1No
início da década de 2000, ganham visibilidade na Argentina movimentos
sociais que reivindicam relações de trabalho e de poder opostas às
relações dominantes. Particularmente, no ano de 2002, aparecem no
dia-a-dia da imprensa passeatas, ocupações de espaços públicos e
privados e reivindicações diante do poder público de diversos grupos que
envolviam assembléias de bairro nos grandes centros, os movimentos de
trabalhadores desempregados ou piqueteros e as fábricas recuperadas –
pela ocupação de estabelecimentos por seus trabalhadores reivindicando
sua gestão cooperativa. Grande parte desses fenômenos, por sua vez, tem
como marco territorial fundamental os principais centros urbanos do
país, especialmente a área metropolitana de Buenos Aires (AMBA), e
reivindicam também uma ação e identidade territorial, no “bairro”.
2Este
trabalho busca discutir os processos de ação coletiva de dominados,
seus agentes e escalas de ação concretas na Argentina contemporânea e na
sua relação com os processos mais gerais de desigualdade territorial.
Com esse objetivo reflete a partir de dois casos de organizações de
desempregados na Periferia da Área Metropolitana de Buenos Aires (AMBA)
durante a década de 2000, prestando especial atenção à sua articulação
com as transformações na ação do Estado e aos processos de luta de
classes e de territorialização vigentes. Entende-se
territorialização como o processo a partir do qual relações de poder –
nas suas dimensões econômica, social e política – tentam ser construídas
no e pelo espaço, seguindo a síntese proposta por Haesbaert (HAESBAERT,
2004). Os movimentos piqueteros enfatizam na sua proposta de
ação pública e coletiva uma estratégia centrada na escala do bairro,
parecendo, assim, continuar a trajetória de ações pretéritas de
organização popular em Buenos Aires — tais como as ocupações de terras e
organização de serviços no começo da década de 1980 ou, mais longe
ainda, as sociedades de bairro surgidas com a imigração na primeira
metade do século XX. Para a categoria de classe
segue-se a proposta conceitual de Edward Thompson (THOMPSON, 2001)
quando enfatiza o caráter histórico, processual e relacional das
práticas e valores que permitem a identificação de um grupo social em
relação a outros a partir de um processo não pré-determinado que vai se
construindo ao longo do tempo, sendo central também para este autor um
outro conceito: o de lutas de classes.
3O
trabalho busca dialogar criticamente com análises que acabariam
reduzindo as mudanças no capitalismo contemporâneo e na ação coletiva a
processos de exclusão social e segregação territorial. Essas análises
enfatizam ainda o ‘fim das classes’ não somente no discurso dos atores,
mas também como categoria de análise pertinente (SVAMPA, 2008; MERKLEN,
2005). Para esta discussão, são consideradas outras análises que,
refletindo sobre grandes cidades na Argentina e no Brasil, defendem uma
leitura em termos de luta de classes e de relações de dominação (TELLES
& CABANES, 2006; MANZANO, 2009; VARELA, 2009). Interessa
aqui estudar as continuidades e transformações nas relações de classes e
nos processos territoriais associados e que, no debate
latino-americano, costumavam ser resumidas nos termos da relação
centro-periferia (ROMERO & ROMERO, 2000; TELLES & CABANES,
2006). O artigo começa com uma breve descrição das tendências
dominantes em termos desses processos nas últimas duas décadas em Buenos
Aires e segue identificando o entendimento mais divulgado na Argentina
sobre a ação coletiva em termos de ‘exclusão social’ e ‘segregação
territorial’. Após estas referências, apontamos os casos de estudo e os
principais resultados em termos das questões agora apresentadas.
4Pode-se
afirmar que a partir da década de 1990, uma relação centro-periferia
foi transformada, e acentuada, dentro da área metropolitana de Buenos
Aires (AMBA), em prejuízo de seus tradicionais subúrbios pobres. Em
outros termos, foi intensificado, com novidades, o processo histórico
de oposição, entre Capital e Conurbano – o conjunto de municípios que
conformam seus subúrbios (GRIMSON, 2009). Por
um lado, na Capital, os setores econômicos mais beneficiados e seus
agentes tenderam a se instalar na City (micro-centro da Capital
Federal), em tradicionais áreas nobres no litoral norte do AMBA e em
duas territorializações dominantes relativamente novas: a (re)
modernização do antigo Puerto Madero, agora para fins de gestão de
negócios e moradia de alta renda, e os enclaves de moradia para setores
de média-alta e alta renda em ‘bairros privados’ e countries nos subúrbios portenhos (SILVESTRI & GORELIK, 2000 ; CUENYA, FIDEL & HERZER, 2004). Por
outro lado, os mais prejudicados dentro da nova estrutura e dinâmica
social tendiam a continuar nos subúrbios de uma Periferia cada vez mais
periférica em termos de relações de poder e dominação. Nesse
sentido, destacavam-se outras tendências territoriais que também
merecem ser chamadas de dominantes, por serem cada vez mais
significativas em termos quantitativos mas, fundamentalmente – seguindo a
Haesbaert (2004) –, por estarem comandadas por ações e decisões a
partir dos agentes que exerciam o poder político e econômico. No
Conurbano, junto com os relativamente pequenos enclaves dos bairros
fechados, aumentaram de forma significativa as moradias precárias nas
vilas e em assentamentos com pouca ou nenhuma infra-estrutura (CRAVINO,
2008) – onde, aliás, se localizavam a maioria dos trabalhadores
temporários e de serviços domésticos que atendiam os próprios countries (SILVESTRI & GORELIK, 2000).
5Em
relação de contraposição com essas tendências dominantes, podem ser
observadas as ações coletivas a partir de dominados citadas na
Introdução, especialmente as organizações piqueteras atuantes
na periferia de Buenos Aires (SVAMPA & PEREYRA, 2003). Essas ações
mereceram, e continuam a provocar diversas pesquisas e reflexões no
âmbito das ciências sociais argentinas, em publicações crescentes em
número e tamanho já a partir de 2002. Seus conceitos e teorias guardam
também relação com visões sobre a ação coletiva, a integração social e a
territorialização divulgadas tanto nos países centrais do capitalismo
quanto na América Latina.
- i Ou, como prefere advertir Varela, no começo de 2000 muitos autores já tinham decretado sociológico (...)
- ii No caso de Brasil, veja-se, por exemplo, o programa nacional ‘territórios da cidadania’. Esta conce (...)
6Para
a maioria dos autores, as experiências de ação coletiva a partir da
década de 1990 são protagonizadas por ‘excluídos’ que resistem ao
processo de mudanças neoliberais (SVAMPA & PEREYRA, 2003; GIARRACCA & BIDASECA, 2001; GRIMSON, 2009). Ante
o fechamento crescente das fábricas, o aumento do desemprego e a perda
de legitimidade de sindicatos e partidos tradicionais, a ‘classe
trabalhadora’ estaria extinta tanto em termos analíticos quanto em
termos ontológicos e políticos i. Junto
com o termo de ‘excluídos’ aparecem outros como o de ‘setores
populares’ (AUYERO, 2002) ou, no máximo, o de ‘classes populares’
(MERKLEN, 2005), mas explicitando que isto não pode mais ser confundido
com uma ‘classe trabalhadora’. Em termos da articulação da ação coletiva
com os processos de territorializacão na AMBA predomina, do mesmo modo,
a ênfase em processos de ‘segregação territorial’. Referência muito
citada, o sociólogo Denis Merklen afirma que “...as classes populares de uma Argentina extinta...”
– em referência à decomposta sociedade salarial – passam a estar
excluídas dos vínculos sociais construídos em torno do trabalho
assalariado e ‘recuam’ ao bairro mais restrito para “...reconstruir laços sociais...”
de caráter mais primário (MERKLEN, 2005, p. 45). Existe também uma
compreensão do termo ‘territorial’ como aquilo limitado a uma escala
relativamente menor. Para o autor, relações de outro tipo ou grau de
sociabilidade são construídas no bairro quando as organizações de bairro
interagem com o Estado, dentro de um novo paradigma de intervenção
social com as políticas ‘focais’. O adjetivo territorial é assim
utilizado para caracterizar as mudanças nessa ação: “...a re-orientação das políticas públicas (...) a descentralização e o enfoque das políticas sociais contribuíram para territorializar o acesso à ajuda social...”
(MERKLEN, 2005, p. 143, grifos meus). Esta visão é dominante tanto nos
estudos sobre ação coletiva na Argentina (SVAMPA & PEREYRA, 2003; GIARRACCA & BIDASECA, 2001) como também nas diversas políticas que, no âmbito nacional e internacional, utilizam o adjetivo ‘territorial’ii.
Nessas análises o território aparece como algo dado e estático, além de
ser utilizado como sinônimo de espaço físico relativamente pequeno. Sem
pretender desconsiderar os importantes resultados de pesquisa e
questões levantadas na relação entre ação estatal, organizações de
bairro e mudanças estruturais oferecidas por estes autores, interessa
agora avançar na discussão sobre a ação coletiva e território a partir
dos dominados, com uma perspectiva diferente daquela da exclusão e da
segregação. Procura-se, também, combater o senso comum dos ‘bairros
excluídos’ e sem classe que essa leitura possibilita. Focando na
articulação entre processos de territorialização e luta de classes,
trata-se de observar as configurações e trajetórias dos casos de estudo
na década de 2000.
- iv Desocupados, no nome original em espanhol, deve ser entendido como Desempregados.
- v Ver Flores (2002) e boletins do MTD (2002, 2003, 2004).
7Começando pelo Movimiento de Trabajadores Desocupados iv La Juanita
(MTD), em uma primeira análise sobressai sua relação com as ações que
se agregam, de forma simplificada, sob o termo “movimiento piquetero”. Mais
especificamente, e seguindo os conceitos de Svampa e Pereyra, estaria
dentro da vertente piquetera “barrial” ou “de bairro” que tem como base
uma tradição e um trabalho territorial mais intenso, sendo isso mais
comum nas organizações localizadas na AMBA (SVAMPA & PEREYRA, 2003, p
11-52). Seus objetivos publicamente divulgados são a obtenção de
“trabalho genuíno” para seus membros, questionam o Estado pela “crise
do desemprego” v e
nas suas origens participaram do bloqueio de estradas, os “piquetes”,
para tornar visíveis suas demandas, iniciativas comuns às organizações
piqueteras, segundo esses dois autores.
- vi A primeira surge na última ditadura militar (1976-1983), com as passeatas feitas na Plaza de Mayo – (...)
- vii Para o fenômeno da ocupação de terras em La Matanza na década de 1980, ver Merklen (1991). Para a a (...)
8A partir das tradições políticas de seus membros e das relações com outras organizações – com destaque para Las Madres de Plaza de Mayo e o Instituto Movilizador de Fondos Cooperativos (IMFC)vi,
eles foram se diferenciando de outras agremiações piqueteras ao
sublinhar sua recusa em se tornarem beneficiários dos planos de
transferência de renda do Estado, mas sim em apoiar a geração de
trabalho mediante cooperativas e uma maior articulação com o entorno
social mais imediato. Em agosto de 2005 eram quinze os membros ativos da
organização. Entre os que exercem uma maior liderança, encontra-se um
antigo operário metalúrgico com militância em grupos de esquerda nas
décadas de 1970 e 1980 e experiência no trabalho “de base” em bairros
como La Matanza — incluindo a ocupação de terras vii.
Além da importância de “...antigos companheiros de política de
bairro...”, destaca-se a função de uma participante docente, com
experiência de trabalho em educação popular nessas mesmas décadas e que
se integrara ao MTD no final da década de 1990. Trata-se de pessoas que
superam os 40 anos de idade e que se articulam com outros membros que
têm em média 25 anos e que, na sua maioria, se aproximaram do MTD quando
este já estava formado, atraídos especialmente pela proposta de
educação popular promovida pelas Madres de Plaza de Mayo. A
colaboração com profissionais de psicologia social, com um forte
discurso de “emancipação” e também relacionados à proposta de educação
popular, também é reconhecida pelas lideranças do MTD como fundamental.
- viii Agradeço à pesquisadora Virgínia Manzano um melhor entendimento do heterogêneo universo matancero, (...)
9O
espaço onde a organização se localiza, La Juanita, tem indicadores
típicos do segundo “cordón” dos subúrbios da Cidade de Buenos Aires,
portanto inferiores aos desta e aos do primeiro “cordón” de seus
subúrbios. Mesmo que sua formação esteja dentro dos padrões formais de
ocupação, o bairro é vizinho a áreas urbanas que surgiram com a ocupação
de terras para moradia, principalmente na década de 1980. Segundo
reconhecem membros e vizinhos do MTD, trata-se de um área rica na ação
de “punteros” ou “cabos eleitorais” do partido peronista, que lidera,
desde antes da última ditadura, a política do município viii.
10Localizada no bairro La Quebrada, de Paso del Rey, Município de Moreno, a associação APROFA se formou em 1998. Sua
origem está relacionada a um grupo de jovens que trabalhavam em uma
horta comunitária dirigido por um padre católico. Este grupo chegou ao
bairro para colaborar com “a casinha do Padre Elvio” em 1997, quando a
horta tinha mais de 10 anos de trabalho na recuperação de jovens com
problemas de dependência química e alcoolismo. Inconformados com a
negativa do padre em ampliar as atividades da horta para atividades com
vizinhos do bairro, os membros desse grupo decidiram formar sua própria
organização e começaram a trabalhar com uma primeira horta para dez
famílias do bairro e com ferramentas obtidas através do Plano Hortas Familiares do estatal Instituto Nacional de Tecnologia Agrária
(INTA). Logo após, se constituíram formalmente para, segundo afirmam,
poder solicitar mais recursos diante órgãos públicos – principalmente da
prefeitura de Moreno.
11APROFA
é uma organização cujo núcleo está formado na sua maioria por jovens
entre 20 e 30 anos, muitos com segundo grau completo e alguns na
universidade. Uma parte está presente desde o início, e já se conheciam
por relações de vizinhança e também familiares. Outra, menor,
integrou-se a partir de atividades de extensão em universidades, como a
de Luján e Moreno, em áreas de assistência social e agricultura
comunitária. Também participam ativamente da organização três pessoas
com mais de 40 anos de idade, vizinhos do bairro, sendo dois
desempregados e um relacionado com uma escola comunitária de um bairro
vizinho, com princípios de cooperativismo, chamada Creciendo Juntos.
Finalmente, chefes de duas famílias do bairro somaram-se para
participar ativamente, sendo primeiramente simples destinatários das
ações de APROFA – freqüentavam seu refeitório – com poucos anos de
escolaridade formal (primeiro grau incompleto) e morando dentro da área
mais pobre do bairro. É este o perfil dos indivíduos que, de fato, a
APROFA tentaria não somente beneficiar, mas também integrar ativamente
na sua organização.
[...]descobrimos
que o novo lugar onde os trabalhadores se concentram, onde estamos
todos os dias, é o bairro. Isto foi sintetizado na frase a nova fábrica é o bairro[…]
- ix Devo e agradeço a descoberta desta entrevista e esta aproximação às questões aqui em discussão ao P (...)
(Entrevista com Victor De Gennaro, CECEÑA, 2001; grifos meus, tradução minha) ix
12Observando
os documentos e entrevistas nos quais as duas organizações explicitam
seu Projeto Político e, principalmente, a sua estrutura e dinâmica de
ação, destacam-se seus objetivos de transformar os valores e práticas
cotidianas dos “vizinhos” das organizações. Tanto em APROFA
quanto no MTD é central a atividade de ensino com crianças que moram no
entorno territorial mais imediato, defendendo um projeto de “educação
popular”. Isto é, a defesa de uma pedagogia “transformadora”, onde se
enfatizam relações de “solidariedade” e “autonomia”, sendo referência a
obra de autores como Paulo Freire e a ação pedagógica desenvolvida por
movimentos sociais de maior visibilidade internacional, principalmente o
Movimento dos Sem Terra (MST, do Brasil). No MTD, em comparação com
APROFA, essa orientação é mais evidente e fundamental para sua ação. Foi
a criação de uma creche e de uma escola de primeiro grau o que deu
força ao desenvolvimento da organização. Reconhecido como a atividade
mais importante da organização, o projeto pedagógico foi se estruturando
com o trabalho das suas principais lideranças e na sua interação com a
associação das Madres de Plaza de Mayo e com apoio de doações e de ONGs
internacionais.
13As
relações materiais em torno do trabalho mostram também o entorno
territorial mais imediato como um âmbito intencionalmente central tanto
em APROFA quanto no MTD (quadros 1, 2, 3 e 4). As pessoas que realizam
seu trabalho nos empreendimentos e os destinatários de sua produção
localizavam-se, principalmente, no que os membros das organizações
denominam “o bairro”. Em APROFA os empreendimentos tinham por objetivo
dar trabalho a seus vizinhos e sua produção estava orientada para
produtos considerados básicos – alimentos – para serem consumidos no
entorno territorial. O pouco que não era para auto-consumo, ou
re-distribuído mediante o refeitório, era comercializado com famílias do
bairro (quadro 1). No MTD, isto também era claro em empreendimentos
como o da padaria, quando procura vender alimentos a preços baixos aos
vizinhos, e quando dava seu apoio e espaço para a realização da feira
diária (quadros 2 e 3).
14Dessa
forma, as relações materiais estabelecidas pelas organizações oferecem
um primeiro indicador de em qual sentido a nova fábrica seria o bairro
em termos de territorialidades da ação coletiva e em torno do trabalho.
Partindo da fábrica, e segundo indica Sack, o tradicional
estabelecimento industrial (fordista) construía dentro de seu espaço e
em sua inserção produtiva uma territorialização hierarquizada com o
objetivo de garantir o controle do processo de trabalho capitalista
(SACK, 1986). Quando a fábrica fecha na periferia de Buenos Aires, os
desempregados que aderem às cooperativas de APROFA e do MTD constroem de
fato uma outra territorialidade relacionada com seu trabalho. O espaço
mais restrito da produção a partir de relações de trabalho cooperativo
não tem as formas de controle tradicionais do trabalho assalariado.
Ficam, ademais, intencionalmente expostos e ‘abertos ao público’: aos
vizinhos que vão comprar os produtos ou perguntar se há algum trabalho
que eles possam fazer, aos membros de organizações não governamentais e
fundações interessados em realizar doações ou em ver o andamento dos
projetos que financiam. Mais importante, e além da territorialidade
relacionada ao espaço restrito à produção em sentido mais imediato, o
trabalho nos empreendimentos serve assim para construir novas relações
com o entorno: opção de renda para alguns vizinhos, oferta de produtos
mais acessíveis a ‘preços populares’ ou espaço de interação cotidiano no
caso da feira comunitária, para muitos outros. São relações guiadas
pelos valores e estratégias de construção de um Projeto Político, que
têm o trabalho como um de seus fundamentos.
15Em
termos de relações materiais com o poder público, a proposta de
‘autonomia’ e a oposição aos ‘planos’ não impede que algumas tivessem
sido desenvolvidas, sobretudo através das prefeituras municipais.
Segundo enfatizam seus membros, entretanto, estavam pautadas pelo
princípio de serem ações diferentes daquelas geridas pelos tradicionais punteros.
Assim, a APROFA articulou-se com outras organizações que possuíam
refeitórios para exigir um plano de distribuição de alimentos da
prefeitura de Moreno e também obteve subsídios de um programa do governo
nacional para compra de insumos para hortas e de outro para compra de
ferramentas para associações e cooperativa (quadro 1). O MTD negociou
com a prefeitura de La Matanza o desenvolvimento de uma centro de saúde
comunitária na sede do movimento (quadro 8) e, com empresas privadas e a
câmara de vereadores, a realização de uma rede de gás a preços
populares para o “bairro”.
16Desse modo, pode-se observar como o bairro
da ação das organizações, longe de refletir a regionalização oficial, é
uma territorialização construída pelos sujeitos dessas ações e que
serve para identificar quem está fora e quem está dentro dela (BOURDIEU,
2004, p. 107-132). Como processo de territorialização, mostra como
relações de políticas são construídas no e a partir do espaço,
envolvendo múltiplas dimensões como as materiais, educativas e culturais
aqui mencionadas (HAESBAERT, 2004). Nos termos analíticos de Haesbaert,
aparece então uma tentativa de territorialização ligada ao projeto das
organizações e a sua procura de mudar as relações de poder existentes e
construir outras. A forma de identificação das duas organizações com o
território não se restringe somente ao destaque por elas dado a uma
estratégia ‘barrial’, mas também em sua auto-referência a um território
singular: La Juanita, no MTD, La Quebrada em APROFA. Essa referência, é
importante esclarecer, não se apresenta no sentido de pretender
representar o bairro, mas, como destacam membros e lideranças, é uma
forma escolhida de identificação e de se apresentar publicamente,
diferenciando-se de identidades que envolvem uma escala maior e da qual
desconfiam. Mesmo que fundamentais, as ações no âmbito espacial mais
restrito e cotidiano até aqui expostas não esgotam nem explicam
plenamente a ação de construção do bairro. Como processo de
territorialização, envolve relações com outros sujeitos e outros
territórios. Nesse sentido, os casos estudados trazem distinções e
constatações para refletir sobre a articulação entre variadas escalas
territoriais na formação e na ação das organizações, tal como
analisaremos a seguir.
17Em
termos de escalas da ação política (VAINER, 2002) os dois casos de
estudo mostram diferenças a respeito do processo de sua formação e às
relações sociais que vão construindo em oposição e em afinidade com
outros.
18Na
estratégia da APROFA, tem um peso maior a relação com organizações que
se identificam como pertencentes a um território comum, o que lhes
permite se referir a uma história compartilhada, além de reconhecer que
têm afinidades políticas na construção de um projeto de poder popular.
No discurso de seus membros e das organizações relacionadas, aparece
seguidamente a referência a “ser de Moreno”, município que os membros
mais jovens reconhecem como um lugar comum e fundamental, pois
freqüentam desde pequenos os mesmos lugares de educação e recriação. Os
de mais idade e os pais dos mais jovens reconhecem também uma
experiência comum de militância política no passado, o trabalho político
de “base”, associado a organizações da Igreja e que aderia à teologia
da libertação, bem como a grupos da esquerda do peronismo (PJ). Essa
identidade no discurso torna-se clara nas articulações entre as
organizações de Moreno. Os membros de APROFA entendem que é a partir de
sua ação no bairro e seu reconhecimento que lhes é permitida a
associação com organizações do município de Moreno que compartilham seu
projeto de poder popular. Desse modo participam da “Mesa de Moreno”
(quadro 7), na tentativa de “...agir no nível municipal e a partir dele se articular com outras organizações em nível nacional...”.
Além da estratégia escolhida por APROFA, é fundamental a ação de outras
organizações que têm entre seus objetivos fundamentais desenvolver
“redes” entre as associações “comunitárias” do município, como o Culebrón Timbal
(quadro 7), exemplo das experiências dos ‘coletivos culturais’, outro
fenômeno de ação política significativo na época (SVAMPA, 2008). Do
mesmo modo, e em forma coerente com o anterior, membros de diversas
organizações políticas reconhecem que a prefeitura de Moreno tem uma
certa tradição de apoio – ou pelo menos de reconhecimento e não
repressão – de ações comunitárias seja para assistência alimentar ou
educativa, independentemente da ação da rede mais tradicional dos punteros políticos. Nesse sentido, existem o que no município são também denominados ‘referentes sociais’:
lideranças que vem atuando há mais de uma década em ações focadas nos
diferentes localidades que compõem o município de Moreno e a partir de
organizações como as descritas no quadro 7.
- x Neste sentido, é bem ilustrativo o empreendimento de “alojamento e estágio” para pesquisadores e mi (...)
19Já no caso do MTD, a estratégia de trabalho de bairro
tem seu apoio fundamental em organizações que atuam em outros âmbitos e
a sua visibilidade pública é espacial e ideologicamente mais ampla,
dentro da estratégia que denominam como “...com os outros, ser nós...”
(FLORES, 2004). Com uma parte dessas organizações, o vínculo central é a
afinidade ideológica na construção de relações de trabalho cooperativas
e de um projeto pedagógico de educação popular. Esses vínculos vão se
formando com o desenvolvimento do MTD, sendo vitais não somente para
construção de seus principais valores e práticas, mas também para a
obtenção do espaço de trabalho e o desenvolvimento dos empreendimentos.
Afinidades semelhantes são desenvolvidas em nível internacional a partir
da opção de se relacionar com movimentos que tinham como referência,
principalmente o MST do Brasil, e por participar ativamente de encontros
como o Fórum Social Mundial em Porto Alegre. Com o explícito objetivo
de “...fazer outro mundo possível a partir da ação no bairro...”,
trocam experiências e visitam assentamentos do MST e seus centros de
formação já em 2002 e de forma intensa desde então. Juntamente a essas
relações estão as numerosas visitas de pesquisadores de vários países e
dos auto-denominados “militantes anti-globalização”, que interagem com a
agrupação com uma freqüência crescente e na medida em que ela se torna
mais visível publicamente. Valores e conceitos que essas pessoas trazem
são em parte incorporados na ação do MTD e contribuem para o ganho em
visibilidade nacional e internacional x.
- xi Ver os relatórios World Development Report del Banco Mundial, especialmente os dos anos 2002 e 2003 (...)
20Essas
estratégias e opções escalares de APROFA e o MTD se expressam também
nas relações materiais de seus empreendimentos com sujeitos atuantes em
outros territórios (quadros 1 e 2) e na procura de financiamento para as
organizações (quadros 6 e 9). Nessas relações mais amplas, tanto em
APROFA quanto no MTD, os sujeitos dominantes são as denominadas ONG
internacionais: fundações ligadas a embaixadas e outras instituições que
declaram ter como objetivo não o lucro, mas o ‘combate à pobreza’,
todas com matriz européia. Nessa escala, parece se formar certa
dependência material com essas organizações e uma paradoxal forma de
trabalho territorial: relações em uma escala internacional são
construídas pela visibilidade e legitimidade que existiria em certos
âmbitos para a proposta de “ação local” ou “de bairro”. Em termos do
linguajar do financiamento internacional, essas ações teriam foco e
resultados quantificáveis, e assim seriam atrativos para essas ONGs.
Estas, vale lembrar, apresentam uma importante afinidade com conceitos e
termos caros à proposta política de agências de crédito multilaterais,
como o Banco Mundial. Ações “a partir dos mais pobres”, favorecendo uma
“transparência” no uso dos recursos e o “empowerment” da população pobre são objetivos freqüentes nelas xi. Um vinculo parecer-ia se esboçar, portanto, entre a lógica dos projects dessas organizações internacionais e o Projeto Político de bairro dos casos de estudo.
21APROFA
e o MTD se localizam em municípios que surgiram, e continuam sendo,
periféricos. A política em La Matanza e Moreno foi e é influenciada por
práticas e valores peronistas. Teve também significativa influência de
ações políticas de ‘base’ na década de 1970 e antes da ditadura. APROFA e
o MTD, entretanto, constroem territorialidades diferentes dentro de uma
proposta semelhante do que denominam ‘projeto de poder popular’. Numa
primeira classificação, ambas são organizações ‘autônomas’ e de
‘bairro’, com iniciativas análogas em termos de empreendimentos
produtivos, iniciativas de educação popular e relação com o poder
público. A análise em termos relacionais sobre qual a territorialidade
da sua ação mostra suas diferenças. Sublinham, também, alguns resultados
em termos das questões colocadas na nossa introdução: as mudanças e
permanências em termos de luta de classes e territorialização e as
formas de se compreender as desigualdades contemporâneas na cidade.
22Uma
primeira conclusão sobre o exposto até aqui indica que, por trás da
mais visível e explícita luta pela obtenção de trabalho, ambas as
organizações vão construindo um trabalho político, intensa e
intencionalmente articulado com o território. Sem sindicato, sem a
fábrica e e diante de outras formas de intervenção do Estado, os dois
movimentos tentam construir uma identidade e uma prática centrada no
trabalho e que enfatiza as relações de proximidade e cotidianas no bairro, dentro de um projeto político e com relações que envolvem várias escalas.
23Nos
resultados apresentados, constatou-se, em primeiro lugar, que o
‘bairro’ não é uma território fixo, pré-determinado, nem auto-suficiente
como uma leitura mais superficial de ‘organizações de bairro’ pode
sugerir. As diferenças entre os ‘bairros’ propostos e construídos na
ação territorial da APROFA e do MTD, contemporâneas e aparentemente
atuantes numa mesma região – a periferia da AMBA –, mostra claramente
que se trata sempre de processos sociais, históricos e relacionais. Como
observado, no MTD a ação no território é construída a partir da
articulação com organizações de outros âmbitos, que atuam em escalas
maiores. Na APROFA, as afinidades e histórias associadas a um território
comum, o município de Moreno, são as que fundamentam a ação no bairro e a projeção do município e a partir dele para possíveis escalas mais amplas.
24Em
segundo lugar, atividades priorizando a vizinhança e com relações
produtivas e culturais diferentes às dominantes não são sinônimo de
isolamento e ‘recuo’ para uma sociabilidade primária, como defende
Merklen para definir as organizações de bairro de Buenos Aires (MERKLEN,
2005). Ao contrário, e em coincidência com outros estudos como os de
Manzano (2009), a ação política tanto da APROFA quanto do MTD demonstra a
importância de relações em outras escalas na tentativa de construir
esses territórios. Foi constatado que não se trata somente de vínculos
em termos simbólicos e de pertença a identidades e tradições políticas
que superem a escala da vizinhança, mas de relações materiais e
políticas concretas com outros sujeitos atuantes em outros territórios.
25Em
terceiro lugar, diferente das leituras mais gerais que preferem
priorizar uma tendência dos dominados a se localizarem em ‘aglomerados
de exclusão’ sem maior capacidade de transformação (HAESBAERT, 2004, p.
311-336), observou-se aqui como as ações da APROFA e do MTD conseguem
desenvolver um processo de territorialização dentro de um projeto de
ação política. Não se trata de ações de segregados e excluídos, mas de
dominados que tentam uma ação, também territorial, que mude as relações
de dominação imperantes. Relações essas que se refletem na sua condição
de desempregados, de trabalhadores transitórios e mal remunerados e de
moradores de territórios periféricos, lugar de políticas pontuais e
transitórias. As duas organizações, pode-se interpretar, procuram
construir um território que se contraponha às tendências territoriais
dominantes (e a partir dos dominadores) presentes na periferia de Buenos
Aires, onde vias expressas e bairros fechados para setores de alta
renda se articulam com villas e assentamentos sem
recursos estatais. Em outros termos, os ‘bairros’ da ação da APROFA e do
MTD buscam desenvolver relações e condições diferentes diante dos cada
vez mais numerosos espaços periféricos que, longe de estarem excluídos,
mostram uma integração à dinâmica econômica dominante que piora as
condições de vida e de trabalho de seus moradores.
26Mostrar
constatações contrárias às categorias da exclusão e da segregação não
significa ignorar as mudanças na ação coletiva a partir de dominados e
sua articulação com processos de territorialização. Seguindo a análise
de David Harvey, a ação de nossos prismas parece quebrar a dicotomia
clássica “...imposta pelo capital...para fragmentar...” a luta da classe trabalhadora entre o lugar “...do viver e do trabalhar...”
(HARVEY, 1982, p. 35). Reformulando, mas ativando, uma tradição de
lutas na periferia, APROFA e MTD parecem dar razão ao dirigente sindical
Vitor De Gennaro, quando ele coloca que o fechamento da fábrica
estimula a ter no bairro – construído pela ação – um lugar de ação e de
re-criação da identidade de trabalhadores, agregando de ex-operários a
jovens sem experiência laboral, integrados na causa comum de ‘trabalho
para todos’.
27Na
tradição de luta de classes na Argentina, da qual as organizações se
reconhecem como parte, era clara a distinção de uma classe trabalhadora
contra o capital em um projeto nacional (AGUIRRE & WERNER, 2007). Esse
conflito era mais evidente não somente em termos das ações dos
trabalhadores, mas também dos discursos e práticas das entidades de
classe empresarial e dos grandes proprietários rurais. Do mesmo modo,
essas disputas aconteciam dentro do Estado, e se expressavam com
políticas orientadas para favorecer ou segurar os avanços da classe
trabalhadora. Na década de 2000, entretanto, esse confronto é muito mais
opaco. Não somente pelo declínio do trabalho assalariado em termos
sociais e políticos, mas também pela configuração, a ele associado, de
um novo espírito do capitalismo (BOLTANSKI & CHIAPELLO, 2004). Recursos,
valores e práticas concretas seja do Estado, das empresas ou de um
‘Terceiro Setor’ não se apresentam mais a favor ou contra os
trabalhadores, mas sob a forma dos projects que não gostam de
rigidezes nem categorias que explicitem conflitos ou ideologias.
Preferem ‘parcerias’, resultados concretos ou, em termos do Banco
Mundial, ações win-win onde todo mundo ganha. Ainda mais,
quando tratam dos setores dominados, preferem se referir a ‘excluídos’
que devem ser trazidos de volta para a sociedade, gerando resultados
dignos de serem publicados em relatórios de empresas socialmente
responsáveis ou de ministérios encarregados do ‘social’.
- xii Entrevistas em janeiro de 2010 com lideranças de APROFA, e lideranças e membros do MTD, respectivam (...)
- xiii Ver os artigos do jornal La Nación: DI NATALEa, 2010 e FERNANDEZ DIAZ, 2009.
28A análise das ações do MTD e de APROFA sugere que por trás desses projects se
articulam visões de setores dominantes que acabariam por esconder as
relações de dominação. O caráter opaco dessas relações fica difícil de
combater analiticamente quando as práticas concretas envolvem a
colaboração dos membros das organizações com “...o companheiro que ocupa um cargo de gestão na área social e briga pelos programas...” ou “...o empresário que nos conheceu e decidiu de todo modo ajudar a uma cooperativa com nossos princípios...” xii.
Passa a ser mais claro, entretanto, quando as organizações reclamam das
visões que sobre eles são divulgadas por empresas tradicionais de
comunicação que os colocam “...como bons empreendedores...”, produto de
ações heróicas ou, no caso da APROFA, preferem ignorá-los ou agregá-los à
massa disforme e nunca precisa de ‘ações da política clientelística do
conurbano’xiii.
- xiv Entrevista com Victor De Gennaro, CECEÑA, 2001; tradução minha.
29No
campo acadêmico, não se supera essa problemática quando se prefere
entender as ações coletivas na periferia de Buenos Aires dentro do
paradigma da exclusão e que, em alguns casos, confunde a mudança das
identidades nas classes em luta com o fim das classes. Também não parece
ser uma resposta satisfatória quando se reconhecem essas lutas, mas se
simplificam as suas mudanças no manto da fragmentação. Esse
entendimento, aliás, parece estar próximo às intenções dos projects e do novo espírito do capitalismo que
os dominantes pretendem estabelecer. É distante, entretanto, da
proposta dos setores dominados em luta quando afirmam que, talvez
paradoxalmente, o declínio do salário como vinculo dominante os faz
perceber “...que o que nós une mais do que nunca é a luta por
trabalho para todos...e não mais fazer lutas específicas por melhoras em
categorias de operário como fazíamos antigamente...” xiv.
30Enfim,
este artigo procurou mostrar alguns resultados e provocações para
continuar indagando sobre as novas formas de dominação e suas
resistências que se expressam na periferia de cidades como Buenos Aires.
Uma valorização tanto da ação coletiva de dominados como dos modos mais
opacos de dominação aparecem como uma linha de pesquisa a ser seguida
no futuro.
Quadro 1 : Empreendimentos econômicos de APROFA (2005)
Fonte: elaboração própria, com base em entrevistas e observações em Fevereiro, Maio e Agosto de 2005.
Quadro 2: Empreendimentos econômicos do MTD La Juanita (2005)

Fonte: elaboração própria, com base em entrevistas e observações em fevereiro, maio e agosto de 2005
Quadro 3 : Empreendimento associado ao MTD La Juanita (2005).

Fonte: elaboração própria, com base em entrevistas e observações em fevereiro, maio e agosto de 2005
Quadro 4: Estrutura organizativa da produção em APROFA e o MTD La Juanita (2005)

Fonte: elaboração própria, com base em entrevistas e observações em fevereiro, maio e agosto de 2005
Quadro 5 : APROFA. Relações com organizações territorialmente próximas (2005)

Fonte: elaboração própria, com base em entrevistas e observações em fevereiro, maio e agosto de 2005
Quadro 6 : APROFA. Relação com organizações sem sede no município de Moreno (2005)
Fonte: elaboração própria, com base em entrevistas e observações em fevereiro, maio e agosto de 2005
Quadro 7 : APROFA. Participação em articulações entre organizações sociais e políticas (2005)

Fonte: elaboração própria, com base em entrevistas em fevereiro, maio e agosto de 2005
Quadro 8 : MTD La Juanita. Relações com principais organizações próximas territorialmente (2005)
Fonte: elaboração própria, com base em entrevistas e observações em Maio e Agosto de 2005
Quadro 9 : MTD La Juanita. Principais relações com organizações sem sede no município de La Matanza (2005)
Fonte: elaboração própria, com base em entrevistas e observações em maio e agosto de 2005