1É de
longa data as relações entre o cinema e a história das sociedades. E
nessa relação, o cinema procurou registrar e transmitir representações
sobre a natureza e as realidades urbana e rural, em diferentes contextos
e de diferentes formas. E, mais do que isso, no século XX
transformou-se em um importante instrumento da indústria cultural, sendo
capaz de difundir costumes, idiossincrasias, conhecimentos e,
principalmente, versões da história. Para muitos o cinema não está
somente inserido na história, ele é história, pela sua capacidade de
forjar práticas cotidianas a partir do que projeta para o tecido social.
Nesta perspectiva,
[a] imagem presente na película
fílmica é o registro de uma imagem real recortada e elaborada conforme
os recursos técnicos e estéticos pertinentes à linguagem
cinematográfica. A imagem cinematográfica, portanto, é um recorte do
real a partir de um determinado enfoque e de uma perspectiva visual, de
maneira a ampliar nossa visão para certos aspectos do espaço vivenciado.
(...) Contudo, apesar de um filme propiciar essa leitura da
espacialidade concretamente produzida, temos que ter claro em mente que
se trata de uma imagem, não é o real em si que ali estamos vendo. (Neves
& Ferraz, 2007: 77)
2Assim,
o cinema tem a capacidade de refletir/refratar a realidade (Bakhtin,
1992), muitas vezes se “comportando” no campo da neutralidade e da
objetividade, aparecendo como “reflexo fiel do real”, por meio de uma
miríade de temáticas que são diversamente apropriadas. Em outros termos,
o cinema não representa a
realidade tal qual ela poderia ser em si mesma, mas (...) a
“representifica”, por meio de uma interação entre o “real” (contato com
as imagens difundidas), com a “fantasia” (suposta representação do real –
o que está sendo mostrado), mais as experiências individuais de cada
espectador da obra. O desfecho dessa soma resultaria na construção
imagética de uma dada realidade (uma interface entre o real, o
representado e o vivido). (Neves & Ferraz, 2007: 77)
3Ao
longo desses anos, o cinema produziu/projetou para o público imagens das
incoerências, limites e possibilidades da sociedade industrial em
constante (re)produção. Desse modo, a sétima arte focalizou
temas como a vida urbana, o industrialismo, o colonialismo/imperialismo,
a crise ecológica/ambiental, concepções de natureza, os processos de
metropolização, a violência urbana, as perspectivas de controle total da
sociedade entre tantos outros temas que merecem reflexões críticas.
4Ou
seja, uma compreensão geográfica deve ser instaurada, já que esse campo
do conhecimento, por ser beneficiário do uso de linguagens baseadas em
imagens, possui um potencial de ampliar as interpretações sobre a
realidade. Conforme Neves & Ferraz (2007), quando esse processo é
instalado “o saber geográfico [dá] um grande passo para ser reconhecido
como um conhecimento pertinente com a espacialidade vivenciada
cotidianamente” (Neves & Ferraz, 2007: 78).
- 1 Sob a coordenação/organização do autor e da pesquisadora Adriana Angélica Ferreira foi formado um g (...)
5Nesse
sentido, insere-se a proposta desse artigo que é parte dos resultados
de um projeto desenvolvido entre os anos de 2010 e 2012,1
elaborado a partir de inquietações diante das abordagens dadas à
“questão urbana” e à “questão ambiental” desde o último quartel do
século XX e que estiveram presentes nos percursos de pesquisa
desenvolvidos em âmbito de mestrado (2002-2004) e doutorado (2008-2013)
realizados no Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas
Gerais (IGC/UFMG). São inquietações sobre o urbano e sua relação com a
“problemática ambiental” (relação sociedade e natureza) que, de
diferentes formas, se manifestam por meio de discursos/práticas
acadêmicas, nos materiais didáticos e paradidáticos de diferentes
disciplinas, nas instituições ligadas à urbanização e ao meio ambiente,
no setor privado, em projetos/programas de Educação Ambiental, nos meios
de comunicação de massa, na música, na literatura, em produções
cinematográficas etc. (Ferreira & Freitas, 2012; Freitas &
Gaudio, 2015a; 2015b).
6À
medida que os estudos e as pesquisas foram desenvolvidas acentuou-se o
contato com as mais diversas abordagens sobre essas temáticas que
motivaram um olhar mais crítico sobre a (re)produção social do espaço e
os discursos utilizados para refletir/refratar as contradições de tal
(re)produção. Assim, o projeto supracitado possibilitou um olhar diferenciado para
alguns filmes selecionados, na procura de um “diálogo com outras
esferas do saber humano, como no caso a arte (em especial o cinema),
[considerando que se] pode contribuir para ampliar os conceitos, indo
além do formalismo e da mera especialização dogmatizante dos mesmos” (Neves
& Ferraz, 2007: 78). Assim, procurou-se analisar quais as
abordagens dadas pelo cinema acerca da “questão urbana”/“questão
ambiental” (natureza), nessa quadra da história. Procurou-se refletir
sobre como o cinema tem abordado temas como segregação, urbanização,
violência urbana, segurança, participação social, nos últimos anos. Ao
mesmo tempo, acreditando que vivenciamos um momento de redefinição das
ideologias, com a inscrição no seio da sociedade do que se convencionou
chamar de Ideologia do Desenvolvimento Sustentável procurou-se
identificar as aproximações entre as produções cinematográficas e tal
ideologia, nas representações sobre o urbano e o ambiental (natureza).
Avaliou-se, ainda, até que ponto tais produções sinalizam possibilidades
de qualificação dos indivíduos tornando-os mais críticos e contribuindo
para a desmistificação e a destruição das representações ideológicas
acerca das temáticas supracitadas (Therborn, 1991).
7Passemos à análise. Tendo como “posto de observação” a película A vila (The Village, em
inglês) procuro apresentar alguns elementos das contradições da
(re)produção capitalista do espaço. Trata-se de um filme estadunidense,
lançado sob a categoria terror, no qual um grupo de pessoas “redefine”
seu modo de viver, a partir da “auto-segregação” no interior de uma
reserva ambiental. Assim, a vila é fundada, com a proposta de
desenvolvimento de um “novo estilo de vida”, pautado no isolacionismo em
relação ao mundo exterior, no reformismo ecológico, muito presente no
urbano contemporâneo (Bihr, 1991) e em uma extrema hierarquização
social.
8Os
componentes do grupo (especialmente os líderes) acreditam que todo e
qualquer tipo de violência é externo à comunidade, originado e
disseminado nas grandes metrópoles e, por isso, se segrega em um local
remoto da Pensilvânia administrado por dois conselheiros que insistem em
manter todas as gerações afastadas da sociedade urbano-industrial
hodierna. Entretanto, uma tentativa de homicídio que ocorre no interior
da vila desestrutura a vida da “comunidade”, provocando mudanças
inesperadas, alterando as relações sociais, com questionamentos à ordem
previamente estabelecida, pelos fundadores da vila.
9Sem
rebuços, o filme é uma metáfora dos condomínios de luxo das metrópoles
mundiais na atualidade e as cenas, as imagens, os diálogos e os
discursos que perpassam a película nos instigam à reflexão sobre as
“novas” representações de natureza e da urbanização contemporânea,
amplamente marcada por “enclaves fortificados” (Caldeira, 2001), pela
insígnia da segurança (Seabra, 2004) e pela Ideologia do Desenvolvimento Sustentável. (Carneiro, 2005; Freitas & Gaudio, 2015a; 2015b).
10Em 2004, o diretor indiano M. Night Shyamalan produziu o filme A Vila, cuja
narrativa se passa em uma pequena reserva ambiental denominada
Covington. Esse fragmento do espaço parece ser um lugar ideal para a
realização da vida, pois é tranquilo, harmônico, “sem violência”, com
uma divisão do trabalho bem estruturada, autossustentável, onde o que
precisa ser consumido é produzido por habitantes obedientes,
disciplinados e que mantêm uma vida comunitária “invejável” com crianças
aprendendo o necessário para a reprodução da vida no “lugar”, com
refeições realizadas conjuntamente e a existência de festas para a
socialização do grupo.
11Trata-se
de um espaço organizado conforme os modelos de cidades do final do
século XIX no qual se verifica casas sem os benefícios da modernidade
(não existe energia elétrica, carros etc.). Observa-se, ainda, que as
relações sociais são altamente hierarquizadas (nas quais os mais velhos
determinam toda a reprodução social do “lugar”, inclusive definindo como
devem ser organizados os casamentos no interior da vila e quais os
tipos de roupas que podem ser utilizados, retratando uma utopia
regressiva presente em momentos anteriores de nossa história social.
12A
vila parece ser o local perfeito, pois as crianças, inocentes, são
treinadas a serem adultos bons, sem vícios e apartados de todo mal que
outras formas de organização social podem produzir. Há, no lugar , uma
perspectiva de comunitarismo que se dá através de um contato com a
natureza, com moradias longe da cidade, rodeadas de vegetação e
silêncio. “Uma espécie de estado rural (...) compatível com o
desenvolvimento econômico da sociedade industrial e que sozinho permite
assegurar a liberdade, a manifestação da personalidade e até a
verdadeira sociabilidade” (Choay, 1979: 17). Um comunitarismo que
carrega consigo a proposta de fuga da cidade para espaços nos quais,
pretensamente, inexistem a poluição e a possibilidade de interferência
dos “de fora”, uma vez que a coesão do grupo possibilita extinguir a
cidade industrial que aliena o indivíduo no artifício e o recontato com a
natureza, considerada restauradora e que permite o desenvolvimento da
pessoa com a totalidade.
13É
possível verificar na vila algo que remonta a França pós-Revolução
Industrial, e que foi proposto no modelo progressista que se vê presente
em obras como as de Proudhon, Cabet, Richardson e Fourier nas quais,
o verde oferece particularmente
um quadro para momentos de lazer, consagrado à jardinagem e à educação
sistemática do corpo [e] propõe uma localização fragmentada, atomizada
(...) com uma abundância de verde e de vazios que exclui uma atmosfera
propriamente urbana. O conceito clássico da cidade desagrega-se, ao
passo que se estimula o de cidade-campo. (Choay, 1979: 10)
14É possível inferir que no interior da vila predomina uma prática de reprodução das novas sensibilidades estéticas que
marcaram o século XVIII e XIX, pois se trata de uma expressão de
“recontato” com a natureza em função dos “efeitos da deterioração do
meio ambiente e da vida nas cidades, causada pela revolução industrial
[e pela forma de vida urbana moderna]”(Carvalho, 2001: 70). Ou seja, os
impactos negativos da modernização da sociedade advindos com a Revolução
Industrial e a intensificação da urbanização transformara as cidades em
espaços considerados mórbidos, insuportáveis, insalubres, violentos e
deteriorados. Assim,
As paisagens naturais e a
natureza de um modo geral passam a ser um valor, desejado e valorizado
pela sociedade. É nesse contexto que florescem as práticas naturalistas e
as viagens de pesquisa buscando o mundo natural. Do mesmo modo, hábitos
como o de manter em casa um pequeno jardim, criar animais domésticos,
fazer passeios ao ar livre, piqueniquess nos bosques, ouvir música em
ambientes naturais ir ao campo nos finais de semana, empreender,
observar pássaros, são fartamente registrados pela literatura e pintura
dos séculos XVIII e XIX. (Carvalho, 2001: 75)
15Na
parte interna da vila o que mais se assiste são práticas que fazem
referência ao período relatado por Isabel Carvalho (2001), tanto é que
os espaços de Covington eram muito limpos, com gramados ao redor ao
redor das casas etc. Neste espaço apartado, isolado, atomizado, as
pessoas, a princípio, não têm contato com o mundo exterior, pois são
oprimidas por estranhas criaturas que as cercam (“Aquelas de quem não
falamos”). A opressão chega a tal ponto que os membros da “comunidade”
não podem sequer falar nessas criaturas e, quando ocorre algo diferente
no cotidiano da vila, como por exemplo a transposição dos limites
estabelecidos entre a vila e a floresta que a cerca, as criaturas
ameaçam os moradores através de marcas deixadas nas portas das casas
durante a noite, nos sons assustadores emitidos no interior da floresta e
na exposição de animais mortos, sem pele e sem cabeça, nos gramados que
rodeiam as casas e nas varandas das mesmas.
16A
obediência à ordem estabelecida é garantida pela disseminação do medo do
iminente ataque que os habitantes da vila poderão sofrer, por parte das
criaturas, caso as regras sejam violadas (ou melhor, questionadas).
Assim, o receio de ser a próxima vítima ou de ser considerado o
responsável pela destruição da “comunidade”, no “micro paraíso
terrestre”, impede que os moradores se arrisquem a entrar na floresta e a
ter contato com aquilo que possivelmente está fora de suas cercanias,
no caso as pessoas da cidade e a própria cidade, de quem não têm um
conhecimento claro, mas cujas representações negativas são reproduzidas e
reforçadas no interior da reserva Walker. Entretanto, tal relação foi
estabelecida entre “aquelas de quem não falamos” e os anciãos
em momentos anteriores, e todas as vezes que algo pode mudar o curso da
história as criaturas atacam e oferendas devem ser feitas para que a
“paz” seja restabelecida.
17Ao
mesmo tempo, para deixar tudo sob controle, os fundadores da vila se
reúnem periodicamente para tomar decisões sobre o que pode ou não ser
feito no lugar . Assim, treinamentos são realizados para defesa do
ataque das criaturas, cerimônias são praticadas para acalmar “aquelas de
quem não falamos”, códigos de conduta são rigidamente impostos para
evitar que o espaço das criaturas seja invadido trazendo problemas
diversos e a história do acordo firmado entre os de dentro e os do
entorno da vila é repetida várias vezes pelos anciãos, para justificar o
isolamento dos moradores em relação ao mundo externo.
18Dessa
forma, a vida segue seu curso sem grandes abalos e a narrativa fílmica
indica que a proposta de um “novo” modo de vida (ilusoriamente apartado
da metropolização, com o “recontato” com a natureza, que passa a ser a
reserva do bom e do belo, o espaço da saúde, da integridade, da beleza e
do admirável) é a receita perfeita para a sociedade, em oposição ao
ambiente urbano que foi transformado no lugar da poluição, da
disseminação de doenças, de péssimas condições de vida e dos “odores
fétidos” etc. (Thomas, 2010; Euclydes, 2016). Porém, um dos habitantes
de Covington, uma criança de sete anos, morre devido à falta de
medicamentos para o tratamento do qual necessitava. O filme, aliás,
inicia-se com a cena do sepultamento dessa criança e com o choro de seu
pai, inconformado com a situação sendo observado, a distância, pelos
demais moradores da vila. A partir daí, um jovem morador, Lucius Hunt,
começa a refletir sobre as possibilidades de se retomar o contato com o
exterior na busca de melhorias para a comunidade, decidindo enfrentar o
desconhecido e embrenhar-se pela floresta para introduzir, na vila,
benefícios da modernidade e melhorar a condição da vida dos habitantes
da reserva. Assim, Lucius, durante uma reunião dos anciãos, pede
autorização para ir à cidade buscar novos medicamentos que poderão ser
úteis para todos, alegando que passará pelas criaturas sem problemas
devido à pureza de seu ato, ao mesmo tempo em que divide com outros
moradores da vila suas inquietações e o desejo de ampliar os horizontes
da comunidade.
19Esse
movimento resulta na insistência de Lucius em ter contato com os
citadinos, através de recorrentes pedidos ao grupo de líderes de
Covington, sendo necessária a intervenção de sua mãe, na tentativa de
dissuadi-lo de suas intenções. Nesse sentido, a mãe de Lucius chama-o
para uma conversa sobre a cidade contando a ele que seu pai havia saído
para fazer compras em um supermercado e foi encontrado, posteriormente,
morto, nu e dentro de um rio, após ser assaltado. Dessa forma, Lucius
deveria saber qual era a natureza de seu desejo. Após esse episódio,
outros diálogos e relatos são desenvolvidos ao longo do filme, como, por
exemplo, o diálogo entre Ivy Walker (filha de um dos líderes) e a
Senhora Clark (pertencente ao grupo de anciãos), quando esta lhe conta a
história de uma irmã que morreu, aos 23 anos, na cidade, após ser
atacada e violentada por vários homens. Ou o caso do relato sobre o
irmão de um dos fundadores da vila que trabalhava em um centro médico e
foi assassinado ao dar assistência a um paciente viciado em drogas. Ou,
ainda, o caso do pai de Edward Walker (pai de Ivy e o idealizador da
“comunidade”), que foi assassinado por seu sócio enquanto dormia.
20Inequivocamente,
são relatos que visam solidificar a defesa do comunitarismo existente
na vila, exteriorizando a completa aversão à cidade e aos citadinos, com
a produção social do medo que é apresentada para impedir a relação
entre os habitantes da vila e as pessoas que residem na cidade. Em
vários momentos da película, o espaço urbano é apresentado como o lugar
malsão, o local do caos, da desordem, da criminalidade, da violência, da
perversão e de pessoas ruins. É um espaço violento que produz o
sofrimento humano, tragando as esperanças daqueles que nele habitam e
trabalham (Caldeira, 2001).
21Dialogando com Thompson (1989), há nesse processo discursivo a elaboração de uma estratégia de construção simbólica da Ideologia do Desenvolvimento Sustentável que é o expurgo do outro. Assim, há um expurgo do
urbano que é colocado como mau/vilão da degradação da sociedade,
ocultando as reais relações estabelecidas na mesma, ao longo da
história. Há uma demonização da cidade quando os moradores da vila
estabelecem diálogos, narram histórias pessoais e constroem uma farsa
para edificar uma vida antiurbana, negando o ideal moderno de espaço
público e os benefícios materiais da modernidade, adotando uma concepção
reducionista de violência urbana (encarada apenas como criminalidade),
como pode ser visto através do diálogo entre Lucius e seu amigo Finton
quando estão de vigília, na guarita construída no limite entre a
floresta e a vila. Nesse momento, Lucius pergunta a Finton se ele
pensava na cidade. Seu amigo simplesmente responde: “Para quê? São
lugares maus, onde pessoas más vivem. Só isso!!!”
22A
película retrata uma concepção de cidade (e de natureza) que foi fundada
ao longo do século XIX, nos Estados Unidos e que se reproduziu em
diversos países até meados do século XX, inclusive no Brasil, e que foi
retomada nas duas últimas décadas do referido século e no início do
século XXI. A partir dessa concepção, a cidade moderna, dos primórdios
da industrialização, torna-se um lugar maldito, onde os outros
(indesejáveis) vivem, na qual o infortúnio vem ao encontro de todas as
pessoas. Ou como diz um dos anciãos de Covington, “ir à cidade é
procurar a tristeza e encontrar-se com a desgraça”.
Em suma, em uma cidade em que os
sistemas de identificação e as estratégias de segurança estão se
espalhando por toda a parte a experiência de vida urbana é de diferenças
sociais, separações, exclusões e lembretes das restrições no uso do
espaço público. Trata-se, de fato, de uma cidade de muros – o oposto do
espaço público aberto do ideal moderno de vida urbana. [A vila
externaliza] que não só as atitudes na rua estão mudando, mas a própria
composição da multidão. As classes média e alta tentam evitar as ruas e
calçadas movimentadas, preferindo fazer compras nos shopping centers e
hipermercados.
23Elementos
tais como “comunitarismo ecológico”, antiurbanismo, produção social do
medo, corporativismo territorial, “recontato com a natureza” são
apresentados no filme e devem ser refletidos à luz da urbanização
contemporânea. Apesar da narrativa fazer uma referência ao final do
século XIX (o filme se passa no ano de 1897) é possível afirmar que se
trata de um modo de vida praticado nas principais metrópoles e cidades
do mundo a partir do último quartel do século XX. Sem rebuços, estamos
diante de universos privados para determinadas parcelas da sociedade: os
enclaves fortificados. Segundo a sociológa Teresa Caldeira (2000: 259)
tratam-se de:
Ambientes socialmente
homogêneos. Aqueles que escolhem habitar esses espaços valorizam viver
entre pessoas seletas (ou seja, do mesmo grupo social) e longe das
interações indesejadas, movimento, heterogeneidade, perigo e
imprevisibilidade das ruas. [Tais enclaves] cultivam um relacionamento de negação e ruptura com o resto da cidade e
com o que pode ser chamado de um estilo moderno de espaço público
aberto à circulação. Eles [transformam] a natureza do espaço público e a
qualidade das interações públicas na cidade, que estão tornando cada
vez mais marcadas por suspeitas e restrição.
24É
preciso escrutinar as relações existentes entre as propostas de produção
do espaço apresentadas no filme e as características do atual momento
de urbanização da sociedade. É necessário desvendar as contradições
presentes na vila associando-as às observadas no cotidiano urbano atual.
Ou seja, quais as aproximações e os distanciamentos existentes entre a
vila, o urbano hodierno e as representações de natureza, na atual fase
ecológica do capitalismo?
25O
filme apresenta um espaço em que as moradias e os equipamentos coletivos
(escola, igreja) estão no centro da Reserva Ambiental Walker e
são rodeados por uma floresta e uma cerca que promove a separação entre
os “de dentro” e os “de fora”. No limite entre a floresta e o espaço
das moradias há uma guarita na qual é feita, cotidianamente, a vigília
para a suposta segurança dos moradores. Todas as noites, em sistema de
revezamento, dois rapazes devem ficar de vigília nessa guarita e, caso
“aquelas de quem não falamos” decidam invadir a vila e atacar
seus componentes, eles devem tocar um sino avisando os membros da
comunidade para se protegerem. Quando isso ocorre, todos devem trancar
suas casas e ir para um abrigo construído embaixo delas e esperar que o
sino seja tocado novamente como sinal de autorização para deixar o
“bunker”.
26Após
esse limite, existe uma “cortina arbórea” que se constitui em um
importante elemento de isolamento. Trata-se de uma floresta que
apresenta pouca folhagem, com galhos secos, poucas flores e sem a
presença de fauna silvestre, demonstrando a presença de uma vida
monótona em seu interior e que, ao meu entender, tem uma função de
amedrontar os “de dentro”, mantendo-os cativos e imobilizados, ao mesmo
tempo que serve para ampliar a linha divisória entre a vila e a cidade.
27É
possível afirmar que para garantir a intocabilidade do lugar e evitar
qualquer questionamento à ordem social vigente a ideia de natureza como
domínio do selvagem, ameaçadora, esteticamente desagradável, como o
lugar do rústico, obscuro e feio, e que predominou no século XVI e XVII,
conforme Thomas (2010), é mobilizada quando necessário. Tudo que não é
regular, ordenado e cultivado em formas regulares é utilizado para impor
a ordem humana no “lugar”. Nesse sentido, a mesma ideia que era
colocada para as montanhas, áreas silvestres e pântanos nos séculos XVI e
XVII é retomada para manutenção do controle no interior da vila. A
floresta passa a ser odiada da mesma maneira que as montanhas em meados
do século XVI e adjetivos “como estéreis, deformidades, verrugas,
furúnculos, monstruosas excrescências, incotáveis tumores e
protuberâncias inaturais sobre a face da terra” (Thomas, 1989: 307) são aplicados a esse ambiente que envolve a reserva Walker.
são espaços privatizados,
fechados e monitorados, destinados a residência, lazer, trabalho e
consumo. Podem ser shopping centers, conjuntos comerciais e
empresariais, ou condomínios residenciais [grifo nosso]. Eles
atraem aqueles que temem a heterogeneidade social dos bairros urbanos
mais antigos e preferem abandoná-los para os pobres, os “marginais”, os
sem-teto. Por serem espaços fechados cujo acesso é controlado
privadamente, ainda que tenham um uso coletivo e semipúblico, eles
transformam profundamente o caráter do espaço público, na verdade, criam
um espaço que contradiz diretamente os ideais de heterogeneidade,
acessibilidade e igualdade que ajudaram a organizar tanto o espaço
público moderno quanto as modernas democracias.
28Esta
é uma forma de produção do espaço que marca o urbano atual que, quando
necessário, mobiliza diferentes concepções de natureza. É inegável que a
película explicita elementos marcantes nessa quadra da história tais
como a segregação que é concebida e administrada, nos “enclaves
fortificados”, como uma pretensa “fuga da metrópole”, resultando na
produção de territórios que revelam os fundamentos desiguais da
sociedade e que não foram ainda resolvidos (Caldeira, 2000).
29Se
no passado a ideia de cidade moderna foi amplamente disseminada como uma
promessa de um mundo novo e com possibilidades de emancipação social,
já que representava a liberdade, o anonimato e a individualidade, na
atualidade, a intensa segregação que está presente nas metrópoles é o
novo modelo e serve como recurso para administrar a separação entre os
diferentes, num processo em que a apropriação e a fruição da vida é
embotada. E, infelizmente, nesse caso, a concepção de recontato com a
natureza é forjada para dar legitimidade aos processos de exclusão e
segregação (Seabra, 2004).
30Assim,
pode-se afirmar que, nesse momento histórico, as interrelações entre o
urbano e o ambiental (a natureza) são, por meio dos “condomínios
fechados”, expressões de anulação dos espaços da circulação, da
articulação da vida civil e política e expressa um modo de vida sobre o
qual atuam empresas organizando o cotidiano e prescrevendo a atividade
de morar, do lazer, do consumir etc., não raro com a defesa do bucólico,
em que não deve ocorrer barulho e fadiga, “propondo o cultivo do seu
próprio jardim, entre tantos outros apelos. Assim, os novos hábitos de
morar [tornaram-se] realidade, [através] do imaginário [propugnando] que
a vida fora da cidade oferecia qualidade superior” (Seabra, 2004: 96).
31Trata-se
da produção de “cidades-fortalezas”, visando destruir qualquer
perspectiva de uma “revolução urbana” (Lefevbre, 1999). Reitera-se as
perspectivas de aniquilar a rua e a multidão, por meio dos
reordenamentos urbanos, das requalificações urbanísticas e do
planejamento estratégico. É necessário controlar os indesejáveis urbanos
e os acontecimentos do final do século XX, na cidade de Los Angeles,
são emblemáticos para o entendimento desse processo (Davis, 1993).
Naquele momento surgiu nos Estados Unidos um movimento denominado NIMBY (Not in my backyard
– Não no meu quintal) expressando um “corporativismo territorial” que
buscava a valorização das propriedades mediante ações contra o
congestionamento acachapante das cidades, as construções diversas que
somente serviam para adensar o espaço urbano, atraindo imigrantes
pobres, a construção de moradias populares próximas às áreas
valorizadas, que promoviam a mistura de endinheirados, mexicanos e
asiáticos, no oeste americano. Com base em Mike Davis, Caldeira (2000:
333) afirma que
A maior parte da vida pública de
L. A. acontece em espaços segregados, especializados e fechados, como
shoppings, condomínios fechados, centros de entretenimento e parques
temáticos de todos os tipos, em cuja criação Los Angeles foi pioneira.
Esses enclaves, geralmente para os mais ricos, existem em relação aos
espaços deixados para a população mais pobre – os parques e ruas
ocupados pelos homeless, os bairros pobres habitados por vários grupos
étnicos no centro, os territórios das guangues e os acampamentos de
migrantes.
32Práticas
semelhantes se espalharam para diversos lugares do mundo objetivando
fortalecer o processo de segregação espacial, pois aliam a prática de
produção dos “enclaves fortificados” com a preservação de matas,
aquíferos, de mananciais, através da criação de unidades de conservação
particulares que só poderão ser acessadas por grupos/pessoas com
elevados rendimentos, processando um aprofundamento da fragmentação que
caracteriza a metrópole hodierna (Davis, 1993; Caldeira, 2000; Freitas,
2004).
33A
vila incita a refletir sobre as características da urbanização
contemporânea, na qual as “novas formas” urbanas trazem no bojo o
revigoramento da segregação, a distância social, a “exclusão” e a
implosão do idealizado como vida pública moderna. Estrutura-se, assim,
uma nova experiência urbana na qual os valores modernos de relação
social são destruídos. Neste sentido, a abertura e a primazia das ruas, a
circulação livre, os encontros impessoais e anônimos, o uso público e
espontâneo das ruas, avenidas e praças, a tolerância, a heterogeneidade
são substituídos pelo seu contraponto, os “enclaves fortificados”, com a
segregação, o controle, a homogeneidade social, o isolamento, a
segurança, a prescrição de legislações draconianas sobre o uso e
ocupação do solo etc. (Caldeira, 2000; Freitas, 2004). Em suma, é a
negação da cidade enquanto espaço aberto, substituída pelos “enclaves
fortificados” que permitem “apenas” o contato entre iguais, como destaca
Caldeira (2000: 265):
Esse novo conceito de moradia
articula cinco elementos básicos: segurança, isolamento, homogeneidade
social, equipamentos e serviços. A imagem que confere o maior status (e é
mais sedutora) é a da residência enclausurada, fortificada e isolada,
um ambiente seguro no qual alguém pode usar vários equipamentos e
serviços e viver só com pessoas percebidas como iguais. (...) os
enclaves são, portanto, opostos à cidade, representada como um mundo
deteriorado no qual não há apenas poluição e barulho, mas o que é mais
importante, confusão e mistura, isto é, heterogeneidade social.
34Processo
feito com a consolidação de uma “nova” relação entre parcelas da
sociedade e a natureza, que não é mais temida, tida como ameaçadora.
Mas, também, sem os atributos que lhe foram conferidos no século XVIII e
XIX pela novas sensibilidades estéticas, entre elas a romântica que
veiculava uma “visão de natureza como ideal de perfeição [que foi]
degenerado pela ação humana que se exerce contra a ordem natural” (Carvalho, 2000: 80). Trata-se de um processo de fetichização da natureza em que:
O urbanismo organiza um setor
que parece livre e disponível, aberto à ação racional: o espaço
habitado. Ele dirige o consumo do espaço e do habitat. Enquanto
superestrutura, ele se distingue, e é preciso distingui-lo fortemente,
da prática, das relações sociais, da própria sociedade. Não existem
aqueles que confundem o urbanismo com “o urbano”, a saber, a prática
urbana e o fenômeno urbano?” (Lefebvre, 1999: 150).
35Ao
mesmo tempo em que o filme apresenta uma perspectiva de segurança
interna à vila com a colocação da guarita, na qual os próprios moradores
vigiam os “de dentro” e os “de fora”, do lado externo há toda uma
equipe de segurança motorizada e armada preparada para afastar os
indesejáveis do entorno da reserva ambiental. Para aumentar o grau de
segurança, toda a reserva é cercada por um muro alto que necessita de
escadas para ser transposto. Há uma vigilância constante e, para se
evitarem problemas diversos, a rota de aeronaves foi deslocada, e nenhum
avião sobrevoa o perímetro de Covington.
36Essa estrutura defensiva da vila revela a presença marcante do que podemos chamar da “insígnia da segurança”,
que se constituiu num elemento importante da (re)produção do espaço e
cujo resultado é a dificuldade de recriação das referências qualitativas
da urbanização e a precarização das relações sociais e afetivas,
contribuindo para a edificação de um “totalitarismo urbano” (Seabra,
2004).
37Analisando
os sentidos e significados da urbanização contemporânea, isso é
perceptível na proliferação, em âmbito mundial, dos “enclaves
fortificados” que são espaços extremamente homogêneos destinados às
camadas de altas rendas que se segregam do restante da sociedade, os
“menos favorecidos materialmente”, ao mesmo tempo em que procuram
redobrar a vigilância sobre estes evitando o contato entre “estranhos”.
Noutros termos, tais práticas destroem as possibilidades de contato
entre os diferentes que bem marcaram o processo de redefinição da
urbanização nos séculos XIX e XX e significaram a positividade da
urbanização. Inequivocamente, expressam-se práticas contemporâneas que
primam pela denegação dos direitos individuais arduamente conquistados
ao longo dos últimos dois séculos, estruturando uma nova experiência
urbana na qual os valores modernos de relação social são destruídos.
Nesse sentido, no lugar da abertura e da primazia das ruas, da
circulação livre, dos encontros impessoais e anônimos, nos deparamos com
a busca pelo controle total, através de uma indústria da segurança de
demanda paranoica, preparada para proteger quem pode pagar por ela
(Davis, 1993; Caldeira, 2000).
38Assim,
está em construção uma sociedade na qual tudo (e todos) deve(m) ser
vigiado(s) e controlado(s) em um processo alimentado por meios cada vez
mais sofisticados de controle das pessoas, como a biometria (Caldeira,
2000; Freitas, 2004). Um “totalitarismo urbano” que dá base à
(re)produção da metrópole industrial e que prima pela higienização do
espaço, pelo controle dos “indesejáveis”, cujo discurso/prática é a
necessária “renovação urbana”. Um “totalitarismo urbano” que é reforçado
pela privatização dos espaços públicos, controle extremos dos
indesejáveis, pela falta de poder deliberativo dos consumidores dos
espaços sobre as formas de produção/gestão desses lugares, pela extrema
defesa, por parte dos “menos favorecidos materialmente”, que são
controlados e vigiados, mas, que apoiam, não raro, acriticamente, essa
urbanização como a saída para a “problemática urbana/ambiental”. Como
afirmou Mike Davis (1993): “nós estamos no limiar da vigilância
eletrônica universal da propriedade e dos povos – tanto criminosos
quanto não criminosos (criancinhas, por exemplo) – monitorados por
equipamentos de vigilância, tanto celulares quanto centralizados”
(Davis, 1993: 227).
39No
filme, os bons cidadãos são resguardados por uma guarita na fronteira da
vila com a floresta, no uso de pedras mágicas para se entrar na
floresta sem sofrer o ataque das criaturas ou do uso de um manto amarelo
de “invisibilidade” que protegerá todos os moradores da vila dos
possíveis ataques das criaturas indesejáveis. Na urbanização atual, a
indústria da segurança investe na leitura da íris, nos altos muros, com
cercas eletrificadas, nas câmeras dispostas nas ruas, na montagem de um
exército de motoboys, devidamente uniformizados, que circulam pelas ruas
dos bairros durante a noite para vigiar e afastar os indesejáveis. Para
Teresa Caldeira há uma articulação entre apelo ecológico,
distanciamento dos centros urbanos, perspectivas de melhoria da
qualidade de vida etc. para construir o novo conceito de moradia. Mas,
Apenas com “segurança total” o
novo conceito de moradia está completo. Segurança significa cercas e
muros, guardas privados 24 horas por dia e uma série de instalações e
tecnologias – guaritas com banheiro e telefone, portas duplas na
garagem, monitoramento por circuito fechado de vídeo etc. Segurança e
controle são as condições para manter os outros de fora, para assegurar
não só exclusão mas também “felicidade”, “harmonia” e até mesmo
“liberdade”. Relacionar a segurança exclusivamente ao crime é ignorar
todos seus outros significados. Os novos sistemas de segurança não só
oferecem proteção contra o crime, mas também criam espaços segregados
nos quais a exclusão é cuidadosa e rigorosamente praticada. (Caldeira,
2000: 267)
40Cotidianamente,
a busca pelo controle total é verificada nas principais cidades
brasileiras (e em vários lugares do mundo). Em pontos de parada de
ônibus, em praças nas áreas centrais, embaixo de marquises de lojas e
prédios são colocados equipamentos para afastar a presença dos “pobres
urbanos”. São bancos em forma de barril ou com barra de aço, para evitar
que os indivíduos se sentem. São splinkers colocados para
jorrar água e molhar que se atreve a descansar, durante a noite, embaixo
de uma marquise ou dormir dentro de um parque público. Além disso, há a
produção de um sistema de vigilância através de câmeras espalhadas
pelas ruas e ligadas diretamente aos postos centrais de polícia (Davis,
1993). Tudo isso ancorado na produção de um medo social que é tornado
natural e positivo, resultando na mobilização por segurança que, em
muitos casos, é superior ao que a realidade da criminalidade demanda e
contando com a participação da mídia que encobre o que é de fato a
violência urbana e contribui para a elevação dos lucros desse mercado
(Davis, 1993).
41Assim,
a película expressa elementos predominantes do cotidiano atual, no qual
são forjadas propostas de um “comunitarismo” que apela para a defesa de
preservação da natureza, que, concomitantemente, trará a melhoria para a
sociedade e, principalmente, para aqueles que consomem os espaços
exclusivos, ao mesmo tempo em que reitera o medo social, colocando a
cidade como violenta, perigosa e poluída e que deve ser relegada aos
indesejáveis, e propõe a segregação espacial, com forte apelo ecológico,
como a busca para uma vida melhor (Davis, 1993; Caldeira, 2000). Nesses
termos, é correto afirmar que A Vila (o cinema), por
um lado, transmite representações sobre a natureza e o urbano hodierno
e, por outro lado, por ser também história, pode contribuir para
reforçar práticas cotidianas, a partir dessa projeção, que nada ajudarão
na superação dos problemas urbanos/ambientais. Daí a necessidade de uma
interpretação crítica sobre a película.
42Ao
longo da história foram erigidas diversas concepções de natureza,
contando com a participação do conhecimento científico, que se
materializaram no espaço e no tempo, por meio, por exemplo, de discursos
e representações, signos do turismo, da ecologia, das imagens canônicas
em livros didáticos, mapas, cartas, etc., que chegam ao nível da vida
cotidiana.
43Com
o início do período moderno (séculos XVI e XVII), conforme Thomas
(2010), a natureza passou a ser considerada ameaçadora, o domínio do
selvagem que deveria ser domado. O belo e o moralmente aceito passa a
ser tudo que é domesticado e produtivo (Carvalho, 2003; Thomas, 2010;
Euclydes, 2016). Entretanto, no século XVIII, com o desenvolvimento e
expansão da cidade industrial, a representação de natureza sofreu
mudanças, pois “a insatisfação com a cidade deteriorada pela indústria
passou a ensejar uma espécie de romantização reativa do cenário rural
por parte da burguesia não envolvida diretamente no processo agrícola” (Euclydes,
2016: 59). Nesse contexto, passou a ocorrer uma representação de
natureza como reserva do bom e do belo (“natureza restauradora”). Houve
uma valorização do rústico, um estímulo às excursões “à natureza” para o
lazer e realização de estudos diversos em várias regiões do globo. Ou
seja, houve a edificação de “novas sensibilidades”, que promoveram
releituras sobre a natureza e que se desdobrou na reconstrução da
representação dos habitantes das florestas, que passaram a ser
enaltecidos por serem simples e inocentes (Thomas, 2010; Euclydes,
2016).
44No
transcurso do século XIX e, posteriormente, no século XX, ganhou força
na sociedade a criação de diversas áreas verdes (parques, jardins etc.)
ora para acesso/descanso/contemplação dos citadinos, ora como expressão
do republicanismo, da democracia, dos ideais cívicos e morais, da
higiene, da estética, do utilitarismo etc. (Carvalho, 2003; Velloso,
2007; Euclydes, 2016). Ao longo do século XX outras mudanças ocorreram
no que tange os discursos e representações sobre a natureza. Porém, a
partir da década de 1960 houve um importante “ponto de inflexão”, pois
tornou-se visível semântica, discursiva e politicamente uma “intensa
crise ecológica”, ecoada por meio da poluição e degradação da “natureza
natural” do planeta. Uma mudança discursiva (e de representação) afeita à
“natureza” e aos recursos naturais aflorou no âmbito dos processos
políticos e acadêmicos, apresentando-a gradativamente como insuficiente e
frágil. O discurso da infinitude, aos poucos, cedeu lugar ao discurso
da limitação e da escassez nos fóruns de debate que procuraram nortear e
institucionalizar a discussão quanto aos limites da natureza e as ações
decorrentes a partir daí (Bihr, 1999; Carvalho, 2003; Freitas, 2013;
Gaudio, Freitas e Pereira, 2015). Diante desse quadro nada alentador,
vários movimentos passaram a denunciar as ações de degradação ambiental e
a requerer que uma nova relação entre sociedade e natureza fosse
construída, em moldes diferentes aos que prevaleceram no chamado
“paradigma urbano-industrial”. Esses mesmos movimentos, criticaram a
democracia representativa e defenderam (e defendem) a renovação da
política, em escala mundial (Gonçalves, 1989 Bihr, 1999).
45Porém,
na esteira desse “ponto de inflexão”, houve, por parte das classes
dominantes, a reapropriação discursiva (e de representação) da “crise
ecológica” (e, consequentemente, da natureza), que se materializou no
que denominamos de Ideologia do Desenvolvimento Sustentável. Tal
ideologia mobiliza formas e mecanismos de interpelação objetivando
reiterar os discursos dominantes no que tange a relação sociedade e
natureza e, ao mesmo tempo, obscurecer os processos históricos que
(re)produzem essa relação e as desiguais relações de poder que dão
sustentação à sociedade (Freitas & Del Gaudio, 2015).
46Em
outros termos, ao longo dos últimos 40/50 anos, discursos e
representações de natureza (e do urbano) foram edificados e disseminados
e, sem rebuços, têm definido limites, contradições e, por que não,
possibilidades de emersão de outra sociedade, mais justa e igualitária.
Tudo isso, com a contribuição dos diversos discursos que permeiam a
sociedade, entre eles, o discurso do cinema, que tanto pode contribuir
para uma melhor compreensão dessas concepções/representações de natureza
(e do urbano) quanto reafirmar as mistificações.
47Assim, ao assistirmos o filme A Vila nos
deparamos com vários elementos que estão presentes no atual estágio de
urbanização da sociedade. Entretanto, o filme é também expressão dos
limites dessa urbanização segregacionista, ancorada em “novas”
representações da natureza, a partir da crise ecológica.
48O
contato entre a jovem Ivy e o policial responsável pelo controle dos
indesejáveis revela que há uma interdependência entre os “de dentro” e
os “de fora”. É com a ajuda do policial que a jovem consegue retornar à
“comunidade” levando medicamentos que poderão salvar a vida de seu
namorado. Ou seja, essa relação revela que existem bons cidadãos do lado
de fora dos muros, dispostos a construir uma sociedade melhor para
todos. Não obstante, algumas cenas do filme revelam que a violência não
está somente do lado de fora dos muros da reserva ambiental. A escolha
pela morte de uma criança de sete anos ao invés da busca de novas
relações com os citadinos que possibilitariam salvar a vida da criança, a
tentativa de homicídio praticada contra o jovem Lucius, a
infantilização e o embotamento das possibilidades de algo novo para as
gerações mais novas através de uma prática educacional que é um simples
instrumento da reprodução social daquele núcleo urbano revelam que a
violência urbana se apresenta na forma da criminalidade, mas, também, do
enfraquecimento das práticas políticas que servem para a emancipação
social. Assim, a apartação, ao invés de ser solução para os problemas
urbanos, explicita que quanto mais elevado esse processo, maior a
incapacidade de construção de uma sociedade mais justa. Na realidade
urbana contemporânea há toda a produção de um discurso da apartação, da
separação, do não contato entre os diferentes que são transformados em
desiguais. Mas aqueles que se autossegregam em “enclaves fortificados”
necessitam estabelecer relações com os “pobres urbanos”, pois são esses
pobres que prestam serviços como jardineiros, cozinheiras, arrumadeiras,
passadeiras, babás que cuidam dos filhos dos moradores dos “enclaves
fortificados”. Há, assim, a construção de uma interdependência entre as
diferentes classes sociais que a nova forma urbana deseja apagar
(Caldeira, 2000; Freitas, 2001, 2004).
49Além
disso, diversos atos de violência são praticados no interior dos
condomínios fechados, pois os indivíduos sentem-se à vontade para
descumprir regras gerais e específicas desses enclaves, já que a polícia
é mantida a “longa distância”. Assim, ocorrem atos de desrespeito às
regras de trânsito em número muito mais elevado do que nos chamados
espaços públicos, na maioria dos casos, cometidos por adolescentes sem
autorização para dirigir que ferem (e até matam) outros adolescentes e
crianças. Em vários “enclaves fortificados” é comum o uso de drogas
ilícitas, pois há a garantia de que a ação policial contra essa
violência não será realizada, e os guardas das empresas privadas, que
fazem a segurança desses espaços, são desrespeitados pela maioria dos
moradores que se recusam a obedecer a tais empregados. Assaltos e roubos
também são comuns e são associados com casos de violência sexual como o
ocorrido, em 1991, num grande “enclave fortificado” da região
metropolitana de São Paulo, quando uma jovem foi sequestrada, violentada
e assassinada. Para Teresa Caldeira (2000: 279):
Dentro dos condomínios, o
desrespeito à lei é quase uma regra. As pessoas sentem-se mais livres
para desobedecer a lei porque estão em espaços privados dos quais a
polícia é mantida distante e por que encaram as ruas dos complexos como
extensões de seus quintais. (...) O caso do Alphaville, sobre o qual
obtive estatísticas, exemplifica isso de forma clara. Entre março de
1989 e janeiro de 1991, a polícia registrou 646 acidentes de automóvel,
925 feridos e 6 mortos em Alphaville. Oitenta por cento aconteceram
dentro das áreas residenciais, ou seja, dentro dos muros e nas ruas
particulares às quais só os moradores e seus visitantes têm acesso.
50Tudo
isso com a “conivência” de muitos moradores que evitam tornar públicas
essas práticas de violência, pois temem a desvalorização de suas
propriedades. Ou seja, “como os sicilianos em A honra do poderoso Prizzi, amam seus filhos, mas amam mais o valor de suas propriedades” (Davis, 1993: 37).
51Esse
processo revela para todos nós que a saída para os problemas urbanos
não é contra a cidade, e sim através da construção de uma outra
sociedade por dentro da sociedade já existente. Nesse sentido, as
perspectivas de Lucius são mais interessantes e promissoras, pois apesar
do medo da cidade introjetado e internalizado pelas práticas existentes
na vila, ele tenta romper a ordem estabelecida e vê no contato com o
outro uma possibilidade de estabelecimento de novas relações que podem
ajudar os moradores da vila a resolver seus problemas do cotidiano,
diferentemente do enfretamento de Ivy, que expressou uma saída
individual, motivada pela relação pessoal, e que serviu de instrumento
de ratificação da reprodução social da vila, nos marcos já estabelecidos
anteriormente (Caldeira, 2000; Seabra, 2004).
52Ao
analisar a referida película procurei cotejar as abordagens que são
dadas à “questão urbana” e à “questão ambiental” pelo cinema e que,
certamente, contribui para a formação de opinião sobre tais questões. Ou
seja, a presente análise foi realizada objetivando lançar um olhar
crítico sobre as relações entre sociedade e natureza, em uma perspectiva
histórica, procurando potencializar o aprendizado sobre a urbanização
hodierna. Ao mesmo tempo, pretende-se ampliar a reflexão sobre os
processos educativos a partir do projeto desenvolvido (e em
desenvolvimento). A escolha de The Village foi cuidadosamente
pensada, já que intencionei refletir sobre a chamada “crise ecológica”
(Bihr, 1991) em um sentido mais amplo, para além da dimensão
biologizante que predomina e em uma perspectiva que considere a mesma
como uma crise do modelo de sociedade vigente, onde a natureza natural
do mundo e os seres humanos são cada vez subordinados à lógica do mundo
das mercadorias e extensamente dilapidados (Lefebvre, 2008). Tudo isso
em um contexto que o filósofo francês acertadamente, afirma:
o que aconteceu desde o tempo em
que Marx escreveu sua crítica fundamental da economia política? O que
acontece hoje em dia? Entre outros aspectos, isto: os bens que outrora
eram raros tornaram-se abundantes, os que eram abundantes tornaram-se
raros. (...). Nos nossos países, a água rapidamente se transforma num
produto industrial (águas minerais, águas de mesa), pois as águas
fornecidas pelos meios habituais deixaram de ser propícias ao consumo.
Vê-se chegar o momento em que o ar será filtrado acima das aglomerações,
ao redor das cidades. Cada vez mais será preciso produzir esses bens. Esse
vasto fenômeno, as novas raridades, é ainda ignorado. Os “elementos”
perdem sua natureza. Os “elementos”, com seus envoltórios espaciais,
ganham, portanto, valor (de troca e de uso). Eles entram nos circuitos
das trocas: produção-repartição-distribuição (Lefebvre, 1972 [2008]: 121, grifo nosso).