1No
pensamento geográfico de Jean Jacques Élisée Reclus (1830–1905)
encontra-se no seu discurso posicionamento heterodoxo, vinculado à
condição teórica e a promoção de prática espacial, por este se
posicionar como modalidade discursiva que almeja confrontar os modelos
hegemônicos de ordenamento territorial.
2Seu
modelo de ciência, em certos aspectos, não coadunava com o projeto
alcunhado genericamente por seus contemporâneos, e por isso, entre
outros aspectos, ele não foi digerido pela crítica historiográfica da
época, que negava a efetividade da geografia enquanto campo do saber
politicamente engajado para a transformação dos desequilíbrios
geográficos.
3Em
contrapartida, este era o principal papel da geografia para Reclus: ter
um caráter eminentemente social, politicamente dissidente, colocado como
uma experiência e prática espacial subversiva capaz de enfrentar as
ingerências dos modelos hegemônicos.
4A
geograficidade reclusiana porta em si aspectos marcantes advindo de
fundamentos do anarquismo clássico, e dessa forma, não almejava ser o
centro do poder hegemônico da produção teórica, porque funcionava como
diferente modalidade de território do saber, compondo-se como outra centralidade ou mesmo uma (ex)centralidade discursiva do pensamento geográfico. Excentricidade tida como não centralidade, ou anti-centralidade,
aquilo capaz de negar o poder hegemônico territorial material e
imaterial, e que chegue até à ordem do discurso, essencialmente
anárquico, que abdica de todas as relações de dominação, em todos os
aspectos.
5A geografia desenvolvida por esse personagem excêntrico
em meio ao tortuoso curso do saber geográfico, em pleno século XIX, foi
comumente sintetizada como partícipe do momento tradicional do
pensamento geográfico. Por sua vez, reduzir sua monumental geografia ao
positivismo mecanicista é descaracterizar toda a diversidade temática e a
grandeza epistemológica que sua obra detém.
6A
proposta central desse trabalho é demonstrar outra via de interpretação
do pensamento de Reclus, elucidando seu caráter plurivocálico,
demarcando a excentricidade e atualidade dessa geografia das liberdades.
7O contexto de produção intelectual em que Reclus se inseriu (18571
a 1905) é notadamente marcado por efervescentes quebras paradigmáticas
nos campos: científico, político e social. O seu pensamento geográfico
foi sendo formado até seus últimos dias de vida, como resultado a
produção de L’Homme et la Terre, e paradoxalmente ele foi
construindo seu espaço dentro dos movimentos sociais e do domínio
científico-acadêmico da segunda metade do século XIX, mas por sua vez,
todo um grande legado não foi eficazmente aproveitado, e mesmo em vida
já foi sendo descaracterizado por construções pejorativas,
classificações genéricas e apontamentos superficiais acerca da seriedade
científica.
8Mas,
o que se quer dizer com negligência de determinado pensamento? Com base
nas considerações de Michel Onfray (2008), os conhecimentos são
propostos, produzidos e divulgados diante da comunidade científica e da
comunidade geral como um todo, e por sua vez eles ganham maior ou menor
atenção em decorrência de diversos fatores, sendo eles reapresentados,
difundidos e revalorizados com maior ou menor intensidade do que outras
propostas teóricas.
9Essa
modalidade classificatória por estratos de importância sugestionada
pelo grau de contribuição teórica para comunidade acadêmica gera
divergências e certas contestações sobre quais contribuições melhor
poderiam ser aproveitadas, ao passo em que outras historiografias vão
sendo feitas no desenrolar da divulgação do conhecimento.
10Por
isso, constituem-se historiografias dominantes, estas por sua vez são
delineadas por interesses acadêmicos corporativos, formando blocos
coesos, incluindo e excluindo certos pensamentos e pensadores, para
ecoar a voz dominante que dita o sentido epistemológico que o saber deve
tomar.
11Assim
constituem as historiografias das margens, ou não pertencentes ao único
núcleo, configurando-se em diversos núcleos, por estar espacialmente
fora do centro único (excêntrica) de atenção e de importância, que por
sua vez, são contribuições territorialmente pouco ortodoxas ou
totalmente heterodoxas ao sentido ideológico dado pelas historiografias
oficiais, postando-se desse modo, eticamente como saberes contrários às
ortodoxias corporativistas acadêmicas.
12O
mais interessante é notar, não somente o movimento de negligência do
pensamento geográfico libertário, inibindo sua permeabilidade nas
cátedras oficiais, mas, porém, e ainda mais significativo, é o movimento
de não reconhecimento, e mesmo, o esforço em combater o paradigma
libertário.
13Para
que se entenda melhor esse processo é preciso reconhecer que este
paradigma ácrata não deve ser entendido como integrante ao modelo
ortodoxo da historiografia oficial, mas como uma perspectiva heterodoxa
no interior da história da geografia, como uma outra centralidade do pensamento geográfico ou mesmo a negação do centro, uma excentricidade,
nos termos dados pelo Subcomandante Marcos, no interior do Movimento
Zapatista, em que enseja a posição revoltosa, tanto da teoria quanto da
prática, uma espécie de desobediência epistemológica, de baixo e pela esquerda.
14Negando
as armadilhas da mentalidade fixista da lógica centro-periferia, os
zapatistas conclamam a posição metodológica que abdica das estruturas
binárias da academia ocidental, por isso, nem o centro, nem a periferia, diz o movimento insurgente, no ensinamento que conserva a sabedoria dos povos milenares das matas.
Nós pensamos que não se trata só
de evitar as armadilhas e concepções, teóricas e analíticas neste caso,
que o centro põe e impõe à periferia. Tampouco se trata de inverter e
agora mudar o centro gravitacional para a periferia, para daí “irradiar”
ao centro. Acreditamos, ao contrário, que essa outra teoria, [...],
deve romper também com essa lógica de centros e periferia, deve então
ancorar-se em realidades que irrompem, que emergem, e, assim, abrir
novos caminhos. (MARCOS, 2008, p. 191)
15Para
além de negligenciar a validade da geograficidade libertária
reclusiana, selecionando fragmentos lançados sobre o chão da
territorialidade imaterial do saber, está a conflitualidade de
reconhecer tal geograficidade como uma modalidade que se agrupa a outras
de mesmo caráter ácrata e sendo livres para poder perpetuar suas
ideias.
16No
plano epistemológico, as negligências se apresentam na medida em que o
pensamento é construído através de discursos descontínuos à regularidade
evolutiva dominante pré-estabelecida. Os teóricos Thomas Kuhn (1971),
Gaston Bachelard (1996, 2006), Michel Foucault (2007, 2013) e Paul
Feyeraband (2011), cada um a seu modo, debruçam-se sobre essas
descontinuidades discursivas dos saberes científicos para demonstrar que
essa uniforme regularidade evolutiva do conhecimento, progressivamente
linear, periodicamente organizada e epistemologicamente coerente são
discursos dominantes que teimam por evitar a riqueza criativa que
residem nesses planos descontínuos, nessas linhas de fuga,
usando expressões do continente de Gilles Deleuze e Felix Guattari
(1996) e Deleuze e Claire Parnet (1998). Essas variações
epistemológicas, periodicamente complexas, são o veículo motivador das
quebras paradigmáticas e, consequentemente, da evolução criativa do
pensamento teórico-científico.
17Por
isso, o pensamento negligenciado é aquele evitado, mas que se encontra
presente, no plano histórico e epistemológico do saber. De certa forma, a
negligência se justifica quando o pensamento não produz transformação
paradigmática, não evoluiu frente os demais e ainda não consegue dar as
devidas respostas esperadas pela comunidade acadêmica.
18Mas
o que se busca evidenciar aqui é o porquê de certos pensamentos que
promoveram impactos paradigmáticos, sinalizaram para inovações
epistemológicas e mesmo assim foram forçosamente negligenciados. Outro
questionamento que pode ser feito é sobre qual a verdadeira legitimidade
que a ciência oficial detém para discriminar que certos pensamentos
devem ser aceitáveis ou não perante a recepção pública. Ou seja, o que
deve ser considerado paradigmático ou útil para o pensamento oficial não
se traduz literalmente como significativo para a realidade e
aplicabilidade desse pensamento ou para o que não é considerada uma
expressão oficial de reflexão teórica. Existem interesses nesse jogo de
elucubrações textuais. Como a academia que se julga politicamente neutra
e assentada nos valores da ética pode reproduzir valores
segregacionistas a certas modalidades de pensamento?
19Portanto,
ser negligente é saber que o pensamento está ali, presente, demarcando
sua importância e grau de potência, mas mesmo assim é colocado de fora
do domínio acadêmico sem as justificativas plausíveis necessárias. Ele
tem uma presença, mas ela é deslegitimada. O principal questionamento
das imposições negligentes se faz pelo fato delas terem comumente
descartado ricas, valorosas e inquietantes contribuições para os campos
do saber e que, quando isso é feito, promovem incontornáveis situações
de direcionamentos e tomadas de decisão.
20A
formação da geografia como contiguidade ordenada pelos parâmetros
ortodoxos e dominantes do saber científico moderno foi fruto de avanços
no plano teórico-metodológico do final do século XVIII e início do XIX,
através da contribuição marcante de Reinhold e Georg Forster, Immanuel
Kant, Alexander von Humboldt e Carl Ritter.
21O
Século das Luzes sustenta a ideia central de universalidade da razão,
tendo na primazia crítica o princípio fundador do racionalismo,
constituindo assim, o saber científico através de sistemas explicativos,
sendo a questão fundamental para a geografia, no caso de Kant e
Forster, o método como elemento de concretude científica (GOMES, 2010). A
definição da geografia como uma ciência independente, com um objeto de
estudo único e um método próprio levou Fred K. Schaefer (1953) denominar
essa tradição kantiana, que será absorvida por Ritter e com maior
intensidade em Alfred Hettner, de excepcionalismo geográfico.
22O
envolvimento de Kant com a geografia se deve a cosmologia
transcendental, problemática filosófica que este propôs avançar,
dimensionando os estudos da natureza e estética transcendental diante da
geografia (VITTE, 2014). As discursões em Kant sobre a estética
surgiram após 1768, no seu Observações Sobre o Belo e o Sublime. “Mas na Crítica da Razão Pura,
em 1781, a estética estará relacionada à sensibilidade e à
possibilidade de se construir o conhecimento, fato que será radicalmente
oposto na Crítica da Faculdade do Juízo, de 1791, em que a estética será associada à crítica do gosto” (VITTE, 2008, p. 58).
23Com as críticas que Kant sofreu de Gottfried Herder, foi possível avançar no caráter transcendental e menos racionalista na Crítica da Faculdade do Juízo,
momento de amadurecimento dos estudos da natureza, pela via da noção
orgânica, simbiótica e transfigurada. Conforme defende Paul Claval
(1974, 2006), Kant contribui com a estrutura moderna da geografia, dando
a ela a tarefa de explicar a especificidade de cada parte da Terra.
Essa especificação da geografia lançará fulgores aos estudos descritivos
da Terra, sendo conduzida até Humboldt, Ritter, Ferdinand von
Richthofen e Hettner (HARTSHORNE, 1991).
24O
contexto de efervescência intelectual de gênese da geografia moderna é
marcado por uma ebulição teórica, no período que procede a Kant,
chegando até Humboldt e Ritter. A cosmografia copernicana, a
sistematização geográfica de Bernhardus Varenius, o mecanicismo
newtoniano, a física de Wihelm Leibniz compôs sustentação teórica à
geografia física em Kant. Esse bojo teórico arremessado à frente chega
ao rico contexto da naturphilosophie, do romantismo e idealismo
alemão, culminando no evolucionismo, conforme destaca Luiz Carlos Vitte
(2009). As consequências da Revolução Francesa, a consolidação dos
Estados nacionais, o capitalismo liberal, o acirramento da problemática
social no campo teórico abriram caminho para o amadurecimento da
filosofia, que passou a investigar as relações entre homem e a natureza
pela via sistêmica, tendo como pano de fundo justificativas
organicistas, e não estritamente teleológicas.
25Vitte (2006) destaca o papel da naturphilosophie
na consolidação da geografia física moderna, remontando, de forma
vibrante, a riqueza epistemológica da geografia física, que é tida,
equivocadamente, como sendo teoricamente escassa. Esse comportamento
ideológico, alimentado no momento da geografia crítica marxista da
segunda metade do século XX, tem consequências nefastas para a riqueza
da geografia enquanto uma ciência que julgava ser responsável, num
primeiro momento, pela descrição da Terra, e num segundo momento, pelo
estudo da relação entre homem e o meio.
26Os
fundadores da geografia científica, Humboldt e Ritter, serão tomados
pelo universo intelectual do final do século XVIII e início do XIX, na
qual a crítica ao racionalismo pelo romantismo alemão e,
consequentemente, a perspectiva idealista que perpassa por Herder,
Friedrich Schelling e Johann Goethe foram decisivas sustentações
teóricas na elaboração da geografia científica, sistêmica, com método
voltado à descrição e diferenciação de áreas (VITTE, 2009).
27São
clarividentes as recentes argumentações de Vitte e de Ruy Moreira
acerca da riqueza epistemológica da geografia, pois reabrem o leito
filosófico anteriormente represado da geografia. Esse novo leito
refere-se aos clássicos com a missão de que devemos ler o que realmente
eles dizem, nas profundezes e detalhes de seus pensamentos, e ao mesmo
tempo esse comportamento abre as comportas de uma geografia que abraça
as filosofias que antes eram subsumidas.
28Nesse
interim, Vitte (2009) e Moreira (2009) destacam o momento rico em que
Humboldt e Ritter estavam envolvidos, no qual se conectavam de forma
atenta e atualizada ao passado e aos seus contemporâneos, e ao mesmo
tempo, lançaram as fontes de uma geografia do futuro, que ressoou
profundamente em Reclus, Friedrich Ratzel e em Paul Vidal de La Blache.
Vitte (2009) destaca, por exemplo, que as fontes do evolucionismo estão
presentes em Humboldt, e chegaram a Charles Darwin e Ernst Haeckel, e
terá Ratzel como o principal nome dessa geografia evolucionista, que
ultrapassa o romantismo e o idealismo.
29Humboldt
(1855) e Ritter (1838) vão levar a Reclus a perspectiva geográfica do
holismo, que será, a partir de Ratzel e com maior intensidade em La
Blache, esquecida, por aderirem ao caráter fragmentário da ciência
moderna. A noção sistêmica de natureza, o processo evolutivo e de
adaptação das espécies, a metodologia da escala geral para o particular
de Humboldt (1855) são algumas das contribuições, como também, as
interações sistêmicas entre fenômenos físicos e humanos, sobre análise
da paisagem pelo método hipotético-dedutivo, nos termos dados por Eliseu
Sposito (2004), por sua vez, muito mais intuitivo e descritivo.
30A
geografia de Reclus terá influência direta de seu professor Ritter
(1838), que contribuiu através da sua perspectiva antropológica e social
com o pensamento geográfico reclusiano, que até então estava embebido
por noções estritamente naturalistas (ANDRADE, 1985). A metodologia
comparativista da geografia de Ritter, os estudos regionais, a geografia
política das nações, e a relação dinâmica empreendida pelos grupos
humanos na alteração da natureza serão responsáveis pela fundamentação
em La Terre e em Nouvelle Géographie Universelle.
Embora discípulo declarado de Ritter, como Ratzel, Reclus se distanciará
da visão teológica e organicista do mestre, destronando a geografia
sobre base abstrata até ele construída, calcificando sua maturidade
intelectual e originalidade libertária.
31Ratzel,
contemporâneo de Reclus, herdará, de forma mais evidente do que seu
companheiro de turma, a noção da geografia política do mestre prussiano
da Universidade de Berlim, noção esta que se baseia na relação estreita
entre solo e Estado, entre progresso da humanidade e o vínculo com a
natureza, em que argumenta ser a organização de uma sociedade dependente
estreitamente da natureza de seu solo, do seu território, da sua
situação geográfica; o conhecimento da natureza física de um país, as
suas vantagens e desvantagens, impulsionam sua história política. Ainda
segundo Ratzel (2003), uma política verdadeiramente prática tem sempre
um ponto de partida na geografia. Reclus
lançou mão dessa geografia política imperialista-colonialista,
quebrando esse paradigma com a sua geografia política de cunho
libertário.
32Dessa
forma, o que gerou efetivamente a negligência da geografia de Reclus,
diante de seus contemporâneos, não fora a insuficiência teórica de seu
pensamento, ao contrário, era uma geografia que mesclava abordagem
erudita, vinculado às filosofias antecedentes, mas também, linguagem
acessível, objetiva e clara, que por sua vez, era uma geografia voltada
para o futuro, alinhada a mais recente teoria social crítica,
direcionada à construção de uma sociedade igualitária, moderna e humana.
Reclus participou ativamente das movimentações políticas de seu tempo,
estando presente nas discussões das duas principais correntes teóricas
radicais do século XIX, o anarquismo e o comunismo, que sofreram cisão,
por ele acompanhada na I Internacional, que posteriormente ele mesmo,
juntamente com demais ativistas anarquistas, buscaram integrar essas
noções na abordagem anarco-comunista.
33A
sua obra foi acusada, indiretamente, por La Blache e, diretamente, pelos
neolablacheanos de ser descritiva e sobrecarregada de noções políticas e
sociais. Vidal tentou desviar a importância política e social que
Reclus dava à geografia e também à forma como ele abordava a relação
simbiótica entre homem e natureza. Moreira (2009) chama esse processo de
hominização do homem, porém vincula essa ontologia do espaço a Marx e
não a Reclus. Mas é possível encontrar também essa ontologia presente em
La Terre, e com maior teor, em L’Homme et la Terre.
34O
que não foi aceito na geografia do século XIX, não foi aceito também até
meados do século XX. Se a geografia estudava a relação entre sociedade e
natureza, era evidente que diante do momento de intensos debates e
embates políticos radicais, em busca da dissolução dos Estados
imperiais, em defesa de maior organização e distribuição de renda e
garantia da liberdade humana, que esse campo do saber fosse um campo
científico utilizado também para pensar a ação política no espaço e a
organização equitativa dos indivíduos.
35Reclus
visualizou a necessidade de a geografia intervir na organização dos
sujeitos na sociedade e no meio em que vivem, pois era a ciência capaz
de promover a ação direta e solavancar as forças políticas amiudadas.
Assim, foi inovador e pioneiro, descortinando uma geografia retrógrada,
ultrapassada e conservadora, que vivia seus dias de glória, por ser o
campo científico auxiliar do expansionismo imperialista e da
colonização. Reclus almejava uma revolução no pensamento geográfico às
avessas daquela que estava acontecendo. A excentricidade de seu
pensamento repousa no embate contra essa racionalidade científica
opressora.
36A
monumental obra negligenciada pelos contemporâneos ficará por muito
tempo esquecida. Reclus foi uma das vozes, juntamente com Piotr
Kropotkin, Léon Metchnikoff entre outras, conforme demonstram Ferretti e
Pelletier (2013), solitárias, dentro da geografia circunscrita pela
égide da ortodoxia acadêmica. Sua negligência perpassa a sua atualidade e
chega aos dias de hoje. Nos manuais de história da geografia, ou
considera-se Reclus partícipe da geografia tradicional positivista, ou
como um personagem à parte da teoria do conhecimento, uma espécie de
enclave.
37Por sua vez, não há referência a ele na geografia crítica, mesmo sabendo que L’Homme et la Terre
é um tratado de geografia anarquista. Seu envolvimento com o
anarquismo, e principalmente com o seu principal personagem, Mikhail
Bakunin, não será suficiente para que os geógrafos assumidamente
radicais do século XX o lessem. Ao contrário, a polêmica de Bakunin e
dele mesmo com Marx gerará certo desconforto para os geógrafos radicais
marxistas, vinculando desmedidamente o pensamento do anarquista russo ao
do geógrafo anarquista francês.
38A
geografia crítica francesa dos anos de 1970 tentou fazer um resgate da
importância de Reclus para a geografia. Yves Lacoste (1988) defende ser
Reclus o primeiro grande geógrafo da França, em oposição à fama de La
Blache. E ainda lamenta que vergonhosamente sua monumental obra seja
esquecida na universidade, denunciando que a obra foi pilhada pelos
universitários, sendo utilizadas numerosas passagens sem o devido
reconhecimento, sob a patronagem de La Blache. Lacoste (1988, p. 129)
destaca justamente o temor dos marxistas pelo anarquismo, e de suas
atitudes enquanto reprodutores dos aparelhos ideológicos do Estado, pela
via da geografia universitária, causando a ineficiência no entendimento
e estudo da geograficidade reclusiana.
39Sem
dúvida, suas aspirações políticas são o sustentáculo de sua obra de
geógrafo, mas esta última pode ser tomada como tal pelos universitários,
para os quais a palavra anarquia amedronta; Reclus não fez, aliás,
alusão a ela no O homem e a terra, como também não o fez na Geografia universal.
Mas se é fácil fazer abstração das atividades militantes de Reclus, não
é possível considerar sua geografia escamoteando o lugar considerável
que ele dedica aos fenômenos políticos. E eu acredito que o silêncio que
continua a ser feito na corporação dos geógrafos universitários sobre a
obra de Reclus resulta, principalmente, hoje, da recusa em admitir a
geograficidade dos fatos que advêm da política, mormente aqueles que
traduzem o papel dos diferentes aparelhos de Estado.
40Fora essa redescoberta de Lacoste, tendo como exemplo a publicação exclusiva da revista Herodote
sobre Reclus, em 1976, a geografia crítica radical estadunidense, no
período de 1970 a 1990, por exemplo, não o considerou como partícipe
desse processo, mesmo sabendo que é paradoxal não veicular o criticismo
radical de Reclus à geografia crítica radial. A partir da década de 1990
e principalmente nessa primeira década do século XXI, está ocorrendo
uma maior retomada de Reclus, não efetivamente dentro da geografia, mas
em áreas como sociologia, etnografia, história, antropologia e
urbanismo.
41E essa excentricidade
presente na geografia reclusiana em meio ao auge da produção científica
a serviço dos Estados imperiais é o que demonstra a potência sísmica do
pensamento desse geógrafo das liberdades, explicando os motivos dele
ter sido amiudado e escondido pela historiografia ortodoxa dominante.
42Ao
longo da história da geografia, há poucas referências ao anarquismo, e a
principal delas advém de Reclus. Mas não somente neste nome pode ser
depositada a história da anarquia na geografia do século XIX. Não deve
ser esquecida a importância de personagens como a feminista libertária
Flora Tristan (1838, 1840, 1973), que produziu relatos da geografia
urbana londrina, parisiense e da geopolítica colonial na América do Sul,
percorrendo do México ao Peru, exercendo profunda crítica ao
imperialismo nesses territórios; como também, a geografia ambiental e
política de Metchnikoff (1889); a geografia física, agrária e da
indústria vastamente explorada por Kropotkin (1989, 1892, 1910); a
cartografia de Charles Perron (PAULA, 2015); a geografia urbana de
Patrick Geddes (1994), entre outros nomes, que contribuíram com
geografias de cunho ácrata, de forma mais restrita, e de forma mais
ampla, com proposições libertárias das mais diversas amplitudes de
pluralidade política dissidente.
43Indubitavelmente,
abordar geografia anarquista é evidenciar o pensamento de Reclus. Não
há referências científicas nos manuais ortodoxos oficiais de uma
geografia anterior a de Reclus que se alinhou à perspectiva da
organização espacial pela sociedade, almejando o fim do Estado, em busca
de uma sociedade ácrata. O anarquismo de Reclus é, em essência,
geográfico, e a sua geografia, consequentemente, é anarquista. Conforme
aponta Ronald Creagh (2011), não há efetivamente uma escola de geografia
libertária, e sim um corpo embrionário de ideias, que Reclus foi
pioneiro no desenvolvimento desse pensamento libertário no interior da
geografia.
44No caso de Kropotkin, colaborador de Reclus sobre a Sibéria na Nouvelle Géographie Universelle,
foi um nome ímpar na sistematização e cientifização do pensamento
anarquista, amadurecendo e ampliando o raio de atuação ácrata pela via
do anarco-comunismo. Kropotkin não fez declaradamente geografia
anarquista, produziu teorias ácratas que evidenciavam o papel da ação
libertária da sociedade e dos indivíduos no espaço, sendo este o
substrato de efetivação das lutas pela liberdade, o dividendo que
promove o fim das desigualdades. Para Kropotkin (1989, p. 62),
“la geografía debe ser, en primer lugar, un estúdio de las leyes a que
están sometidas las modificacion de la superficie terrestre”.
45
Como geógrafo, Reclus foi militante anarquista e pensou o anarquismo
através da geografia. A sua geografia era o resultado simbiótico entre
homem e natureza. O processo de hominização do homem pela interação com o
meio. Se o homem é natureza adquirindo autonomia, segundo aponta
Reclus, essa consciência de si adquirida reflete na edificação de uma
sociedade livre, somente possível através do entendimento dos mecanismos
de funcionamento dessa relação simbiótica.
46Sua
perspectiva socioambiental é politizada, garantida pela noção sistêmica
do libertarismo geográfico, que sente a fonte da problemática ambiental
no modo de vida empreendido pelo capitalismo, conforme pode ser
percebido com o trecho Du sentiment de la nature dans les sociétés modernes.
Les développements de l’humanité
se lient de la manière la plus intime avec la nature environnante. Une
harmonie secrète s’établit entre la terre et les peuples qu’elle
nourrit, et quand les sociétés imprudents se permettent de porter la
main sur ce qui fait la beauté de leur domaine, elles finissent toujours
par s’en repentir. (RECLUS, 1866, p. 13)
47Para
que se chegue à autonomia total dos indivíduos e dos grupos sociais, é
necessário que estes saibam pensar o espaço que eles modelam. “Reclus
utilise les connaissances géographiques pour démontrer que l’idéal
anarchiste “du pain pour tous” est parfaitement possible puisque les
ressources sont largement en suffisance et que seule leur inégale et
injuste répartition explique la misère du plus grand nombre” (GIBLIN,
2005, p. 21).
48Por
sua vez, a geografia de Reclus não nasceu anarquista. Primeiramente,
havia uma geografia libertária, ou seja, uma forma de pensar a
transformação da natureza pela sociedade na busca pela liberdade. Não
ocorreu abertamente sustentação teórica do anarquismo, devido às
censuras. É o caso da obra La Terre.
C’est grâce à cette forte
éducation que le sentiment de la nature se développera dans toute sa
grandeur. Il se pervertit par la routire et par la servitude; c’est par
la connaissance et par la liberte qu’il renalt. [...] Toutefois, si la
science nous montre dans l’avenir l’image du globe transfigure, ce n’est
point elle seulle que pourra terminer la grande ouvre. Aux progrès en
connaissence doivent correpondre les progrès moraux. [...] Les traits de
la planète n’auront point leur complète harmonie tant que les hommes ne
seront pas unis en un concert de justice et de paix. Pour devenir
vraiment belle, la “mère bienfaisante” attend que ses fils se soient
embrassés en frères et qu’ils aient enfin conclu la grande fédération
des peuples libres (RECLUS, 1869, p. 756 - 757).
49A
editora Hachette inibia a exposição de guinadas anarquistas nas obras de
Reclus, fazendo com que ele desenvolvesse uma geografia de cunho
libertário nas entrelinhas. A Hachette recusou publicar sua última obra,
L’Homme et La Terre, pois era dotada de um anarquismo
geográfico explícito. Dessa forma, a geografia libertária é aquela que,
de uma forma geral, aborda a necessidade de uma sociedade justa e
igualitária, não assumindo concepções militantes explícitas do
anarquismo, como a abolição da propriedade privada, o fim do Estado, o
fim dos partidos políticos, a instauração de comunidades ácratas etc.
Posteriormente à Nouvelle Géographie Universalle, Reclus publica os primeiros volumes de L’Homme et La Terre, em 1905, sendo o restante publicado após sua morte, até 1908.
50Mas
antes dessa obra, seus escritos eram marcados pelo ideal libertário, em
decorrência do momento fervoroso que viveu em contato com Bakunin e
Kropotkin, amigos pessoais. Seu envolvimento com a Comuna de Paris, em
1871, rendeu-lhe a prisão, na qual escreveu A Evolução, a Revolução e o Ideal Anarquista
(RECLUS, 2002), texto que destaca o papel da evolução para uma efetiva
revolução, comparando os elementos geográficos naturais com as forças
sociais revolucionárias. Ataca frontalmente o ideal de Estado e de
patriotismo, fomentador da servidão, do ódio e dos privilégios,
evidenciando o anarquismo como a forma de se chegar à nação humana
livre. Deixa claro o seu anarquismo geográfico, que se vincula ao fim
dos autoritarismos e das ideologias republicanas, tendo na sociedade
organizada libertariamente a noção de alteração do espaço e da própria
condição existencial (RELCUS, 2010a).
51É
na busca consciente e ativa da liberdade individual e coletiva dos
sujeitos no espaço que se constrói o processo de revolução, no qual a
evolução é produto síntese do envolvimento dos homens com os lugares
mutuamente.
Em comparação com este movimento
universal, o que foi convencionado chamar de patriotismo não é senão
uma regressão sob todos os pontos de vista. É preciso ser ingênuo entre
os ingênuos para ignorar que os “catecismos do cidadão” pregam o amor
pela pátria para servir o conjunto dos interesses e dos privilégios da
classe dirigente, e que eles procuram manter, em proveito dessa classe, o
ódio, de fronteira a fronteira, entre os fracos e os deserdados. Sob a
palavra patriotismo e sob os comentários modernos com que a cercam,
disfarçam as velhas práticas de obediência servil à vontade de um chefe,
a completa abdicação do indivíduo diante das pessoas que detêm o poder e
querem servir-se de toda a nação como de uma força cega. [...] Nossa
paz futura não deve nascer da dominação incontestável de uns, e da
escravização sem esperança dos outros, mas da boa e franca igualdade
entre companheiros. (RECLUS, 2002, p. 64 – 65)
52No
que consiste efetivamente a geografia anarquista de Reclus é o que ele
denomina de geografia social, conceituação por ele defendida em L’Homme et la Terre.
Apesar de ter sido criticado por Vidal de La Blache em adensar os
estudos geográficos com o caráter social, político e histórico, Reclus
estava indo além de seu tempo, lançando para o futuro a geografia de
base crítica radical. Abordou a noção de reprodução do espaço como
produto da luta de classe, a necessidade de organização espacial pelo
equilíbrio econômico, e os lugares como sendo formas livres das ações
autônomas do indivíduo.
A “luta de classes”, a procura
do equilíbrio e a decisão soberana do indivíduo, tais são as três ordens
de fato que nos revela o estudo da geografia social e que, no
caos das coisas, se mostram bastante constantes para que se possa
dar-lhes o nome de “leis”. Já é muito conhecê-las e poder dirigir,
segundo elas, sua própria conduta e sua parte de ação na gerência comum
da sociedade, em harmonia com as influências do meio, conhecidas e
analisadas a seguir. É a observação da Terra que nos explica os
acontecimentos da História, e estas nos leva, por sua vez, a um estudo
mais aprofundado do planeta, a uma solidariedade mais consciente de
nosso indivíduo, ao mesmo tempo tão pequeno e tão grande, como o imenso
universo. (RECLUS, 2010b, p. 49 - 50)
53Unindo
geografia com história, em que compreende essas disciplinas como campos
dialeticamente integrados e complementares na compreensão das questões
espaço-temporais e sócio-políticas, tema posteriormente efetivado por
Milton Santos (1978). Reclus (1905, t. 1, p. 4), trouxe à tona a
dinâmica do tempo-espaço, da sociedade-natureza, da
economia-política-cultura para a geografia, através da geograficidade
como uma experiência, modo de ser do geográfico e prática espacial
engajada dissidente. “Vue de haut, dans ses rapports avec l’Homme, la
Géographie n’est autre chose que l’Histoire dans l’espace, de même que
l’Histoire est la Géographie dans le temps. [...] Ne peut-on dire
également que l’Homme est la Nature prenant conscience d’elle-même?”.
54Dando margem ao projeto de geografia social ácrata, a obra O Homem e a Terra
deposita na figura de Reclus o protagonismo do pensamento
crítico-social da geografia, que ao mesmo tempo não fragmenta o saber
pela oposição entre geografia física e humana, não dualizando o
pensamento em espaço-temporal. No conjunto natureza e sociedade, espaço e
tempo, forma-se um discurso abrangente da geografia, que tem a
epistemologia anarquista como sustentação teórica da geograficidade
libertária.
55Anteriormente a esta obra conclusiva, La Terre enquadra-se na perspectiva ambiental da geografia libertária reclusiana, enquanto que Nouvelle Géographie Universelle pode ser entendida como o projeto libertário de geografia política. Por sua vez, L’Homme et la Terre é a conclusão do projeto libertário de geografia social.
56O signo libertário permaneceu presente na gigantesca Nouvelle Géographie Universelle. Reclus (1876, p. 1) inicia La Terre et les Hommes, logo em sua
primeira página, argumentando sobre a fragilidade cósmica do planeta
frente a imensidão do universo, mas destacando que, justamente por ser
um minúsculo ponto ela torna-se tão importante para os humanos, por
isso, estes devem saber qualitativamente pensar e ocupar esse espaço de
vida. “La Terre n’est qu’un point dans l’espace, une molécule astrale;
mais pour les hommes qui la peuplent, cette molécule est encore sans
limites, comme aux temps de nos ancêtres barbares”.
57Frente
essa grandiosa estrutura que possibilita a vida, o homem e a mulher
encontram inúmeros obstáculos para superar e garantir sua sobrevivência.
Mesmo com os avanços nas redes técnicas não se conhece todo o espaço da
vida, além de as sociedades não reconhecerem o sentimento de unidade
cósmica entre cada grupo e região do planeta. Os seres vivos, não
estando totalmente integrados, em que, “nombre de peuples ayant des
villes, des lois, des moeurs relativement policées, vivent isolés et
inconnus comme s’ils avaient pour demeure une autre planète” (RECLUS,
1876, p. 2). Essa visão compartimentada da Terra pela sociedade resulta
nas atrocidades e no descaso com o equilíbrio espacial, onde “la guerre
et ses horreurs, les pratiques de l’esclavage, le fanatisme religieux et
jusqu’à la concurrence commerciale veillent à leurs frontières et nous
en barrent l’entrée” (RECLUS, 1876, p. 2).
58O
autor evoca o fim das fronteiras e a inter-relação mútua entre os povos e
regiões fora da esfera da exploração e domínio territorial. É nesse
veio que a geografia deve penetrar, na visão reclusiana, com a
possibilidade de produzir um saber solidário e internacionalista, que
leve a ciência para a libertação das hostilidades geográficas e para a
desmitificação da natureza. Dessa direção é que resultam os fundamentos
de uma geograficidade política libertária.
59Contrário
aos nacionalismos e territorialismos típicos da Europa imperialista, o
geógrafo da anarquia refere-se negativamente ao pangermanismo, ocorrido
principalmente após a invasão de parte de sua pátria natal, negando o
ultranacionalismo e o organicismo da estreita relação entre
povo-natureza-pátria, ou Estado, no caso alemão. Desse modo, segue a
linha discursiva adotada por Bakunin (2009), em Estatismo e Anarquia,
que nega o imperialismo germânico e o estatismo autoritário nele
embutido. Por sua vez, esta obra clássica do anarquismo foi compilada e
organizada pelo geógrafo libertário francês. Reclus (1878, p. 949)
salienta que esta era de anexação alemã está sendo ameaçada, anunciando
outra nação que viria tomar frente nesse processo geopolítico de
domínios territoriais.
Les grands corps politiques
croissent et dépérissent comme les individus; or celui qui ocupe le
centre de l’Europe est maintenant dans sa période de progrès et tout
semble annoncer que longtemps encore il gardera la force d’impulsion qui
l’anime [...]. L’ère des annexions ne paraît pas être close, et des
millions d’hommes, surtout vers le sud, dans la direction du Danube et
de la mer Adriatique, se demandent s’ils auront bientôt à changer de
maître, à grossir la foule des sujets dans le nouvel empire. Ainsi
s’accroîtra le rôle de l’Allemagne dans le monde politique, jusqu’à ce
que le sceptre passe à un autre État, peut-être à la “saint Russie”,
centre d’un cercle de contrées et de peuples plus étendu, qui comprend à
la fois une grand partie de l’Europe et du continente d’Asie.
60As
relações sociais transcendem os limites formais impostos, e os elementos
naturais são mais coerentes como princípios de estabelecimento dos
limites e das fronteiras do que as formalidades impostas à sociedade,
segundo as palavras do geógrafo libertário.
Si ces diverses circonscriptions
s’étaient formée spontanément, par le voeu des populations se groupant à
leur gré, elles auraient souvent changé de forme et de grandeur par
l’effet de l’initiative locale; mais, simples créations du pouvoir
central, elles ne servent qu’à le fortifier, en plaçant dans tout
chef-lieu de département, d’arrondissement, de canton, de commune, un
représentant direct du gouvernement. (RECLUS, 1877, p. 926)
61Já no caso de L’Homme et la Terre, pode ser destacado a defesa de Élisée ao confederalismo de base anarquista frente ao processo globalizador do capital. Esse
internacionalismo do capital se configura na contramão do
confederalismo internacionalista dos trabalhadores, pois ele apoia-se,
justamente, na possibilidade de abrir caminho e entrar nos territórios,
integrar e controlar essas terras, segregando pessoas, para depois ser
cotado como protetores desses povos violentados. Tudo isso é justificado
pela tutela do direito constitucional, naturalizado pelas conferências
formais e pelas instituições supranacionais.
62Na página 70, do capítulo Internacionais,
é dito: o mundo oficial, portanto, ampliara-se singularmente desde o
tratado de Westfália, mesmo depois do congresso de Viena! Além disso, a
linguagem dos diplomatas havia mudado. O interesse é conquistar para
depois tornar essas regiões distantes parte da divisão territorial,
convertendo-as em dependências do capital imperial monopolista.
Por outro lado, elas [as
potências] sabiam que conquistas feitas em países distantes sobre povos
reputados bárbaros ou selvagens ser-lhe-iam perfeitamente perdoadas,
atribuídas, inclusive, mérito e glória. Foi, portanto, com o
encorajamento tácito de seus povos que os governos da Europa puseram-se a
despedaçar a África, a Ásia e a Oceania, para distribuir entre eles os
pedaços e construir seu império colonial. No começo do século XX, as
potências quase concluíram a partilha da África [...]. Atualmente, o
continente africano pode ser considerado como sendo apenas uma simples
dependência política econômica da Europa. (RECLUS, 2011, p. 70 – 71)
63Apesar
de todo o contexto, Reclus (2011, p. 97) se mostrou otimista diante do
futuro, crendo na possibilidade de ainda se concretizar o projeto de
federalismo fraterno internacional. “Entretanto, acima dessas nações e
daquelas que as governam, já aparece, e cada vez mais claro, uma imagem
maior, aquela do gênero humano constituindo-se em organismo unitário.”
Mas o autor reconhece a tarefa difícil, pois sabe da nova fase do
capital, internacionalista, ou global, onipotente e financeiro, em que o
mercado poderoso, mais do que o Estado, é seu principal aliado, e nesse
processo, o trabalhador está ainda mais controlado.
Em cada país, o Capital busca
controlar os trabalhadores, igualmente sobre o grande mercado do mundo; o
Capital, aumentado desmedidamente, indiferente a todas as antigas
fronteiras, tenta fazer trabalhar em seu benefício a massa dos
produtores e garantir para si todos os consumidores do globo, selvagens e
bárbaros tanto quanto civilizados. [...] Atualmente, a onipotência do
Capital e seu caráter internacional são fenômenos tão bem estabelecidos
que se fala simplesmente como de um fato consumado, da substituição
próxima dos governos pelos bancos, pela gerência da administração bem
como das empresas da paz e da guerra. (RECLUS, 2011, p. 101)
64Finalizando
a reflexão do capítulo, Reclus (2011) aborda a profunda contradição
entre os interesses do capital e do trabalho no intuito de demonstrar
que o projeto fraternalista internacional dos trabalhadores somente será
possível quanto este negar o sentido profundo e a necessidade de
existência do capital, reestabelecendo as antigas, genuínas e
equitativas relações de mutualidade entre todos os seres e o espaço
geográfico, de uma forma renovada e atual, somente quando
verdadeiramente a existência for conduzida pela perspectiva da
geograficidade libertária no contexto da espacialidade autogestionária,
da experiência e da prática espacial harmoniosa.
É que a contradição econômica é
absoluta entre o Capital e o Trabalho. Enquanto o primeiro tem por
tendência natural reduzir à escravidão todos aqueles que penam a seu
serviço, o segundo só pode periclitar, aviltar-se, afundar na vil rotina
se ele não é livre, espontâneo, alegre, criador de força pessoal e
iniciativa. A conciliação desses dois contrários, quadratura do círculo
buscada por boas almas, é impossível, todavia, a cada nova luta, o
resultado dá lugar a composições temporárias que, se há progresso,
aproximam-se gradualmente da justiça, comportando a livre participação
de todos os homens no trabalho, em seus produtos e nas maravilhas que
ele descobre. (RECLUS, 2011, p. 102 – 103)
65Ao
buscar a elaboração do anarquismo, que vincula a relação livre entre
comunidade e recursos naturais, Reclus promove uma nova forma de pensar o
anarquismo, pela via da geografia, pois dá um caráter dinâmico à
atuação das sociedades na produção do espaço. O anarquismo somente como
fonte das lutas históricas da sociedade, presente em Bakunin, será
enriquecido pela via geográfica de Reclus, Metchnikoff e de Kropotkin. A
terra é palco das lutas sociais, e é o produto de transformação das
sociedades, no devir libertário comunitarista. O anarquismo é geográfico
na medida em que pensa a transformação social e individual através da
organização dos entes no espaço. O substrato, o alimento que nutre a
busca do acratismo, reside na natureza e no espaço produzido pela ação
autônoma dos indivíduos.
66Se
“as práticas sociais se tornaram mais ou menos confusamente
multiescalares” (LACOSTE, 1988, p. 49), isso explica que uma sociedade
anarquista reside sobre o substrato espacial multiescalar organizado
libertariamente. O “saber pensar o espaço para saber nele se organizar,
para saber ali combater” (LACOSTE, 1988, p. 189) tem em Reclus sua fonte
cristalina da geografia anarquista e do anarquismo geográfico,
efervescendo vividamente como a erupção vulcânica.
67A
gênese da geografia crítica, que direciona caminhos de autonomia e de
organização equitativa do espaço, está nas concepções reclusianas.
Portanto, toda a geografia de Reclus, dos seus relatos de viagens de
meados do século XIX até a geografia anarquista do início do século XX, é
libertária. As riquezas escalar, analítica, holista, política e
literária formam a plurivocalidade geográfica reclusiana. Indicam,
assim, o libertarismo no pensamento geográfico. Toda a geografia que
contesta, denuncia e busca a alteração da organização desigual do espaço
é em essência libertária. Por sua vez, Reclus foi o precursor desse
estilo de fazer geografia, negando seu tempo e sua forma de fazer
ciência. Incumbiu o caráter político, social, ambiental, educacional e
subjetivo numa geografia que era orgânica e mecanicista, eurocêntrica e
canônica, atrelada ao imperialismo e ao colonialismo.
68A excentricidade
de se fazer geografia em meio ao auge da ciência moderna a serviço dos
Estados imperiais demonstra a potência sísmica do pensamento reclusiano,
explicando parte dos motivos da negligência desta geografia. Mas como
um movimento sísmico que denota forte embate entre as placas tectônicas,
reproduzindo cataclismos, criativamente recriando novas superfícies
através de erupções vulcânicas, a geografia libertária reclusiana
reaparece no século XXI, por outras vozes científicas, como a
antropologia, a história, a etnografia, a sociologia, o urbanismo, o
ambientalismo etc.
69De
uma geografia libertária, oriunda das conjecturas reclusianas,
percorrendo de forma subterrânea todo o século XX, chega-se no início do
século XXI ao libertarismo geográfico, tema ainda pouco vivificado
pelos geógrafos. As novas lutas políticas, as minorias, as
excentricidades teóricas, as micropolíticas, os territórios autônomos de
Hakim Bey (2014), os novos movimentos sociais, o feminismo, a luta pela
identidade étnico-racial, as questões de gênero etc. são modalidades de
engajamento político dissidente que, em grande parcela, mergulham nas
sustentações dos aspectos geográficos.
70Tomás
Ibáñez (2014), denomina essas modalidades de anarquia, de anarquismo,
de práticas libertárias, ou neo-anarquistas e pós-anarquistas da
atualidade como o anarquismo extramuros. Nele
colocam-se o espaço, o lugar, a escala, o território e a região, ou
seja, o geográfico, como tema central de suas agendas políticas
libertárias, e os próprios geógrafos resistem em reconhecer a
fecundidade desse campo de abertura transdisciplinar de atuação e
renovação das práticas espaciais. A geografia coloca-se a serviço das
liberdades, e os libertarismos multifacetados, mas não menos radicais,
colocam-se a serviço da transformação do território.
71Recorrer
de forma atenta à monumental obra de Reclus, sob o prisma de abordar
fontes da nova geografia, é tarefa indispensável para trazer à tona
diversidade temática que as outras ciências sociais já estão realizando.
Pensar o espaço pela noção libertária é abrir campo para um indelével
movimento de emancipação dos indivíduos, possível pela multiplicidade
política da contemporaneidade, contrabalançada pela plurivocalidade dos
sujeitos autônomos no espaço.