1O
processo de modernização no Brasil é marcado por contradições
decorrentes da condição periférica de sua inserção no capitalismo
mundial. A transformação das forças produtivas sem alterar
substantivamente as relações de produção fez com que formas
pré-capitalistas se combinassem com setores econômicos extremamente
dinâmicos em um arranjo contraditório mais complementar (Fernandes,
2005).
2Nesta
tônica de modernização inclui-se também a formação territorial, inclusa
na modernização social como um todo. A apropriação de fundos
territoriais é a marca indelével das sociedades coloniais (Moraes, 2000)
e, no Brasil, este processo foi central para a manutenção das elites
políticas e da perpetuação do modelo econômico vigente. O controle
político das fronteiras de expansão malogrou a possibilidade de
diferenciação social, já que impediu que homens e mulheres livres
pudessem se apropriar economicamente destes fundos, o que resultaria na
formação de uma nova classe social no Brasil, uma burguesia tipicamente
moderna. Ao contrário disso, as oligarquias tradicionais que se
travestiram de nova burguesia, assumiram a vanguarda da modernização sem
desmantelar as formas tradicionais da estrutura social (Velho, 1979).
- 1 “(…) no que se refere à articulação entre o político e o econômico, o capitalismo autoritário carac (...)
3No
bojo deste processo há ainda de se considerar a formação do Estado como
ponto fundamental. O “poder do atraso” (Martins, 1994) manifesta-se no
controle político sobre a ordem econômica – a isto Otávio Velho chamou
de capitalismo autoritário;1 daí a centralidade do Estado na tensão modernização/conservação.
4No
Brasil, Estado, território e capitalismo se conjugam em um processo
contraditório e cheio de nuanças, dignas de serem analisadas de perto.
Historicamente, um momento privilegiado disso se deu com a emergência do
regime civil-militar ao governo do Estado em 1964. A partir daí deu-se
uma profunda ressignificação territorial (Becker, 1991; 1998),
acompanhada de uma modernização social sem a transformação equivalente
das relações entre classes.
5Há
de se destacar aí o papel do Ministério do Interior (MINTER),
responsável em grande medida por promover um sentido coerente aos novos
sentidos e novos usos do território que se aviltavam. O marechal Oswaldo
Cordeiro de Farias foi a pessoa incumbida de coordenar tal processo.
Foi ele o primeiro a assumir em 1964 o Ministério Extraordinário para a
Coordenação dos Organismos Regionais (MECOR), protótipo do MINTER (que
viera a ser definitivamente institucionalizado em 1967).
6Esta
é a finalidade deste artigo, a saber, analisar o papel do indivíduo
Cordeiro de Farias na institucionalização do MINTER e, por consequência,
na dotação do novo sentido atribuído ao território a partir de então.
Com sua biografia e relações interpessoais, Cordeiro de Farias conseguiu
articular projetos e processos distintos para o território através da
formação de um órgão estatal.
7Formalmente
criado pelo Decreto-Lei nº 200 de fevereiro de 1967, a gênese do MINTER
remonta a 1964, nos primeiros momentos de implantação do regime
militar, quando em 21 de junho de 1964 foi criado o cargo de Ministro
extraordinário através da Lei nº 4344. Não se sabe ao certo o que
motivou o surgimento deste ministério totalmente novo, aventa-se
inclusive que poderia estar ligada a uma “cortesia pessoal” do
presidente nomeado, Castello Branco, para seu antigo companheiro da
Força Expedicionária Brasileira (FEB), Cordeiro de Farias. Esta hipótese
é levantada pelo próprio Cordeiro de Farias no registro de suas
memórias:
- 2 Na publicação não há maiores esclarecimentos sobre a identidade formal da pessoa chamada por Cordei (...)
Isso foi em junho, dois meses
após a posse de Castello [Branco, Presidente da República]. Eu me
pergunto: terá sido idéia de um Geisel, de um Golbery ou de em Ademar de
Queirós? Auxiliares diretos do presidente, não se conformavam com minha
situação. Terão eles tido a iniciativa de propor a criação do novo
ministério, levando minha indicação ao Castello? Ou terá sido idéia do
próprio Castello? Não sei, não tenho como sabê-lo. Geisel, Golbery e
Tico-Tico,2 muito
ligados ao Castello, jamais me diriam, caso a iniciativa tivesse
partido deles. Não iriam expor o presidente. De qualquer forma, eu
percebia em Castello uma sensação de desconforto diante de mim;
provavelmente sentia-se em falta comigo, com dores de consciência.
(Farias, 2001: 498)
8Fato é que o ministério foi criado, e a ele se confiou as seguintes atribuições:
Art. 1º É criado um cargo de
Ministro Extraordinário, ao qual caberá coordenar as atividades dos
seguintes órgãos e serviços, que lhe ficam subordinados:
a) Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia;
b) Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Fronteira Sudoeste do País;
c) Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste;
d) Comissão do Vale do São Francisco;
e) Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística;
f) Fundação Brasil Central;
g) Administração dos Territórios Federais;
h) Serviço Nacional de Municípios;
i) Comissão de Desenvolvimento do Centro Oeste;
j) Comissão Especial de Faixa de Fronteiras;
l) Parque Nacional do Xingu.
9No
mês subsequente ele é renomeado, passa a ser o Ministério Extraordinário
para a Coordenação dos Organismos Regionais (MECOR) através da Lei nº
54026 de 17 de julho de 1964, com as mesmas atribuições. Basicamente, o
ministério extraordinário assumia para si onze órgãos agrupados em torno
da alcunha “organismos regionais”. Estes organismos refletem contextos,
propósitos e modo de funcionamento diferentes.
10Estão
aí dispostos o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
[Decreto-Lei nº 218/1938] e a Fundação Brasil Central (FBC) [Decreto‑lei
nº 5.878/1943], criados em pleno Estado Novo; aquele com o desafio de
fornecer base segura de dados sobre o país e este um projeto de natureza
pouco clara, inserido no espírito da “Marcha para Oeste”, uma primeira
tentativa de institucionalizar um aparato estatal de ocupação e
apropriação territorial (Maia, 2010; Velho, op.cit.). Deste
mesmo contexto se tem a Comissão Especial da Faixa de Fronteiras
(Decreto nº 4.265/1939), política varguista que chamava para o governo
central o poder de conceder terras em zona fronteiriça, retirando dos
governos estaduais essa prerrogativa em nome da segurança nacional.
- 3 Território Federal foi uma modalidade administrativa utilizada no Brasil pra conferir regime especi (...)
- 4 “Figura inexistente na legislação da época, que fundiria a imobilização de uma imensa quantidade de (...)
11Perfilam
junto a eles a Comissão do Vale do São Francisco (Lei nº 541/1948) e a
Comissão de Assuntos Territoriais (CAT) [Decreto nº 44.491/1958] que
expressam políticas territoriais muito antigas no Brasil, como o combate
às secas (Ribeiro, 2003) e a administração dos Territórios Federais.3
Está também a Comissão de Desenvolvimento do Centro-Oeste (Decreto nº
50741/1961), órgão pouco ambicioso decretado pelo presidente Jânio
Quadros; o Serviço Nacional de Municípios (SENAM) [Decreto 50.334/1961],
órgão mediador entre os governos da união e dos municípios.
Acrescente-se aí o Parque Nacional do Xingu, criado em 1961 (Decreto nº
50.455/1961) como parte da política indigenista que reproduzia as linhas
de trabalho do antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) de tutela e
aculturação.4
12Mas
as entidades de maior destaque eram as Superintendências, inicialmente
foram as Superintendências de planos de valorização econômica, da
Amazônia (SPVEA) [Lei nº 1806/53] e da Fronteira Sudoeste do País
(SPVEFSP) [Lei nº 2.976/1956]; esforços deliberados de planejamento e
intervenção econômica, mas frágeis devido à falta de instrumentos
concretos de ação e metas objetivas e claras. Esta fragilidade fora
revertida com a criação em 1959 da Superintendência de Desenvolvimento
do Nordeste (SUDENE) [Lei nº 3692/1959]. Para além de “planos de
valorização econômica”, a SUDENE apresenta um projeto claro de
desenvolvimento e os mecanismos adequados para cumpri-lo.
- 5 Exceção feita ao CAT, atrelado ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores.
13Este
foi o conjunto considerado como “organismos regionais”, anteriormente
dispersos, a maioria deles diretamente subordinados à presidência da
República.5 O
nexo territorial explica o que ficou dentro, mas o não que ficou de
fora; poderiam constar outras entidades nessa mesma classificação.
14Através
do Decreto 66.882/1970 o MINTER é finalmente desenhado em seu formato
institucional definitivo, que iria perdurar por alguns anos com poucas
alterações:
Art. 2º A estrutura básica do Ministério do Interior compreende os seguintes órgãos da administração direta:
I - Órgãos de assistência direta e imediata ao Ministro:
a) Gabinete
b) Consultoria Jurídica
c) Divisão de Segurança e Informações
II - Órgãos Centrais de planejamento, coordenação e contrôle [sic] financeiro:
a) Secretária Geral
b) Inspetoria Geral de Finanças
III - Órgão Central de direção superior:
a) Departamento de Administração
§ 1º São vinculadas ao Ministério do Interior as seguintes entidades da administração indireta:
I - Entidades de coordenação e planejamento regional:
a) Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia - SUDAM;
b) Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste - SUDENE;
c) Superintendência do Desenvolvimento da Região Centro-Oeste - SUDECO;
d) Superintendência do Desenvolvimento da Região Sul - SUDESUL;
II - Entidades de desenvolvimento sub-regional:
a) Superintendência da Zona Franca de Manaus - SUFRAMA;
b) Superintendência do Vale do São Francisco - SUVALE;
c) Departamento Nacional de Obras Contra as Sêcas - DNOCS;
III - Entidades relacionadas com o desenvolvimento urbano e local integrado e a melhoria das condições do meio ambiente:
a) Banco Nacional de Habitação – BNH
b) Serviço Federal de Habitação e Urbanismo - SERFHAU;
c) Departamento Nacional de Obras de Saneamento - DNOS.
IV - Entidades regionais e sub-regionais de financiamento:
a) Banco da Amazônia S.A. - BASA;
b) Banco do Nordeste S.A. - BNB;
c) Banco de Roraima S.A.
V - Entidade de integração sócio-econômica ao processo de desenvolvimento:
a) Fundação Nacional do Índio - FUNAI.
§
2º Os Territórios Federais, unidades descentralizadas da Administração
Federal, a nível sub-regional, com autonomia administrativa e
financeira, equiparados, para os efeitos legais, às entidades da
administração indireta, são vinculados ao Ministério do Interior para os
fins de supervisão ministerial de que tratam o Decreto-lei nº 200, de
25 de fevereiro de 1967, e as demais leis e regulamentos pertinentes ao
assunto (Brasil, 1970).
15As
diferenças entre os textos de 1964 e de 1970 são sensíveis. As
superintendências dos planos de valorização e a Comissão do Vale do São
Francisco são extintas e dão lugar às superintendências de
desenvolvimento regional e sub-regional, todas conforme o modelo da
SUDENE. É criada a SUVALE, a SPVEA se torna SUDAM, a SPVEFSP divide-se
entre a SUDESUL e a SUDECO, que abarca ainda a Comissão de
Desenvolvimento do Centro-Oeste e a Fundação Brasil Central, que deixam
de existir. Mesmo destino tem o CAT, os governadores dos Territórios
Federais ficam subordinados diretamente ao ministro do Interior. A
SERFHAU, criada pela Lei nº 4380/64, transfere-se para o MINTER – assim
como o BNH, criado pela mesma Lei – e assume as funções da extinta
SENAM, convertida em um Departamento dentro da Superintendência. O
Parque Nacional do Xingu passa a ser dirigido pela nova entidade
responsável pela política indigenista, a FUNAI, em substituição ao
antigo SPI, que não estava no formato original do MECOR. A Comissão
Especial da Faixa de Fronteiras deixa o MINTER e passa a ser coordenada
pela Secretaria-Geral do Conselho de Segurança Nacional (CSN).
16Trata-se
de mudanças substanciais, muito mais do que mera nomenclatura. O texto
de 1970 apresenta um arranjo institucional muito mais coerente e
coordenado de entidades, que se uniformizam no que tange a modos de
operação e metas a atingir. O desenvolvimento se torna o caráter central
desse ministério, suprimi qualquer ambiguidade; fato visível pela
proliferação de superintendências de desenvolvimento justapostas aos
bancos regionais, a maioria deles existentes previamente. Ao caráter
central soma-se a política voltada para os municípios e a política
indegenista. A política migratória, prevista no Decreto-Lei de 1967 só
será estabelecida efetivamente no MINTER após 1970.
17O
caráter e o sentido do MINTER ao longo de toda sua trajetória são
definidos em seus aspectos estruturais neste intervalo entre 1964 e
1970, doravante chamado de fase de institucionalização. Cordeiro de
Farias esteve à frente deste processo entre 1964 e 1966, quando deixa o
cargo por divergências políticas em relação ao processo sucessório que
elegeu Costa e Silva.
18Para
que se torne compreensível o porquê deste movimento, é preciso entender
o complexo processo que estava em curso no Brasil. Desde o pós-guerra o
país vivia intensas transformações em sua base produtiva. A chegada do
capital transnacional modificou a correlação de forças e coagiu uma
marcha modernizadora à qual as oligarquias agrárias tradicionais e a
incipiente burguesia nacional se consorciaram (Cardoso, 1972; Dreifus,
1981). A nova geopolítica internacional internalizava-se e transformava o
Estado e a economia nacionais. Mais uma vez, o território esteve no
cerne do processo de transformação; mais uma vez seguindo os moldes do
capitalismo autoritário.
- 6 A melhor análise sobre isso está em Dreifuss (op.cit.).
19Esta internalização do capital internacional se fez através de um processo do qual fez parte instituições e sujeitos múltiplos.6
Do ponto de vista da produção do território e seu papel na reprodução
do capital, Estado e burguesias (nacional e internacional) dispunham de
instrumentos dispersos, uns mais outros menos eficazes enquanto
dinamizadores das relações capitalistas de produção tal quais estas se
desenhavam na nova geopolítica mundial. Ao Estado coube a tarefa de
coordenar esta produção do território, facilitando a acumulação do
capital. Assim se institucionaliza o MECOR/MINTER, e à Cordeiro de
Farias coube a tarefa de impulsionar o projeto, tornando-se o primeiro
ministro desta pasta.
20A
apreciação do papel particular de Cordeiro de Farias na coordenação de
um programa coeso e coerente para a produção territorial e a acumulação
do capital exige, de antemão, um recorte metodológico da noção de
“sujeito” enquanto categoria de análise. Pierre Bourdieu (1996: 186)
levanta questionamentos sobre a identidade imediata e precisa assentada
no signo nominal:
Por essa forma inteiramente singular de nominação
que é o nome próprio, institui-se uma identidade social constante e
durável, que garante a identidade do indivíduo biológico em todos os
campos possíveis onde ele intervém como agente, isto é, em todas as suas histórias de vida possíveis.
21E continua:
A nominação e a classificação
introduzem divisões nítidas, absolutas, indiferentes às particularidades
circunstanciais e aos acidentes individuais, no fluxo das realidades
biológicas e sociais. Eis por que o nome próprio não pode descrever
propriedades nem veicular nenhuma informação sobre aquilo que nomeia:
como o que ela designa não é senão uma rapsódia heterogênea e
disparatada de propriedades biológicas e sociais em constante mutação,
todas as descrições seriam válidas somente nos limites de um estágio ou
de um espaço. (id: 187)
22A
advertência de Bourdieu é – não sem causar alguma estranheza – bastante
válida. Sua crítica está dirigida à “ilusão biográfica”, título do seu
artigo. Segundo este autor, as biografias e autobiografias (sobretudo
estas), valendo-se de um pressuposto inquestionável da unidade e
individualidade do sujeito, fundada em um aporte que associa uma
identidade a uma unidade biológica, incorrem em montar uma trajetória de
vida linear com um sentido, já anunciado e imanente à vida
daquele sujeito desde a mais tenra idade. Como se necessariamente,
inevitavelmente, o transcorrer da história de vida conduziria à condição
atual do sujeito. A trajetória de vida passa a ser, por esta lógica,
uma recomposição de fatos que são sequencialmente ordenados para
chegar-se a um fim, aquele já conhecido ou, pelo menos, já manifesto
desde o “início”. Trata-se de uma criação artificial de sentido, que não
parte da busca de uma coerência no processo em si (a vida), mas a
coerência é presumida, preestabelecida pela veracidade da unidade
biológica nominalmente identificada.
23Os indivíduos, ainda para Bourdieu, fazem sentido em suas ações efetivas dentro de relações objetivas:
Os acontecimentos biográficos se definem como colocações e deslocamentos
no espaço social, isto é, mais precisamente nos diferentes estados
sucessivos da estrutura da distribuição das diferentes espécies de
capital que estão em jogo no campo considerado. O sentido dos movimentos
que conduzem de uma posição a outra (de um posto profissional a outro,
de uma editora a outra, de uma diocese a outra etc.) evidentemente se
define na relação objetiva entre o sentido e o valor, no momento
considerado, dessas posições num espaço orientado. O que equivale a
dizer que não podemos compreender uma trajetória (isto é, o envelhecimento social
que, embora o acompanhe de forma inevitável, é independente do
envelhecimento biológico) sem que tenhamos previamente construído os
estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou e, logo, o
conjunto das relações objetivas que uniram o agente considerado – pelo
menos em certo número de estados pertinentes – ao conjunto dos outros
agentes envolvidos no mesmo campo e confrontados com o mesmo espaço dos
possíveis. (Id, Ibidem: 190)
24Grosso
modo, o que Bourdieu parece querer chamar a atenção é para uma
excessiva individualização do sujeito, isto é, o reconhecimento de sua
identidade e ação social determinada pela sua trajetória individual de
vida. No entanto, esta trajetória não é tão individual quanto possa
parecer, ela é, outrossim, um percurso que atravessa estruturas sociais
diante das quais o indivíduo vai tomar partido, vai executar sua ação em
relação ao campo. Isto não implica desconsiderar o corte longitudinal
que desenha a trajetória do sujeito, mas sim tirar o seu suposto papel
determinante, evitando assim uma abordagem essencialista e teleológica
da trajetória em questão.
25O
posicionamento de um sujeito não está na sucessão justaposta de fatos
que recompõe a sua vida, mas sim no deslocamento da ação desse sujeito
em diferentes campos sociais. O sentido desse sujeito está no
significado das experiências vividas situadas em relação aos espaços
sociais percorridos. Por esta perspectiva a apreciação dos sujeitos
sociais é elevada para o cômputo das instituições sociais que dão
sentido à sua ação social, e não se restringe à unidade biológica
nominada que cumpre um devir, uma história linear. As instituições e os
campos sociais não servem apenas como enquadramento do indivíduo, mas
lhe são partes constitutivas. Este é o sentido de “biografia” que está
empregado neste texto: uma trajetória de vida cujo sentido reside nos
deslocamentos entre situações, instituições e campos sociais
protagonizados pelo sujeito.
26A
ideia de deslocamento cumpre papel importante nesse raciocínio, faz com
que a passagem de uma situação a outra continue a ser relevante, ainda
que não enquanto sucessão de fatos. A experiência vivida em uma dada
circunstância, os conhecimentos assimilados, os capitais simbólico,
político, cultural, intelectual, etc., adquiridos são postergados e
associados ao sujeito em suas situações futuras, não de forma mecânica,
mas relacional.
27Cordeiro
de Farias foi de grande vulto na história do século XX no Brasil,
vivenciou ativamente fatos importantes para os rumos políticos, sociais e
econômicos do país. Sua visão de mundo, seu projeto de país e,
principalmente, seu capital dentro do campo de poder são forjados nessas
experiências. Há um fator de relevância máxima nesta condição de classe
desses sujeitos: a instituição que compunham. O Exército brasileiro e
suas transformações ao longo do século XX imprimiu uma marca indelével
na vida pessoal do futuro ministro do Interior, e foram definidores de
seu capital social.
28Cordeiro de Farias fez parte de uma geração de militares convencida do “papel cívico” da corporação (i.e.,
legitimação da interferência na política dos detentores das armas).
Vivenciaram um processo de incremento da relevância social das Forças
Armadas, através de sua organização e profissionalização impulsionada
pela Guerra do Paraguai (1864-1870) e acirrada com os episódios de
abolição da escravatura e proclamação da República (1888 e 1889,
respectivamente). Tinham como ícones militares como o Marechal Floriano
Peixoto, símbolo da valorização da corporação e do ideal republicano, em
um país dominado pelas oligarquias regionais, escravistas e
monarquistas. Esta geração formou-se com ímpeto de atuação política e
posicionamento intelectual, além das funções militares.
29Esta
geração encabeçará o movimento conspiratório que resulta no golpe de
1964. Seus oficiais transcendem as casernas para se fazerem ativos nos
embates políticos, ideológicos e intelectuais no tocante às questões
sobre os rumos da modernização brasileira., a bem da verdade, estes
oficiais veem a si mesmos como a própria encarnação da modernização.
Esta representação da corporação e do país são traços distintivos,
bandeiras características de algumas das instituições e socializações
que tecem este enredo, como a Escola Superior de Guerra (ESG), o Clube
Militar e a Força Expedicionária Brasileira (FEB). Ou seja, as ideias e
ideais gestadas nas Casernas penetram nos campos intelectuais e
políticos, fazem-se marcar no debate público.
30Apesar
de não ser um intelectual no sentido mais usual do termo, Cordeiro de
Farias, entre outros desta geração, através desta institucionalidade e
sociabilidade, inundam o debate das ideias com suas formulações e
projetos para o país; inclusive, enquanto statemakers,
instituíram meios de regulação da vida social, legitimando e sendo
legitimado por tradições do conhecimento; como diz Sergio Nunes Pereira
(2009: 3), os militares constituíram verdadeiros “domínios de saber a
partir de práticas sociais de controle do território e de populações”.
31As
diversas esferas concedem a esses sujeitos, além de uma modalidade
discursiva com ampla penetração, legitimidade para alcançar posições
mais distintas, como a de ministros. Interessante notar que concorrem
para essa legitimação não só as ações legais, mais inclusive as práticas
extraoficiais, como as conspirações e rebeliões, que fazem parte da
biografia de ambos, ao que Alfredo Wagner Almeida (1978) chama de
“legitimidade contrastante”.
32Também
não é possível negligenciar o papel fundamental que os espaços formais
de ensino e formação desses sujeitos têm na formação de suas práticas.
Não foram poucos estes espaços que os ministros percorreram: Escola
Militar, Escola Superior de Guerra e Escola de Comando e Estado-Maior do
Exército (ECEME) são alguns exemplos por onde passaram ambos os
ministros. Estes espaços institucionais são fundamentais enquanto
lugares do “saber legítimo”, definem esquemas de pensamento, produzem
uma homogeneidade lógica, uma comunhão de conceitos, um compartilhamento
de linguagens. A escola não apenas transmite saberes técnicos, mas cria
consenso cultural. É aí que se definem temas compartilhados, ainda que
existam divergências, a primazia da definição das “questões relevantes” e
os modos de trata-los é da escola (Bourdieu, 2007b):
O que os indivíduos devem à
escola é sobretudo um repertório de lugares-comuns, não apenas um
discurso e uma linguagens comuns, mas também terrenos de encontro e
acordo, problemas comuns e maneiras comuns de abordar tais problemas
comuns. (Bourdieu, 2007b: 207)
33A
cultura é ordenada, os saberes hierarquizados; definem-se classes,
elegem os clássicos. Exemplo disso são os manuais didáticos, sínteses
objetivas do que “realmente é importante”. A escola faz muito mais do
que transmitir conhecimentos, ela insere o indivíduo em esquemas de habitus
determinados. Seu próprio funcionamento – com suas regras, o
comportamento exigido, as rotinas, a hierarquia, etc. – cumpri também
esta função, não só os conteúdos. O habitus entendido como o
comportamento dos indivíduos dentro de determinados campos, segundo a
estrutura interna do mesmo e o seu ímpeto particular, sua condição e
situação de classe (Bourdieu, 2007a).
34O
ensino especializado gera identidades corporativas, nas quais cada
sistema de ensino se propõe a valorizar a si mesmo em detrimento do outro,
construindo uma hierarquia de valores que o favorece. Provido dessa
hierarquia o próprio indivíduo busca a valorização de si através da
valorização de seu grupo. As escolas também são eficientes em criar
laços de solidariedade, compromissos mútuos, através do convívio
cotidiano. O esprit de corps militar é exemplar disso, o
sentimento de pertencimento corporativo e respeito à hierarquia foi
determinante para a coesão entre os militares em alguns momentos agudos
do regime pós-64, o exemplo mais claro foi a sucessão presidencial de
Castello Branco, em 1966 e 67, que desagradou parte significativa da
corporação, que se resignou diante da prerrogativa de manter a unidade.
Dentre os insatisfeitos, um dos mais notórios foi o Marechal Cordeiro de
Farias, que abandona o posto de ministro do MECOR.
35O sistema de ensino formalizado tem ainda a prerrogativa de distinguir indivíduos, separa os letrados, que tem acesso a um sistema de linguagem sofisticado e elaborado, dos populares,
sujeitos a um sistema construído nas relações imediatas de trabalho e
necessidades concretas. A cultura letrada, diferentemente da popular,
tem na escola e outros estabelecimentos de ensino um instrumento de
objetivação de seu saber. Como será visto, essa identificação enquanto
elite letrada é um dos componentes básicos do discurso que defende a
“missão cívica” dos militares.
36Enfim,
as instituições escolares cumprem papel destacado na conformação dos
sujeitos, seja por meio dos laços de intimidade, pelo compartilhamento
de princípios, as hierarquias, a delimitação de um nós em relação aos outros,
p.ex., nós, os letrados, e os outros, incultos e incapacitados. A
escola consagra ainda modos de ver e interpretar a realidade, esta
função é um de seus mecanismos mais eficazes, pois pode contribuir em
grande medida à consagração de verdades, que são postergadas. É um
componente importante para o entendimento das modalidades discursivas
convertidas em governamentalização no MINTER. Alfredo Wagner de Almeida
capta bem esta tarefa em sua análise sobre os discursos sobre a
Amazônia, donde ele resgata o conceito foucaultiano de Archivo:
Archivo como
genealogia, consiste num registro variado de formulações, argumentos,
noções operacionais, impressões, metáforas e figuras de retórica, que se
acham ‘arquivados’, de maneira inconsciente, na representações de
diferentes explicadores, comentadores regionais e intérpretes, que os
reproduzem acriticamente, num automatismo de linguagem, de acordo com um
léxico singular que é acionado a cada vez que se fala de ou sobre a
Amazônia. (Almeida, 2008: 11)
37As
escolas efetivamente consagram tradições do conhecimento, compartilhadas
pelos grupos sociais em suas diferentes relações. Os saberes
compartilhados, o esprit de corps, os laços interpessoais de
compromisso e identidade social, a constituição de círculos de
afinidades (Berdoulay, 2008) na corporação militar e para fora dela,
elevam o capital social dos seus agentes na medida em que essa
corporação eleva sua capacidade dentro dos campos de poder em que está
concorrendo.
38Este
é o universo complexo que se materializa na noção de “sujeito”. O
universo biográfico do ministro está concebido no conjunto relacional
dos processos sociais significativos na constituição deles. Por esta
razão que é preciso abordar as instituições, fatos e acontecimentos mais
significativos na conformação desse sujeito em tela, o que, em grande
parte, se confunde com a institucionalização das Forças Armadas e a
criação de um esprit de corps militar que será determinante nas convicções políticas e ideológicas deles, e em suas inserções nos debates nacionais.
39O
material básico que se parte para interpretar a sua biografia, sempre a
luz do que interessa a esta pesquisa, foi extraído do Verbete Biográfico
no Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro (Beloch, 1984) do
CPDOC/FGV. Contou-se ainda com as suas próprias memórias feitas em
depoimento concedido a Aspásia Camargo do mesmo CPDOC/FGV e a Walder de
Góes, publicadas em livro (Farias, 2001). A ressalva de Almeida (1978:
24) é cabível:
Os ‘dados biográficos’ porém,
são erigidos com material extraído de esboços realizados pelos
intérpretes-biógrafos, que delineiam a trajetória do autor, e cuja
narrativa obedece a regras que perfazem um modelo de como construir
biografias. Um certo distinguir na escolha do que deve constar no esboço
biográfico, advém destas regras e sendo sua própria atualização, leva
os intérpretes do autor e sua obra a registrar certos nomes e desprezar
outros, a privilegiar certas instâncias e instituições ignorando outras.
40Para
amenizar essa dependência à visão consagrada pelos seus biógrafos ou as
próprias memórias, utilizou-se fontes primárias disponíveis no arquivo
pessoal de Cordeiro de Farias, depositados no CPDOC/FGV do Rio de
Janeiro.
FIGURA 1: Viagem de S.Exa. o Sr. Ministro O. Cordeiro de Farias ao Vale do S. Francisco. (setembro de 1964)
Título original, conforme consta no site do CPDOC/FGV
Fonte: CPDOC/FGV. Arquivo Pessoal Cordeiro de Farias
- 7 Os dados biográficos apontados são extraídos do verbete biográfico do Dicionário Histórico Biográfi (...)
41Oswaldo Cordeiro de Farias (1901-1981) nasceu no Estado do Rio grande do Sul no primeiro ano do século XX. 7
Sua mãe era oriunda de família abastada, e o pai de classe média,
oficial do Exército de inspiração florianista (um de seus irmãos
chamava-se Floriano Peixoto, em homenagem ao Marechal) e instrutor da
Escola da Praia Vermelha. Mudou-se com a família para o Rio de Janeiro
em 1906, onde conviveu, por intermédio de seu pai, com figuras como o
próprio Floriano Peixoto, Pinheiro Machado, Hermes da Fonseca e Nilo
Peçanha. Em carta de renúncia ao cargo do MECOR, ele assim se pronunciou
sobre a influência de seu pai em sua formação:
A geração de meu Pai foi a dos
que, com ardor, haviam concorrido para a implantação da República e
tomado parte ativa nas lutas que, em seguida, a pontilharam, logo após o
15 de Novembro. Nesse ambiente é que começou a germinar e mais tarde se
plasmou o sentido de minha vida. Já oficial, muito moço, fui
decorrência, por certo, em grande parte, dessa formação, atraído pelos
acontecimentos políticos que agitaram o País no princípio da década de
1920. Ao lado da vibração de companheiros jovens como eu, sentia aí a
influência daqueles homens, civis ou militares, veteranos e calejados de
outras pelêjas (sic) cívicas. Acima de tôdos (sic)
eles, já fisicamente alquebrado, quase sem poder locomover-se, mas
guiando-me e orgulhosos de minha atitude, a figura de meu Pai. (FARIAS,
s/d:7)
- 8 “Também nesse sentido posso me considerar um privilegiado. Sou da primeira turma que saiu da Escola (...)
42Frequentou
o Colégio Militar, em 1918 entrou para a Escola Militar do Realengo
onde, segundo ele, fez parte da primeira geração com formação
especificamente militar,8
graças à Missão Francesa e a Missão “indígena”. No Realengo teceu
relações interpessoais que o acompanharam em sua trajetória de vida de
maneira marcante.
43Em
1919 fez-se segundo-tenente e em 1921 já era primeiro-tenente. Nos
levantes tenentistas de 1922, estava na Escola de Aviação do Exército,
que não aderiu ao levante; fugiu para encontrar-se com os rebelados do
Forte de Copacabana, mas quando lá chegou o encontrou rendido. Foi preso
por seis meses segundo suas memórias (três meses segundo seu verbete
biográfico). De lá foi enviado à Santa Maria (RS), de onde acompanhou os
levantes em 1924 – apesar desta cidade não ter sido foco relevante de
sublevação –, partiu para São Luiz das Missões, onde se formou a coluna
gaúcha liderada pelo Capitão Luiz Carlos Prestes. Esta partiu para Foz
do Iguaçu e em 1925 encontrou-se com a Coluna Paulista de Miguel Costa,
formando a Coluna Miguel Costa-Prestes. Cordeiro de Farias foi uma das
lideranças do movimento. A importância desta passagem para a sua
trajetória parece ser primordial. Em seus relatos revela em variados
momentos uma profunda aliança pessoal e política formada entre os
membros da Coluna, dispersada em 1927. Na mesma carta de renúncia,
supracitada, ele evoca o nome de vários companheiros dos levantes
tenentistas e de Coluna (s/d.:.8).
44Cordeiro
de Farias foi um ativo conspirador na reviravolta que entrou para a
história como a “Revolução de 1930”. Este movimento, liderado por Góes
Monteiro após o rompimento de Luiz Carlos Prestes, contou com intensa
participação dos tenentes em geral. Deflagrada a tomada do governo, a
corporação militar viu-se dividida entre os jovens oficiais que
triunfaram no plano político e os seus hierarquicamente superiores que
não adeririam às conspirações. Mesmo entre os jovens oficiais havia
secções entre os que defendiam o engajamento dos tenentes em posições
destacadas no novo regime e aqueles que acreditavam ser obrigação dos
militares retornar às casernas, em nome da manutenção da ordem
hierárquica. O futuro ministro do MECOR estava neste último segmento,
assumindo a preocupação com a hierarquia e a integridade militar como
prioridades. Segundo seu próprio relato:
Durante aquela fase, os
‘tenentes’ assumiram uma posição de vanguarda e de autonomia. Uma vez
reintegrados, tal situação produziu uma subversão hierárquica
inevitável. As tensões se agravaram ainda mais porque, vitoriosa a
Revolução, os postos de comando foram entregues aos oficiais mais
graduados, os quais em sua maioria não tinham participado do movimento.
Assim, a divisão se processava em dois níveis: no primeiro, opondo-se os
‘tenentes’ radicais aos moderados. No outro, separando participantes e
não participantes do movimento revolucionário. Eu me batia muito pela
integridade do Exército, mas o fato é que entre 1930 e 1932 a hierarquia
se esfacelou. (Farias, 2001: 170)
45A
solução para estes conflitos foi a ascensão rápida de alguns oficiais na
carreira – o caso de Góes Monteiro foi o mais emblemático, como diz
Carvalho (op. cit.). Cordeiro de Farias se beneficiou deste
movimento. Em 1930 ganha a patente de capitão, em 1931 major, entre
1935-36 faz o curso de Estado Maior do Exército (EEM), em 1938 vira
coronel e em 1942 atinge o generalato como general-de-brigada, o general
brasileiro de menos idade na época. Ou seja, enquanto Vargas manteve-se
na presidência entre 1930 e 1945, ele passou de primeiro tenente a
general, percorrendo praticamente todas as patentes do Exército.
46Apesar
de sua manifestada posição de apartar-se da vida política, já em 1931
foi nomeado chefe da polícia no estado de São Paulo. Abandonou o cargo
em 1932, mesmo assim retornou ao estado para combater o levante paulista
no mesmo ano. Em 1938, já em plena ditadura do Estado Novo, foi nomeado
interventor no Rio Grande do Sul pelo próprio Getúlio Vargas, com
intenso combate ao nazismo que se difundia nas colônias alemãs daquele
estado. Em 1937 e 1938, defendeu o governo varguista dos levantes
comunista (1935) e integralista (1938). Ao que tudo indica, as suas
relações com Getúlio Vargas eram positivas até sua ida à Segunda Guerra
Mundial, que começou em 1943 quando partiu para o estágio preparatório
em Fort Leavenworth nos EUA. Em janeiro de 1944 foi nomeado comandante da Artilharia Divisionária da FEB e parte para o campo de batalha na Itália.
47Retornado da FEB, Cordeiro de Farias encontra um conturbado momento político no Brasil. Há suspeitas de que desde o front
o general já estava articulando-se para a derrubada de Getúlio Vargas,
fato que ele nega. De toda forma, seu retorno foi marcado pelo rápido
engajamento político que resultou na destituição de Vargas alegando-se
que o então presidente tinha pretensões de manter-se no governo com o
apoio popular. Foi o próprio Cordeiro de Farias, articulado com a cúpula
militar na época, que foi o encarregado de transmitir o ultimato dos
militares ao presidente. Em seguida, com Vargas deposto, foi nomeado por
Góes Monteiro para a chefia do Estado Maior das Forças Armadas (EMFA) –
um Estado Maior das três armas simultaneamente – criado naquele exato
momento por sugestão do próprio Cordeiro de Farias, segundo seu relato.
Em 1946 foi promovido a general-de-divisão.
48Em
1949 foi nomeado o primeiro comandante da ESG, uma escola de formação
crucial para um novo entendimento do escopo de atuação das Forças
Armadas no Brasil. A ESG é a grande responsável por difundir no Brasil,
nos meios civis e militares, o ideal de “guerra total”, sistematizada em
seus bancos e exposta em seus pormenores por Golbery do Couto e Silva
(1981), uma das figuras intelectuais mais realçadas da escola. Segundo o
seu comandante:
Na Escola Superior de Guerra
tratamos de uma nova concepção de segurança interna, que deriva da
antiga concepção de defesa nacional. A evolução da noção de ‘defesa’
para a noção de ‘segurança’ decorreu, na verdade, do arremate da Segunda
Guerra. Foi aí que se começou a perceber que um país em guerra estava
globalmente sujeito aos seus efeitos nefastos. E foi por isso que em
1949 criamos a ESG. (Farias, 2011: 350)
49No intuito da filosofia da “guerra total”, caberia à escola convencer as elites civis:
Segundo esse raciocínio, qual
seria o objetivo principal da ESG? Criar lideranças civis e militares
para enfrentar a eventualidade de um novo estilo de guerra não mais
circunscrita à frente de batalha e ao palco de lutas, mas transformada
em fato total, que afeta a sociedade por inteiro e toda a estrutura de
uma nação. (Ibid: 354)
- 9 De acordo com a classificação de Peixoto (1980).
50Com essa militância, Cordeiro de Farias contribuiu para cimentar o segmento político ideológico antinacionalista,9
aquele que encarna o ideal soldado-corporação (Carvalho, op.cit.), que
se opõem a Getúlio Vargas em nome do anti-comunismo. É nesse espírito
que ele concorre e perde a presidência do Clube Militar 1950, derrotado
pela chapa rival de Estillac Leal e Horta Barbosa, da corrente
nacionalista, mas esteve ao lado da chapa vencedora em 1952, auto
representada como Cruzada Democrática. No debate sobre o
petróleo, indicador mais preciso do posicionamento político de então,
ele se posiciona ao lado de seu colega tenentista Juarez Távora, pra
quem a participação do capital internacional era bem vinda.
- 10 Seus relatos das conspirações de 1964 levam a entender que Cordeiro de Farias teve posição estratég (...)
51Em
1952, quando as relações entre Vargas e a cúpula militar estavam pra lá
de estremecidas, ele é promovido a general-do-exército. Com o apoio do
Partido Social Democrático (PSD), concorre e ganha a eleição para
governador de Pernambuco em 1954, após o suicídio de Vargas, cargo que
exerceu até 1958, quando ingressa na Comissão Mista Brasil Estados
Unidos, empenhado em fortalecer as relações militares entre os dois
países. Não se envolveu nas tentativas de impedir Juscelino Kubitschek
de assumir a presidência, nem para fortalecê-la nem para combatê-la. Na
renúncia de Jânio Quadros consentiu com a saída parlamentarista para que
assumisse João Goulart. No entanto, em 1964, foi um dos mais ativos e
principais conspiradores do golpe de estado que depôs João Goulart,10
instalando o regime político que criou o MECOR, posteriormente MINTER.
Em 1965 ganha a patente máxima das Forças Armadas brasileiras, a de
Marechal, exclusiva para combatentes.
52É
muito facilmente identificável a posição de Cordeiro de Farias no bojo
dos conflitos ideológicos e políticos instalados no Brasil na ocasião do
golpe de 1964. Ironicamente (pelas relações estreitas que teve com
Getúlio outrora), ele estava muito mais próximo das “forças obscuras”
como Getúlio Vargas calhou nomear seus opositores em sua carta suicídio.
Objetivamente, isso significa dizer que o general-do-exército nesse
momento cuidava de estreitar as relações com os EUA, aprofundar no
Brasil o capitalismo mundializado, capitanear uma ríspida defesa contra
todas as aspirações populares receosamente vistas como “golpe comunista”
e manter as Forças Armadas em stand-by para assumir o papel de elite dirigente, caso as elites políticas civis não fossem capaz de implantar esse programa.
- 11 A chegada de Cordeiro de Farias ao cargo de ministro do MECOR já foi comentada anteriormente.
53Ao
que tudo indica, sua nomeação como ministro do MECOR deve-se em grande
medida a certo sentimento de gratidão diante de suas incursões como
conspirador, já que desde que o golpe foi deflagrado até então (junho de
1964), Cordeiro de Farias não havia assumido nenhum cargo relevante no
novo governo.11
Já que se trata da vitória dos tenentistas, como nos diz José Murilo de
Carvalho, era imprescindível um lugar ao sol para um de seus principais
líderes.
54E a
tarefa foi aceita de bom grado, pois, segundo ele “acho que nunca tive
missão mais gostosa do que aquela!”; “foi um forte reencontro com o
Brasil da Coluna” (Carvalho, 2006: 497). Para Cordeiro de Farias, há uma
relação direta de continuidade entre a Coluna Miguel Costa-Prestes e
toda sua atividade política posterior, sobretudo a desenvolvida frente
ao MECOR:
na coluna Miguel Costa-Prestes,
na sua marcha de quase 30 mil quilômetros, rasgando o País de Sul a
Norte, varando o Nordeste, cruzando o velho São Francisco, atingindo as
fronteiras de Minas e volvendo sôbre (sic) seus passos até emigrar na Bolívia, durante dois anos e meio, vivi o contacto (sic) com o Brasil sofrido, com sua gente – sem escolas, sem saúde, sem estradas, sem polícia, sem justiça, sem nada, – paupérrimo e sem esperanças. Este quadro de nosso Povo e de seus problemas nunca mais me abandonou. Foi êle (sic),
e o é até hoje, o incentivo para minhas lutas, a força que me aciona, o
objetivo que nunca deixei de perseguir, o alicerce de toda minha
conduta política. Sem o sentir naquela época, mais tarde compreendi,
porém, que desde então lutávamos para dar um mínimo de solidez às
forças componentes da Segurança Nacional e, daí, a estrutura que procurei imprimir à Escola Superior de Guerra, quando me foi dado organizá-la. (Farias, s/d: 7-8, grifo nosso)
- 12 Sobre esta clivagem “linha dura”, ver o trabalho de Chirio (2012).
55Em
1966 ele se afasta do cargo (o último que ele ocupou na esfera pública,
civil ou militar) motivado pelas discordâncias com o processo
sucessório do presidente Castello Branco, ao qual ele mesmo chegou a se
declarar candidato. Aqui ele sofre a adversidade do conflito com o
segmento que começa a tomar forma e identidade em torno da alcunha linha dura.12 Segundo suas própriaspalavras:
É com tristeza que me afasto do
trato direto dos problemas atinentes às regiões desconhecidas e menos
desenvolvidas do País. Sôbre (sic) mim exerceram elas, sempre, um verdadeiro fascínio. Não poderia ter no Govêrno (sic)
Castello Branco outra função que tanto me sensibilizasse. Sou,
consequentemente, muito grato ao Senhor Presidente da República pela
tarefa de que me incumbiu. (s/d:5)
56A
ascensão do movimento político que deflagrou o golpe de 1964 representou
o aprofundamento de um novo sentido imposto ao território na formação
social brasileira. Este novo sentido foi possível, em grande medida,
pela ação coordenadora executada pelo MINTER, ministério organizado em
suas bases fundamentais por Cordeiro de Farias.
57Por
que ele? A resposta a esta pergunta está, em primeiro plano, na
relevância política que a instituição das Forças Armadas tinha naquele
contexto. Dentre os agentes que protagonizaram o golpe consolidado em
1964, as Forças Armadas, particularmente o Exército, cumpriram papel de
destaque, ao lado de alguns setores do empresariado, tecnocratas,
representantes do capital transnacional e outros segmentos sociais
(Dreifuss, op.cit.). Os oficiais de alta patente, além de serem
influentes no interior da corporação, possuiam bom trânsito em
segmentos da sociedade que também desfrutam de capital de poder
considerável. Esta posição privilegiada não deriva somente do poder das
baionetas, mas sim de um poder acumulado ao longo da trajetória do
Exército desde o final do século XIX (Carvalho, 2006). Em segundo lugar,
a condição privilegiada de Cordeiro de Farias dentro das Forças
Armadas. À época general, ele foi figura de proeminência nos fatos
políticos mais marcantes do Brasil no século XX, desde o tenentismo até a
conspiração para o próprio golpe de 1964.
58Mas
por que a incumbência de um ministério como o que veio a ser o MINTER?
Por que não outro? A resposta a estas perguntas parece estar
fundamentalmente assentada em um “gosto particular” do marechal para as
questões relativas ao “interior pobre e atrasado”. Este “gosto
particular”, como pôde se ver, origina-se principalmente após a
experiência da Coluna Miguel Costa-Prestes. É interessante o fato de
Cordeiro de Farias entender o seu trabalho à frente do MECOR como um
“reencontro com o Brasil da Coluna”. Há, para ele, uma ligação de
sentido entre o ser guerrilheiro e o ser ministro, reforçando a força da
noção do “dever cívico” que os militares de sua geração advogavam para
si.