados, o uso de matrizes matemáticas, conforme
as sugeridas por J. Cole. Posto isso, e com fundamentos nos modelos de
Haggett e Cholley, Elza Keller (1972, p.10)42
recomendava a adoção de um método “de contagem de relacionamentos ou
vínculos mantidos entre os centros urbanos” nos seguintes setores de
atividades: “fluxos agrícolas, distribuição de bens e serviços à
economia e à população”.
80Por
influência de metodologias analíticas contidas em programas de
informática, supunha-se, como base metodológica mais adequada, o uso da
análise fatorial como técnica que, em se recordando as críticas aos
limites metodológicos do Instituto em sua fase pré-quantitativa,
procurava agregar fatores gerados pela combinação de elementos de status
socioeconômico (crescimento econômico relativo, funções agrícolas e
pecuárias, funções industriais, etc.), obtendo-se scores que seriam
elementos de input para o programa de Cluster Analysis (Análise de Grupamento).
81Estando
anotados, assim, em cada matriz de município, os centros com os quais
este manteria contato, seriam atribuídos pontos, de acordo com a
intensidade dos vínculos mantidos – por setor. Entretanto, recaía-se em
dois conhecidos problemas: como delimitar as áreas de influência de um
centro? E como classificar, hierarquicamente, as cidades?
82Importante observar que – como se insiste neste trabalho – computadores à parte,
os critérios de classificação das cidades e de categorias de centros
prendiam-se a elementos quantitativos os quais seriam pouco precisos na
definição das áreas de influência das cidades principais, tampouco, em
relação aos fluxos, os quais, mesmo mensurados os “relacionamentos”,
estes, por si, indicariam uma hierarquia quase em nada diferente
daquelas apontadas por trabalhos anteriores. O grande resultado apontado
pelo estudo do IBGE assimilava observações, como a do Seminário de
Bordeaux, a respeito da fragilidade da estrutura urbana brasileira,
demonstrando, sem ser algo propriamente inédito, a alta concentração dos
equipamentos e serviços em algumas grandes cidades, tendo como
consequência espacial, de um lado, a vastidão de muitas áreas
polarizadas, no limite, não mais do que por um ou outro “centro
metropolitano”, além de um número relativamente reduzido de centros de
2ª ordem: os centros regionais. Podia-se considerar o território
nacional como bipartido, pois: o Centro-Sul, possuindo “redes urbanas
perfeitamente hierarquizadas [...] com centros de serviços de diferentes
níveis” e densas redes de transportes e comunicações, e a Amazônia e o
Nordeste, amplas áreas cujos núcleos restringiam-se a Belém, Fortaleza,
Recife e Salvador, cidades as quais pouco provavelmente exerceriam uma
real polarização sobre – poder-se-ia dizer sem nenhum equívoco – pelo
menos metade do território brasileiro, área, reconhecia o documento do
IBGE, “inorganizada sob o ponto de vista funcional urbano, com
metrópoles regionais hipertrofiadas e altamente centralizadoras de
população, equipamentos de distribuição de bens e serviços” (IBGE, 1972,
pp.17-18).
- 43 Deve-se destacar a estratégia econômica global pela qual o II PND se pautava: os campos de “atuação (...)
83Nesse
sentido, o “planalto central”, onde se estaria “estruturando uma área
de influência urbana” capitaneada por Goiânia e abrigando a capital
federal (IBGE, 1972, p.18), mostrou-se como núcleo de grande importância
para as políticas regionais, as quais, nos anos seguintes,
principalmente sob a égide do II Plano Nacional de Desenvolvimento,43
assumiriam a “ocupação produtiva” do Centro-Oeste (BRASIL, 1974, p.18) –
região “polarizável”, para falar em centros de 1ª e 2ª ordens, por
Belém, Manaus, Goiânia e Belo Horizonte – como manobra geopolítica
fundamental para a imaginada ocupação econômica da Amazônia.
84Por
mais que se pudessem considerar esses avanços como discretos, aberto
estava o caminho para o incentivo ao emprego da informática, a qual,
proporcionando – sempre pela ótica do planejamento tecnocrático – um
aperfeiçoamento dos métodos de regionalização, tinha íntima ligação com a
elaboração dos dados do Censo de 1970 e, certamente, com os
preparativos para o que seria o recenseamento da década seguinte. Nesse
tom, o Censo de 1970 foi posto pelo IBGE como sua grande propaganda
institucional, sendo também (supostamente) o resultado das mudanças
organizacionais e administrativas do Instituto e de seu envolvimento com
o planejamento. Nesse contexto, o próprio escopo do IBGE seria:
- 44 O prefácio da edição final do Censo 1970 estava em consonância com a já citada Lei nº 5.878, de 197 (...)
[...]
assegurar informações e estudos de natureza estatística, geográfica,
cartográfica e demográfica necessários ao conhecimento da realidade
física, econômica e social do País, visando especialmente ao
planejamento econômico e social e à segurança nacional, exercendo-se a
atuação [do Instituto] mediante a produção direta de informações e a
coordenação, a orientação e o desenvolvimento das atividades técnicas
dos sistemas estatístico e cartográfico nacionais (IBGE, 1973, p.1).44
- 45 A Comissão Censitária Nacional remonta às origens do IBGE, tendo suas atribuições fixadas pelo Decr (...)
85O
Censo de 1970 marca o trabalho da Comissão Censitária Nacional –,
composta por Isaac Kerstenetzky (como presidente da Fundação IBGE);
Rudolf W. Franz Wuensche (diretor do Instituto Brasileiro de Estatística
da FIBGE); Miguel Alves de Lima (diretor do Instituto Brasileiro de
Geografia); Antonio Tânios Abibe (diretor da Escola Nacional de Ciências
Estatísticas); Sebastião de Oliveira Reis (diretor-geral do
Departamento de Censos da FIBGE); Maurício Rangel Reis (representante do
IPEA); Ten Cel Armando José Sperotto (representante do EMFA); Plínio
Reis de Catanhede Almeida, Ovídio de Andrade Júnior e Aníbal Villela
(representantes do Ministério do Planejamento); José Bastos Távora,
Ângelo Jorge de Souza e Oscar Egídio de Araújo (representantes da
Comissão Nacional de Planejamento e Normas Estatísticas) (IBGE, 1973).45
86O
uso das microrregiões homogêneas se somaria à base de divisão regional
(feita entre 1967 e 1969) visando à introdução da Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios (PNAD), cujo resultado foi o conjunto de dez
regiões nas quais o Brasil foi dividido para efeitos de coleta de dados,
a saber: 1) Roraima, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá; 2) Maranhão
e Piauí; 3) Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas e
Fernando de Noronha; 4) Sergipe e Bahia; 5) Minas Gerais e Espírito
Santo; 6) Rio de Janeiro e Guanabara; 7) São Paulo; 8) Paraná; 9) Santa
Catarina e Rio Grande do Sul; 10) Mato Grosso, Goiás e Distrito Federal
(IBGE, 1973).
- 46 O sistema de processamento de dados para o Censo teria contado com financiamento da USAID (Sebastiã (...)
87Finalizando,
partilho da opinião de Roberto Schmidt de Almeida (2000, p.50), ao
lembrar que a liderança de Speridião Faissol no IBGE (como responsável
pelo Grupo de Áreas Metropolitanas – GAM) tomou o lugar antes preenchido
por Lysia Maria Cavalcanti Bernardes, “contribuindo para o gradual
obscurecimento da escola francesa [de geografia] no IBGE dos anos 70”; o
que se confirma através das mudanças pelas quais passam os estudos do
Instituto em pouco mais de cinco ou seis anos. No entanto, Isaac
Kerstenetzky salientava, principalmente após a Reforma de 1973 (Lei nº
5.878), o empenho do IBGE, em seu processo de “renovação”, em associar a
geografia tradicional à geografia quantitativa – programa ao que se
somavam: “aumento substancial da produção cartográfica”, ampliação das
investigações sobre renda e consumo (através da Pesquisa Domiciliar por
Amostragem) e aceleração da “produção de informações oriundas do Censo
decorrente, em boa parte, do progresso alcançado na informática”
(Kerstenetzky, 2006b[1974], p.108).46
88A
partir da Lei nº 5.878/1973 seria feita uma “ampla revisão do programa
estatístico”, o Plano Geral de Informações Estatísticas e Geográficas –
PGIEG, oficializado, em 1974, por meio do Decreto nº 74.084, de 20 de
maio daquele ano (IBGE, 2006, p.9). Assim, mais que sintéticas, as
palavras de Geisel e Reis Velloso (apud IBGE, 2006, p.87) representariam o cerne do coroamento da planificação em sua dimensão espacial, pois, o Plano,
[...]
de responsabilidade da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística [...] compreende o conjunto de informações estatísticas,
geográficas, cartográficas, geodésicas, demográficas, sócio-econômicas,
de recursos naturais e de condições do meio-ambiente [...] necessárias
ao conhecimento da realidade física [,] econômica e social do País em
seus aspectos considerados essenciais ao planejamento econômico e social e à segurança nacional (destaques nossos).
89Para
os objetivos governamentais, pois, caminhava, o IBGE, para o patamar
desejado: o de um órgão técnico e menos afeito à produção teórica – ou
acadêmica; uma visão positiva do Instituto que corresponderia, desde
então, a uma leitura vulgarizada sobre a instituição.
- 47 O qual teria proposto – e por mais de uma vez – a Reis Velloso a ideia de fusão do IBGE com o IPEA, (...)
90Em artigo recente, Alexandre Camargo (2006) entende ter havido a criação de um novo IBGE, a partir de Kerstenetzky,47
em função de uma crise de produção e “operacionalidade” do Instituto, e
não como, na realidade, devido a uma reengenharia visando a adequá-lo
às requisições do governo militar. Noutras palavras, negligencia-se
nesse artigo (Camargo, 2006) e na produção memorial do IBGE (2006) o
fato de que o Instituto seria um espaço de reflexão acadêmica, e não
mero fornecedor de subsídios ao planejamento; o que, se é verdade que
era a intenção do regime militar, nem por isso pode-se intuir necessária
e mecanicamente que a tecnificação do IBGE tenha sido, em tom positivo, a sua “salvação” e a sua “modernização”.
91Ora,
ao invés, criara-se uma camisa-de-força na obsessão técnica do
Instituto, cujo tipo de profissional deveria ser menos dotado de
autonomia no interior de uma instituição e mais afeito a um saber competente.
A fratura estava exposta no “novo” órgão. A produção geográfica se
restringiria, dia a dia, a trabalhos descolados das funções oficiais do
IBGE – mais e mais estatísticas –, e, pela década de 1970, os palcos da
reflexão geográfica (bastante turbulenta) se deslocariam definitivamente
para o meio universitário (principalmente UFRJ e USP), o qual, por
ironia, o próprio IBGE um dia alicerçara.