- 1 O presente texto é uma adaptação de alguns capítulos da tese de doutoramento Pour une histoire natu (...)
1Para
nós, a geografia moderna nasceu de um sonho. Do sonho que habita o
homem desde os primeiros tempos da modernidade – o de dominar o mundo e a
natureza através da razão e da ciência. Do desejo que nutriu o Século
das Luzes, de tudo compreender, de racionalizar o mundo, transformando-o
num lugar visível, calculável e inteligível; de se utilizar a natureza e
todas as suas criaturas para alcançar um progresso sem limites. Esse
sonho que se encontrava então reforçado por uma série de elementos,
dentre os quais se encontram as descobertas de novas terras (ainda) e as
grandes viagens de exploração. Assim, não revela o acaso nosso desejo
de contribuir para o estudo da história do pensamento geográfico a
partir de uma certa circunstância e de um momento concretos – os
viajantes-naturalistas franceses no Brasil, do século XVIII ao século
XIX, ou no espaço de tempo que se convencionou chamar o “Século das
Luzes”.
2No
espírito desse século, as viagens de exploração naturalistas foram
motivadas por uma grande curiosidade para com os fenômenos do mundo
natural e pelo estudo das ciências da natureza. Durante todo esse
período, a natureza é objeto de questionamentos e inspiração, para os
cientistas e intelectuais, tanto profissionais quanto amadores, para os
artistas e homens de letras, ao mesmo tempo em que o ato de observar,
descrever, catalogar e classificar os fenômenos e as espécies tomam um
caráter “científico”, isto é, baseado em métodos rigorosos, buscando
sistematizar o mais completamente possível as informações de que se pode
dispor sobre a o mundo natural.
3Pode-se
dizer que, de Froger, em 1695, a Castelnau, em 1847, os viajantes que
formam o universo por nós estudado percorreram um longo caminho, não
somente pelos mares do mundo, mas também e especialmente no domínio do
pensamento. Durante este intervalo de tempo, as idéias, as concepções e
os modos de ver a natureza, o homem e a própria idéia de território
são percebidos de modo consideravelmente diverso, sofrendo uma espécie
de “evolução”. Pensamos que é nessa evolução, concernente a esses três
elementos, que se deve buscar, nos relatos dos viajantes, o caminho que
conduz de uma “descrição da natureza tropical” à “construção de uma
geografia do Brasil”, ou de uma “descrição da natureza” a uma “crítica
do homem e da sociedade”, ou mesmo da “natureza do Novo Mundo” a um
“território brasileiro”.
4A
fim de seguir passo a passo esta evolução (ou, se preferirmos, essa
transformação), para aí buscar os traços de uma geografia nova, uma
etapa se impôs: apresentar uma classificação “didática” dos viajantes e
de sua obra. (Esta compreendida como um grande conjunto de relatos,
relatórios, diários, cartas, mapas, pranchas naturalistas, desenhos,
enfim, tudo o que documentasse aquilo que eles haviam visto, recolhido,
interpretado, analisado e classificado durante as viagens).
5Longe
de constituir um conjunto homogêneo, a experiência nos mostrou uma
diversidade (não perceptível, talvez, ao primeiro olhar) e que diz
respeito tanto ao estilo quanto à forma através dos quais os assuntos
foram abordados e tratados.
6Como
já foi dito, se nosso objetivo principal foi buscar os traços do
nascimento da geografia moderna no seio dos relatos de viajantes,
parece-nos que a classificação de seus trabalhos deveria se operar a
partir do seguinte critério: o desenvolvimento das idéias “geográficas”
nos relatos. A fim de perceber isso de maneira mais clara,
consagramo-nos à análise de três categorias principais: sua concepção da
natureza, sua idéia de território e a imagem e o papel do homem – três temas/conceitos que interessam particularmente à geografia moderna.
7A
dimensão temporal não foi certamente ocultada, nem mesmo desprezada e,
na maioria dos casos, os critérios escolhidos acabaram por se combinar
com a “época da viagem”. Uma tal classificação está longe de ser rígida,
fixa ou definitiva (como, aliás, todas as classificações). E, se esta
foi construída sobre aqueles que nos parecem ser os “temas-chave” da
geografia moderna, não esqueçamos que esses “temas-chave” são também
resultado de uma escolha que nós mesmos operamos.
8Ao fim de nossa classificação, desenharam-se três grupos de viajantes, que poderíamos assim caracterizar e nomear:
9Grupo 1 – Os geógrafos-naturalistas
(que viajaram, em geral, entre 1694 e 1740). São os primeiros viajantes
do século XVIII. Detentores, em geral, do título de “geógrafo do rei”,
sua prática era bastante ligada ao papel do geógrafo tradicional do
século XVIII . São os cartógrafos, os físicos, os astrônomos, enfim, os
“engenheiros – geógrafos” que marcaram essa época. Este grupo foi
fortemente marcado por preocupações tais como medir, testar os
instrumentos e melhorar sua precisão. A figura da Terra e a cartografia
são seus temas principais. Têm também por tarefa descobrir novas terras e
acabar de uma vez com os mitos e alguns “enigmas persistentes” sobre o
mapa do mundo. Por outro lado, os trabalhos desses viajantes manifestam,
além de seus objetivos “matemáticos”, uma preocupação com a natureza e
com assuntos mais diretamente ligados à história natural (como a coleta,
classificação, representação e o estudo das espécies vegetais e
animais) e não estavam isentos de descrições e avaliações “etnológicas”.
Tratava-se de antigos geógrafos fazendo uma história natural.
10Grupo 2 – Os naturalistas-geógrafos
(de 1740 a 1820, aproximadamente). Contrariamente àqueles do primeiro
grupo, esses viajantes embarcam com preocupações principalmente ligadas à
história natural, para se tornarem, pouco a pouco, geógrafos modernos.
Muito bem inscritos no espírito do século, são os relatos desses
naturalistas-geógrafos que despertarão a curiosidade do grande público e
dos intelectuais. Serão eles os mais ávidos por contar o mundo sob o
“olhar do viajante”. E são eles também que fizeram desta época aquela
das grandes viagens científicas ao redor do mundo.
11Grupo 3 – Os geógrafos stricto sensu
(entre 1820 e 1847). Esses “descobridores” do território brasileiro, os
mais “científicos” e “objetivos”, são também os menos pitorescos e
aventureiros. É nesse grupo que se faz conhecer a geografia moderna
“consumada”, momento em que os “naturalistas-geógrafos” assumirão
totalmente o papel do geógrafo moderno. Fazem parte desse grupo:
Saint-Hilaire, Laplace, Vaillant, Castelnau, d’Orbigny, etc. – talvez os
mais conhecidos, hoje, do público brasileiro. Porém, não serão eles o
objeto de nossa análise aqui.
12Este
artigo tem como objetivo maior revelar as relações entre Geografia e
História Natural, a partir do exemplo dos viajantes do segundo grupo –
os naturalistas-geógrafos. E nós os nomeamos como tais porque eram naturalistas (assim reconhecidos durante os séculos XVIII e XIX) que partiam com ?
um em viagem com objetivos científicos. Porém, de certo modo, acabou
por caber-lhes a tarefa de assumir definitivamente o “caráter
geográfico” do “olhar naturalista”. Lembremos que é aqui, com o trabalho
desse grupo, que vão ser produzidas as mais belas representações do
mundo, sobre as pranchas mais bem desenhadas, com os relatos mais
completos e as classificações mais perfeitas. Mesmo que nossa
competência para a análise de desenhos naturalistas se revele bastante
limitada, o salto de qualidade das pranchas apresentadas por esses
naturalistas, em comparação com os anteriores, é inegável e ninguém
contestará que o nível de conhecimento adquirido pelos naturalistas
franceses cresceu amplamente desde o começo das viagens científicas,
consolidando-se neste grupo. Esta forma perfeita de “representar as
coisas do mundo”, esta sofisticação na maneira de “contar o mundo”,
acabou por colocar a geografia sobre os trilhos da modernidade, pois
criou, estabeleceu ou deu novo sentido aos conceitos e ao objeto de
nossa ciência.
13Em
que medida e qual a real contribuição, especificamente, deste grupo ao
nascimento da geografia moderna? A análise dos textos dos viajantes que
apresentaremos aqui constitui, muitas vezes, novidade para o público
brasileiro e uma das razões principais de tratarmos de maneira especial o
grupo dos naturalistas-geógrafos é a riqueza de seus relatos, que
demonstram como se fazia história natural no Século das Luzes. Mostram
ainda sobre que bases empíricas a geografia moderna pôde construir-se;
como a natureza foi o primeiro grande objeto da geografia
(característica que se manteve) e como a história do pensamento
geográfico não pode deixar de analisar esta fase tão importante da
relação do homem com a Terra.
14A
partir de 1750, os embarques para América se multiplicam. A América do
Sul está longe de permanecer desconhecida dos franceses nesta segunda
metade do século XVIII. Sabe-se que em 145 expedições francesas
ocorridas entre 1680 e 1792, 45,5% delas tem como destino a América do
Sul. Sob o reinado de Louis XVI, ela é o segundo lugar preferido dentre
os destinos, com 19,3% dos viajantes, logo após o Oriente Médio, que
recebeu 25,8% (Clement, 1988, t. I: 194). Apesar da proibição dos
portugueses – que será revogada somente em 1815 – grande parte desses
viajantes embarcados para a América acabou por visitar o Brasil, ou ao
menos aí fizeram “escala”.
15Os
viajantes desse grupo com todo seu interesse pelo Brasil não são casos
isolados. Eles se inscrevem naquele plano sistemático, iniciado alguns
anos antes, que consiste em explorar e fazer o inventário das riquezas
naturais do mundo, a fim de dinamizar a agricultura, a indústria e o
comércio francês, segundo a vontade de Louis XVI e Turgot. O soberano
tinha também por objetivo promover a pesquisa científica e valorizar os
territórios franceses do além-mar, sempre no espírito das Luzes.
Entretanto, conforme veremos a seguir, alguns viajantes cuja “missão
oficial” estava mais ligada à política e ao comércio, se afastarão de
suas obrigações primeiras para se interessarem pela história natural.
- 2 Tivemos de escolher entre as duas formas mais difundidas do nome do navegador: La Pérouse e Lapérou (...)
16Na
França, sonhava-se ainda com um grande navegador que pudesse oferecer
ao país as glórias oferecidas por Cook à Inglaterra. É nesse contexto
que se entende a expedição de Jean-François Galoup, Conde de Lapérouse,2 o viajante francês a quem foi confiada tão pesada missão e cuja viagem conhecerá um fim trágico.
17Lapérouse deixa Brest em 1o de agosto de 1785. A expedição era composta de duas fragatas: a Boussole, comandada pelo próprio Lapérouse, transportava 88 homens na tripulação, 10 oficiais e 9 cientistas; o Astrolabe, comandado por De Langle, trazia a bordo 112 pessoas, das quais 6 cientistas e 9 oficiais.
18Os
primeiros cronômetros já haviam sido inventados e o mistério das
longitudes tinha já encontrado sua solução. Encerrava-se, dessa forma, a
época da navegação por aproximação. Faltava apenas retomar os velhos
mapas para corrigir as longitudes e para completar os detalhes de
algumas regiões ainda mal conhecidas, em particular no Pacífico. Esse
será um dos objetivos da viagem de Lapérouse, mas não o principal.
19De
fato a viagem de Lapérouse é originalmente um empreendimento comercial. A
idéia inicial amplia-se então numa política geral de trocas: Lapérouse é
encarregado de preparar o terreno para o futuro, a fim de que os
negociantes franceses tivessem segurança para agir. Sua expedição entra
no plano mais vasto de uma pesquisa de mercado no Extremo Oriente para o
comércio francês: o Japão é visado do mesmo modo que a China, com a
qual os ingleses mantêm já há algum tempo relações mais continuadas.
Seria preciso ultrapassar os ingleses. Trata-se, com efeito, de todos os
novos domínios do comércio marítimo, pois Lapérouse deve igualmente se
informar sobre a pesca da baleia no entorno do Cabo Horn (idéia sugerida
no relato da segunda viagem de Cook). A partir desse momento, a viagem
ganha também uma conotação política, orientada no sentido da vigilância e
da acumulação de informações sobre as atividades comerciais das outras
nações nos mares do mundo.
20No
entanto, a idéia de prosseguir e concluir a obra de Cook exige também a
continuidade de seu projeto científico. Descobrir novas terras seria uma
situação que o trabalho realizado pelo navegador inglês tornou pouco
provável; não obstante, seria necessário dar relevo a alguns pontos que
permaneciam ainda pouco conhecidos sobre o mapa do mundo, em razão dos
fortes nevoeiros e do mau tempo que Cook encontrara. A bordo da Boussole e da Astrolabe
encontram-se os mais perfeitos instrumentos, formando um verdadeiro
“observatório ambulante”. Assim, a principal preocupação “geográfica” da
expedição de Lapérouse é a continuidade natural da última viagem de
Cook. Aos dois é designada uma tarefa essencial: revelar o mais
exatamente possível as coordenadas de todas as terras examinadas. Um
engenheiro-geógrafo, Bernizet, é também encarregado de reconhecer as terras visitadas e de fazer o seu mapeamento cartográfico.
- 3 E, melhor ainda, é a parte de seus objetivos à qual se deseja dar maior publicidade. Este aspecto a (...)
21Mas
se a viagem, do ponto de vista científico, é antes cartográfica,
oceanográfica e hidrográfica, acrescente-se a isso programas de estudos
afins a todos os domínios científicos.3
Basta lançar um olhar sobre a lista dos volumes presentes na biblioteca
de bordo para se fazer uma idéia da influência das idéias e dos mais
famosos sábios da época. Encontram-se textos de Lineu, de Buffon e de
Bonnet acompanhados de todos os outros grandes nomes da história
natural, bem como de outros ramos da ciência (Taillemite, 1977).
22Do
mesmo modo, a quantidade de sábios embarcados nesses dois navios
ultrapassava em muito todas as outras viagens francesas realizadas até
então. É o próprio Lapérouse quem nos dá o nome dos naturalistas que o
acompanhavam:
(...) de Lamanon,
da Academia de Ciências, foi encarregado da parte de história natural e
de seu ambiente, conhecido sob o nome de geologia. O Abade Mongés,
cônego ordinário de Santa Genoveva, redator do Journal de physique,
deveria examinar os minerais, analisá-los e contribuir ao progresso das
diferentes partes da física. Jussieu designa de La Martinière,
doutor em medicina da Faculdade de Montpellier, para a parte de
Botânica; foi-lhe agregado um jardineiro do Jardim do Rei para cultivar e
conservar as plantas e os grãos de diferentes espécies que teríamos a
possibilidade de enviar à Europa: sobre a escolha feita por Thouin, Collignon embarcou para cumprir essas funções. Prévost tio e sobrinho foram encarregados de recolher tudo o que concernia à história natural. Dufresne,
grande naturalista e bastante hábil na arte de classificar as
diferentes produções da natureza, nos foi oferecido pelo Senhor
Procurador Geral. Enfim, o Duque de Vancy, recebeu a
ordem de embarcar para pintar as indumentárias, as paisagens e
geralmente tudo o que é muitas vezes impossível de se descrever
(Lapérouse, 1831: 5, grifos nossos).
23Havia ainda, na Astrolabe, o padre Receveur, naturalista, cumprindo a função de capelão, e um engenheiro-geógrafo, Bernizet, já citado.
24Nas
circunavegações do fim do século XVIII e do começo do século XIX, a
presença de desenhistas é indispensável: serão eles os “olhos” dos
viajantes. Assim, três artistas participam da expedição de Lapérouse: o
Duque de Vancy e os dois Prévost. Seus desenhos são destinados a
completar os relatórios escritos dos capitães, oficiais ou cientistas
que se revelam, muitas vezes, eles mesmos, desenhistas de talento, como
foi o caso do tenente Blondela, do qual várias obras foram gravadas aos cuidados de Milet-Mureau no Atlas da Viagem de Lapérouse.
25O
Museu de História Natural ocupa um lugar de destaque nesta cena
cientifica: pelos ensinamentos que dispensava, pelos projetos que levava
adiante, ele é de grande importância nos preparativos das expedições.
E, do ponto de vista da história natural, a viagem da Boussole e da Astrolabe
vai deixar uma imensa quantidade de documentos, pranchas, desenhos, e
mesmo espécimes que enriqueceriam os museus. E esse material é apenas
uma pequena parte de tudo o que foi reunido e deixado com Lesseps no
momento em que este desembarou em Petropavlovsky, antes que o resto da
expedição desaparecesse num trágico naufrágio.
26A
viagem de Lapérouse, a primeira do gênero, torna-se assim o exemplo mais
perfeito do que serão as viagens científicas francesas do século XVIII,
tais como sempre sonhamos ou como ouvimos falar. Sua viagem marca o
início desta era nova das viagens-naturalistas. Com efeito, enquanto as
viagens científicas realizadas até então possuíam objetivos mais gerais,
ligados à história natural ou à observação da natureza, esta vai ser
marcada por uma nova preocupação: o estudo do homem, algo jamais visto
anteriormente. Não podemos certamente ainda falar de etnologia, mas
devemos mesmo assinalar, no que concerne à história natural, que esse
viajante não partiu ao redor do mundo para estudar, como sempre, pedras e
plantas, mas para estudar, pela primeira vez, os homens e seus
costumes. Assim, dos três elementos que buscamos aqui examinar na obra
de cada viajante, é o homem que vai ter a maior importância na viagem e no relato de Lapérouse.
27Ao
invés de pensar o homem como objeto de ciência, Lapérouse partiu com o
objetivo de estabelecer novos “contatos” com os povos “selvagens”. A
bordo de seus navios embarcaram todas os tipos de objetos apropriados
para seduzir os “nativos”.
Eles
foram com dois mil machados e dois mil pentes com um milhão de agulhas e
cinqüenta e duas cascas de pluma de dragão. O próprio rei redigiu as
instruções pessoalmente: ‘O Senhor Lapérouse, em todas as ocasiões,
usará com muita doçura e humanidade para com os diferentes povos que ele
visitará no curso de sua viagem. Ele se ocupará com zelo e interesse de
todos os meios que podem melhorar sua condição procurando nos
diferentes paises os legumes, os frutos e as árvores úteis à Europa,
aprendendo a maneira de semeá-las e de cultivá-las... (Brosse, 1983:
79).
28Provavelmente
por ser portador do otimismo racionalista de seu século e animado de
sua fé no progresso e utilitarismo, Lapérouse concebe sua exploração
como a abertura a um plano colonizador, a uma exploração comercial
proveitosa e a uma valoração dos territórios e dos homens. Enfim, a
exploração dos recursos mundiais deveria, a seus olhos, ser eficaz,
moderna e “humana”.
29A
opinião de Lapérouse sobre os “selvagens” pode parecer algumas vezes
contraditória com esses princípios. Mas esta é uma falsa impressão. De
fato, quando de seus primeiros contatos com essas tribos, a idéia que
tem esse viajante é próxima da de Bougainville diante dos nativos do
Taiti: a mesma visão paradisíaca do Bom Selvagem. Lapérouse fala também
de povos pacíficos, hospitaleiros e dotados de um “certo grau de
civilização”. “Esses insulares (...) são sem dúvida os mais felizes
habitantes da Terra; rodeados por suas mulheres e suas crianças, eles
vivem no seio do repouso dos dias puros e tranqüilos...”.
- 4 Sobre esta questão, ver o exemplo descrito em Lapérouse (1831: 59-74).
30Porém, à medida que aumenta seu conhecimento sobre os nativos, Lapérouse vai mudar de opinião e chegar a destacar que “os mais atrevidos malandros da Europa são menos hipócritas que esses insulares...”; ou que “os corpos desses índios, cobertos de cicatrizes, provavam que eles estiveram muitas vezes em guerra ou em conflito entre eles”. Ou mesmo que o “homem quase selvagem e na anarquia é um ser mais mordaz que os animais mais ferozes”. Enfim, é impossível fazer sociedade com o homem da natureza porque ele é “bárbaro, mordaz e patife”.4 Lapérouse ataca ainda os filósofos do século: “eles escrevem seus livros no calor de uma lareira e eu viajo desde os trinta anos” e assevera que “os povos descritos como tão bons por serem bastante próximos da natureza”
são cruéis e desprovidos de todo sentimento de justiça e benevolência.
Para esse viajante o Bom Selvagem não passa de uma ilusão.
31Poderíamos
propor um outro olhar sobre a questão: esta negação da existência do
Bom Selvagem que idealizam os filósofos, ou, ao menos, esta visão mais
realista sobre a questão assinala o nascimento de uma idéia que vai
progressivamente estabelecer o “verdadeiro” homem do Novo Mundo. Em
outros termos, vamos poder passar, a partir desse momento, a uma análise
mais “antropológica” ou “etnográfica” desse homem inteiramente novo, em
uma abordagem mais real e, em todo caso, mais científica que a dos
viajantes que o precederam Lapérouse. É o que nos lembra Hélène Minguet
em sua Introdução à viagem de Lapérouse:
No
seio dessas contradições aparentes, o leitor de Lapérouse poderá ver se
destacar um certo número de idéias novas que são o fundamento da
reflexão antropológica dos séculos XIX e XX. Tal é o caso, por exemplo,
da noção de desigualdade do desenvolvimento dos diversos setores da vida
social ou intelectual dos povos, em uma época onde se acreditava ainda
no progresso necessariamente uniforme de todos os setores (Minguet,
1980).
32Se a idéia do Bom Selvagem não vai desaparecer, ao menos não encontrará eco no relato de Lapérouse.
33Por
outro lado, esse viajante não encontrou, pelos lugares por onde passou,
apenas o que se podia chamar de “selvagens”. Em alguns lugares, como no
Brasil, ele pôde mesmo ver cidades onde a civilização européia estava
já instalada. É assim que, em Santa Catarina, no Brasil, ele fala da
beleza do país e da bondade dos habitantes: “seus costumes são
doces; são bons, polidos, solícitos; mas supersticiosos, e bastante
ciumentos com suas mulheres, que nunca apareciam em público” (apud Minguet, 1980: 23).
34A
construção de uma imagem do habitante da América, inteiramente diferente
daquela de um simples “nativo”, começava a se construir.
35Em
13 de julho de 1786, no Porto dos Franceses, na costa do Alasca,
aconteceu a primeira tragédia da viagem. Um barco e duas grandes
gôndolas se aproximaram demais da corrente do canal e acabaram
chocando-se contra os rochedos. Seis oficias e quinze marujos morreram
afogados.
36Em 2
de agosto de 1787, Lapérouse descobre entre a Coréia e a ilha de
Sacalina o estreito que leva ainda seu nome. Fazendo escala em
Petropavlovsky, ele decide então desembarcar um passageiro da Astrolabe,
o Barão de Lesseps, embarcado como intérprete russo, que deveria deixar
a expedição levando os diários de viagem, mapas, trabalhos científicos e
voltar para a França.
37A
segunda tragédia vai se passar na ilha Manoa, em dezembro de 1787.
Lapérouse se apressou a deixar esta ilha que o havia decepcionado. Deste
modo, decide partir o mais cedo possível, mas o capitão De Langle
queria renovar sua reserva de água. Após terem enchido os barris do Astrolabe,
os viajantes são atacados subitamente por indígenas. Dos sessenta e um
homens presentes no episódio, doze pereceram massacrados (dentre eles,
De Langle) e vinte outros ficaram feridos. Chocado, Lapérouse parte com a
expedição para o sul, na direção da Nova Holanda (Austrália), onde
aporta em Botany-Bay. E é daí que parte para a França sua última carta
em 7 de fevereiro de 1788. Após isso, fez-se o silêncio...
- 5 Mesmo que a expedição por ele comandada comporte objetivos naturalistas, não estudamos d’Entrecaste (...)
38Soube-se
que a expedição deixou Botany-Bay em fevereiro de 1788. Em 1790, a
Sociedade de História Natural de Paris solicitou à Assembléia
Constituinte que duas embarcações fossem enviadas em busca da Boussole e da Astrolabe. Sob o desejo expresso pela Assembléia, Louis XVI se apressa a dar a ordem, e as fragatas Recherche e Espérance
foram confiadas ao capitão d’Entrecasteaux, encarregado não somente de
procurar Lapérouse, mas ainda de dar continuidade a suas descobertas e
de completar o plano que lhe havia sido traçado.5
A busca de d’Entrecasteaux foi infrutífera, mas alguns anos mais tarde,
em 1826, Petre Dillon, um capitão inglês, descobriu, nas mãos de um
indígena de uma ilha do arquipélago de Santa-Cruz, na Oceania, a espada
de Lapérouse. O capitão Dumont d’Urville foi, então, imediatamente
encarregado de dirigir uma expedição para encontrar rastros dos
desaparecidos. No arquipélago dos Amigos, na ilha de Vanikoro, um índio
concorda, em 26 de fevereiro de 1828, em conduzir o tenente Jacquinot
aos recifes onde teria ocorrido o evento. A Astrolabe foi
encontrada. Os nativos relataram saber que dois navios chegaram àquele
local, que um deles fora à deriva sobre um recife enquanto o outro
ficara encalhado. Contaram também que os sobreviventes saíram por terra
para não serem massacrados. E é apenas em 1964 que Discombe, um
neozelandês, descobriu os destroços da Boussole dentre milhares de restos da Astrolabe. Tal foi o fim trágico de uma das maiores expedições marítimas de seu tempo.
- 6 Freycinet, embarcado na Géographe, também fez parte da expedição comandada por Perón.
- 7 Deixando Porto Jackson em 25 de dezembro, em fevereiro de 1820 a Uranie aproxima-se da Terra do Fog (...)
39A expedição comandada por Louis-Claude Desaulces de Freycinet6 levantou velas de Toulon em 17 de setembro de 1817, embarcada na Uranie, uma corveta de 350 toneladas. A Uranie
lança âncora no Rio de Janeiro em 6 de dezembro, onde, graças às
condições bastante favoráveis para fazer as observações do pêndulo e das
bússolas, vai aportar e pemanecer, respectivamente, dois meses na ida
(de 6 de dezembro de 1817 a 29 de janeiro de 1818) e três meses na volta
(de 20 de junho a 13 de setembro de 1820).7
40Os
objetivos dessa expedição resumem bem os desejos dos viajantes que
partiam ao redor do mundo na época e que nos interessam neste trabalho. A
Academia de Ciências, a quem foi confiada a tarefa de encaminhar os
resultados da viagem, expôs assim os objetivos de Freycinet:
O
objetivo principal da expedição comandada por Freycinet era a pesquisa
da figura do globo e dos elementos do magnetismo terrestre; várias
questões de meteorologia foram também indicadas pela Academia como
bastante dignas de atenção. Ainda que a geografia devesse ser, nesta
viagem, apenas um objetivo secundário, podia-se acreditar que os
oficiais experimentados, cheios de zelo e munidos de bons instrumentos,
não fariam a volta no globo sem acrescentar alguns preciosos resultados
às tabelas de longitude e de latitude; sem um naturalista de profissão,
nossos navegadores contraíram a obrigação se não de estudar, ao menos de
recolher para os Museus todas as amostras dos três reinos que
parecessem oferecer algum interesse; deveu-se esperar, além disso, do
desenhista que o governo vinculou à expedição, que ele representasse
fielmente com crayon, pena ou pincel, aquelas amostras cuja fragilidade
ou volume não permitissem transportar e que figurariam com cuidado essas
visões das costas que, além de fornecer aos navegadores úteis
indicações, formam também muitas vezes agradáveis paisagens; era enfim
natural esperar que Freycinet e seus colaboradores agregassem algumas
novas particularidades à historia dos povos selvagens (Arago et alii,
s/d: xiii-xiv).
41Após
conhecer o imenso relato, bem como os resultados da viagem de
Freycinet, resta-nos a impressão, o sentimento mesmo, de se estar diante
de uma viagem científica/naturalista por excelência e que caracterizou,
talvez mais que nenhuma outra, o século das Luzes. Todos os elementos
para tal juízo aí se encontram: o desejo de saber e de dominar o mundo
pela ciência, a questão do “olhar do viajante”, os campos entrecruzados
da geografia e da história natural, a preocupação de incluir o homem nos
limites de uma história natural e da ciência – para citar apenas
algumas das características ditadas pelas Luzes.
- 8 O irmão mais novo do célebre astrônomo.
42E este espírito está talvez ainda mais visível nesta viagem da Uranie,
a partir de alguns elementos pitorescos, divertidos mesmo. É o caso,
por exemplo, da presença a bordo de dois personagens que dão, sem
dúvida, um charme todo especial à viagem: Jacques Arago,8 escritor de bordo, verdadeiro poeta, embarcado com a missão de desenhista, e Rose Freycinet, esposa do capitão que, totalmente devotada ao marido, embarca sobre a Uranie disfarçada de homem.
- 9 Esta dimensão do “olhar” vai marcar não apenas sua viagem, mas também sua vida. Tornado cego em 183 (...)
- 10 Uma tradição que marcará a geografia de nossos viajantes e ao longo de toda sua história, passando (...)
43Esses
dois personagens vão marcar a viagem com beleza e poesia. Arago,
enquanto desenhista, será o responsável pelo “olhar do viajante”.9
O olhar que ele dirige para a natureza, para a vida social, para os
costumes e para o homem do Brasil, completa perfeitamente o trabalho dos
cientistas. Arago terá ao mesmo tempo o olhar do naturalista e do
viajante, pois, além de nos deixar desenhos de rara perfeição, nos
deixará também vários relatos e romances. Estes, sempre baseados nas
viagens, possuem um elevado valor literário. De rara qualidade e
bastante agradáveis à leitura, oferecem-nos as mais belas imagens
poéticas que poderíamos encontrar nos relatos de nossos viajantes. Esse
duplo olhar dará lugar a descrições comparáveis às que serão conhecidas,
mais tarde, por meio dos geógrafos modernos. E é assim que a tradição
“descritiva”10 ganha, no curso desta viagem, mais peso que nunca.
- 11 Freycinet, Rose Desaulces de (1927). Campagne de L’Uranie (1817-1820). Journal de Madame R., d’apré (...)
44Do mesmo modo, a presença de Rose Freycinet na Uranie
não nos deixou somente a imagem poética de uma mulher apaixonada por
seu marido e que decide pura e simplesmente acompanhá-lo. Pelo
contrário, Rose escreverá também um diário,11
que, publicado em 1927, nos permite ver essa volta ao mundo através dos
olhos de uma mulher inteligente, corajosa e decidida que soube se fazer
presente e que adquire rapidamente a estima e o respeito de todos. É
certo que as determinações da Marinha proibiam o embarque de mulheres
nos navios do Estado sem autorização especial e a situação foi logo
conhecida, mas a Uranie já estava longe. Pelo interesse que
trazia ao trabalho científico a bordo, seus desenhos de paisagens – como
um, bastante belo, do litoral do Rio de Janeiro – vistas no momento das
paradas da Uranie, a Sra. Freycinet merece ser citada aqui como uma das mulheres que participaram da construção de uma nova geografia.
45Mas
o que faz também desta viagem, dentre outras características
relevantes, um exemplo das viagens do século XVIII, é o imenso sucesso
alcançado por seu relato. Este teve, de fato, como assinalaram os
editores, uma difusão importante junto a um “grande número de grandes personagens, intelectuais e amadores” (em Freycinet, 1824-1844: 1).
46Seus
nove volumes se organizam em torno de três partes distintas. Na parte
“histórica”, o próprio capitão conta a viagem, as condições de
navegação, a situação política, econômica e social, bem como a história
dos lugares visitados. E, certamente como não será surpresa para nós,
trata dos mapas e medidas da Terra, bem como da hidrografia (a geografia
desta época, enfim). E, em alguns momentos, veremos mesmo delinear-se
uma espécie de “geografia econômica” nas observações de Freycinet. Em
seu relato encontram-se ainda informações tanto históricas quanto
geográficas sobre o Estado do Rio de Janeiro (ele nos prepara uma lista
completa das divisões políticas do estado, da história de suas cidades e
povoados), e também informações sobre sua produção econômica, sua vida
social, seus habitantes... (Arago também fará uma crônica desta
sociedade, mas imprimindo-lhe uma tonalidade completamente diferente,
dando mais lugar a comentários sobre a vida social do Rio do que às
preocupações ditas “científicas”).
47Uma
passagem deste histórico do capitão oferece perfeitas descrições do
território do Rio de Janeiro: montanhas, rios, situação das cidades,
permitindo caracterizar geograficamente esse território. Quanto a uma
geografia econômica, que se ocupe da produção e da distribuição, podemos
encontrá-la na parte histórica dedicada à fertilidade do solo, às
produções vegetais e animais, bem como na parte consagrada à colônia
portuguesa.
48O
relato compreende uma segunda parte concernente aos “resultados para a
história natural”, realizada inteiramente pelos naturalistas do navio: Quoy, Gaimard e Gaudichaud.
Esta parte inclui pranchas, desenhos, descrições cientificas, bem como
de coleções de espécimes destinadas aos museus (um dos objetivos de
viagem).
49Como
vemos, os resultados de expedição, seja para a história natural, seja
para a geografia, não poderiam ser mais ricos. É o que atesta, aliás, o
relatório da academia que coloca em evidência que, no que diz respeito à
geografia (da época), a expedição permitiu: a localização de
inumeráveis lugares; a observação relativa à determinação da forma da
Terra, bem como das latitudes e das longitudes precisas e confirmadas.
Com respeito à história natural, retomamos o que nos diz o relatório
sobre as aquisições para os três reinos da natureza: a coleção botânica
resultante das coletas da viagem de Freycinet se compunha de algo em
torno de três mil espécies, das quais quatrocentas a quinhentas não se
encontravam nos herbários do Museu de História Natural, e das quais
duzentas eram desconhecidas. Infelizmente, um grande número de espécimes
submergiu na ocasião do naufrágio da Uranie. É ao zelo e ao
trabalho de Gaudichaud, o jovem farmacêutico da expedição, que se deve a
rica e interessante coleção de vegetais. Além disso, Gaudichaud repôs
no Jardin du Roi uma grande quantidade de frutos, grãos, gomas e outros produtos vegetais.
50No
que concerne às coleções geológicas, a expedição encaminhou ao Museu
cerca de novecentas amostras de rochas, coletadas em diferentes lugares
onde aportaram. O mesmo ocorreu com a entomologia. Durante a escala da Uranie
na Ile de France (Ilhas Maurício), Freycinet envia ao Museu quatro
grandes caixas, guardando cerca de duzentos lepidópteros, quatrocentos
ou quinhentos outros insetos provenientes do Brasil, bem como quarenta
espécies de crustáceos. Esta coleção e a de aracnídeos merecem também
ser destacadas, pois comportam várias espécies até então desconhecidas.
51Sempre
segundo o relatório da Academia, quanto à Zoologia (também chamada no
relatório, “história dos animais”), Quoy e Gaimard, médicos da
expedição, enriquecem o Museu com um grande número de animais raros que
faltavam a suas coleções. Enviam também uma imensa quantidade de
espécies ainda desconhecidas pela ciência; preparam, eles mesmos, os
animais coletados e, com Gaudichaud, oferecem ao Museu numerosos animais
curiosos que tinham recolhido e preparado no curso da viagem. Apesar
das dezoito caixas perdidas no naufrágio da Uranie, as coleções
encaminhadas pela expedição ofereciam ainda vinte e cinco espécies de
mamíferos, trezentos e treze espécie de pássaros, quarenta e cinco de
répteis, cento e sessenta e quatro de peixes, e um grande número de
moluscos, anelídeos, pólipos, moluscos etc.
52Ainda
no que concerne à Zoologia, a partir de uma observação minuciosa dos
costumes dos animais, vão buscar as diferenças que podem existir e as “diversas modificações que as latitudes e as localidades fazem sobre seus instintos”
(Quoy e Gaimard, s/d: 12). Esta discussão está, aliás, no centro das
questões estudadas por Buffon, na época. Questão que estava de certo
modo na ordem do dia e que alimentava estudos, debates e discussões
sobre aclimatação, na Europa, dos animais e das plantas originárias de
outros lugares.
53Por outro lado, o primeiro capítulo do volume da Zoologia é dedicado ao homem e os dois médicos advertem: “Começaremos nossas observações zoológicas ocupando-nos do homem, primeiro anel da cadeia animal”
(id., ibid.: 1). Localizado no primeiro lugar da grande cadeia dos
seres, mas já também “naturalmente” contado entre os animais, levado a
assumir seu lugar em uma história da terra e do mundo natural, surge o
homem. Como de hábito entre os naturalistas do século, eles vão
imediatamente se ocupar das medidas do crânio, “o invólucro ósseo que guarda os órgãos de sua inteligência”
(id., ibid.: 1). Esses órgãos, associados à alma, localizavam o homem
no topo desta grande cadeia da natureza. Os estudos das línguas bem como
dos hábitos e dos costumes serão também objeto de uma etnologia
nascente, da qual se ocupará o próprio capitão.
54Mas, o que se torna o homem para Freycinet? Qual é sua opinião bem como sua contribuição ao debate sobre o Bom Selvagem? Em sua Lettre de Guam,
de 20 de março de 1819, onde faz um elogio à Civilização, ele se situa
contra os filósofos do século XVIII e seus sonhos do homem in natura, bem como fez, aliás, antes dele, Lapérouse:
Eu
não tenho nada a dizer sobre os lugares que visitamos; representam para
a maioria, regiões ainda selvagens; e apesar de tudo o que delas dizem
nossos filósofos do século XVIII, este estado não é feito para o homem; a
natureza o chama a um mais elevado destino. Longe então de condenar os
progressos da civilização, seria desejável que os seres superiores os
fizessem propagar em todos os povos. Se existem grandes abusos dentre as
nações policiadas, eles não são nada em comparação com o horror a que
são incessantemente expostos os infelizes mergulhados na barbárie
(Freycinet, 1820: 375).
55E falando da colônia portuguesa no Rio de Janeiro, a qual queria elogiar, começa:
Desviemos
nossos olhos de tão repugnante espetáculo (os “habitantes primitivos”),
triste fruto da degradação do homem, e os direcionemos a objetos mais
satisfatórios e mais doces. A colônia européia que os portugueses
estabeleceram sobre esse litoral, vai se apresentar ornada das vantagens
que ela deve a uma civilização já antiga... (Freycinet, 1824-1844:
161).
56Quanto
à visão da natureza brasileira, é freqüentemente sob a pena de Arago
que vai se encontrar uma descrição que comporte elementos mais
apropriados ao século, como o “imaginário das ilhas” ou uma visão
paradisíaca das terras situadas do outro lado do Atlântico, onde o tempo
parece ter parado. Esta impressão de um lugar atemporal e, então,
a-histórico, torna-se o signo de um grande distanciamento da
civilização, quando não, da ausência total de civilização. É o que
transparece na passagem seguinte onde ele evoca sua visão da natureza
brasileira:
Eis
então o Brasil, terra fecunda dentre as mais fecundas do globo;
diríamos, uma natureza à parte, uma natureza privilegiada. Para se
enriquecer, a cobiça tem apenas de respirar, pois a brisa do mar, que
sopra pela manhã, vos dá forças contra o calor do dia; e o vento da
terra, que atravessou as altas montanhas do interior, vos faz
rapidamente esquecer à noite a temperatura de uma zona esmagadora. Aqui
nadam muitos peixes nos rios, muitos pássaros voam no ar, muitos frutos
pesam sob as árvores, muitos insetos sob as ervas. Aqui as montanhas
guardam pedras preciosas, os mananciais carregam pepitas de ouro e
diamante tão belos quanto os de Golconde. No Brasil, não há nenhuma
dessas doenças epidêmicas ou contagiosas que exterminam populações e das
quais mesmo a lembrança é uma calamidade.
Se você gosta de uma vida
indolente e tranqüila; se para você o repouso é a felicidade, suspenda
sua rede nos trocos descasados das palmeiras, ou busque uma doce
habitação na praia tocada pelas ondas preguiçosas, mas se você detestar a
monotonia dos prazeres isentos de peripécias, permaneça onde está;
pois, no Brasil, cada manhã da véspera parece a manhã do dia seguinte; e
acredite que a nuvem que passa hoje sobre vossas cabeças é a nuvem que
ontem acabou por vos proteger em sua sombra ou vos refrescou de sua cor
de rosa.
No Brasil, diríamos que esta natureza forte e vigorosa que
pesa sobre o solo é a mesma desde séculos e que ela nunca se renova
(Arago, s/d: 47).
57“Esse nome Brasil lembra tudo o que a natureza tem de mais belo e mais fecundo”. É por essas palavras que os médicos da expedição começam a descrição da natureza brasileira em sua Zoologie
(Quoy e Gaimard, s/d: 12). E, os elementos que lembram em seguida,
retomando as palavras de Mirbel, não diferem em quase nada dos elementos
utilizadas por Arago em sua visão mítico-poética desta natureza:
Nada
se iguala ao esplendor das florestas do Novo Mundo: não se pode deixar
de admirar esta quantidade infinita de vegetais densamente aproximados,
confundidos, tão diferentes entre si, e algumas vezes tão
extraordinários em sua estrutura e seus produtos; essas dicotiledôneas
enormes cuja origem remonta a épocas vizinhas das últimas revoluções da
terra, e que não levam ainda nenhuma marca de decrepitude; essas
palmeiras impetuosas contrastam pela extrema simplicidade de seu porte
com tudo o que as rodeia... O solo é bastante coberto pelos numerosos
germes que nele se desenvolvem... a vegetação não se modera jamais, e a
terra, longe de se esgotar se torna, a cada dia, mais fecunda. Das
legiões de animais de todo tipo, insetos, pássaros, quadrúpedes,
répteis, seres tão variados e não menos extraordinários que os vegetais
indígenas, se retiram sob a abóbada profunda dessas velhas florestas,
bem como nas cidadelas à prova dos empreendimentos humanos (Quoy e
Gaimard, s/d: 13).
58E encontraremos facilmente nesta descrição das plantas cuja “origem remonta a épocas vizinhas das últimas revoluções da Terra, e que não trazem ainda nenhuma marca de decrepitude” a própria idéia de juventude que Buffon queria imprimir à natureza do Novo Mundo.
59Uma
terceira parte importante desse relato e que merece atenção, é a que
concerne aos desenhos. Com efeito, além dos animais enviados por
Freycinet, conta-se ainda um número considerável de desenhos de
pássaros, peixes, conchas, insetos, feitos com muito cuidado e precisão
por Arago, bem como pelo cientista Gaudichaud e pelo pintor naturalista Taunay.
Os desenhos de Arago devem ser considerados dentre os bens mais
preciosos legados por esta expedição. Eles compreendem os desenhos
científicos, cerca de quinhentos desenhos representando localizações e
vistas do litoral, objetos de zoologia e botânica, bem como desenhos
mostrando nativos (com seus costumes, usos, armas etc.) nos diferentes
lugares visitados.
60Assim,
a viagem de Freycinet resultou em quatro Atlas, um dos quais consagrado
à Zoologia e outro à Botânica. É preciso destacar que os volumes de
Zoologia e Botânica comportam também a descrição científica de cada
prancha encontrada no Atlas, o que enriquece e confere ainda mais
importância ao imenso trabalho científico da expedição.
61Esses
Atlas inaugurariam a série de grandes obras ilustradas que acompanharão
mais tarde os relatos dos viajantes. Suas pranchas constituem ainda
hoje uma documentação única no mundo, de uma exatidão e de uma beleza
raramente conseguidas. A partir dessa viagem, os artistas autores das
pranchas passaram a ser escolhidos entre pintores da natureza, na maior
parte das vezes ligados ao Museu de História Natural. Quanto aos Atlas
“históricos” (representando as paisagens e outros detalhes menos
“científicos”), ilustrando, como seu nome indica, a história da viagem,
eles não são menos preciosos. Como nos lembra Brosse 1983: 145), “graças
a eles, encontramos intacta a imagem das terras desconhecidas, e
sobretudo a de seus habitantes com o próprio olhar daqueles que
encontraram pela primeira vez esses seres tão diferentes deles...”.
62Sem
dúvida são as viagens desse grupo que deixarão o maior número de
“imagens”. Na viagem de Freycinet, os desenhos de Arago, acompanhados de
pranchas científicas, representam um dos exemplos mais perfeitos desse
“retrato do mundo” que servirá para abrir as vias para a ciência.
63Em
1820, o trabalho dos naturalistas estava apenas começando. A partir de
agora, eles deviam se ater ao estudo minucioso de todos os objetos
enviados e classificar as espécies novas. Esse trabalho será
interrompido pela partida de Quoy e Gaimard para uma nova expedição,
comandada desta vez por Dumont d'Urville (que veremos mais adiante).
Assim, sua Zoologie, referente à viagem de Freycinet, só seria publicada no seu retorno. Quanto a Gaudichaud, uma vez concluída sua Botanique, ele parte novamente, em dezembro de 1830, para a América do Sul, na fragata Herminie.
64Filho
mais velho do capitão Louis-Antoine de Bougainville, Hyacinthe de
Bougainville deixa Brest em 2 de março de 1824, tendo sob seu comando a
fragata Thétis e a corveta Espérance. Como nas viagens
vistas anteriormente, a expedição parte como o projeto de estabelecer
relações comerciais e diplomáticas, mas também com objetivos
científicos, sempre ligados à coleta de espécimes para os museus da
França. (Cuvier receberá ricas coleções enviadas por H. de Bougainville
que enriquecerão o Museu de História Natural e fará sobre elas grandes
elogios).
65Retomando
o mesmo esboço que Freycinet ou Duperrey, H. de Bougainville vai nos
propor um relato que comportará também partes “históricas”: ele próprio
escreverá o primeiro tomo, enquanto que o segundo será redigido sob a
direção do tenente da embarcação, o Conde Edmond de la Touanne, embarcado na Thétis.
Esse último escreverá seu próprio relato “histórico” e desempenhará um
papel importante como “naturalista-geógrafo”, como testemunham os
desenhos que nos legou. Além dessa parte dedicada à história natural, la
Touanne reuniu também neste Atlas pranchas relativas a seu itinerário e
seis pranchas da cidade do Rio. Esse segundo volume comporta ainda
observações astronômicas e meteorológicas.
- 12 Lesson não fez parte desta expedição de H. de Bougainville; após ter feito parte da expedição de Du (...)
66A parte dedicada à história natural será aberta por René Primevére Lesson e será redigida na França.12
O Atlas de história natural comporta pranchas de mamíferos, pássaros,
répteis, lepidópteros e plantas, todas acompanhadas de suas
classificações e descrições e, na maior parte das vezes, com referência
aos grandes naturalistas da época: Cuvier, Buffon, Geoffroy
Saint-Hilaire...
67Não
obstante, por força da análise do trabalho produzido por vários
viajantes do grupo considerado, não somos mais surpreendidos pela beleza
e pela perfeição dos desenhos e das descrições da natureza feitas por
Bougainville e sua equipe. Porém, um ponto merece ser assinalado: a
descrição dos mamíferos proposta por Lesson no início deste tomo. É aí
que se releva a imagem do homem concebida pelos viajantes da Thétis e da Esperance:
Bougainville
e Busseil enviaram para a França várias estatuetas feitas na China
representando o caso de monstruosidade que a prancha XXXV deste Atlas
reproduziu com fidelidade, a partir destas pequenas estátuas. O
indivíduo que teve assim o corpo de seu irmão pendurado pela parte
inferior de seu tórax, tinha a idade de vinte e três anos. Ele se
chamava Ake, e se fazia ver publicamente na ocasião da escala da fragata
Thétis em Macau. Isidore Geoffroy Saint-Hilaire reproduziu esse caso de
heteradelfia no Atlas que acompanha seu Tratado de Teratologia (pl.
XVIII, f. 4).
Os exemplos de aderência nos casos de monstruosidades,
por duplicação, não são raros. Buffon descreveu as duas gêmeas Hélène e
Judith, que eram unidas uma à outra pelos rins. Nesses últimos anos os
dois irmãos siameses Chang e Eng chamaram a atenção pública sobre sua
aderência pelo alto ventre (Lesson, ??? v. II: 76).
68É o
olhar próprio ao começo do século XIX: o Outro é o “estrangeiro”
(chinês), o “diferente” (o “louco” em certo sentido), a “monstruosidade”
propícia a despertar a curiosidade. A “aberração” se torna objeto da
ciência, e para isso busca-se mesmo amparo em Buffon (“Buffon
descreveu...”). Para todos esses viajantes que se voltaram a um estudo
mais “antropológico” ou “etnológico” do homem, a figura fantástica do
Bom Selvagem não tinha efetivamente mais razão de ser. Novos olhares
sobre o homem se desdobram de modo vigoroso, como prova esta análise do
homem que Lesson localiza entre os objetos da zoologia. O homem tinha
definitivamente se tornado objeto da ciência e a viagem de H.
Bougainville está aí para provar.
69As
duas viagens sobre as quais vamos agora nos deter não se sucedem no
tempo. Com efeito, se quiséssemos seguir estritamente a ordem
cronológica, seria preciso intercalar entre elas a viagem de Hyacinthe
de Bougainville, desenrolada entre 1824 a 1826, à qual acabamos de nos
referir. Optamos então por apresentar conjuntamente essas duas viagens,
em razão dos pontos que possuem em comum. Tal opção evita uma sobrecarga
inútil na análise e o risco de omitir alguns detalhes tão curiosos
quanto importantes, que marcaram estas duas expedições.
- 13 A O nome Astrolabe foi dado à antiga corveta Coquille, em homenagem ao navio do capitão desaparecid (...)
70Jules Dumont d'Urville fez três viagens importantes no século XIX: a primeira foi sob o comando de Dupurrey a bordo da Coquille, entre 1822 e 1825; na segunda, ele foi o capitão da Astrolabe,13 na busca de Lapérouse, entre 1826 a 1829; na terceira, partiu na direção do Pólo Sul, de 1837 a 1840, sempre como capitão da Astrolabe, acompanhado da Zélée. Ele só virá ao Brasil no curso de sua primeira e de sua terceira viagem.
71Para
analisar os textos de Dupurrey e de d'Urville no âmbito de nosso
trabalho, teríamos de considerá-los como dependentes de uma única e
mesma viagem – a que eles conduziram a bordo da Coquille. No
curso dessa viagem, pararam por quinze dias nos arredores de Santa
Catarina. Quando navega na direção do pólo sul, d'Urville visita o Rio
de Janeiro, ainda que por apenas um dia. Como esses dois viajantes foram
de considerável importância para a história natural e para a geografia
moderna, seria lastimável não levarmos em consideração a “viagem ao Pólo
Sul” no seio de nosso trabalho. Assim, a única dessas viagens que não
será levada em conta será aquela que não tocou as costas do Brasil, a de
Dumont d'Urville, a bordo da Astrolabe em busca de Lapérouse.
72A viagem da Coquille
é sem dúvida uma das mais importantes de seu tempo. Um ano após o
retorno de Freycinet, Louis Isidore Duperrey, antigo segundo tenente na Uranie
e agora promovido a primeiro tenente da embarcação, propunha ao
ministro da Marinha um itinerário destinado a completar a viagem de
Freycinet. De fato, tratava-se de uma viagem de descobertas que “tinha principalmente por objetivo o aperfeiçoamento da geografia e das ciências físicas e naturais” (Dupurrey, 1825-1830, v. I: 2).
73O projeto foi aprovado pelo rei no começo de 1822 e Dupurrey recebeu o comando da corveta Coquille,
que deixa o litoral de Toulon em 11 de agosto de 1822. A ilha de Santa
Catarina, no sul do Brasil, foi alcançada em 16 de outubro e Dupurrey e
sua equipe vão nela permanecer até o dia 30. Eles evitam assim a cidade
do Rio que vivia os problemas políticos da revolução que deveria
conduzir à Independência.
74Dupurrey
tinha como co-comandante Jules Dumont d'Urville, encarregado também da
botânica e da entomologia, bem como da “etnografia”. Completando o corpo
dos naturalistas encontravam-se o cirurgião-chefe Prosper Garnot e seu
adjunto, o cirurgião e farmacêutico René Primevére Lesson, que deveria
se ocupar da zoologia; e Lejeune, que conseguiu uma posição na corveta
na qualidade de desenhista. A viagem iria apresentar resultados sem
precedentes na história das viagens cientificas.
75A
propósito desses resultados, a Academia de Ciências recebeu os
navegadores em sessão solene,, na ocasião de seu retorno. Dupurrey expõe
os resultados relevantes para a geografia, hidrografia e física do
globo. (E aqui, não seria demais destacar que, em seu papel de “geógrafo
tradicional”, Dupurrey considerava a geografia nada mais nada menos que
“pontos sobre o globo”). Aqui, como para todos os
viajantes-naturalistas, a parte “geográfica” é totalmente deixada aos
“marinheiros”, isto é, ao capitão e a seus ajudantes encarregados da
hidrografia e da astronomia. Nesse navio, eles eram Lottin, encarregado
da geografia e da hidrografia, e Charles-Hector Jacquinot, encarregado
da astronomia. Cinqüenta e três mapas ou planisférios foram executados
“a partir dos melhores métodos”, pelos “geógrafos” da Coquille.
76Nesta
reunião da Academia, cabe a Cuvier apresentar o inventário das amostras
de história natural trazidos pela expedição. Uma expedição, segundo
ele, “cientificamente exemplar”. A coleção geológica compreendia 33
amostras típicas reunidas por Lesson. No campo da botânica, D'Urville
recolheu 3000 espécies, das quais 400 novas. Quanto à zoologia, haviam
sido enviados vários crânios humanos, 12 espécies novas de quadrúpedes,
254 espécies de pássaros, das quais 46 desconhecidas, bem como as
maravilhosas aves do paraíso jamais encaminhadas à Europa; 63 espécies
de répteis e anfíbios, das quais 15 a 20 novas; 298 peixes conservados
em álcool, dos quais 70 foram pintados por Lesson; 1100 espécies de
insetos; e mais de 1000 invertebrados marinhos.
77Encontramos
nos relatos dessa viagem uma visão bastante “antropológica” e
“etnológica” do homem nos textos consagrados à zoologia, à parte
histórica e também nas pranchas do Atlas mostrando os costumes dos
“nativos”. De uma vez por todas a figura do Bom Selvagem desapareceu,
substituída por novas preocupações concernentes ao estudo do homem, como
o estudo do crânio e das línguas – objetos de estudo da antropologia e
da etnologia ainda balbuciantes. A preocupação em medir e observar as
diferenças anatômicas vai permitir também que se trabalhe sobre um
grande tema deste tempo – a definição e a classificação das raças
humanas. Tarefa que se ligará à zoologia, mas que será preocupação da
maior parte dos viajantes desta época, no momento em que o homem se
torna um verdadeiro “objeto de ciência”. E, no que concerne à natureza
em seu conjunto, faz-se sempre apelo, para descrevê-la, aos mesmos
temas: abundância, admiração e felicidade.
78A
fim de melhor perceber que as atividades científicas não se encerram com
o fim das viagens, basta que nos voltemos sobre o destino dos
participantes da expedição de Duperrey: Lesson redigiu os dois volumes
sobre zoologia da viagem praticamente sozinho. Nomeado pouco tempo
depois cirurgião-chefe na Martinica, Garnot escreveu e colaborou em
várias publicações. Lesson retorna a Rochefort, sua cidade natal, a qual
não deixaria mais até sua morte. Tornando-se, em 1835,
farmacêutico-chefe da Marinha, passa a ensinar botânica, consagrando-se
também à publicação de várias obras de história natural. Promovido
capitão de fragata, Duperrey não viajará, entretanto, nunca mais. Sua
carreira torna-se, daí em diante, a de um intelectual. Após a publicação
de importantes trabalhos científicos, sucederá a Freycinet na Academia
das Ciências, em 1842.
79Desde
seu retorno, Dumont d'Urville começa a trabalhar na apresentação dos
resultados da parte de história natural que estava sob sua
responsabilidade, mas teve de interrompê-los quase imediatamente para
assumir o comando da Coquille rebatizada de Astrolabe e
partir em busca da expedição desaparecida de Lapérouse. Os naturalistas
Bory de Saint Vincent, Brongniart e Latreille concluíram seu trabalho.
80É
interessante notar que, mesmo após seu desaparecimento, a expedição de
Lapérouse continuava a produzir resultados para a ciência. Com efeito,
partindo em busca de seu ilustre predecessor, d'Urville não deixava de
ter como tarefa prosseguir as pesquisas cientificas da expedição
desaparecida. Mesmo que esta expedição não faça parte de nosso universo
de estudo, devemos, entretanto, reconhecer o quanto seus resultados
foram importantes para a constituição da história natural. Dumont
d'Urville conduziu esta viagem no mesmo espírito que animava todas as
viagens cientificas sobre as quais trabalhamos. A documentação
geográfica e etnológica que ele constitui e dirige nesta expedição basta
para compor catorze volumes e cinco grandes Atlas cuja publicação se
inicia em 1830 e que seguem sendo publicados um a um por cinco anos.
81Após o retorno da Astrolabe
a um porto seguro, Cuvier apresenta à Academia de Ciências um relatório
redigido em estreita colaboração com o zoólogo Geoffroy Saint-Hilaire, o
entomologista Latreille e Duméril, especialista em répteis e peixes.
Nesse relatório, Cuvier assinala que as coleções encaminhadas por Quoy e
Gaimard, os naturalistas da expedição, encarregados, mais
especialmente, da zoologia, eram claramente mais volumosas que as
encaminhadas por todos seus predecessores ou por eles mesmos na
expedição anterior a bordo da Uranie, com Duperrey. Foram
realizados a bordo pelo menos 6000 desenhos e 6000 cópias. A parte
relativa à botânica foi organizada pelo irmão do botânico da Coquille, Pierre Adolphe Lesson, e continha, além da descrição de espécies pouco conhecidas ou novas, um Essai d'une flore de la Nouvelle-Zelande dos mais completos.
82Após
essa viagem, Dumont d'Urville, nomeado capitão da embarcação,
candidata-se, após a morte de Rossel, à cadeira deixada vaga na Academia
de Ciências por este último. A seu ver, os numerosos serviços prestados
à ciência, graças às viagens que realizara, justificavam amplamente que
esta sucessão lhe fosse de pleno diretivo. Entretanto, não é ele que
ocupa a cadeira. Talvez pensasse em se aposentar, mas Dumont d'Urville
sonhava sobretudo, e desde muito tempo, com os mares do Sul e, mais
ainda, em comandar uma grande expedição ao redor do mundo (ele nunca se
consolou em ter perdido o comando da Uranie em beneficio de seu
amigo Duperrey). De tal modo que propõe, em 1837, uma terceira viagem
cientifica de circunavegação ao rei Louis-Philippe, que a fez ser
precedida de uma exploração ao Pólo Sul. Esta nova expedição será
confiada a d'Urville que comanda mais uma vez a Astrolabe (com 86 homens e 17 oficiais) e a Zelée (conduzida pelo capitão Charles H. Jacquinot, com 98 homens e 14 oficiais).
83A expedição deixa Toulon em 1o
de setembro de 1837 e explora em janeiro do ano seguinte o estreito de
Magalhães (no caminho, faz uma escala de um dia no Rio); navegando na
direção sul, encontra as primeiras águas congeladas e, ao se deparar com
uma montanha de gelo em 22 de janeiro, interrompe sua viagem até 7 de
março. Logo após fará uma escala em Valparaiso, para ganhar em seguida o
Pacifico e abordar o Taiti, as Ilhas Samoa, Fiji e as Novas Hébridas,
bem como Vanikore e as costas de Papua e Java.
84Tendo
estudado a partida das expedições de Ross e Wilkes para explorar o Pólo
Sul, Dumont d’Urville decide ganhar velocidade e atingir o círculo
polar em 19 de janeiro de 1840. Explorando uma parte da Antártica,
batiza uma terra com o nome de sua mulher, Adélia. Antes de voltar para a
França, explora ainda as costas da Nova Zelândia e, após trinta e sete
meses de viagem, a expedição retorna a Toulon em 8 de novembro de 1840.
Em dezembro, Dumont d’Urville é nomeado contra-almirante.
85No
que concerne à história natural, os resultados desta expedição devem ser
considerados como dos mais importantes, mas também como dos mais belos
que pôde produzir uma expedição científica. Talvez se deva colocar isso
na conta de d’Urville que, antes de ser um grande capitão, era sobretudo
um verdadeiro naturalista. Além disso, os intelectuais que participavam
da expedição eram eles mesmos naturalistas da maior qualidade: Pierre
Dumotier, preparador de Anatomia e que foi encarregado da parte de
“antropologia”; Élie Le Guillou, o cirurgião-chefe da Zelée, a
quem se deve um relato “histórico” da viagem, escrito com o apoio de
Arago (o “viajante-poeta” da expedição de Freycinet); Tardy de Montravel
e L. Saison, responsáveis pelos desenhos; Honoré Jacquinot e Jacques
Hombron, responsáveis pela zoologia e pela botânica.
86Esses
dois últimos estão também na origem de um dos mais belos relatos
escritos por nossos viajantes. Nas partes que lhes foram confiadas
(Zoologia, cujo primeiro tomo é intitulado Do Homem e suas relações com a Criação, e
Botânica), fizeram apelo às mais belas palavras e pensamentos para
definir o homem, a natureza e mais particularmente a posição de cada um
dos elementos desta última na grande cadeia dos seres. Preocupação que,
como sabemos, constituía um dos principais temas da físico-teologia,
dominante na época. Eis o que esses naturalistas pensavam sobre o homem:
Todos
os seres vivos se apresentam em séries orgânicas, representando as
diversas eras da Terra, e constituem do mesmo modo tipos à parte: esses
tipos reunidos formam, eles próprios, uma escala ascendente, no cume da
qual se encontra a série humana.
Assim, lançando os olhos sobre a criação terrestre, destaca-se seu desenvolvimento progressivo até o homem. (...)
Quando
a criação atinge o limite da perfeição animal, necessária ao objetivo a
que ela se propunha, o homem surge: constitui a“série intelectual”.
Isto se desenvolve também progressivamente, porque esta marcha é
lógica... A realidade desta série intelectual é uma das questões que nos
propormos tratar. Abordaremos com confiança esse assunto, porque nos
fornece seus meios; porque nossas viagens confirmam o que a história nos
mostra, já que ela não tem nada de oposto à tradição bíblica, como
poderiam acreditar algumas pessoas. A obra do período humano só estará
completa no dia em que o homem moral, e conseqüentemente, religioso,
terá conquistado o homem bárbaro no reino da inteligência. Tal é sem
dúvida a missão do homem superior (Hombron e Jacquinot, s/d. La Zoologie, t. I: 53-56).
87A
partir dessa mistura de teologia natural e físico-teologia, pode-se
perceber que, na grande cadeia dos seres, o Outro se torna um elo
inferior ao homem “civilizado”. Deste modo, a grande tarefa filantrópica
do homem europeu, “o homem superior”, era guiar o selvagem nas vias da
evolução. Pois, não esqueçamos uma idéia própria da época: o homem
“primitivo” que eles encontraram nas mais longínquas regiões do mundo
era o ancestral do homem “superior”, “civilizado”. Ir em sua direção
propiciava àquela parte inferior da humanidade todas as chances de
ascender rapidamente vários degraus na escala dos seres. Este homem não
será então mais visto como o Bom Selvagem, mas como um ser perfeitamente
integrado na grande cadeia que formava a vida natural.
88Se
sua zoologia é uma verdadeira ode à grandeza do Criador, encontra-se
nela um estudo mais completo de antropologia e das raças humanas (id.,
ibid., t. II). Os autores se reportam então a Lineu e a outros
naturalistas da época, como Bory de Saint-Vincent, para sustentar seu
trabalho. Deve-se ainda estar atento às suas pranchas e às suas
descrições naturalistas dos animais (id., ibid., t. III), bem como à sua
botânica, que formam um conjunto cuja qualidade cientifica foi atingida
talvez apenas mais tarde, por Saint-Hilaire.
- 14 D’Urville, não somente foi um intelectual e um naturalista, mas também um capitão apaixonado pelo m (...)
89Em
seu relato “histórico”, d’Urville e Guillou não se revelam nem um pouco
diferentes dos outros vários viajantes de seu tempo, propondo-nos uma
imagem bastante clara (descrições “geográficas”) das cidades e
territórios visitados.14
Gostaríamos de ver em d’Urville a figura exemplar do naturalista
“típico” de seu tempo, mas que se dirige a um comportamento já realmente
“geográfico” (no sentido da geografia moderna). Assim parece-nos
completamente legítimo situá-lo na fronteira entre essas duas classes
(entre os naturalistas-geógrafos e os “geógrafos sctricto sensu”).
90A
necessidade de “mostrar o mundo”, aliada a uma visão teológica da
natureza que misturava elementos de um universo portador de um desígnio e
de plenitude, foi levada ao extremo pelos naturalistas-geógrafos.
Talvez estivessem mais preocupados que qualquer outro
viajante-naturalista com questões “filosóficas” concernentes à natureza.
É o que lhes permitiu fazer uma geografia bem mais elaborada do que a
construída por seus predecessores. É isto que lhes confere o mérito de
poderem ser reconhecidos como naturalistas que assumiram o papel do
geógrafo moderno.
91Mesmo
que a classificação e a análise dos viajantes que estudamos aqui não se
amarre a uma “cronologia”, é preciso, no entanto, assinalar que é na
virada dos séculos XVIII e XIX (mais especificamente na primeira metade
do século XIX) que vai se assistir à maior concentração de viagens
científicas, contribuindo para tornar esse período conhecido como “o
século dos grandes viajantes ao redor do mundo”.
92Ora,
a historiografia clássica dá destaque às transformações ocorridas no
âmbito das viagens científicas a partir do fim do século XVIII. O
viajante-naturalista vai se distinguir do simples diletante ou mesmo,
como vimos, do engenheiro-geógrafo, que incluía dentre suas preocupações
cartográficas e matemáticas algum interesse em história natural; os
verdadeiros naturalistas que participavam das expedições serão cada vez
mais numerosos. De sua parte, esses naturalistas serão também cada vez
mais permeáveis às sugestões e demandas das instituições que os
patrocinavam (estas chegavam, muitas vezes, a impor o itinerário e os
objetivos das viagens).
93Esse
grupo de viajantes (os naturalistas-geógrafos) é aquele que melhor vai
caracterizar o espírito das Luzes, marcado por um processo de
valorização social das ciências (onde a burguesia leitora/compradora dos
relatos das viagens começava também a fazer parte e a incentivar tal
valorização). Não nos surpreenderemos em notar uma evolução bastante
clara na apresentação e na própria estrutura dos relatos de viagens
desse grupo (é o que já destacamos em Lapérouse e que será retomado e
seguido pelos viajantes que virão após ele). Se nos detivermos sobre as
datas em que se deram essas viagens, será então permitido antecipar que
esta evolução do gênero no sentido de uma maior sofisticação dos relatos
pode também ser compreendida a partir da importante influência que
exerceram: 1) as três viagens do capitão Cook, entre 1768 e 1780
(especialmente sua primeira expedição, de 1768 a 1771); 2) a viagem de
Humboldt e Bonpland à América do Sul, entre 1799 e 1804; 3) a expedição
conduzida por Napoleão ao Egito (1798-1801). Esses três episódios
marcaram verdadeiramente o espírito das Luzes na França e na Europa, de
modo geral, e serviram de modelo a todas as expedições científicas
posteriores.
- 15 Sobre o conceito de civilização e sua evolução e progresso, ver entre outros: BENETTON, P., Histoir (...)
94Esse
mesmo processo vai conduzir a uma verdadeira aproximação entre o
público e a ciência. Assim esse começo do século XIX será mais do que
nunca uma época da crença na civilização e no progresso15, pois tal crença passa a fazer parte do imaginário de uma parte cada vez maior da sociedade européia.
95As
ciências naturais se constituíam também como um campo de legitimação
social e como uma atividade integrada a um projeto de afirmação da
nacionalidade. Nesse contexto, seria lícito dizer que a viagem
científica ultrapassa amplamente, nesse começo do século XIX, as
fronteiras do que convém qualificar hoje em dia como puramente
“científico”. O discurso científico era então portador de critérios
utilitários, mas também filantrópicos, tão comuns aos meios oficiais. Em
outros termos, as ciências naturais eram inseparáveis de suas
aplicações. Além disso, a formação cientifica do viajante, o apoio das
instituições oficiais, constituíam uma condição necessária para que a
viagem fosse reconhecida como um empreendimento útil à nação.
- 16 LAPÉROUSE, J –F. Voyage de Lapérouse rédigé d’aprés ses manuscrits..., Op. Cit., p. XVIII
“O
navegador, antecipadamente, descobre novas produções úteis à
humanidade: determina os diversos pontos do globo, e confirma sua rota e
a dos outros: aprende a julgar seus colegas por um maior número de
relações, e cada um de seus progressos é um novo passo na direção do
conhecimento sobre o homem e sobre a natureza.”16
96Estas
palavras de Lapérouse refletem bem o espírito que vai guiar os
viajantes de seu grupo: além do discurso naturalista, utilitarista, que
legitimava as viagens, encontram-se aí ainda dois outros pontos muito
importantes. O primeiro se refere a uma geografia, nos viajantes, que
aponta para a idéia do geógrafo moderno “relator do mundo”, que “afirma
seu caminho e o dos outros” nas novas vias da ciência, no sentido do
“conhecimento do homem e da natureza”.
97Destaque-se
também o discurso filantrópico que legitima as viagens científicas e as
preocupações dos intelectuais da época. A filantropia, reforçando os
valores humanitários e utilitaristas, estava estreitamente ligada às
ciências naturais e às viagens. Essa filosofia levava a ver a viagem
como uma troca onde a França podia, por um lado, descobrir, aclimatar e
utilizar espécies tropicais; por outro, enviando os naturalistas in loco,
permitia-se que um trabalho de história natural se fizesse a partir do
próprio terreno / campo; e colaborava, a partir da Europa, no envio de
espécies úteis, a fim de que elas fossem aclimatadas em outras regiões
do mundo. Assim, as viagens francesas de exploração não eram vistas como
uma especulação ou introdução forçada. Pelo contrário, as expedições e
os cientistas podiam mesmo ajudar a difundir saberes e produtos “úteis à
humanidade”, como foi o caso quando Lapérouse teve por missão entrar em
contato com os “selvagens”. Munido desta incumbência, ele recebe de
Louis XVI um imenso carregamento de “presentes” para trocar com os
“nativos” dos lugares visitados, a fim de lhes conquistar a confiança.
Esse sentimento, certamente ingênuo, da propagação de um crescimento e
de um progresso por toda a “humanidade” estava ainda ligado a uma outra
idéia bastante corrente entre os filantropos: o providencialismo da
natureza. A idéia de que a felicidade poderia ser conquistada por toda a
humanidade graças à descoberta e à utilização dos inúmeros produtos
naturais e pela observação minuciosa das leis da natureza. O trabalho de
nossos viajantes-naturalistas era então da mais elevada importância
para construir e confirmar a idéia de uma nação francesa que se colocava
a serviço de toda a humanidade. O discurso utilitarista, aliado ao da
filantropia, dá à tradição das viagens um sentido.
98Nem
mesmo a visão que esses viajantes terão do homem escapará desse
discurso. Um dos exemplos mais representativos é o de Hombron. Eis o que
esse naturalista, que acompanhava Dumont d’Urville no pólo Sul, pensava
sobre as relações entre o homem europeu e as outras civilizações:
- 17 HOMBRON e JACQUINOT, em DUMONT D’URVILLE, J., Voyage au pôle Sud et dans l’Oceanie..., Op. Cit., pp (...)
“Conquistar
com o único objetivo de se dar o prazer de dominar e possuir, é de fato
um ato brutal... Mas não são essas as únicas razões que podem impelir
uma nação instruída e justa na via das conquistas: a propagação da
civilização é um dever; ver nas conquistas somente a possessão de um
novo território de novas riquezas dá provas de uma inteligência muito
pouco madura”.17
99Por
outro lado, o intercâmbio entre os cientistas se estabeleceu sob novas
formas, as comunicações entre eles tomaram uma tonalidade mais dinâmica:
publicações de relatos de viagens, relatórios e comunicações dos
resultados foram apresentadas às academias de ciências; trocas de
espécimes e coleções se deram entre museus, permitindo o nascimento de
uma nova rede de informações, como mostram as palavras de Lapérouse,
bastante identificadas aos trabalhos dos outros viajantes-cientistas:
- 18 LAPÉROUSE, J.-F., Voyage de Lapérouse rédigé d’après ses manuscrits..., Op. Cit., p.31.
“...
(os albatrozes)... Foram tão bem descritos pelos naturalistas Banks,
Solander e Forster, que acompanharam o capitão Cook, que eu acredito
poder me eximir de lhe dar uma nova descrição”.18
100Esse
grupo de viajantes vai encher as coleções dos museus europeus de uma
maneira jamais vista. Mas terá também por missão buscar no mundo
“produtos interessantes” para aclimatá-los na Europa.
101Mas,
retomemos uma forma de análise que nos interessa mais precisamente,
começando por lembrar o que caracterizará em primeiro lugar os viajantes
desse grupo – “a grande apresentação do mundo”. O “olhar do viajante”,
as descrições belas e bem acabadas, as coleções, os animais
naturalizados, as ervas ou os espécimes vivos levados para a França.
Narrar o mundo – tal era, mais do que nunca, a preocupação maior dos
viajantes. Era necessário encaixar cada elemento da natureza no formato
de sua folha de papel, sem hesitar em distorcer a planta ou o animal
para fazê-los entrar no quadro escolhido (e muito mais que no simples
quadro da folha, é no quadro mental do Ocidente que se trata de fazê-los
entrar). Esse grupo, que vai dar origem às mais belas pranchas
naturalistas realizadas até então, apropriou-se cientificamente do mundo
e da natureza a partir da representação que puderam dela construir,
apoiando-se sobre seus diferentes sentidos (mais particularmente na
visão).
- 19 BROSSE, J. L’ordre des choses. Paris: Julliard. 1958, p. 44.
- 20 GUSDORF. G., Les sciences humaines et la pensée occidentale. Vol. V: Dieu, la nature, l’homme ao si (...)
102Os sentidos “não fazem em nada progredir na direção do essencial”19.
O trabalho dos cientistas, sábios e viajantes desse começo de século
XIX não podia se reduzir a erigir um inventário das espécies naturais;
seria preciso também levar em consideração os princípios gerais capazes
de satisfazer as exigências da inteligência moderna20.
Assim cada detalhe deveria ser considerado em suas ligações com a
totalidade, conforme podemos observar em Buffon, que interrompe seu
catálogo sobre os carnívoros para nele intercalar uma reflexão sobre a
natureza em geral. Nessa mesma perspectiva, pode-se ver que, no interior
desse grupo, as descrições da natureza fazem muitas
vezes referência às idéias de Buffon, Cuvier e de outros naturalistas,
cabeças pensantes da história natural, na época. Longe da visão
mecanicista da natureza, própria aos viajantes anteriores, os
naturalistas-geógrafos não se contentavam em apresentar os elementos da
natureza sem estarem atentos a seu “quadro”, a seu lugar no mundo. Para
isso, eles iam buscar nas obras científicas contemporâneas o suporte
necessário.
103Foi
por isso que não nos detivemos no conteúdo de seus relatos e fomos
além, investigando, em outras obras que esses viajantes redigiram, as
raízes de seu pensamento. Foi o que fizemos, por exemplo, com Lesson. Na
parte do relato de Duperrey consagrado à Zoologia, Lesson
descreve os animais conhecidos referindo-se sempre às descrições que
Buffon já tinha feito deles. Seu respeito com a obra de Buffon é tal que
ele se abstém em sua obra Moeurs, instinct et singularités de la vie des animaux mammifères, de comentar mesmo o menor animal que, no passado, já houvesse sido descrito por Buffon:
- 21 LESSON, R. P., Moeurs, instinct et singularités de la vie des animaux mammiféres, Paris: Paulin, 18 (...)
“Abstivemo-nos
cuidadosamente de falar dos animais estudados com atenção por Buffon e
sobre seus costumes dos quais ele tratou em todos os detalhes. Apesar de
algumas imperfeições, seus quadros permanecerão eternamente na língua, e
não é permitido a ninguém neles tocar: eles são como as telas de
Raphael que o tempo danificou em algumas partes e que não haveria
profanação maior que buscar restaurá-las.”21
104Retomando
as idéias de Buffon, Lesson, ainda na mesma obra, trata da distribuição
dos animais sobre a Terra e particularmente da modificação das espécies
segundo os diferentes climas, conforme também é o caso para o homem:
- 22 LESSON, R. P., Moeurs, institnt et singularités…, Op.Cit., pp. 5-6.
“O
homem, contemplado em sua espécie, é cosmopolita, e, entretanto a
aclimatação produz mudanças tais, que o tipo primitivo se apaga, e que a
aclimatação, auxiliada por cruzamentos, desnatura a raça a ponto de
aproximá-la daquela que é autóctone. O mesmo para os animais domésticos,
cujos ancestrais selvagens foram extintos desde há séculos, e que,
destinados a receber os cuidados do homem, que tem modificado
profundamente sua constituição, variam ainda seguindo-o em suas
migrações sob a influência reunida das latitudes e dos relevos de nossa
superfície terrestre.”22
105Destaca-se que a preocupação em se referir a um quadro de sustentação científica se trata de uma “novidade epistemológica”.
106O homem
é, para esse grupo de viajantes, o objeto prioritário da ciência. Idéia
perfeitamente clara para todos e que se encontra em todos os objetivos
de viagem enunciados por esses naturalistas. Por outro lado, não se pode
negar que um certo sonho subsiste, alguns diriam uma certa esperança:
encontrar o Bom Selvagem. É o caso de Lapèrouse, Freycinet, e mesmo de
Duperrey. Um sonho que vai logo se tornar desilusão, o que Brosse chama
“o fim de uma miragem”, apresentando as palavras de Duperrey:
- 23 BROSSE, J., Les tours du monde des explorateurs..., Op. Cit., p. 148.
“Os
navegadores tinham pressa de chegar à Nova-Cítera de Boungainville que
não tinha mais sido visitada pelos franceses desde sua viagem. A
desilusão foi completa. Ele não levava nenhuma mulher a bordo. Os
taitianos nos diriam que elas nos esperavam sobre as árvores (...)
Tínhamos o desejo de saber se Bougainville dizia a verdade ao
compará-las a Vênus (...) Encontrávamos sobre as árvores apenas vários
homens que se divertiam muito com nosso engano (...) a ilha de Taiti é
hoje em dia tão diferente daquela dos tempos de Cook que é impossível
fornecer dela uma idéia completa. Os missionários da Sociedade Real de
Londres mudaram totalmente a direção dos costumes e hábitos desses
povos. As mulheres são extraordinariamente reservadas (...) existem
poucos homens no Taiti que não sabem ler e escrever (...) e fomos bem
surpreendidos em ver os taitianos (...) oferecendo um aperto de mão,
comendo com um garfo (...) nós que esperávamos ver homens selvagens em
estado natural.”23
107Assiste-se
rapidamente a uma modificação da imagem anterior. O homem dessas
terras, selvagem e feliz, habitando o Paraíso se torna o “natural”,
aquele que é para se estudar porque é o nosso ancestral ou ao menos
porque é “diferente”. É assim que se assiste, no seio desse grupo, a
toda uma transformação da idéia de homem que conduziu ao que se
constitui um embrião das ciências que se tornarão, por exemplo, a
antropologia e a etnografia. O estudo das línguas ganha também uma certa
importância, pois, a partir delas, pode-se chegar a delimitar as
diferentes nações humanas (aí compreendidas as tribos). Do mesmo modo,
dentre os múltiplos outros dados antropológicos, as medidas do crânio e
do fêmur vão constituir os fundamentos de uma demanda visando à
classificação dos seres humanos segundo as diferentes raças.
108Esta nova maneira de ver e contemplar o homem não teria sido possível sem que a idéia de território
(brasileiro, americano, enfim, o território do Outro) pudesse ser
estabelecida. Com efeito, o homem, para esses viajantes, não se torna
objeto de estudo senão quando ele “habita” verdadeiramente algum lugar.
Teve que ser construída, por nossos viajantes, a idéia de um território,
para que se tornasse possível nele localizar o homem desses “novos
mundos”. Antes de ser “reconhecida a existência” de alguns territórios, o
homem não podia ter nenhuma materialidade, teria que ser apenas um
sonho: aquele do Bom Selvagem que se imaginava povoando terras também
imaginárias. O Bom Selvagem podia habitar um Brasil mítico e sua
existência (a de ambos) podia adquirir uma certa consistência apenas na
cabeça dos viajantes do século XVI ou na dos filósofos das Luzes. Mas
esse ser irreal, que tinham imaginado seu predecessor, não podia mais
ser aquele que habitava o novo mundo que tinham em vista nossos
viajantes e que insistiam em enquadrar, delimitar, desenhar,
representar. É o que subentendia Lapérouse, já citado, quando nos lembra
que os filósofos “escreviam seus livros ao calor de uma lareira, enquanto ele viajava desde os trinta anos”.
109Este
surgimento da idéia de um território brasileiro se torna perceptível a
partir do momento em que se dispõe também de uma cartografia mais
aperfeiçoada. É mais particularmente visível através das descrições da
cidade do Rio, ou da Ilha de Santa Catarina, onde existia uma vida em
“sociedade” (sociedades que Arago tanto adorava descrever em crônicas);
ou através das descrições da agricultura (os costumes e métodos
praticados pela agricultura eram abundantemente observados e
comentados).
110Sociedade
e território brasileiros eram certamente conhecidos desde as primeiras
viagens dos “geógrafos-naturalistas” (aqueles que localizamos em nossa
primeira categoria), embora o Brasil não existisse ainda enquanto “país”
independente. O território já tinha sido bem explorado, mesmo que não o
tivesse sido ainda pelos franceses. Ora, falamos aqui da história das
idéias, de uma visão, de um imaginário. E, no imaginário francês, o
território brasileiro teria ainda que ser construído.
111Assim,
da idéia de uma “natureza tropical” ocupando apenas as margens do
litoral atlântico, passa-se à idéia de um território portador desta
natureza. E esta natureza daí por diante incluía o homem. Assiste-se a
uma ampliação semântica da palavra “natureza” que, desde então, pode
incluir o homem e o território dentre seus elementos. E se persistissem
ainda algumas dúvidas sobre esse assunto, poderíamos ter como prova o
homem que, desenhado sobre as pranchas desses viajantes, começa a ser
representado em seu quadro natural, em uma paisagem onde ele se mistura à
natureza, entre as plantas e os outros animais. É o homem selvagem, no
interior de sua tribo e que apresenta seus hábitos, suas vestimentas,
suas festas e ritos. É mostrado tal como o encara o olhar do viajante
que não se faz jamais representar a si mesmo nesse quadro, como o
fariam, no fim do século XIX, os viajantes “românticos” (Humboldt, por
exemplo).
112Era
o olhar que criava o objeto científico, que transformava a natureza
(nela compreendido o homem) em objeto de ciência. Esse olhar, aliado a
esse sentido novo conferido à natureza, vai conduzir esses
“naturalistas-geógrafos” a proceder a uma depuração desses objetos que a
geografia moderna privilegiará – a natureza, o homem, e seu território.
Esses objetos estavam aqui, no devido ponto, prontos a servir a uma
geografia completamente nova. Restaria apenas colocá-la em prática.
113Mas,
para a maior parte desses naturalistas, para quem um olhar dirigido à
natureza poderia levar à classificação de seus elementos, os problemas
concernentes à organização do espaço eram considerados como periféricos
em relação às “questões centrais” – o inventário das formas vivas e a
construção de um verdadeiro “sistema da natureza”. A organização do
espaço era, para eles, um princípio secundário na economia da natureza. E
isso tornou bastante difícil a colocação das correlações necessárias à
prática geográfica. A geografia, tal como era então compreendida por
esses naturalistas, voltava a estudar fatos concernentes à distribuição
dos animais e das plantas sobre a superfície da Terra. Sem esquecer de
estender esses estudos ao homem. Assim, o que era mais novo na geografia
desses viajantes eram seus métodos, mais em conexão com uma
biogeografia do que com uma geografia humana tal como a concebemos em
nossos dias. Nesse quadro, o homem não era ainda considerado como agente
geográfico, capaz de modificar seu ambiente. Sobre esse ponto, Buffon
estava claramente à frente de nossos viajantes. Mesmo seguido e
respeitado, no que toca sua concepção de natureza, parece-nos, todavia
que suas idéias concernentes ao papel geográfico do homem encontrariam
pouco eco em nossos viajantes. Assim ocorre com a idéia de que todos os
elementos da natureza podiam estar em correlação uns com os outros se
reduzindo a um reino da natureza que não incluía o homem. As palavras de
Hombron são talvez as mais representativas desta maneira de pensar:
- 24 HOMBRON e JACQUINOT em DUMONT D’URVILLE, J., Voyage au pole Sud et dans l’Oceanie..., Op. Cit., p.6 (...)
“Qualquer
que seja o ponto da criação em que lancemos os olhos, nós nele
encontraremos sempre a ligação íntima que faz de uma região inteira um
todo perfeitamente ligado; a menor mudança topográfica... acarretaria a
morte de uma multidão de vegetais; muitos animais herbívoros deixariam
então de existir e, em seguida, um grande número de carnívoros sofreria o
mesmo destino...”24
114Esta
visão quase “holística” da natureza não permitia, no entanto, ir mais
longe, ou ao menos, não permitia avançar nas correlações tão necessárias
à construção de uma geografia humana.
115Para
concluir, podemos dizer que devemos aos “naturalistas –geógrafos” o
estabelecimento dos objetos de nossa ciência. Seu aperfeiçoamento em
termos de uma geografia moderna só seria posto em prática, no entanto,
pelos viajantes do terceiro grupo (os geógrafos stricto-sensu).
116Uma visão teológica e holística da natureza; o homem de quem se abandona a figura do Bom Selvagem
para se tornar objeto de ciência (finalmente, o homem havia sido
“conduzido à Terra”, o que foi, sem dúvida, a contribuição mais
importante desse grupo de viajantes ao nascimento da geografia moderna);
a construção de um território localizado além do
litoral e que comportava uma natureza que, ao mesmo tempo, incluía o
homem (com sua própria “história natural”) - tais são as contribuições
desse grupo de “naturalistas-geógrafos” à construção de uma geografia
moderna. É justo que lembremos deles como aqueles que contaram, pela
primeira vez, o mundo, seguindo as exigências de uma episteme nova, que
abriram no mundo as vias da ciência, de uma geografia prestes a nascer.
117É
sempre oportuno lembrar que, para nós, as raízes da geografia moderna
encontram-se na história natural que se fazia nos séculos XVIII e XIX, o
que demonstramos a partir da prática dos viajantes
(naturalistas-geógrafos) franceses no Brasil no curso desse período.
Gostaríamos também de reforçar que, para nós, a geografia herdou da
história natural bem mais que simples métodos – descrição, classificação
e comparação – mas que a extensão desses métodos ao tratamento do homem
e das sociedades tornou efetivamente possível a construção de nosso
próprio objeto. A perspectiva naturalista nos permitiu, antes de tudo,
descobrir a diversidade das paisagens da Terra, preparando o terreno
para o estabelecimento de correlações entre uma série de fatos que não
aparecem espontaneamente associados. Enfim, a perspectiva naturalista
clamou pela transformação de nossa disciplina em uma ciência
explicativa.