1As
análises curriculares buscam retomar a relação essencial entre educação e
projeto de sociedade. Tal relação, por sua complexidade, resulta em uma
gama de interpretações que vão desde a reprodução total à contestação
completa da sociedade. Neste trabalho, a leitura a ser realizada com o
intuito de compreender os pontos de contato entre as ideias de Élisée
Reclus e as Diretrizes Curriculares de Geografia para a Educação Básica
do Estado do Paraná (DCE-PR) parte do pressuposto de que esta relação
entre projeto de sociedade e projeto de educação, mediado pela
forma-conteúdo currículo, pressupõe uma relação de forças (simbólicas,
políticas e econômicas) que, por sua vez, estão diretamente ligadas à
forma como o conhecimento está distribuído na sociedade e contribui na
legitimação ou contestação da mesma.
2A
compreensão desta correlação de forças será elemento essencial no
sentido em que buscamos fugir dos lugares comuns que tem marcado as
interpretações acerca dos currículos de geografia e os seus diálogos com
determinados autores. As disputas existentes em um determinado campo
científico, utilizando-se do conceito elaborado por Pierre Boudieu,
atingem, de forma mais ou menos intensa, as diferentes faces e
atividades existentes no mesmo. Do conhecimento científico ao
conhecimento escolar existem rupturas e continuidades que precisam ser
compreendidas e é exatamente esta compreensão que as análises
curriculares ajudam a construir.
3Concordamos,
portanto, com a concepção de currículo apresenta por Miguel Arroyo
(2011): trata-se de um território em disputa, no qual estão em jogo
concepções de conhecimento, sociedade, ciência, educação. Neste processo
intencional de produção dos currículos da educação básica, é
fundamental compreendermos os diversos sujeitos presentes, suas lógicas e
processos.
4No
interior desta concepção é que buscamos compreender as relações entre as
concepções norteadoras das Diretrizes Curriculares de Geografia da rede
pública estadual do Paraná e as concepções de geografia e educação
construídas pelo geógrafo francês Eliseé Reclus. Trata-se de uma análise
documental, uma vez que nos debruçamos tanto nos documentos que
norteiam o currículo da educação básica paranaense, quanto nos escritos
de Eliseé Reclus. Vale ressaltar que, diante da amplitude da obra de
Reclus, focaremos nossa análise nos textos em que o autor trata de forma
mais explícita da geografia e do seu ensino.
5O
conceito de currículo enquanto uma construção permeada de embates e
conflitos entre posições diferentes acerca de um projeto de sociedade
está claramente exposto nas obras de autores como GOODSON (2001, 2008a,
2008b) e APPLE (2002, 2006), ARROYO (2011). Para tais autores, não se
pode desvincular as questões relacionadas à construção de um determinado
currículo daquelas que perpassam toda a sociedade. Não se pode também,
da mesma formar, compreender o currículo como mero reprodutor das
problemáticas sociais. Como dissemos, o currículo deve ser pensado como
um constante embate, um movimento intenso entre reprodução e contestação
no qual os diferentes sujeitos da educação, ao se apropriarem ou não do
mesmo, terão papel fundamental neste processo.
6Segundo
GOODSON (2008), a construção de um currículo passa, necessariamente,
por um processo de escolha e seleção que não se resume aos conteúdos a
serem ministrados. Um currículo pensado enquanto um processo que une
teoria e prática deve levar em consideração as intencionalidades
presentes nas ações pedagógicas e que dizem respeito às demandas que vão
para além da escola. Em certa medida, o currículo se configura como uma
construção histórica, contextualizada e situada e não como um fato
dado, consumado, desprovido de interesses e intencionalidades.
7A
escolha de determinados conteúdos, ideias e autores na construção de um
currículo pressupõe sempre a negação de outros e isto não pode ser
interpretado sem se levar em consideração o projeto de sociedade que
aquela concepção de currículo engendra. Assim, torna-se fundamental que
investiguemos o currículo em suas diferentes escalas sócio-espaciais de
construção e realização. A todo o momento é preciso fazer o movimento de
pesquisa que vai da sala de aula à sociedade e vice-e-versa, sendo que
este movimento tem no currículo uma das mediações possíveis. Não basta
apenas um olhar para as micro-relações que acontecem nas práticas
cotidianas escolares como se as mesmas fossem capazes de explicar a
totalidade das questões educacionais, da mesma forma que não é possível
um olhar macro que pense o currículo como abstração, desconectado de
práticas efetivas. O contato constante entre o currículo pré-ativo e o
currículo interativo, nas definições propostas por Goodson é um dos
pontos mais consistentes das questões que envolvem a relação entre
educação e sociedade. Como aponta o autor,
Começar qualquer análise da
escolaridade aceitando, sem questionamento, a forma e o conteúdo do
currículo, aspectos que suscitaram lutas e que foram estabelecidos num
ponto histórico particular com base em certas prioridades sociais e
políticas, isto é, tomar o currículo como um dado significa renunciar a
um vasto conjunto do entendimento sobre aspectos do controle e do
funcionamento da escola e da sala de aula. É, também, assumir as
mistificações de episódios prévios do governo, como se fossem dados
inquestionáveis. Sejamos claros, estamos a falar da invenção sistemática
da tradição numa arena de produção e reprodução social, o currículo
escolar, onde as prioridades políticas e sociais assumem uma importância
primordial. (GOODSON, 2001, pgs. 57-58)
8Da
mesma forma, Apple (2002) aponta para a necessidade de se compreender as
diferentes dimensões pelas quais o currículo é pensado e construído.
Para o autor, analisando as diferentes reformas curriculares postas em
práticas nos EUA desde a década de 1980, verifica-se nas mesmas uma
tentativa de aumentar a racionalização econômica e a burocratização do
processo educacional. Tais princípios estariam de acordo com o modelo
neoliberal do Estado Capitalista, adotado neste país durante o governo
de Ronald Reagan no final da década de 1970 e que prega uma “gestão mais
eficaz da máquina pública”, o que em outras palavras significa
diminuição dos gastos e corte de orçamentos públicos nas áreas sociais,
como saúde, educação, cultura, saneamento básico. Neste movimento, o
currículo, como um projeto de sociedade e educação, é reduzido a uma
série de ações técnicas, condizente com a racionalidade que busca se
impor. Como aponta o autor,
A noção de reduzir o currículo a
um conjunto de destrezas não é sem importância, uma vez que ele é parte
de um processo mais amplo pelo qual a lógica do capital ajuda a
construir identidades e transforma significados e práticas culturais em
mercadorias. Isto é, se o conhecimento em todos os seus aspectos (do
tipo lógico relacionado a quê, como, para quê – isto é, informação,
processos e disposições e tendências) é dividido e mercantilizado, então
tal como o capital econômico, ele pode ser acumulado. A marca de um bom
aluno é a posse e a acumulação de uma vasta quantidade de destrezas a
serviço dos interesses técnicos. (APPLE, 2002, pg. 168)
9Além
disso, a escolha e seleção dos conteúdos de uma determinada disciplina,
para além de uma mera constatação científica, oculta e revela, ao mesmo
tempo, intencionalidades que dizem respeito às relações entre escola e
grupos políticos e econômicos específicos. Ao analisar a construção de
um currículo, levando-se em consideração também a organização e
distribuição dos conteúdos no interior de uma disciplina, há que se
considerar aquilo que está implícito nesta estruturação. Não se pode
tomá-lo como desprovido de alguma intencionalidade, bem como sua leitura
não deve se reduzir a um mero reprodutivismo. Tal compreensão passa
pelo pressuposto de que cada campo disciplinar é também uma arena de
disputa e embates que pressupõem diferentes concepções acerca da
ciência, do homem e do mundo, além de representarem o predomínio de
determinados grupos sobre outros. Como aponta Apple,
Pelo fato de preservarem e
distribuírem o que se percebe como “conhecimento legítimo” – o
conhecimento que “todos devemos ter” – as escolas conferem legitimidade
cultural ao conhecimento de determinados grupos. Todavia, isso não é
tudo, pois a capacidade de um grupo tornar seu conhecimento “o
conhecimento de todos” se relaciona ao poder desse grupo em uma arena
política e econômica mais ampla. O poder e a cultura, então, precisam
ser vistos não como entidades estáticas sem conexa entre si, mas como
atributos das relações econômicas existentes em uma sociedade. Estão
dialeticamente entrelaçados de forma que o poder e o controle econômico
se apresentam interconectados com o poder e o controle cultural (2006,
pgs. 103-104)
10Dessa
maneira, a forma como o currículo está estruturado representa também um
embate cultural, político e econômico que aparece na forma como o
ensino-aprendizagem em uma determinada disciplina está organizada, assim
como na escolha dos seus principais referenciais teórico-metodológicos.
Tal escolha, portanto, não pode ser considerado ato vão, tomado ao
acaso, mas deve ser interpretado no interior das inúmeras problemáticas
que marcam a relação entre currículo, escola e sociedade. Como apontam
Apple e Buras (2008), na análise do currículo deve-se sempre levar em
consideração a pergunta: “Tem mais valor o conhecimento de quem?”, para
que assim leituras ingênuas sobre a relação entre escola e sociedade não
sejam feitas. A ausência / presença das ideias de Reclus nas diretrizes
curriculares de Geografia da Educação Básica do Paraná será analisada a
partir deste viés.
11O
projeto de sociedade proposto na obra de Reclus assenta-se na formação
de um sujeito histórico e geográfico, consciente das contradições que
envolvem o mundo em que vive e capaz de assumir sua responsabilidade no
processo de transformação social. A luta social cotidiana, marcada pela
soberania individual e pelo apoio mútuo, aparece em sua obra como um dos
caminhos para a transformação social, uma vez que podem permitir a
distribuição mais igualitária dos meios de produção. Porém, não há
possibilidade de uma mudança social radical sem a formação de uma
consciência autônoma, capaz de por em xeque os fundamentos de uma
sociedade calcada no poder e na desigualdade produzida também através
dele.
12Por
isso, o projeto de educação, encontrado na obra de Reclus,
profundamente implicada na concepção anarquista de sociedade, pensa a
formação integral dos homens e de suas consciências como seres
históricos e geográficos. Segundo o autor,
Entre iguais a obra é mais
difícil, mas é mais elevada: é preciso buscar asperamente a verdade,
encontrar o dever pessoal, aprender a conhecer-se, fazer continuamente
sua própria educação, conduzir-se respeitando os interesses dos
camaradas. (RECLUS, 2011, p. 27-28)
13Além
disso, o processo educativo defendido pelo autor não está atrelado ao
modelo formal de educação, ora dominado pela Igreja, ora pelo Estado,
formas institucionais do poder que Reclus e outros autores anarquistas
buscam combater. A educação, em sua obra, é um processo coletivo de
compreensão do mundo e constitui-se enquanto resultado e condição da
práxis. Dá-se exatamente no lugar onde as condições de expropriação
social tornam-se intensas. É ali que a solidariedade humana teima em
aparecer, apontando caminhos para a construção de outra consciência da
relação dos homens e mulheres entre si e com a natureza.
14Em
seu projeto de educação, há solidariedade entre alunos, alunas,
professores e professoras, concretizada na compreensão da autonomia e
liberdade necessárias para que os sujeitos se desenvolvam. Para além de
uma educação pautada no medo e no terror, cabe aos professores que
almejam uma educação para o desenvolvimento integral dos homens e
mulheres instigar o diálogo crítico e criativo com seus alunos e alunas.
Tal diálogo, por sua vez, segundo Reclus, deve ser mediado pela
natureza e não pela repetição incessante de tarefas mecânicas. Para o
autor,
A escola verdadeiramente
liberada da antiga servidão só pode ter franco desenvolvimento na
natureza. O que em nossos dias é considerado nas escolas como festas
excepcionais, passeios, cavalgadas pelos campos, landas e florestas, nas
margens dos rios e nas praias, deveria ser a regra, pois é apenas ao ar
livre que se conhece a planta, o animal, o trabalhador e que se aprende
a observá-los, a fazer-se uma ideia precisa e coerente do mundo
exterior. (2010, p. 25)
15Não
se tratam, porém, de uma interpretação utilitarista da natureza. Ao
contrário, o autor defende uma retoma da educação estética tendo a
natureza como mediadora. A natureza surgiria, portanto, como elemento
fundamental para que professores e alunos possam desenvolver amplamente
os diferentes sentidos, compreendendo que as dimensões do conhecimento
são muitos e que não existe sentido pensar em um modelo de conhecimento
que separa razão e sentimento. No projeto de educação apresentado por
Reclus a crítica a esta separação entre arte e ciência, elemento central
do paradigma positivista, está explícita.
A parcela da educação que deve
resultar nas grandes transformações estéticas é ainda bem mais delicada
do que a educação científica, pois ela é menos direta, e a elaboração
completamente pessoal, é infinitamente mais nuançada. A impressão da
beleza precede o sentido do ordenamento e da ordem: a arte vem antes da
ciência. (2010, pg. 68)
16Neste
sentido, o ensino de geografia que não está posto de forma explícita na
obra de Reclus pode ser derivado destes princípios que baseiam o seu
ideal de educação e que dialogam profundamente com os fundamentos de um
projeto de sociedade calcado no anarquismo. Por isso, o autor acredita
que a construção deste outro projeto de sociedade, pautado na negação do
poder representado por instituições como Estado e Igreja, mas também
presente nas relações cotidianas (entre homens e mulheres, pais e
filhos), só pode ser construído a partir de uma ampla mudança cultural
que coloque em xeque o patriarcalismo e a falsa sensação de autoridade
nele presente. A crítica de Reclus e de outros Anarquistas à escola
formal está naquilo que ela representa enquanto reprodução daquele
modelo de sociedade pautada na distribuição desigual do poder. Vale
ressaltar que o discurso da geografia anarquista de Élisée Reclus está
na contramão da Geografia surgida como ciência moderna no final do
século XIX. O discurso desta geografia é aquele que legitima o poder,
que contribui na construção de um ideal de nação e de identificação com o
Estado como forma soberana de poder, capaz de levar homens e mulheres a
morrerem por seus países. Este discurso nacionalista é também o
fundamento da geografia escolar, constituindo-se como pedra angular dos
primeiros currículos desta disciplina e é profundamente criticado por
Reclus.
Em seu pobre ensino, o sacerdote
cristão tinha a vantagem de uma certa lógica em concordância com as
betas crenças e as parvas adorações. Mas o professor já não tem a fé, e
forçado, segundo a expressão consagrada a “expulsar Deus da escola”,
continua a dobrar-se aos métodos inspirados pelo dogma católico e
monárquico. Falando na realidade a antiga linguagem e servindo-se dos
mesmo procedimentos de instrução e de pretensa moralização, ele
substitui Deus por um outro Deus, a Lei ou a Pátria que a bandeira e
outros símbolos representam. Se essa nova divindade tivesse de ser
levada a sério pelas crianças, o horizonte moral delas seria
singularmente diminuído, pois a pátria nada mais é que estreito pedaço
de terra, geralmente considerado cercado de inimigos, enquanto a idéia
de Deus respondia para almas meigas e simples a uma justiça do além.
(2010, pg. 25)
17Esta
crítica a geografia nacionalista e o projeto de sociedade que ela
engendra também está posta na análise que o autor faz sobre a Guerra e
do significado da mesma na manutenção da estrutura social. Além dos
elementos de ordem infraestrutural (criação de novas demandas por
materiais) o que a Guerra ajuda a realizar é a manutenção de um ambiente
cultural assentado na falsa noção de que o poder de um país está
distribuído de forma igualitária entre os seus soldados. O sentimento
nacionalista se baseia na mesma afirmação e com isso ajuda a ocultar a
realidade sobre a forma desigual como poder está distribuído no interior
da sociedade capitalista. O discurso nacionalista, portanto, é a forma
pela qual os grupos dominantes criam falsas coesões sociais para que
assim possam reproduzir seus interesses, colocam homens contra homens,
sem que os mesmos percebam a exploração que os igualam. Nesse sentido, o
projeto de uma sociedade anarquista rejeita profundamente o
nacionalismo e a guerra e se pauta no ideal de solidariedade humana,
para além de qualquer tipo de fronteira. Como aponta Reclus,
A união total do civilizado com o
selvagem e com a natureza só pode fazer-se pela destruição das
fronteiras entre as castas, bem como por aquela das fronteiras entre os
povos. É preciso que, sem obedecer às antigas convenções e hábitos, todo
indivíduo possa dirigir-se a qualquer um de seus iguais em toda
fraternidade e conversar livremente com ele sobre tudo o que é humano
como dizia Terêncio. A vida, tornada à sua primeira simplicidade,
comporta por isso mesma plena e cordial liberdade de sociabilidade com
os homens. (RECLUS, 2011, p. 66)
18Dessa
forma, é fundamental compreender que as ideias de geografia e educação
elaboradas por Reclus em sua obra estão pautada em uma concepção de
progresso que vai na direção contrária daquela defendida pelos teóricos
positivistas. Ao invés de uma imagem do progresso como seta unilateral
que aponta sempre para mais desenvolvimento, Reclus entende, em diálogo
com a obra de Vico, os avanços e retrocessos presentes em cada momento
histórico, marcada pela contradição inerente a luta de classes. Neste
sentido, apresenta profunda crítica a ideia de que, do início da
humanidade até o momento atual, tenhamos presenciado momentos de
desenvolvimento cada vez maior. Interessa, para Reclus, compreender o
que fomos perdendo pelo caminho em nome de um ideal de progresso que, na
maioria das vezes, interessou a grupos específicos. Neste debate,
Reclus deixa clara que só é possível falar de um efetivo progresso
quando duas condições fundamentais forem alcançadas por todos os
sujeitos sociais: a conquista do pão e o direito a instrução. Esta dupla
condição é o fundamento para que possamos reconstruir a nossa relação
com o passado e uma profunda compreensão de nossa dimensão natural. Ao
contrário dos positivistas, o progresso para Reclus significa uma
compreensão cada vez mais intensa dos sujeitos sociais de sua condição
de natureza, da consciência, portanto, de que a mesma é um dos processos
fundantes do ser social.
19Neste
sentido, a concepção de progresso como um retorno à natureza, não como a
nostalgia romântica, mas com um intenso processo de alteridade
formativa, representa a ruptura da obra de Reclus tanto em relação aos
positivistas franceses, quanto aos românticos alemães, e se encontra no
centro da sua concepção de geografia e educação. Tal concepção pode ser
sintetiza na conclusão do livro a história de um Riacho:
Os povos mesclam-se aos povos
como riachos aos riachos, os rios aos rios; cedo ou tarde eles formarão
apenas uma única nação, assim como todas as águas de uma mesma bacia
acabam por confundir-se num único rio. A época à qual todas essas
correntes humanas unir-se-ão ainda não chegou: raças e tribos diversas,
sempre ligadas à gleba natal, não se reconheceram absolutamente como
irmãs; mas elas aproximam-se cada vez mais; a cada dia amam-se mais, e,
de concerto, começam a olhar para um ideal comum de justiça e liberdade.
Os povos, tornados inteligentes, decerto aprenderão a associar-se numa
mesma federação livre; a humanidade, até aqui dividida em correntes
distintas, não será mais do que um mesmo rio, e, reunidos numa única
corrente, desceremos juntos rumo ao grande mar onde todas as vidas
vão-se perder e renovar-se. (RECLUS, 2015, p. 202)
20Como
as águas dos rios, homens e mulheres lutam cotidianamente na construção
da justiça social, marcada pela conquista do pão e da instrução para
todos. Nesta luta, constroem a consciência de sujeitos sociais e
reconhecem a finitude de sua condição natural. Como as águas de um rio,
cada geração renova a luta da geração que a precedeu, neste movimento
das ondas que oscilam no grande mar da história. Neste processo, a
educação e a geografia são elementos fundamentais na articulação da luta
continua em busca do progresso.
21Como
vimos, a concepção de sociedade presente nas ideias de Reclus
assenta-se no questionamento das diferentes formas de opressão do homem
pelo homem. Tais formas, segundo o autor, podem ser compreendidas também
como resultantes da distribuição desigual do poder na sociedade. Para
que ocorra uma mudança social faz-se necessário uma profunda mudança de
consciência e nela a educação também tem papel fundamental. O grande
desafio da educação anarquista é levar os diferentes sujeitos envolvidos
a compreenderem a necessidade de questionar, a todo o momento, as
diferentes formas de poder. Em uma educação pautada no modelo de
autoridade patriarcal do professor, este questionamento se torna uma
afronta. No caso brasileiro, em uma educação cunhada nos moldes do
regime militar e que mantém vivo os ranços deste militarismo, as
propostas de uma educação anarquista são vistas com desconfiança e
silêncio. E é esta visão que passaremos a analisar a partir de agora.
22Construída
após quatro anos de trabalho coletivo dos professores da Rede Pública
Estadual do Paraná, as Diretrizes Curriculares de Geografia da Educação
Básica do Paraná (DCE-PR) pretendem ser um documento mais aberto, que
permitam aos diferentes sujeitos da educação construírem suas propostas
de ensino de geografia, sem que haja a obrigatoriedade de um currículo
unificado. O documento está organizado em conteúdos estruturantes (as
dimensões do espaço-geográfico) e aponta alguns objetivos para o Ensino
de Geografia. Apesar de não existir em nenhum momento da fundamentação
teórica referência a obra de Reclus, é possível encontrar diferentes
momentos no qual as diretrizes se aproximam e mesmo dialogam,
implicitamente, com as ideias do autor.
23Logo
no início do texto das diretrizes, está explicita a compreensão de que
todo projeto de educação é também um projeto de sociedade, visto que os
autores das diretrizes apontam para a importância de se analisar “o papel do ensino básico no projeto de sociedade que se quer para o país” (p.
14). Tal afirmação encontra ressonância na concepção de Reclus sobre a
relação entre educação e sociedade, visto que para o autor “a cada fase da sociedade corresponde uma concepção particular da educação, conforme os interesses da classe dominante” (2008, p. 10).
24Além
disso, no início das discussões que fundamentam as diretrizes há clara
preocupação em se compreender quem são os novos sujeitos da educação e
como o processo de ampliação do acesso a educação básica alterou
profundamente as características e as funções da escola. Esta discussão
rompe com a aceitação da escola pública como mero lugar de socialização
dos alunos, defendendo-a como lugar de socialização do conhecimento, por
intermédio do qual os alunos tem oportunidade de se apropriar daquilo
que a humanidade produziu. Para tanto, considera o currículo para além
da mera norma, compreendendo, ao mesmo tempo, suas intenções políticas e
as diversas relações entre o prescrito e o praticado. Neste sentido,
O currículo documento deve ser
objeto de análise contínua dos sujeitos da educação, principalmente a
concepção de conhecimento que ela carrega, pois ela varia de acordo com
as matrizes teóricas que o orientam e o estruturam (DCEs, 2008, p.16).
25As
DCE-PR partem da concepção do currículo como configurador da prática,
vinculado às teorias críticas: nesta concepção está presente a
necessidade de se compreender as diferentes dimensões da constituição de
um campo disciplinar. Além disso, está pautado em uma concepção de que o
sujeito que se deseja a formar é aquele que seja capaz de enfrentar e
transformar os desafios do seu tempo. As discussões para a construção
desta concepção de currículo estão centradas em uma concepção de escola
como espaço do confronto e
diálogo entre os conhecimentos sistematizados e os conhecimentos do
cotidiano popular. Essas são as fontes sócio históricas do conhecimento
em sua complexidade. (p. 21)
26Neste
sentido, assim como na obra de Reclus, nas DCE-PR a educação tem como
intuito contribuir na formação de um sujeito autônomo, capaz de
compreender o mundo em que vive e não apenas se adaptar as condições que
lhe são dadas. O sujeito que se busca formar é aquele capaz de
transformar a sociedade em vive e assim construir alternativas de
justiça e igualdade social. Se a construção deste sujeito na obra de
Reclus está mediada pela natureza, nas DCE-PR o conceito de lugar surge
como mediação necessária para o processo educativo. Isso significa leva
em consideração as particularidades de cada sujeito e do lugar em que
vivem, além de partir do pressuposto de que a educação deve estar
diretamente relacionada à práxis. Novamente, há um dialogo implícito com
Reclus, uma vez que o autor afirma que “a educação não tem valor,
nem mesmo sentido, senão sob a condição de servir na vida, após a saída
da escola, e continuar-se pela manutenção e pelo progresso das forças
intelectuais” (2010, p. 42).
27Outro
ponto importante das DCE-PR que se aproxima das concepções de Reclus
acerca da educação refere-se à forma como a mesma concebe as diferentes
dimensões do conhecimento. Segundo a DCE-PR, o paradigma positivista foi
responsável por elevar a dimensão cientifica do conhecimento ao patamar
de único discurso válido de interpretação da realidade, colocando em
segundo, ou mesmo negando a existência das outras dimensões do
conhecimento, como a filosófica e a artística. A DCE-PR defende a
necessidade de se construir um processo educativo que leve em
consideração estas diferentes dimensões do conhecimento, buscando
desenvolver um sujeito capaz de se relacionar com o mundo a partir dos
seus diferentes sentidos. Além disso, há uma ênfase sobre a importância
da dimensão artística do conhecimento, uma vez que a mesma possibilita
desenvolver a plenitude da relação do homem com o mundo a partir dos
seus diferentes sentidos. Isto está em Marx, como aponta as diretrizes,
mas está também de forma clara na obra de Élisée Reclus quando o autor
discute as questões sobre a relação entre arte e ciência, bem como a
necessidade de se desenvolver uma educação estética potencialmente
criativa. Segundo as diretrizes,
Esta característica da arte ser
criação é um elemento fundamental para a educação, pois a escola é, a um
só tempo, o espaço do conhecimento historicamente produzido pelo homem e
espaço de construção de novos conhecimentos, no qual é imprescindível o
processo de criação. Assim, o desenvolvimento da capacidade criativa
dos alunos, inerente à dimensão artística, tem uma direta relação com a
produção do conhecimento nas diversas disciplinas. (p.23)
28Outro
ponto de análise pode ser encontrado na discussão que a DCE-PR fazem do
conceito de natureza como um dos fundamentos teórico-metodológicos da
geografia. Nesta discussão, há um silêncio total em relação à obra de
Reclus. Segundo as Diretrizes,
Na Geografia Clássica, estas
relações marcaram a produção teórica pela oposição
determinismo-possibilismo. Guardadas as diferenças entre essas duas
formas de interpretar esta relação, tanto no determinismo quanto no
possibilismo, prevaleceu a concepção organicista de base biológica da
natureza, pois, para ambos, ela é regida por leis próprias, diferentes
das leis sociais que regulam as sociedades. (2008, p. 65)
29Portanto,
o momento histórico no qual Reclus escreveu suas principais obras,
buscando discutir e interpretar a relação entre sociedade e natureza,
rompendo com a concepção racionalista da mesma, como propunham os
principais teóricos positivistas, é vista pelas DCE-PR como totalizado
pela discussão possibilismo x determinismo. Vale ressaltar que, segundo
as DCE-PR, esta dicotomia só será superada com o movimento de renovação
teórico-metodológica da Geografia nas décadas de 1970/1980. Não apenas
neste ponto, mais em todo o texto das DCE-PR que se referem
especificamente ao ensino de geografia não há nenhum tipo de referência a
obra de Reclus, nem mesmo uma citação para pontuar seu lugar na
história do pensamento geográfico.
30Neste
sentido, ao colocarmos em diálogo as DCE-PR e a obra de Élisée Reclus
encontramos uma situação na qual, apesar do autor (ou pelo menos suas
idéias) está presente, indiretamente, em diferentes momentos do texto,
há um silêncio em torno de sua obra. Como interpretar este fenômeno? Em
nossa perspectiva, existem, pelos menos, duas interpretações para esta
constatação:
31Primeira: há uma negação consciente da obra de Reclus por seu significado e pelo projeto de Sociedade que ele representa.
32Segunda:
a ausência da obra de Reclus nas DCE-PR é resultado de um processo de
construção de um discurso de ausência da obra deste autor na história do
pensamento geográfico, como forma de ocultar o seu sentido
contestatório no interior do discurso dominante neste campo científico.
33Optamos
pela segunda hipótese uma vez que, como vimos, existem vários pontos de
contato nas diretrizes curriculares de geografia do Paraná com as
ideias propostas por Élisée Reclus. Portanto, acreditamos que não há
intencionalidade na ocultação do autor nas diretrizes, mas um processo
cujo resultado deve ser encontrado nas disputas existentes no interior
do próprio campo científico da geografia.
34Neste
sentido, a compreensão da ausência das ideias de Reclus sobre educação e
geografia nas diretrizes curriculares do Paraná não pode ser
construída, em nossa perspectiva, sem que se leve em consideração o
próprio posicionamento de sua obra na hierarquia do campo científico.
Faz-se necessário, portanto, compreender o processo de controle do
discurso, analisado por Foucault e que pode nos ajudar a entender o
lugar da obra de Reclus no campo científico da geografia. Segundo
Foucault,
Suponho que em toda a sociedade a
produção do discurso é ao mesmo tempo controlado, selecionado,
organizado e redistribuído por certo número de procedimentos que têm por
função confirmar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento
aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. (2010, pags.
8-9)
35O
controle do discurso parte do pressuposto de separar e classificar, de
um lado, os conhecimentos válidos e reconhecidos como portadores de
valor científico no interior dos critérios do paradigma dominante; do
outro, aqueles que podem deles se apropriar e sobre eles se
pronunciarem. Todo o processo de disciplinarização da ciência moderna,
intensificado como o modelo positivista do século XIX teve como objetivo
delimitar o que vale como ciência e quem pode representá-la. Apesar de
querer se transmutar e ser visto como um processo neutro, desprovido de
interesses e estratégias, tal processo de disciplinarização foi
extremamente analisado por diferentes autores (Adorno, Hokheimer,
Foucault, Bourdieu) que estabeleceram a relação intrínseca entre
organização científica e organização social.
36O
processo de institucionalização da geografia como ciência moderna no
final do século XIX traz elementos característicos deste processo
descrito por Foucault e que resultaram, em nossa perspectiva, em um
intenso processo de deslegitimação da obra de Élisée Reclus, marcado por
diferentes ações de controle e exclusão.
37Em
primeiro lugar, há que se ressaltar o fato de Reclus e seu anarquismo
não encontrarem aceitação nem entre os intelectuais de direita,
dominados pelo discurso nacionalista e imperialista que estão na gênese
da Geografia enquanto ciência moderna, nem entre os intelectuais de
esquerda que só consideravam efetivamente científica as idéias
apresentadas por Karl Marx. Daí a obra de Reclus ter enfrentado uma
dupla rejeição e o autor não ter encontrado espaço para desenvolvê-la em
nenhuma das grandes universidades européias daquele momento. Esta dupla
rejeição, em segundo lugar, resultou em um ostracismo da obra de Reclus
na História do Pensamento Geográfico, tanto naquele contexto de
institucionalização do campo científico no final do século XIX, quanto
em outros momentos de renovação teórico-metodológico da geografia. No
movimento da Geografia Ativa ainda na década de 1950, e no amplo
processo de renovação da geografia denominado de Geografia Crítica nas
décadas de 1970/1980 muito pouco foi recuperado da obra de Reclus,
preferindo os artífices destes processos se pautarem em autores de
outros campos científicos, mantendo, na história do pensamento
geográfico, a mesma cronologia e ordem dos lugares e posições ocupadas
pelos pensadores considerados essenciais nesta ciência.
38Em
terceiro lugar, e aqui acreditamos ter encontrado o ponto essencial de
contribuição desta pesquisa, este esquecimento da obra de Reclus
continua a ser reafirmado nos diferentes cursos de Licenciatura em
Geografia. Neles, a história do pensamento geográfico continua a ser
ensinada a partir dos fundamentos clássicos desta ciência. Quando
aparece, a obra de Reclus é rápida e superficialmente tratada, como se
pouco ou nada representasse para o desenvolvimento deste campo
científico. A história do pensamento geográfico continua a ser
construída com base nas muitas dicotomias que, em grande medida, ela
mesma construiu (Possibilismo x Determinismo, Geografia Regional x
Geografia Geral).
39Neste
sentido, se no início do processo de institucionalização da ciência
geográfica houve uma movimento intencional na direção de deslegitimar a
obra de Reclus, o que verificamos no momento atual, principalmente nas
leituras sobre as DCE-PR é um desconhecimento desta obra. Tal
desconhecimento está assentado na aceitação de uma única possibilidade
de caminho interpretativo no que diz respeito a história do pensamento
geográfico. A cristalização deste caminho interpretativo que se reproduz
também por meio dos cursos de formação de professores de geografia tem
contribuído para que a problematização das questões referentes à
Educação e Geografia, a partir dos termos propostos por Reclus, não
aconteça e com isso um ideal de ciência, calcado em um modelo
cronológico ligado ao nacionalismo e ao imperialismo, se reproduza.
40Excluída
durante muito tempo, em um processo intencional de ocultação de sua
importância e significado, a obra de Élisée Reclus vem sendo
redescoberta, principalmente no âmbito das pesquisas em epistemologia.
No entanto, ainda é bastante reticente a presença desta obra nas
discussões que norteiam os currículos de geografia da educação básica, o
que pode ser verificado nas análises que realizamos sobre as DCE-PR. Em
grande medida, esta ausência é resultado de uma formação inicial dos
professores de geografia que reproduz um modelo de história do
pensamento geográfico dominante neste campo científico. Tal constatação
comprova as diferentes relações que podem ocorrer no interior de um
campo entre o conhecimento dito científico e o conhecimento escolar e
colocam em xeque as teses dos que defendem que não existe relação entre a
geografia que se pesquisa e a que se ensina.
41De
todo modo, esta constatação também traz à tona a urgente necessidade de
iniciar um intenso processo de reapropriação, em todos os níveis de
ensino, da obra de Reclus. O momento é bastante propício, visto que a
tradução de suas obras facilita o acesso da mesma para um número cada
vez maior de pessoas. Além disso, a própria forma de escrita adotada por
Reclus, buscando uma linguagem mais solta e menos patadas nas normas
científicas, é mais um ponto a contribuir neste processo de difusão de
sua obra.
42Acreditamos
que não há uma única direção possível para este movimento de
reapropriação. Deve se dar a partir de diferentes diálogos entre escola,
universidade, sindicatos, associações e ter como principal objetivo,
pelo menos, permitir que aquilo que o autor produziu seja conhecido. Não
se trata de produzir uma adoração pelo desconhecido ou se construir
leituras dogmáticas e doutrinárias de sua obra. Ao contrário, se
quisermos de fato ser coerentes com o ideal de educação posto em sua
obra, devemos compreendê-la como possibilidade de interpretação e
transformação do mundo, capaz de nos permitir outras leituras dos mesmos
fenômenos, outros caminhos no interior da mesma ciência. Só assim,
contribuiremos na tarefa de devolver a obra de Reclus ao lugar devido na
história de construção desta ciência.