1Na análise articulada do primeiro volume d’O capital,
em que Marx se debruça sobre o processo de produção capitalista, e do
livro terceiro acerca do processo global de produção do capitalismo,
verificamos que um foco central da reflexão marxiana se substancia na
compreensão das formas de obtenção da propriedade de terras por parte de
frações de classe específica (os proprietários de terra), o que implica
a não-propriedade por parte de outros, despossuídos e desprovidos dos
meios de produção. A articulação entre lógica e história na busca pelo
entendimento da reprodução espaço-temporal das classes capitalistas é,
em nosso entendimento, pedra de toque da crítica à Economia Política
geneticamente associada à produção marxiana. Tributário dessa produção,
partimos para a investigação, no trabalho em tela, da história da
formação da propriedade privada da terra (e da classe dos proprietários
de terra) no modo capitalista de produção e, especialmente, suas
especificidades na periferia do capitalismo.
2Compreendemos,
assim, que o capital não pode existir sem a propriedade de terras, pois
faltaria um elemento para a produção capitalista. O desenvolvimento de
tal modo de produção transformou a terra em propriedade privada passível
de ser utilizada como “reserva de valor” (Oliveira, 2007: 64). Nesse
sentido, a terra funciona como equivalente de capital na sociedade
capitalista, e simultaneamente reproduz - a partir da histórica
dominação por proprietários de terra de enormes extensões fundiárias,
sobremaneira nas formações territoriais da periferia capitalista - sua
condição de reserva patrimonial por intermédio do acesso à créditos
públicos, sobretudo, e privados utilizando o patrimônio como garantia
dos empréstimos, incentivos fiscais estatais e a possibilidade associada
de manutenção de prestígio social e controle político em escala local,
regional e nacional (Martins, 2010; Oliveira, 2007). Diante disso, a
terra transformada em propriedade privada promoveu o desenvolvimento
capitalista, tanto em sua faceta produtiva, quanto em sua forma e
conteúdo rentistas, concretizadas no duplo caráter da terra no
capitalismo, ou seja, realizar-se como reserva de valor e como reserva
patrimonial.
3Como
reserva de valor, a terra quando vendida, permite a seu proprietário a
apropriação de uma fração da massa de mais valia global expressa no
preço pago por ela. Por isso, sua gênese na circulação. Mas essa
qualidade da renda da terra só pode ser realizada uma vez, quando a
terra é vendida/comprada. No capitalismo brasileiro, o que geralmente
ocorre é a retenção da propriedade privada da terra, por isso a sua
concentração, isto é, a centralização no seu caráter rentista e
patrimonialista - que denominamos de “rentismo à brasileira” – (Prieto,
2016). Neste caso, no Brasil, prevalece a condição de reserva
patrimonial, quando a propriedade privada da terra é tomada com garantia
financeira para acesso ao mercado de capitais, através de sua hipoteca.
4As
iniciativas de transformação da terra em propriedade privada capitalista
objetivam destituí-la da sua característica de sustentáculo da vida e
reprodução da sociedade a partir de relações estabelecidas com a
terra, transformando-a em lócus de atendimento de demandas de
abastecimento do mercado de consumo de alimentos, interno e externo,
como forma de regulação do preço dos salários (Marés, 2003; Marques,
2008) e como produção de commodities a baixos custos realizando
uma agricultura cada vez mais mundializada, fundamental para o
equilíbrio, sempre crítico, da balança comercial (Delgado, 2012;
Oliveira, 2015). As insurgências e lutas no campo, a organização dos
movimentos sócio-territoriais e as lutas de indígenas e
camponeses-posseiros no Brasil têm demonstrado a face de oposição
peremptória a essa mercantilização do mundo (e do lugar).
5Diante
desse panorama, nossa reflexão busca realizar um retorno à história a
fim de compreender a instituição da propriedade privada capitalista no
Brasil, representada nos preceitos jurídicos a partir da Constituição
Imperial de 1824, momento no qual o uso deixou de ser o fundamento da
função social da terra. Ao contrário, o uso a partir do surgimento da
propriedade privada decorre do domínio, pois o proprietário assegurou o
direito inerente de usar a terra (como e quando lhe convier) ou de
dispô-la em detrimento do uso alheio.
6O
artigo visa, então, compreender o período entre 1822 e 1850 momento em
que se instituiu com a Constituição de 1824 a absolutização da
propriedade privada da terra, bem como categorizar o período em questão
como momento de instituição da grilagem como forma primordial de
monopolização da terra, se fundamentando como característica central e
específica da formação territorial brasileira. Nesse sentido, discutimos
principalmente momentos anteriores à Lei de Terra de 1850, que são
fundamentais para a instituição desse marco jurídico, todavia bem menos
analisados pela historiografia, tais como o processo de esbulho de
indígenas na primeira metade do século XX e a primeira Lei de Terras de
1843 momentos fulcrais para o processo de legalização da grilagem de
terras no Brasil.
7Inicialmente,
para a compreensão da instituição dos marcos jurídicos realizados pelo
Estado capitalista para a consolidação da terra como reserva de valor e
reserva patrimonial, deve-se realizar a distinção entre posse e
propriedade.
- 1 Marx ([1842] 1979) argumenta que, para a titulação da propriedade privada na Irlanda no século XIX, (...)
8A
posse é uma relação de fato entre o homem e a terra, e a propriedade uma
relação jurídica criada pelo direito capitalista para garantir, à
distância, e via titulação, o domínio sobre a terra (Marés, 2003;
Baldez, 2000; Fachin, 1988; Treccani, 2001). Baldez (2000: 97) ressaltou
que o conceito de propriedade privada foi elaborado meticulosamente
atribuindo-se à propriedade as características definidoras da posse: o
uso, a fruição e a disponibilidade da terra, de tal forma que os
elementos fundantes da posse são absorvidos pelo conceito jurídico e
abstrato de propriedade. Assim, os juristas articulados aos interesses
dos burgueses e dos senhores de terra identificaram na propriedade os
elementos constitutivos da posse, transformando juridicamente a posse em
não mais uma relação constitutiva e intrínseca do homem com seu
exterior (no campo, a relação do posseiro ou do indígena com a terra),
mas ao contrário, um mero atributo da propriedade1
(Facchin, 1988: 19). Destaca-se que Marx ([1867/1890] 1985: 123-140)
argumentou que o proprietário de terras desempenha um papel de pressão
capitalista no processo de produção, já que a propriedade privada é um
pressuposto e uma condição da produção capitalista e aparece como
personificação de uma das condições fundamentais de produção.
- 2 Um desdobramento dessas discussões sobre a Revolução Francesa e as questões da liberdade, igualdade (...)
9Esse
processo foi levado a cabo pelo Estado capitalista, a partir da
Revolução Francesa, teoricamente construída para a garantia da
igualdade, da liberdade e da propriedade privada (Costa, 1990: 35-36).
Em outras palavras, a constituição do Estado moderno fundamentou-se na
garantia da propriedade privada, sendo a liberdade garantida apenas aos
homens livres que podiam ser proprietários e transferir livremente a
propriedade. Já a igualdade foi estabelecida na relação entre homens
livres, sendo o contrato, ou seja, o estabelecimento da igualdade
jurídica (escamoteadora da desigualdade econômica), o elemento
socialmente válido na regulação jurídica da sociedade capitalista. As
noções paradigmáticas de liberdade e igualdade têm sido fundamentais
para a existência da propriedade.2 Entretanto, no Brasil, esse processo não se realizou exatamente à essa maneira. Chegaremos a essa questão mais adiante.
- 3 De acordo com Martins (2007), Savigny argumentou que a origem da posse decorre de uma situação fáti (...)
10Em Teoria simplificada da posse, Von Ilhering, conjuntamente a Savigny3 em Tratado da posse,
de 1803, se tornaram os principais teóricos da propriedade em seu
entendimento e adoção nos códigos civis modernos. Em seu trabalho, Von
Ilhering aproximou os conceitos de posse e propriedade da terra, com a
finalidade explícita de legitimar (e justificar) o domínio de uma classe
sobre a terra (Secreto, 2007). Ilhering se opôs à algumas concepções de
Savigny, sobretudo, acerca do conceito de corpus. Para
Ilhering não havia a necessidade do poder de fato sobre a coisa para a
ocorrência do elemento objetivo. Assim, para o jurista alemão era
necessário compreender que: posse era ter a coisa em si e propriedade era o direito sobre a coisa.
Nesse sentido, é possível ter a propriedade e não a coisa, e ter a
coisa e não ser o proprietário (Martins, 2007; Secreto, 2007).
11Quando
Ilhering caracterizou a propriedade de terras essa aparente diferença
se desfez, pois segundo o jurista a posse era a exteriorização da
propriedade, sua parte visível. O possuidor agiria em nome da coisa como
se fosse o proprietário. Ao vislumbrar a posse, presumia-se a
propriedade. Nesse sentido, introduzia o argumento da “posse indireta”,
para justificar uma classe proprietária absenteísta que evidentemente
não estava na propriedade, ou não tinha toda a extensão de terras em
mãos legitimamente, visto que essa se encontrava sob a posse de
camponeses ou era propriedade do Estado ou mesmo de uso comum.
- 4 Ao analisar a formação da propriedade privada na Inglaterra e na Irlanda, Marx ([1853] 1979) argume (...)
12Baldez
(2000) constatou que, durante o século XIX e baseado na inspiração
formal dos princípios do Direito Romano, o Direito capitalista construiu
um aparato jurídico de proteção da posse, o que significava a subsunção
da posse à propriedade, ou melhor ao direito à propriedade.
Realizava-se um cercamento da posse, pois ao se igualar jurídica e
formalmente posse e propriedade, protegia-se de forma absoluta a
propriedade privada.4
Baldez (2000) destacou ainda que quando Ilhering fora questionado se na
proteção da posse não se estaria protegendo o ladrão, o jurista
respondeu que melhor seria proteger a posse do ladrão do que correr o
risco de perder a propriedade. Isto é, protegendo a “posse” (igualada à
propriedade), protegia-se indissociavelmente o usurpador (aquele que
conseguia legalizar e legitimar a propriedade a partir de apropriações
ilegais - o grileiro) e garantia-se a propriedade privada capitalista da
terra. Na produção do aparato legal, o Estado capitalista buscava
generalizar e universalizar direitos subjetivos e obrigações, as
relações contratuais e a propriedade, submetendo os sujeitos ao sistema
proposto pelo poder de classe, sendo sujeito de direito somente aquele
que era reconhecido pela ordem jurídica como tal (Baldez, 2000).
- 5 Ressaltava-se, inclusive, baseado na argumentação de Secreto (2007: 12), que atualmente, quando cam (...)
13Assim,
na legislação brasileira do século XIX, posse e propriedade irão
confundir-se intencionalmente e esta aparente confusão relaciona-se
intrinsecamente com a própria teorização sobre a propriedade privada,
incluindo a da terra. Silva (2008), Secreto (2007) Motta (2008) e
Oliveira (2007) enfatizam, sob primas diferentes, que essa debacle
foi fundamental na história fundiária brasileira, visto que para a
compreensão da formação territorial é fundamental compreender a grilagem
de terra como elemento central para o entendimento da formação da
propriedade privada no Brasil.5
14A
exclusão jurídica capitalista no que tange ao acesso do campesinato à
terra realizou-se, nesse sentido, através de uma “positivação
excludente” e em uma estratificação sócio-jurídica dos homens pobres e
livres como “ameaças à ordem que se queria impor” (Faria, 1998: 109),
traduzida em uma legislação que tutelava os interesses das elites
agrárias, mas também, na atuação de um poder judiciário impregnado da
ideologia liberal que tinha como características a individualização do
direito e a premência do direito privado sobre os interesses da
coletividade. Estas práticas foram instituídas na instrumentalização do
processo judicial, ao qual lhe cabia a exclusividade, por conta da
jurisdição. O Poder Judiciário se comportava como representante soberano
e ativo da lei, com a missão de assegurar a “paz social”, por
intermédio da jurisdição da qual era titular, e garantir os interesses
da classe proprietária de terra que dominava o aparato estatal (Jones,
1997: 186).
15No
Brasil, o processo de independência e a crise do regime escravocrata
produziram preocupações dos proprietários de terra frente às questões
relacionadas à consolidação da propriedade privada absoluta, à garantia
dos fundos territoriais para possíveis apropriações futuras de terra e
desenvolvimento econômico de seus interesses de classe (Moraes, 2011:
87) e à manutenção das apropriações já realizadas baseadas em mecanismos
de grilagem no período colonial (Motta, 2002: 80).
- 6 Grinberg (2008: 102), ao analisar os processos de reescravização (anulação de alforrias de escravos (...)
16A
Constituição de 1824 instituiu em um só processo a propriedade privada
absoluta, estabelecendo o primeiro elemento para a constituição da
propriedade privada da terra e simultaneamente a desapropriação
capitalista da terra que, para ser realizada, necessitava de pagamento
prévio em dinheiro, ou seja, de uma indenização. A Constituição Imperial
não normatizava administrativamente a regulamentação da aquisição da
propriedade, todavia estabelecia juridicamente o arcabouço concreto de
presunção jurídica para aqueles que já detivessem propriedade (por
exemplo, a proteção à propriedade privada dos cativos6
e, de certa forma, a proteção aos que já detinham concessões
legitimadas durante o período sesmarial, pois a assim chamada
“mentalidade proprietária” já se encaminhava para a consolidação desse
“direito”). O estabelecimento de uma garantia absoluta da propriedade,
produzida na ausência de regulamentação, reproduzia a grilagem como
forma per se de aquisição de terras entre 1824 e 1850.
17Assim,
a partir da combinação entre a Constituição Federal de 1824 e da Lei de
Terras em 1850 foram estruturados os processos de legalização e
legitimação da grilagem de terras realizadas no período colonial,
instituindo um conjunto de aparentes “confusões jurídicas” que
propiciaram estratégias de apropriação ilegal da terra, consequentemente
reproduzindo uma “coexistência estabilizada” (Schwarz, 2012: 18),
mediada pelo Estado imperial, entre a formação da propriedade privada 1e
a grilagem de terra. Os efeitos desse processo foram a violência contra
os camponeses-posseiros, indígenas e as constantes tentativas de
expropriação e esbulho de terras.
18A
grilagem é um traço característico e constitutivo da formação da
propriedade privada da terra no Brasil. Compreendê-la pelo enfoque da
Geografia Histórica suscita em nossa interpretação identificar os
fundamentos articulados entre as questões econômicas e agrárias a partir
do método marxiano (materialista dialético) do movimento
progressivo-regressivo, mirando a colonização e a política de sesmaria
como base da grilagem (que permanece como traço constitutivo da
concentração fundiária brasileira) e o contexto social da legalização
dessa estratégia no contexto do Brasil Imperial para a compreensão da
permanência e reprodução dessas práticas ao longo dos séculos XX e XXI.
19Novais
(1979) analisou, por exemplo, a independência brasileira como um
momento de um longo processo de ruptura que envolveu a desagregação do
sistema colonial e a montagem do Estado Nacional. Assim, analisar o
curso da história envolveria verificar a simultaneamente entre
continuidade (no nível dos eventos) e as rupturas (no nível das
estruturas) que produz um arranjo específico na periferia do
capitalismo.
20As
importadas ideias liberais de liberdade, igualdade e propriedade privada
não encontrariam uma estrutura socioeconômica correspondente no Brasil
(Costa, 1977; Schwarz, 2012). Seu sentido seria limitado: enquanto na
Europa serviam para uma burguesia vigorosa, ligada ao desenvolvimento da
manufatura e da indústria, em luta contra uma aristocracia em crise, no
Brasil elas iriam ser defendidas pela aristocracia rural que se
coadunava com o Estado. Uma estrutura econômica e social
fundamentalmente agrária e escravista não possibilitou o surgimento de
uma burguesia de tipo europeu (Costa, 1977: 124-125). O liberalismo no
Brasil não significou a liquidação dos laços coloniais. Assim, não se
pretendeu reformar a estrutura colonial de produção, pois não se tratava
de mudar a estrutura da sociedade, mas de se modificar quem se
apropriava do Estado e de seu aparato. Nesse sentido, procurou-se
imediatamente após a emancipação política garantir a permanência da
propriedade escrava, a manutenção dos fundos territoriais e instituir a
propriedade privada absoluta, e posteriormente realizar sua
regulamentação, para a manutenção da apropriação privada das terras
realizadas durante o período colonial.
21Assim,
o nascente Estado brasileiro não atravessou processos de fragmentação à
semelhança do que ocorreu no desenrolar de independência da América
Espanhola. As elites brasileiras, fundamentalmente regionalizadas,
pactuaram simultaneamente duas formas de manutenção de seu poder: a
continuação da utilização do trabalho escravo como motor da produção e
das relações sociais e simultaneamente a regulação da propriedade
privada, garantida como absoluta e, posteriormente, institucionalizada
como mercadoria - ou seja, a permanência de fundos territoriais a serem
apropriados privadamente. Essa forma de “ruptura incompleta” à
brasileira (Nakatani et al., 2012: 217-218) vai consolidar a
grilagem como um dos elementos de constituição do Estado nacional, forma
mantida do sistema colonial. A intocabilidade da propriedade produziu
uma forma associada de garantia dessa absolutização de apropriação e
monopolização de terras: a desapropriação capitalista da terra, que
deveria ser paga de forma prévia.
22A
concepção de propriedade presente no texto da Constituição Imperial de
1824 revelava a instituição da propriedade privada e uma das formas
centrais de consolidação capitalista que se materializava na
desapropriação capitalista. Esta concepção de propriedade privada
fundava-se nesse momento com a noção de um direito abstrato de caráter
perpétuo, usufruído independentemente do exercício desse direito, sem
possibilidade de perda pelo não-uso ou improdutividade (Marés, 2003;
Fachin, 1988; Bercovici, 2014). A temática incluída no Titulo 8o
- “Das disposições gerais, e das garantias dos direitos civis, e
políticos dos cidadãos brasileiros” -, em perspectiva liberal e
simultaneamente oligárquica, dispunha:
Art. 179. A inviolabilidade dos
Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos Brasileiros, que tem por base a
liberdade, a segurança individual e a propriedade, é garantida pela
Constituição do Império, pela maneira seguinte. (...)
XXII – É
garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem
público legalmente verificado exigir o uso e emprego da Propriedade do
Cidadão, será ele previamente indenizado do valor dela. A Lei marcará os casos em que terá que lograr esta única exceção, e dará as regras para se determinar a indenização. (Brasil, 1824, p. 27, sem grifo no original)
23Tal
concepção dialogava com o artigo 17 da Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão de 1789, que afirmava a propriedade como direito
inviolável:
Art. 17. Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir e sob condição de justa e prévia indenização. (França, 1789, s/p, sem grifo no original)
24Pode-se
verificar um diálogo com o Código Napoleônico, especialmente no artigo
544 daquela lei civil que era, segundo Marés (2010: 183), a primeira a
dar estrutura jurídica ao capitalismo, em que se observava o preceito no
qual, “a propriedade é o direito de fazer e de dispor das coisas do
modo mais absoluto, contanto que delas não se faça uso proibido pelas
leis ou pelos regulamentos”.
25Analisando
o texto da Carta Imperial verifica-se que, garantida a propriedade em
toda sua plenitude, instituía-se na propriedade em si a efetivação de
seu caráter absoluto, oponível e excludente dos interesses e individuais
alheios, conforme argumentou Marés (2003: 63). O autor observou também
que a plenitude de um direito significava a plenitude de seu exercício e
que nenhum limite se imporia a ele. A propriedade descrita na
Constituição Imperial era privada e individual, a pública era exceção.
No conceito geral se firmava a constatação peremptória de que o
proprietário podia tudo em relação ao bem que possuía, pois bastando a
presunção da liberdade contratual, os acordos valiam mesmo que o uso do
bem fosse destrutivo (Marés, 2003: 64). Constata-se que a primeira
Constituição brasileira fundava o Estado nacional e era influenciada
moderadamente pelos ideais revolucionários de 1789. Na análise sobre a
questão da propriedade privada nota-se claramente essa influência. D.
Pedro I outorgou a Constituição depois da dissolução da Assembleia
Constituinte convocada em 1822. A carta outorgada conservou as linhas
mestras do projeto constituinte, porém aparou as arestas consideradas
radicais com vistas a conciliar o modelo liberal de exercício do poder
político com a natureza patrimonial das instituições herdadas da
administração colonial (Pilatti, 2013; Schwarz, 2012).
26Marés
(2003) afirmou que a nova concepção individualista do Direito,
instituída pela Carta de 1824, enfatizava entre os poderes do
proprietário o de não usar a terra, deixá-la improdutiva ou usá-la até o
ponto de destruição do que antes nela existia.
27Nesse
sentido, caso o Estado necessitasse da propriedade, mesmo que
abandonada ou improdutiva, deveria indenizar o proprietário. Ressalta-se
que enquanto a propriedade pública necessitava de um uso, de um emprego
e destinação, a propriedade privada era independente, patrimônio
disponível, intocável, ao arbítrio do proprietário em sua plenitude.
Assim, observava-se que a constituição de uma classe de proprietários
titulados (e também supostamente legitimados) e legalizados (com todas
as garantias legais de uso da propriedade em sua plenitude), tornava-se
premente.
28Entretanto,
entre 1822 e 1850, quando da promulgação da Lei de Terras, não se
constituiu nenhuma legislação agrária que regulasse a ocupação de
terras, tendo apenas os sesmeiros com sesmaria confirmada certa garantia
de sua propriedade absoluta. No final do período colonial e
pós-Independência, a concessão de lotes, característica da política de
terras coloniais, havia sido formalmente suspensa pela Resolução nº 76
do Reino de Consulta da Mesa do Desembargo do Paço de 17 de julho de
1822. Dessa forma, até 1850, quando a Lei de Terras foi decretada, a
ocupação (posse e grilagem) tornou-se a forma primordial de se obter
terras (com exceção feita da compra e da herança). O desbravamento e a
ocupação de novas áreas, pequenas e, sobretudo grandes, foram
realizados, sem um instrumento jurídico que regularizasse a ocupação, o
que de certo tornava os pequenos posseiros e os indígenas suscetíveis à
mais violência e a novas rodadas de expropriação.
29Motta
(1998; 2008) observou, a partir dos Relatórios de Presidentes de
Província, um enorme conjunto de denúncias de invasões de propriedade e
de terras devolutas, gerando dúvidas sobre a titularidade de pretensos
proprietários entre 1822 e 1850, o que na interpretação da autora
“consagrou uma história pretérita” da grilagem.
30Por
exemplo, ao longo de década de 1830, acusações relativas às ocupações
ilegais das terras indígenas culminariam em um discurso de
desaparecimento dos índios, como se o fim de parte das
comunidades indígenas não fosse o resultado trágico dos procedimentos de
extermínio da população nativa, confinamento territorial em aldeamentos
e esbulho de terras para a formação de cidades, vilas e produção
agrícola para exportação. Carneiro da Cunha (2012), analisando a
política indigenista do século XIX, afirmou que ocorreu um processo
simultâneo nesse período: houve uma expansão das fronteiras do Império
alargando territórios transitáveis e apropriáveis e uma restrição do
acesso à terra nas regiões de povoamento mais antigo. Nesse contexto, os
indígenas estavam em uma posição central, visto que as terras que
ocupavam era território de interesse para a expansão desses dois
vetores. Nesse processo, os indígenas precisavam ser legalmente
esbulhados. Para tanto, foram utilizados alguns argumentos, por
exemplo, foi estabelecido um tipo indígena denominado de “índio
errante”, que não se apegava ao território e que não tinha noção de
propriedade (Carneiro da Cunha, 2012: 61-62). Analisando os Anais do
Parlamento Brasileiro, esse discurso aparecia nas palavras de um
deputado do Maranhão em 1826:
Uma aldeia de duzentos a
trezentos índios umas vezes se achava a vinte léguas acima e daí a
poucos dias vinte léguas mais abaixo; chamar-se-ão estes homens errantes, proprietários de tais terrenos? Poderá dizer-se que eles têm adquirido direito de propriedade? Por que razão não se aldeiam fixamente como nós?
(...) Eu quisera que me mostrasse a verba testamentária, pela qual
nosso pai Adão lhes deixou aqueles terrenos em exclusiva propriedade.
(Anais do Parlamento Brasileiro, Assembleia Geral Legislativa, Câmara
dos Deputados, 1826, tomo III, Rio de Janeiro, Typ. Imperial, 1874, p.
189 apud Carneiro da Cunha, 2012, p. 73, sem grifo no original)
31Carneiro
da Cunha (2012: 72-75) refutou tais argumentos ressaltando que errantes
ou não, os indígenas conservavam a memória, as relações sociais e a
territorialização em seus territórios tradicionais. A autora demonstrou
que em 1878, no Paraná, os índios de Guarapuava, para espanto do Estado
Imperial, recusavam-se a aceitar as terras que lhes queriam dar e
pretendiam recuperar as suas invadidas por duas fazendas.
32Realizavam-se
também políticas de intrusão e de pressão sobre os territórios
indígenas. A partir de 1823 recomendava-se que se dessem terras aos
soldados que serviram em estabelecimentos militares para a atração e
pacificação de indígenas no Espírito Santo:
Muito convém aproveitar os
colonos civilizados que forem concorrendo a pedir terras para se
estabelecerem, pois que de sua vizinhança, trato, e comunicação resultam
grandes benefícios à civilização de selvagens. Manda outrossim s. m. o
imperador que o governo da província, além dos terrenos para o
aldeamento dos índios, continue a dar sesmarias a particulares que as pedirem, na forma das leis. (Decisão de 28 de janeiro de 1824 apud Carneiro da Cunha, 2012, p. 74, sem grifo no original)
33Ressaltavam-se
aspectos interessantes dessa Decisão de 28 de janeiro de 1824, como
além das tentativas da assimilação física e social dos indígenas que
poderiam se realizar a partir do contato com os colonos, notava-se que
mesmo findado o regime sesmarial em 1822, dois anos depois permaneceu,
em determinadas províncias, a concessão de sesmaria como prática de
regulamentação de terras no Império.
34Outra
forma de concretização dos interesses das frentes de expansão e
consolidação das fronteiras de povoamento mais antigo era a liquidação
de aldeamentos indígenas, que entre 1822 e 1850 ocorreu através de
práticas de diminuição da quantidade de terras dos aldeamentos e da
concessão de sesmarias em terras de aldeamentos.
- 7 Carneiro da Cunha (2012) afirmou que o termo exato era reduções. Redução era o termo usado no sécul (...)
35Ao serem aldeados, geralmente, cada aldeia recebia terras.7
No final do século XVI o Alvará de 23 de novembro de 1700 mandava
demarcar uma légua em quadra para cada aldeia. Carneiro da Cunha (2012:
78-79) constatou que, na primeira metade do século XIX, ocorreu uma
redução do tamanho de terras cedidas para aldeias, sobretudo a partir da
decisão da província da Bahia em 1836 de realizar uma relação entre o
tamanho da terra cedida a partir do número de “famílias indígenas”: uma
légua em quadra para os aldeamentos de mais de 120 famílias, meia légua
em quadra para os aldeamentos de 120 a 60 famílias e um quarto de légua
em quadra para as que tivessem entre 60 e 30 famílias.
36Havia
um grande interesse nas terras dos aldeamentos, já que alguns se
estabeleciam próximos às cidades e missões, reduções que eram
estratégicas para o estabelecimento econômico de fazendeiros para a
realização de suas atividades produtivas ou especulativas. Foi
especificamente em 1832 que, pela primeira vez, se legislou
especificamente sobre a transferência de aldeias para novos
estabelecimentos e a venda em hasta pública de suas terras.
37Ressalta-se
que as aldeias recebiam sesmarias, mas essas terras podiam ser
arrendadas e aforadas com o argumento de que tais práticas podiam
garantir o sustento indígena. Isso implicou na estratégia realizada por
arrendatários e foreiros, sobretudo no século XIX, de pedir cartas de
sesmarias dentro da terra das aldeias.
38Motta
(2008) observou também que, sobretudo a partir da década de 1830, houve
graves conflitos acerca do estabelecimento dos limites das propriedades
entre fazendeiros e um enorme contingente de conflitos entre posseiros e
grileiros de terra. Nesse sentido, analisando o Relatório do Presidente
da Província do Rio de Janeiro, Motta (2008) constatou que Paulino
Soares de Souza, o visconde do Uruguai, relatara em 1840 que o estado de
incertezas e confusão em que está a principal propriedade da província,
isto é, a propriedade territorial, não concorre menos para originar um
sem-número de violência, de pleitos, de esforços, de represarias e de
questões, muitas vezes decididas pelas vias de fato, que se procura
desculpar ou com a imparcialidade dos juízes do lugar, muitas vezes
criaturas de um dos contendores, ou com a sua ignorância, ou com a
morosidade, dispêndio e incerteza dos meios judiciais (Relatório do
Presidente de Província, março de 1840 apud Motta, 2008, p. 90).
39Assim,
a fiscalização sobre as terras dos particulares implicava o
conhecimento das devolutas que, uma vez discriminadas, tornar-se-iam de
fato da União, o que limitaria a ocupação de terras potencialmente
livres, sem a gerência do governo. Era preciso, em suma, realizar o
cadastro, sem ferir os interesses dos grandes proprietários, base
política de sustentação do governo.
40Costa
(1999: 175-176) ressaltou que a cada ano fazendeiros de café - que
durante o século XIX se tornou o principal produto da economia
brasileira - ocupavam novas e vultosas áreas e sentiam agudamente a
necessidade de legalizar a propriedade da terra e de obter mão de obra,
visto que o trabalho escravo estava sendo ameaçado pela forte oposição
conduzida pela Inglaterra. A discussão sobre a regulamentação da
propriedade privada e a transição do trabalho escravo para o trabalho
livre tornava-se cada vez mais urgente.
- 8 Segundo Holston (2013: 174-175), E. G. Wakefield desenvolveu suas teorias baseado nos esforços frac (...)
41As
questões da regulamentação da propriedade privada e das formas de
aquisição de força de trabalho foram discutidas pela primeira vez no
Conselho do Estado, em 1842, e um projeto de lei formulado por tal
Conselho foi apresentado à Câmara dos Deputados no ano seguinte. O
projeto foi fortemente influenciado tanto prática quanto ideologicamente
pelo trabalho do teórico inglês da colonização Edward Gibbon Wakefield
(1796-1862)8 e
inspirava-se na suposição de que, em uma região onde o acesso à terra
era fácil, seria impossível obter pessoas para trabalhar nas fazendas, a
não ser que elas fossem compelidas pela escravidão. Costa (1999:
176-177) enfatizou que, sob essa interpretação, a única maneira de obter
trabalho livre seria a criação de obstáculos à propriedade rural
daqueles que imigrassem, de modo que o trabalhador livre fosse forçado a
trabalhar na fazenda. O Conselho de Estado do Brasil transformou essa
inspiração em uma iniciativa legislativa. As influências dessas
perspectivas foram constatadas por Silva (2008) em cinco dimensões:
42Em
primeiro lugar, a associação da questão da terra com a imigração. Como
não se tratava de ceder terras aos imigrantes, a questão da
regularização da propriedade da terra poderia constituir um projeto em
separado. Segundo, a sugestão da proposta do Conselho de Estado de
tornar mais “dificultosa a aquisição de terras”. Terceiro, a busca de um
“preço justo” para as terras devolutas que o governo ficasse autorizado
a vender pela disposição do artigo 1o do projeto. Quarto,
porque na exposição do projeto em “naturalizar” doutrinas. E quinto,
porque Wakefield foi nominalmente citado pelos deputados nos debates que
ocorreram por ocasião da apresentação do projeto na Câmara (Silva,
2008: 110).
- 9 O projeto continha a premissa do pagamento de um imposto territorial de 1$500 por meio quarto de lé (...)
43A
leitura do projeto pode ser sintetizada a partir de quatro objetivos,
seguindo a interpretação de Silva (2008), Carvalho, (1981), Mattos
(1987), Costa (1999) e Holston (2013): 1) criação das condições nas
quais o trabalho livre substituiria o trabalho escravo nas lavouras; 2)
financiamento dessa substituição com fundos gerados pela venda de terras
e legalização de títulos, cujo custo seria dividido entre todos os
proprietários de terra; 3) o ordenamento do “caos” na ocupação de terras
ao distinguir as posses públicas das privadas, desenvolvendo um sistema
fundiário sob a autoridade do governo central; e 4) a criação de um
imposto territorial,9 baseado no tamanho da propriedade, para forçar o uso produtivo da terra e fornecer mais rendimentos para subsidiar a imigração.
44Na
observação dos argumentos contrários e favoráveis ao projeto de lei,
conforme ressalta Costa (1999: 177-178), revelam-se claramente as
diferentes concepções de terra e de trabalho que existiam na época.
45Os
favoráveis ao projeto afirmavam que este eliminaria a disparidade
existente entre o excesso de terra e a escassez de trabalho, que tinha
segundo eles reduzido o preço da terra. A venda de terras públicas por
um preço suficientemente alto (sufficient price, explicitamente
retirado dos termos de Wakefield), a criação de um Imposto Territorial e
os custos com a demarcação e regularização de terras produziriam os
rendimentos para o financiamento da imigração e impediriam o acesso à
propriedade dos imigrantes recém-chegados. O argumento se desenvolvia
também no sentido de que a venda a alto preço das terras públicas
aumentaria o preço de todas as terras, tornando mais desejável o uso
produtivo (Costa, 1999: 178), pois a necessidade de financiar despesas
mais altas com a terra estimularia um uso mais intensivo e produtivo do
solo, colocando um fim ao latifúndio improdutivo. Negligenciavam, é
claro, o fato de que criariam um uso especulativo da terra. Os
favoráveis argumentavam também que a lei acabaria com arrendatários que
moravam nas periferias das grandes fazendas à custa dos proprietários,
trabalhando somente dois ou três dias por semana e passando o resto do
tempo vadiando, caçando, pescando e, às vezes, até mesmo conspirando
contra os proprietários (Costa, 1999, p. 179).
- 10 Segundo Carvalho (1981: 41), a defesa do projeto foi realizada principalmente por Rodrigues Torres, (...)
- 11 Os deputados de São Paulo e Minas Gerais, fazendeiros ou representantes dessas elites, não tinham o (...)
46Afirmavam
também que se encerrariam os conflitos e disputas em torno da
propriedade, visto que a legalização dos títulos e a sujeição de todos
aos registros de terra promoveriam a segurança e a garantia daqueles que
eram proprietários (Costa, 1999: 180; Holston, 2013: 176). A lei era de
fato favorável, sobretudo, aos interesses dos fazendeiros do café da
Província do Rio de Janeiro10 (e também, de certa forma, aos interesses dos cafeicultores de São Paulo e Minas Gerais)11 na garantia do monopólio das terras mais férteis e do fechamento da fronteira para novas posses (Mattos, 1987: 73).
47Os
contrários à proposta de lei, segundo Costa (1999: 181), acreditavam que
a escravidão era a melhor forma de trabalho em uma sociedade baseada na
plantation e eram pessimistas quanto à possibilidade de
substituir escravos por imigrantes livres. Os oponentes consideravam
absurdo dificultar o acesso à terra em um país onde a maioria da terra
ainda devia ser ocupada. Para estes, sobretudo deputados do Norte do
Império, especialmente de Pernambuco (Urbano Sabino e Nunes Machado) e
da Bahia (Manuel Galvão) a questão era essencialmente colonizar o país e
não suprir os fazendeiros de trabalho. O projeto como foi construído,
no entendimento dos contrários, impedia o processo de civilização do
território brasileiro.
- 12 Analisando os debates ocorridos na Câmara dos Deputados em 1842, Carvalho (1981: 42) aprofundou a e (...)
48Uma
objeção aglutinava o conjunto de interesses das elites agrárias: a
contrariedade em relação à criação do imposto territorial. Os deputados
criticavam também o plano de limitar o tamanho das “posses” no processo
de titulação das propriedades12
e uma parte significativa, conforme constataram Silva (2008), Carvalho
(1981) e Costa (1999), resistia até mesmo à exigência de fazer uma
avaliação da terra, afirmando que o país não possuía especialistas para a
realização de medições e demarcações de terra, além do que a
obrigatoriedade de medir e demarcar seria muito dispendiosa e reduziria
drasticamente a lucratividade da propriedade.
49No
projeto final, a instituição do imposto territorial foi modificada, mas
conservava-se como possibilidade, já os demais pontos foram mantidos na
lei que foi aprovada na Câmara dos Deputados. Segundo argumenta Silva
(2008: 123), o projeto foi aprovado na Câmara, mesmo com as objeções dos
opositores, porque em princípio ninguém era contra a regulamentação da
propriedade de terra. A preocupação com a questão da força de trabalho,
mesmo pelos que se mantinham firmemente escravagistas, era uma
preocupação pulsante; além disso, havia a certeza de que caso fosse
aprovada no Senado, a lei não seria cumprida da forma como fora redigida
(Silva, 2008: 124).
50O
projeto, entretanto, não se transformou em lei, ficando engavetado no
Senado durante sete anos, momento em que os liberais eram maioria no
Senado. Silva (2008: 124) ressaltou algumas razões para tal
engavetamento: a assim chamada “urgência de mão-de-obra” não era, de
fato, tão grande assim para parte significativa dos proprietários e o
fato de os liberais ainda serem relativamente resistentes às medidas
centralizadoras e de reforço da autoridade imperial, que estavam
presentes na regulamentação da propriedade privada.
51O
projeto revelava, também, a existência hegemônica no governo de
representantes da grande lavoura, seja diretamente por serem
proprietários, seja indiretamente por entenderem o papel fundamental que
essa questão representava para a consolidação do próprio Estado-nação
(Silva, 2008; Costa, 1999; Motta, 2008). Nos termos de Carvalho (1981:
52), o projeto revelava a clara tentativa de modernização conservadora,
mas demonstrava a divisão entre grupos de “proprietários” cujos
interesses não coincidiam exatamente sobre alguns pontos.
52O
projeto entrou novamente em discussão em 1850, quando os problemas
relativos à substituição do trabalho escravo para o trabalho livre
tornaram-se efetivamente urgentes, a continuidade de conflitos em torno
da propriedade da terra era cada vez mais intensa e a necessidade de
criação de um mercado de terras tornou-se uma demanda importante, na
qual a garantia do título era fundamental. A ascensão novamente dos
conservadores ao Senado foi, também, elemento significativo para a
aprovação da Lei de Terras.
53A
Lei promulgada em 1850 reiterou os principais pontos do projeto de lei
aprovado na Câmara dos Deputados e enviado ao Senado em 1843, mas aparou
algumas arestas que demonstram formas de conciliação entre as frações
da classe de proprietários de terra no período. Silva (2008) ressaltou
que a primeira conciliação se efetivava na retirada de qualquer menção à
possibilidade de instituição de um imposto territorial. Além disso,
alterava-se o limite das posses a serem legalizadas. No projeto de 1843,
o máximo que os proprietários de terra conseguiram foi a cláusula de
legalização dos grilos efetivados antes de 1822, mantidos e legitimados
em sua totalidade. Na Lei de Terras, esta sim aprovada, deu-se um passo
além: os grilos poderiam ser legalizados do tamanho que fossem, sem
restrição de data de ocupação, e ainda se concedia terra devoluta
contígua (Silva, 2008: 153-179).
54A
Lei de Terras, na letra fria da regulação do Direito Agrário, incorreu
na tentativa de converter situações supostamente fáticas - a ocupação
legal e garantida pela carta de sesmaria aos concessionários coloniais e
as ações de grilagem estabelecidas como posses - em situações
juridicamente doutrinadas pela normatização da lei instaurada. Todavia,
esse argumento incorreu em imprecisão histórica e careceu de
aprofundamento e substância jurídica. Pode-se auferir que através da Lei
de Terras ocorreu a transformação completa da terra em mercadoria no
Brasil, concluindo o processo iniciado na Constituição Imperial de 1824,
quando a fez propriedade privada individual, inalienável e transferível
a quem não a utilizasse. A Lei de Terras aprofundou, assim, a
propriedade privada absoluta no país legalizando diversas formas de
apropriação privada e ilegal das terras e dificultando/bloqueando o
acesso à terra aos camponeses e escravos no Brasil.
55Assim muito mais do que o império da posse como é conhecido o período entre 1822 e 1850 compreendemos que há de fato um império da grilagem
nesse momento da história brasileira articulado necessariamente as
dimensões de proteção as formas de aquisição de terras no Brasil
colonial e com leis que asseguram aos proprietários de terra a
apropriação privada do patrimônio público. Mais do que uma
especificidade do período, a grilagem ocorre a jusante a montante dos
marcos entre 1822 e 1850, entretanto analisar detalhadamente o período,
pode iluminar estratégias de reprodução da classe de proprietários de
terra e demonstrar o quanto a manutenção de fundos territoriais e a
possibilidade de apropriação de terra constituiu os fundamentos da
formação do Estado-nação na gênese do Império brasileiro.