1Dissertar
sobre a visualidade dentro da ciência geográfica requer certa
compreensão de que nossa experiência espacial é imagética antes mesmo de
ser corporal, experimento que talvez nunca venha a se concretizar. A
produção e a difusão do conhecimento geográfico sempre estiveram
atreladas às diversas formas visuais inicialmente bastante ligadas ao
imaginário. Enquanto todas as ciências foram moldadas, em certa medida,
através de práticas de exploração ― as viagens, a pesquisa, o mapeamento
da terra, os mares e as estrelas ― o campo da geografia mais do que
qualquer outro veio a ser associado com a figura do explorador (Driver,
2003:3).
2A
cultura da exploração, segundo Felix Driver (2003), englobava mais do
que as viagens e os registros do que era visto além-mar. Sua definição
baseia-se na variedade de práticas presentes na produção e consumo das
viagens de exploração, dentre elas, as práticas ‘reprodutivas’, por
estarem ligadas à transmissão de conhecimento. A partir desse
referencial, a presente pesquisa procurará primeiramente analisar a
importância do uso da fotografia como instrumento fundamental das
viagens de exploração. Em seguida, através das análises comparativas das
imagens, investigaremos as relações presentes entre os registros de
Timothy O’Sullivan, Ansel Adams e as fotografias de Gênesis, última obra
de Sebastião Salgado.
3A
partir delas, apontaremos algumas dimensões políticas envolvidas com
base na ideia de cultura visual dominante que redefiniria tanto o que é
para se ver quanto o que há para se ver (Alpers, 1999; Latour, 2015). Em
outras palavras, a cultura visual dominante emerge dos países que detêm
técnicas para representar suas visões sobre o mundo, influenciando a
forma como este é visto pelos demais. Tal dinâmica ocorre desde as
primeiras representações em perspectiva e dos primeiros mapas, embora a
circulação dessas imagens fosse inicialmente bastante restrita.
- 1 Termo utilizado por Joseph Conrad em artigo publicado na revista National Geographic, em 1924, para (...)
4De
acordo com Joseph Conrad, a história do conhecimento geográfico pode
ser dividida em três momentos. O primeiro, denominado Geografia
Fabulosa,1
consistia no tempo em que cartógrafos medievais lotavam seus mapas com
figuras de árvores e animais em meio a continentes imaginados, pouco ou
nada explorados (Conrad, 1924 apud Driver, 2003). Apesar da
grande quantidade de arte exibida e pouca quantidade de informação
transmitida (Alpers, 1999:253), seu potencial certamente estava em
traduzir a aflição de apreensão do mundo daquele tempo.
5A
segunda fase, denominada Geografia Militante, é descrita por Conrad como
época de ouro da geografia, na qual homens desbravadores comandavam as
viagens de exploração que tinham como objetivo preencher os espaços em
branco dos mapas. Ressalto aqui que o preenchimento dos espaços em
branco significaria, dentre outros fatores, reunir impressões sobre
aquilo que foi observado nos territórios adentrados. Neste momento, o
desenvolvimento de certas tecnologias permitiram o choque do imaginado
com o empírico (Allen, 1971: 47).
6O
presente artigo destacará a segunda fase, já que o advento da fotografia
deu-se concomitantemente a esta contribuindo enormemente para o
registro e consequente domínio dos territórios. Porém, após o
recolhimento das informações sobre os territórios que interessavam aos
países centrais, o que aconteceria com o heroísmo dos exploradores
geográficos após o fim das terras incógnitas?
7Como
bem sabia Joseph Conrad, o negócio da exploração não estava restrito
apenas à coleção de registros geográficos. Os novos dados e as novas
formas de representar trazidos pelos exploradores da Geografia
Militante, os “conquistadores da verdade”, mudaram a imagem de mundo a
partir da expansão das fronteiras do conhecimento e a consequente
expansão das fronteiras europeias. Desta maneira, é notório que se há
uma cultura visual dominante que detém importantes técnicas de
representação do espaço, por detrás dela existe um objetivo maior do que
apenas representar.
8Durante a ‘época de ouro’ da Geografia havia um anseio pela descoberta de outro mundo
mas, após as expedições, a tendência era o fechamento irreversível dos
espaços abertos, o fim do heroísmo destemido e o inevitável
desencantentamento do mundo (Conrad, 1924 apud Driver, 2003),
características da terceira Era geográfica descrita por Joseph Conrad
como Geografia Triunfante. Sem ter novos territórios para explorar, os
viajantes modernos estariam condenados a fazer suas descobertas em
trilhas já exploradas (Driver, 2003). Se tudo já foi registrado e nada
mais é novo aos nossos olhos, o que haveria de extraordinário em (re)ver
fotografias de uma natureza supostamente intocada?
9Pensando nessa questão, o presente trabalho aproximará a narrativa fotográfica do fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado em Gênesis (2013) aos registros de natureza feitos por Timothy O’Sullivan e Ansel Adams. Como móbiles mutáveis,
a fotografia nos permite tal junção e deslocamento podendo
apresentá-las de uma só vez (Latour, 2015). A despeito dos mais de 100
anos que as separam, é possível perceber certa homogeneidade entre as
imagens escolhidas, o que nos permite arriscar a combiná-las com o
objetivo de encontrar traços de sobrevivência da cultura da exploração
em Gênesis, uma espécie de afterlife da Geografia Militante (Driver, 2003).
10A
escolha por um objeto fotográfico se deu por situar-se no interior da
tradição geográfica, uma vez que o daguerreótipo e, posteriormente o
instantâneo, estão ligados ao discurso geográfico e ao desenvolvimento
desta ciência como a raison d’être da exploração e da conquista
do espaço (Ryan, 1998). Associada à uma representação fiel da realidade
e, algumas vezes atreladas a mapas, textos e tabelas, o poder de
convencimento da fotografia não serviu apenas para “revelar”, para
“contar”, mas também para dominar. Seu advento encontra-se inserido na
notória e primordial simultaneidade dos acontecimentos dentro das
ciências, artes, poderes econômicos, dentre outros fatores.
Inicialmente, quando da institucionalização da geografia na Alemanha, em
1870, tal técnica era usada para contar e/ou revelar realidades
distantes, contudo, ao final do mesmo século, o aumento de sua
circulação via reprodução divulgou o discurso de superioridade
facilitando a dominação das culturas e territórios ditos inferiores,
menos desenvolvidos.
11A
ciência geográfica se apropriou da fotografia para reafirmar seus
discursos, haja vista as percepções do geopolítico inglês Halford
Mackinder (186-1947) que percebeu as potencialidades presentes nas
imagens e via na geografia uma forma particular de imaginação
(Mackinder, 1911). O Visual Instruction Committee of the Colonial Office
(COVIC), criado por Mackinder em 1902, tinha o intuito de instruir
visualmente as crianças (uma espécie de alfabetização visual) para
fazê-las entender por meio de slides o que eram as outras partes do
mundo (Mackinder, 1911). Vale ressaltar que tais projeções eram
utilizadas nas escolas do Reino Unido e também nas colônias inglesas
(Ryan, 1998).
12Enfim,
se a fotografia nos “revela” o mundo, tornando-o passível de ser
descoberto por um número cada vez maior de pessoas, o apuramento dessa
linguagem visual acabou por servir de base à construção de um imaginário
geográfico, principalmente a partir do aumento do poder de circulação
das imagens, promovendo uma nova apreensão do mundo.
13Desta
maneira, aproximaremos alguns registros de natureza de três fotógrafos
de destaque dos séculos XIX, XX e XXI, respectivamente: Timothy
O’Sullivan (1840-1882), Ansel Adams (1902-1984) e Sebastião Salgado
(1944- ). O’Sullivan, nascido na Irlanda, foi para Nova York com seus
pais aos dois anos de idade. Tornou-se bastante conhecido por suas
fotografias da Guerra de Secessão, mas os registros aqui selecionados
priorizarão seu trabalho junto ao Serviço Geológico dos Estados Unidos
que trazia uma América do Norte primitiva com fotografias de paisagens
que dentro de pouco tempo seriam modificadas devido ao avanço da
modernidade, afinal após a expulsão dos povos indígenas, este seria o
próximo passo.
14A
escolha por O’Sullivan deve-se a sua grande importância e pioneirismo
que resultaram em refotografias feitas por Ansel Adams e Rick Dingus
(Lissovsky, 2011) e outra revisão de seu trabalho em uma exposição no
ano de 1975 denominada “Novas Topografias”, que se volta para paisagens
alteradas pelos homens (Lissovsky, 2011: 296).
15O
norte americano Ansel Adams, além de refotografar Thimothy O’Sullivan,
foi um entusiasta da criação de Parques Nacionais nos Estados Unidos ao
registrar a natureza supostamente intocada de alguns lugares
norte-americanos. Sendo assim, suas fotografias de natureza não
trouxeram originalidade, mas alcançaram grande circulação, inclusive até
os dias de hoje, por ir além do caráter documental atingindo dimensões
semânticas próprias a partir da importação e a subversão da tradição
pictórica (Filho & Farache, 2010: 111).
16Sebastião
Salgado, fotógrafo brasileiro nascido na cidade de Aimorés, Minas
Gerais, vem impactando o campo da fotografia nos últimos trinta anos com
uma estética marcada por imagens em preto-e-branco e acentuado conteúdo
político, tal como podemos observar em Trabalhadores. Uma arqueologia da era industrial, Terra e África
(respectivamente, Salgado, 1993, 1997, 2007). Neles, seu olhar crítico
consagrou-se ao registrar os dramas humanos associados à economia
capitalista, tais como migrações forçadas, disputas pela terra,
exploração do trabalho, fome e violência, propagando significativa
inquietação social. Embaixador da UNICEF desde 2011 e participante do
Fórum Social Mundial em 2002, seu trabalho é reconhecido pelo teor
progressista.
17No
entanto, é a especificidade desta última obra frente às demais que atrai
a nós, geógrafos. Lançada num momento em que praticamente tudo foi
fotografado ― ou pelo menos assim parece ― por uma série de razões,
Salgado acaba por apropriar-se de temas caros à nossa tradição como meio, paisagem, lugar, ecúmeno, anecúmeno.
Sua missão encontra-se inserida no âmbito geográfico, pois além de
abordar a relação homem-meio, destaca a riqueza das viagens científicas.
As dificuldades de deslocamento relatadas por Sebastião Salgado no
decorrer da viagem que daria origem ao Gênesis, parece nos
colocar diante da rica tradição dos trabalhos de campo, das expedições
territoriais e dos relatos de viagem realizados pelos geógrafos até,
pelo menos, o século XIX.
18Uma
pesquisa um pouco mais aprofundada sobre o tema e a forma como o autor
traçou sua rota nos permite aproximá-lo dos fotógrafos exploradores
supracitados. Há uma semelhança dos lugares registrados por O’Sullivan,
Ansel Adams e Sebastião Salgado, pois Gênesis apresenta
fotografias dos parques nacionais norte-americanos, locais que devido à
preservação e sua consequente baixa transformação os aproximou ainda
mais. Mais especificamente, Salgado aproxima-se de O’Sullivan e Adams
por trazer em Gênesis uma fixação mecânica da imagem. Aqui a
natureza intocada de suas fotografias representam os lugares inóspitos
em que o capitalismo não chegou, ou chegou, mas não é possível perceber
apenas observando as imagens.
19Em
suma, sabendo-se que a fotografia é uma experiência da modernidade que
engendra a representação imagética do mundo diferente daquela
proporcionada pelos mapas e também pela pintura, cumpre aos geógrafos a
responsabilidade de interrogar a fundo a produção e o sentido das
imagens em um mundo tornado, ele próprio, cada vez mais imagético.
20À
luz das viagens de exploração e tendo como pedra de toque a cultura
visual, o diálogo da obra fotográfica mais recente de Sebastião Salgado,
Gênesis (Salgado, 2013) com os registros de O’Sullivan e Ansel
Adams proposto aqui destacará que não existe neutralidade na prática
fotográfica, afinal, ela é um tipo de escrita que permite nova forma de
acesso aos acontecimentos (Mauad, 2008). Se, em geral as fotografias
cumprem uma função documental, aqui elas serão abordadas como dados que
divulgam formas simbólicas e atribuem significados às representações e
ao imaginário social. Assim, pensando acerca da História da Geografia e
da cultura visual, pois, do contrário, naturalizaríamos o ato de
fotografar, seria possível ler Gênesis como uma espécie de
permanência das práticas científicas que vincularam geografia,
exploração e fotografia no final do século XIX e início do século XX?
21O
heroísmo da Era das viagens de exploração entrou em decadência após o
preenchimento dos mapas em branco mas, segundo Joseph Conrad, a imprensa
durante o século XX difundia, à sua maneira, a cultura da exploração
veiculando heróis sensacionalistas que tornaram-se cada vez mais comum
no senso jornalístico, como nosso “pão diário” (1924 apud Driver, 2003). Felix Driver (2003) dirá inclusive que a sobrevivência (afterlife) da cultura da exploração dá-se justamente nessa nova dinâmica da imprensa característica da Era da reprodutibilidade técnica.
22Com
o aumento da fluidez na circulação as fotografias tiveram sua presença
marcada nos grandes jornais, noticiando as guerras e outros
acontecimentos juntamente com os mapas. Esse quadro contribuiu para a
característica ilusória da fotografia: ela nos ilude, pois temos a
impressão de que conhecemos o mundo por completo quando na realidade, a
Terra inteira é simplesmente uma miscelânea de miniaturas de terrae incognitae (Wright, 1947), onde partes dos mundos particulares não são incorporadas em nossa antologia de imagens (Sontag, 2004).
23Passados
mais de 170 anos desde a invenção do processo fotográfico, a obra de
Sebastião Salgado é lançada em um momento em que praticamente tudo foi
fotografado ou pelo menos assim parece. Tendo em vista o grande espaço
de tempo que separam seus registros dos de O’Sullivan e Ansel Adams me
basearei aqui nos escritos de Didi-Huberman que utiliza tanto o
anacronismo de Aby Warburg e Walter Benjamin como também sua ideia de
“ardência” das imagens para aproximá-las. Em relação ao anacronismo,
vale ressaltar que emprego o termo apenas no sentido de contrariar a
cronologia pois, como bem se sabe, o uso da fotografia mantém-se com os
mesmos propósitos, como por exemplo o de facilitar a apreensão do mundo.
24Além
disso, a ideia de Bruno Latour sobre móbiles imutáveis nos permitirá
aproximar os registros desses três fotógrafos fazendo-os, na linguagem
de Didi-Huberman, “arder”. A ardência aqui colocada pode ser atrelada
tanto ao tempo que eles despenderam para fazê-las quanto ao tempo que
atualmente despendemos debruçando-nos sobre elas. Podemos falar
igualmente da audácia dos registros, bem como da audácia em aproximar
imagens a priori tão distantes, mas que nos trazem a função principal da fotografia enunciada por Susan Sontag: ser memento mori,
isto é, uma ferramenta capaz de participar da mortalidade, da
vulnerabilidade e da mutabilidade de outra pessoa (ou coisa) (Sontag,
2004 [1977]). Em suma, os movimentos que fazem as imagens “arder” não
seriam possíveis se a fotografia não constituísse um móbile. Segundo
Bruno Latour:
As ‘coisas’ que você juntar e
deslocar tem de ser apresentáveis de uma só vez para aqueles que você
deseja convencer e que não foram lá. Em soma, você precisa inventar
objetos que tenham a propriedade de ser móbiles, mas também imutáveis, apresentáveis, legíveis e combináveis com os outros. (Latour, 2015: 7)
25Para
Didi-Huberman, a imagem é mais do que um simples corte praticado no
mundo dos aspectos visíveis. É uma impressão, um rastro, um traço visual
do tempo que quis tocar, mas também de outros tempos suplementares ―
fatalmente anacrônicos, heterogêneos entre eles ― que não pode
aglutinar. Mais especificamente, a imagem:
Arde com o real do que, em um
dado momento, se acercou, arde pelo desejo que a anima, pela
intencionalidade que a estrutura, pela enunciação, pela urgência que
manifesta. Arde pela possibilidade visual aberta por sua própria
consumação: verdade valiosa mas passageira, posto que está destinada a
apagar-se (como uma vela que nos ilumina mas que ao arder destrói a si
mesma). Arde por sua audácia, arde pela dor da qual provém e que procura todo aquele que dedica tempo para que se importe. Finalmente, a imagem arde pela memória, quer
dizer que de todo modo arde, quando já não é mais que cinza: uma forma
de dizer sua essencial vocação para a sobrevivência, apesar de tudo.
(Didi-Huberman, 2012: 216)
26Portanto,
a imagem é um operador temporal de sobrevivências, portadora de uma
eficácia política relativa a nosso passado que tem a potencialidade de
ser trazida ao presente para questionar sobre o futuro. É preciso então
dedicar-se a melhor compreender seu movimento (Didi-Huberman, 2011:121),
sobretudo numa realidade tornada tão imagética.
27Se
imaginar é pensar com imagens e, este movimento de recombinação é um
exercício feito naturalmente pela nossa mente, a justaposição de imagens
com imagens e também de imagens com textos não nos soa de forma
atípica, pois há muito é utilizada para expor relatos de viagem baseados
em uma miscelânea daquilo que foi visto com o que habita a imaginação.
Desta maneira, as justaposições, as montagens
Escapam às teleologias, torna
visíveis as sobrevivências, os anacronismos, os encontros de
temporalidades contraditórias que afetam cada objeto, cada
acontecimento, cada pessoa, cada gesto. Então, o historiador renuncia a
contar “uma história” mas, ao fazê-lo, consegue mostrar que a história
não é senão todas as complexidades do tempo, todos os estratos da
arqueologia, todos os pontilhados do destino (Didi-Huberman, 2012:212).
28As
imagens, mais do que nunca, são utilizadas para eternizar a transitória
condição humana aproximando-se de outras iconografias produzidas no
passado. Se antes o descontentamento com a realidade se expressava a
partir de um anseio por outro mundo, resultando em um movimento
heroico de desbravamento, sobretudo durante a ‘época de ouro’ da
Geografia Militante, na sociedade moderna, tal descontentamento se
expressa forçosamente no anseio de reproduzir este mundo, um mundo-imagem divulgado e apreendido com muito mais facilidade e que sobreviverá a todos nós (Sontag, 2004).
29Enfim, como espectadores (ou Spectator, como definiu Roland Barthes), testemunhamos o “espetáculo” das coleções, ou Spectrum
da fotografia que nos traz uma co-presença, uma imagem viva de uma
coisa morta (Barthes (2015 [1980]) ― aquilo que Barthes destacou como
traço inimitável da fotografia (seu noema), o “isto-foi” ― sem
questioná-las. Devido a sua suposta verossimilhança ficamos passivos
diante das fotografias provavelmente porque ao trazer uma reprodução
perfeita do real as tomamos como verdade inquestionável.
30Todavia,
sabendo atualmente que as fotografias não são inquestionáveis, creio
que deixamos de fazê-lo porque o mundo tem se tornado cada vez mais
imagético, sobretudo a partir do momento em que a paisagem humana entrou
num ritmo vertiginoso de transformação: enquanto as formas de vida
biológicas e sociais são destruídas em um curto espaço de tempo, um
aparelho se tornou acessível para registrar justamente aquilo que
estaria em vias de desaparecer (Sontag, 2004:26 [1977]). Conscientemente
ou não, empunhados com suas câmeras os homens começaram a duplicar o
mundo com mais veemência.
31Os
fotógrafos não só se atribuíram da tarefa de registrar o mundo em via de
desaparecer como foram empregados com esse fim por aqueles mesmos que
apressavam seu desaparecimento. Desta forma, vale abordar alguns traços
políticos por trás dos registros aqui selecionados de Thimothy
O’Sullivan, Ansel Adams e Sebastião Salgado.
32Segundo
Benjamin (1985:105 [1935]), a divisa da fotografia é: “o mundo é belo”.
Ela está mais a serviço do valor de venda de suas criações, por mais
delirantes que sejam, que a serviço do conhecimento. Mais do que nunca a
simples reprodução da realidade não consegue dizer algo sobre a
realidade (Martins, 2008). Uma fotografia de formações rochosas contém
poucas informações, mas se soubermos qual instituição a encomendou,
podemos deduzir alguns fatores sobre sua finalidade. Sendo assim, a
contrapartida legítima da divisa inerente à fotografia dita por Walter
Benjamin seria seu desmascaramento.
33A
despeito da importância do olhar do fotógrafo, deve-se ressaltar que
além de sua bagagem cultural, ele traz também (e, quiçá, principalmente)
os objetivos das empresas e/ou instituições que o contrataram. Sabe-se
que:
Desde cedo os governos, assim
como as grandes empresas comerciais, requereram a presença do fotógrafo
para que documentasse seus feitos, suas realizações. Devido a este fator
que as paisagens urbanas, rurais, a natureza, as etnias, os conflitos
sociais e as guerras que foram registradas por esta técnica não devem
ser interpretadas como fidedignas. (Kossoy, 1989: 76)
34Boris
Kossoy cita como exemplo o caso da Guerra da Criméia (1855): registrada
pelo inglês Roger Fenton, as imagens apresentam uma visão atenuada e
parcial do acontecimento. A expedição de Fenton foi financiada “com a
condição de que não fotografasse nunca os horrores da guerra, para não
assustar as famílias dos soldados” (Freund, 1976 apud Kossoy, 1989: 77).
- 2 No capítulo 2 de Hints to Travellers, produzido pela Royal Geographical Society, no ano de 1906 o i (...)
35Não
devemos ignorar que a produção fotográfica profissional e comercial
abrange vários tipos de comissionamento, isto é, existe uma relação de
negócios, por assim dizer, entre o fotógrafo e o cliente ou patrocinador
(Kossoy, 1989). O artista pode criar de acordo com seu talento e
capacidade pessoal, mas dentro das condições impostas (Berenson, 1972 apud Kossoy, 1989: 85) pelos governos, empresas privadas, expedições científicas, etc. Os Hints to Travellers,2
livros elaborados pelas Sociedades de Geografia, contavam com algumas
diretrizes para que o viajante pudesse saber quais informações deveria
trazer. Um exemplo claro de que desde sua invenção as imagens e
informações que seriam publicadas eram previamente selecionadas e eram
essas imagens que permaneceriam (e ainda permanecem) em nosso
imaginário.
36Em
suma, as fotografias presentes nos álbuns eram (e ainda são)
selecionadas para contar e/ou revelar aquilo que foi estabelecido entre o
comissionamento e o fotógrafo e a partir do momento em que passaram a
compor as páginas impressas dos jornais, revistas e das inúmeras
publicações ilustradas, transmitiam as imagens encomendas dos fatos da
história cotidiana do século XX. Isto nada mais é do que o nascimento do
fotojornalismo que moldava, em função da manipulação das
imagens/textos, a opinião pública segundo interesses e ideologias
determinados, o mesmo ocorrendo com a exploração da imagem fotográfica
fixa quando veiculada pelo cinema e pela televisão (Kossoy, 1989).
37Enfim,
desde a sua criação as fotografias registram imagens de natureza,
etnias e animais em matérias e álbuns, mas, segundo Baitz (2005), nem
sempre essas fotografias serviam para levar aquilo que era visto como
exótico para dentro dos lares. As imagens de paisagem mostradas nos
volumes da The National Geographic Magazine traziam a
transformação da paisagem como via de desenvolvimento para fazer frente
às potências europeias. Além das fotografias, suas páginas traziam
gráficos estatísticos com a quantidade de matéria-prima presente na
região tratada, fator que justificava o tema como relevante.
38Timothy
O'Sullivan, trabalhou como fotógrafo oficial da exploração geológica do
Paralelo 40º encabeçada por Clarence King entre 1867 e 1869. A
expedição começou em Nevada, onde seu trabalho era fotografar novos
territórios para atrair novos colonos. Fotografou também as ruínas
pré-históricas dos índios Navajo e as aldeias dos povos do Sudeste. No
final de sua carreira tornou-se fotógrafo oficial do serviço Geológico
dos Estados Unidos e do departamento do tesouro. Suas fotografias são
singulares quando comparadas a seus contemporâneos, contudo, após a
entrega de seu último relatório de expedição, em 1879, seu nome e suas
fotografias perderam a visibilidade. Muitas delas foram redescobertas
por Ansel Adams, em 1939 que as enviou para Beaumont Newhall, então
curador do departamento de fotografia do Museu de Arte Moderna de Nova
Iorque (MoMA). A ele hoje é atribuído o papel central na história
fotográfica e nas percepções culturais da fronteira (Mitchell, 2002).
39Ansel Adams foi fotógrafo e militante ativo da Wilderness Society
e sempre permitiu que suas imagens fossem utilizadas em campanhas
ambientais. O fato de ter trazido à tona as fotografias de O’Sullivan
setenta anos depois o inspirou a refazer a rota do fotógrafo
registrando-a de pontos de vista semelhantes.
- 3 Disponível em: https://www.archives.gov/research/. Acesso em abril de 2016.
40Influenciado ou não pelas fotografias de Ansel Adams, Sebastião Salgado dedica um capítulo de Gênesis às
Terras do Norte, onde estão registrados EUA, Canadá e Rússia (incluindo
Círculo Polar Ártico). É aqui que suas imagens dialogam com Ansel Adams
e O’Sullivan. Adams fotografou nos anos de 1916 o recém-criado Parque
Nacional de Yosemite. Posteriormente, em 1941, o National Park Service
convida-o para criar um mural de fotos para o Departamento de
Construções de Interiores, em Washington, cujo tema seria a natureza
protegida pelos Parques Nacionais dos EUA. O projeto foi interrompido
por causa da Segunda Guerra Mundial e nunca retomado. Mas, ainda assim,
alguns registros estão reunidos nos Arquivos Nacionais dos Estados
Unidos e disponíveis online.3
41Dentre
os destinos em comum de Salgado e Adams estão: a Região do Planalto do
Colorado que abrange o Colorado, o Novo México, Utah e Arizona. Esta
parte do território estadunidense detém a maior concentração de Parques
Nacionais dos quais dois foram capturados pelas lentes de ambos os
fotógrafos: Grand Canyon e Zion National Parks. Vale destacar que alguns
parques foram criados após a passagem de Ansel Adams, como é o caso do
Parque Nacional de Canyonlands, criado em 1964 e registrado por
Sebastião Salgado nos anos 2000.
42Enquanto
a fotografia de Timothy O’Sullivan apresenta paisagens com certo valor
de testemunho, Ansel Adams aproxima-se mais da construção estética do
mundo, tal como Sebastião Salgado em Gênesis. Ambos brincam com a luz
natural para trazer mais sensibilidade ao espectador. Ainda que
de forma incipiente demonstrarei a partir da justaposição das
fotografias de O’Sullivan, Adams e Salgado traços semelhantes e,
principalmente, características que nos levem a refletir sobre a
permanência da cultura da exploração.
Imagen 1: Big Horn Camp, Black Canyon. Timothy O’Sullivan, 1871-73

Colorado River Series
Fonte:
Library of Congress Prints and Photographs Division. Disponível em:
<http://www.loc.gov/pictures/resource/ppmsca.11829/>
Imagem 3: Vista da confluência do Colorado e Little Colorado, a partir do território dos Navajos. Sebastião Salgado, 2010
Início do Parque Nacional do Grand Canyon. Arizona. EUA, 2010
Fonte: Gênesis, 2013, pp. 358/359. Disponível em: [https://www.amazonasimages.com/grands-travaux]
43Por
vezes as trilhas percorridas são as mesmas, como no caso dos Parques
Nacionais dos Estados Unidos registrados pelos três fotógrafos, contudo,
a grande diferença entre os registros desses três fotógrafos está na
história por trás das imagens, nas suas narrativas de viagem, haja vista
que as fotografias não podem ser vistas como ahistóricas. Sendo a
fotografia uma escolha efetuada num conjunto de escolhas possíveis,
compará-las nos permite pensar os porquês da escolha do Rio Colorado e o
relevo que o cerca, por exemplo.
44Tendo
ciência do trabalho de O’Sullivan junto ao departamento de Serviço
Geológico dos Estados Unidos, sua imagem logo nos remeterá ao caráter
exploratório da mineração. Registrar para mapear, dominar e garantir o
que era tido como principal via de desenvolvimento. Conforme exposto
anteriormente, a transformação da paisagem como via de desenvolvimento
era noticiada pela National Geographic Magazine em conjunto com
gráficos estatísticos de quantidade de matéria-prima presente na região
para fazer frente às potências europeias.
45Ironicamente
O’Sullivan fotografou o território dos índios Navajo e algumas de suas
ruínas (imagens 4 e 5), mas quando seus passos foram seguidos por Ansel
Adams muitos anos depois, a paisagem já havia sido modificada. Os
registros de O’Sullivan garantiram a memória de seus ancestrais e
congelaram o movimento de expulsão dos Navajo de suas terras originais
durante a Guerra dos Navajo entre 1861-1864. O Canyon de Chelly
tornou-se monumento nacional em 1931 e atualmente é comandado pelo
Serviço de Parque Nacional que preserva as ruínas dos Navajo.
46Inserido
no contexto de grandes transformações da paisagem, Ansel Adams, quem
redescobriu as fotografias de O’Sullivan, seguiu os passos de seu
predecessor e registrou o rio Colorado por outro ângulo setenta anos
depois. Era tempo de enfrentamento entre as grandes potências mundiais
onde inclusive muitos navajo se alistaram. Sua fotografia apresenta uma
estética distinta com uma certa nostalgia ao privilegiar luz, sombras e
escala de cinza. Adams tem consciência da importância do registro antes
que aquela natureza se modifique ainda mais. Sem levar em consideração a
história por trás das imagens, tomaríamos os registros de Adams e
Salgado como se representassem uma natureza virgem, intocada, quando na
verdade, aquele território foi palco de guerras civis até chegar à
suposta harmonia transmitida.
47Evidentemente
o fotógrafo do século XXI apressa-se, por assim dizer, para registrar
aquilo que ainda não foi modicado e mais: por vezes modifica o cenário
para que o registro pareça mais próximo do passado. Esta passagem de
Sebastião Salgado em Gênesis é emblemática neste sentido:
Meu objetivo era o de retratar
esses povos [as etnias presentes em Gênesis] o mais próximo possível do
seu estilo de vida ancestral. Alguns se vestem com roupas de segunda mão
distribuídas por grupos evangélicos, mas eu queria mostrar os trajes
cerimoniais e os costumes tribais de que eles mais se orgulhavam e de
que, dentro de algumas décadas, poderão apenas restar as fotografias.
Cedo ou tarde, o mundo moderno irá atingí-los ― ou serão eles a
procurá-lo. Eu quis captar o mundo que está desaparecendo, uma parte da
humanidade que está prestes a acabar, mas que, no entanto, ainda vive,
de muitas maneiras em harmonia com a natureza. (Salgado, 2013:8)
Imagem 4: Aboriginal life among the Navajo Indians. Timothy O’Sullivan, 1873

New Mexico
Fonte:
The New Your Public Library (Online) Disponível em:
[http://digitalcollections.nypl.org/search/
index?filters%5Bname%5D=O%27Sullivan%2C+Timothy+H.+%281840-1882%29&keywords=O%27Sullivan#/
?scroll=150]
Imagem 5: Ruínas no Cânion de Chelly. Timothy O’Sullivan, 1873
Fonte: The New York
Library (Online). Disponível em:
[http://digitalcollections.nypl.org/items/
510d47e0-b94e-a3d9-e040-e00a18064a99]
Imagem 6: Xamãs da tribo Kamayura. Mato Grosso, região do Xingu. Brasil. Sebastião Salgado, 2005
Segundo a legenda
presente no encarte do livro, tratase de um "Retrato de todos os xamãs
Kamayura, o homem ao centro com um chapéu de pele de onça-pintada é o
mais importante sacerdote tradicional de toda a região do Xingu. Seu
nome é Takumã Kamayura e é o antigo chefe da tribo Kamayura. No Xingu,
só aos xamãs é permitido fumar, uma vez que esse é considerado um ato
sagrado que lhes permite contatar com as divindades".
Fonte: Gênesis, 2013, pp. 476/477. Disponível em: https://www.amazonasimages.com/grands-travaux]
48Levando-se em consideração os longos oito anos de viagem do autor de Gênesis
pode-se, de certa forma, compará-lo aos exploradores geográficos até
mesmo se pensarmos que o único continente não registrado por ele foi o
europeu. A jornada de Salgado assemelha-se a das tropas imperiais que
fotografavam os trópicos e seu exotismo e também à rica tradição dos
trabalhos de campo, das expedições territoriais e dos relatos de viagem
do século XIX. Tais explorações consistem em verdadeiras metáforas das
antigas, o que muda são as novas formas de olhar, de relacionar, de
conceber.
49Ao
escolher o melhor ângulo para o registro daquilo que em grande parte já
foi modificado apenas para mostrar ao mundo uma natureza dita exótica e
intocada, sua obra revela uma sobrevivência da cultura da exploração.
Além disso, lançado em 2013, Gênesis, cuja exposição aconteceu
em diversas cidades como Rio de Janeiro, Paris, Londres, Roma,
Singapura, Toronto e Nova Iorque mostra-nos que suas fotografias são um
poderoso artifício à difusão de informações, todavia falaram a uma
população bem restrita do globo. Aliás, a mesma que irá “desbravar” o
mundo com seu olhar “colonizado” pelas imagens já vistas na exposição
para então observar o que já se conhece (Lissovsky, 2003; Lissovsky
& Martins, 2013). Esse movimento já havia sido anunciado por
Mackinder, em 1904, quando ele afirma que com o fim da Era de Colombo e a
exploração e expansão do globo estaríamos na época dos espaços fechados
(Driver, 2003:89). Seu contemporâneo Joseph Conrad também partilhava
dessa ideia, pois para ele as forças de modernização trouxeram o fim dos
dias de glória dos exploradores geográficos, cujas viagens seriam
inevitavelmente suplantadas por uma atividade bem menos nobre sobre
caminhos já percorridos: o turismo (Driver, 2003).
50Explicitamente os objetivos de Gênesis estão
em concordância com a realidade do século XXI: há uma corrida, por
assim dizer, para manter ao menos em nossas memórias e em papéis de
fotografia as etnias e a natureza que serão, muito provavelmente,
devastadas pelo rolo compressor da máquina capitalista. Nesse sentido, Gênesis
fornece-nos elementos que capacitam entender a fotografia como um
poderoso instrumento crítico de decodificação e de visualização de
imagens na contemporaneidade.
51Logicamente
a presente pesquisa não pretendeu “julgar” as fotografias aqui
selecionadas, mas compreendê-las, o que não impede que reconheçamos sua
lucidez e/ou critiquemos àquilo que for discutível. Assim, a
interpretação aqui proposta não tem a pretensão de ser a mais “correta”,
pois sempre haverá diversas interpretações, novos pontos de vista até
por conta da característica polissêmica inerente às imagens. Aliás, é
justamente essa polissemia da fotografia que contraria a frequente tese
de que ela representaria o congelamento de um momento da história ou de
uma biografia (Martins, 2008).
52A
partir das fotografias de O’Sullivan, Adams e Salgado pode-se perceber
que apenas recorrer às fotografias não nos permitirá entender a história
que eventualmente documentam e, por isso, a opção pela aproximação de
determinadas imagens. Justapondo-se as imagens as fazemos ‘arder’, pois
ao serem olhadas e interrogadas tornam visíveis sobrevivências e
encontros de temporalidades contraditórias (Didi-Huberman, 2012). Nas
sobrevivências rememoramos algo sem saber, como se fossem sintomas.
Assim, a potência da sobrevivência estaria na “indestrutibilidade dos
traços” (Didi-Huberman, 2013) que por sua vez não pode operar sem um
apagamento relativo das práticas, pois são elas que trazem a
transformação, a metamorfose e destacam os traços ainda presentes. A
fotografia no que supostamente revela traz o ausente, dá-lhe
visibilidade, propõe-se antes de tudo como realismo da incerteza e,
sendo assim, a fotografia é muito mais um documento impregnado de
fantasia do que de exatidões próprias da verossimilhança.
53Em suma, as imagens expressas revelam tanto a continuidade da função memento mori da
fotografia (Sontag, 2004) quanto da sobrevivência da cultura da
exploração ao optar por registrar e mostrar ao mundo as culturas ditas
exóticas. Mesmo que essas estejam bastante modificadas pelo capitalismo,
o fotógrafo prefere forçar o registro daquilo que elas já deixaram de
ser a revelar-nos o que ele viu à primeira vista, tal como se pode
concluir a partir da fala de Sebastião Salgado destacada anteriormente.