(…)
caminando por el campo nunca hablábamos con la gente culta que vivía en
las ciudades, sino que íbamos hablar con los campesinos, con los
chacareros, con la gente que ha guardado sabidurías tradicionales que
venían desde muchos milenios.
(...) ciertamente he aprendido mucho de los comuneros porque la ciencia de ellos es todavía infinita y muy poco explorada.
Javier Pulgar Vidal1
1Javier María Pulgar Vidal (1911-2003) é um dos mais conhecidos geógrafos peruanos e provavelmente um dos
geógrafos latino-americanos de maior inserção e influência
institucional, já que foi reitor, secretário, ministro, embaixador e
assessor de empresas, e fundou diversas universidades no Peru e também
na Colômbia, onde, exilado, residiu durante dez anos, retornando muitos
anos depois como embaixador. Não o conhecia até receber o convite dos
editores de Terra Brasilis para este artigo e tive uma grata surpresa ao
perceber sua trajetória e ler esta que foi uma de suas obras mais
importantes, Geografía del Perú, em sua 9ª edição à que tive acesso, publicada em 1987. Como
Milton Santos, no Brasil, era formado em Direito, mas muito cedo passou
a exercer o magistério em Geografia, tendo sido auxiliar de cátedra
ainda na graduação – e também se interessava muito por Botânica e
Arqueologia – fundamental que foi para a descoberta das ruínas da famosa
huaca – lugar sagrado – de Kotosh (perto de sua cidade, Huánuco).
- 2 Privilegiaremos aqui o primeiro sobrenome do autor, em coerência com a norma em língua espanhola.
2José Betancourt Rivera, diretor de Estudios y Análisis de Política Exterior do Ministério de Relações Exteriores do Peru, e que trabalhou com Javier Pulgar2
quando este foi embaixador na Colômbia, afirmou que ele foi responsável
pela modernização e elaboração de um novo paradigma para a geografia
peruana. Em suas palavras:
- 3 Artigo “El legado de Javier Pulgar Vidal”, publicado por ocasião dos 10 anos de falecimento do geóg (...)
Los
conceptos innovadores sobre los pisos ecológicos y la nueva ordenación
territorial fueron presentados en su libro “Las 8 regiones naturales del
Perú”, obra que en su momento de publicación representó un cambio paradigmático en el estudio de la Geografía del Perú.
El concepto de desarrollo transversal asociado a un nuevo ordenamiento
territorial con fines económicos es evidentemente un aporte del sabio
Pulgar Vidal (La Primera, 2013).3
- 4 Como revelou-me, em contato pessoal, o geógrafo peruano Juan Manuel Delgado, que pesquisa autores m (...)
3Las 8 regiones naturales del Perú
foi seu trabalho mais famoso, representando um questionamento da
regionalização euro-hispanocêntrica até então dominante. Essa tese foi
apresentada durante a Terceira Assembleia Geral do Instituto
Panamericano de Geografia e História, realizada em Lima em 1940. Ainda
que seu caráter precursor, em termos dos “pisos ecológicos” ou das
“regiões transversais”, possa ser questionado,4
não há dúvida que suas “oito regiões”, identificadas a partir da
“síntese” homem-meio e da nomenclatura reconhecida pelos próprios povos
originários foi uma grande contribuição à geografia peruana.
4A obra Geografía del Perú,
aqui analisada, demonstra num mesmo trabalho a ampla preocupação do
autor, envolvido com todas as dimensões da questão regional. Já na
apresentação (“En torno a la obra”), Pulgar deixa clara sua afinidade
com a região e os processos de regionalização vinculados à abordagem que
enfatiza o que propomos denominar “categorias da prática”, no sentido
de concepções utilizadas no cotidiano pela “sabedoria popular” ou do
senso comum da maioria da população, em suas próprias práticas de
auto-atribuição identitária. Daí a importância dada à toponímia
(“oronímia”, “hidronímia”...): desvendar o significado dos nomes dos
lugares seria capaz de revelar o conhecimento prático de seus
habitantes. Ao mesmo tempo, ele reconhece a função analítica da
categoria região e dos processos de regionalização ao discutir, na
segunda parte do livro, “os diversos critérios de divisão do território”
peruano, pela “aplicação de distintos pontos de vista e com finalidades
imediatas diferentes” (Pulgar, 1987, p. 6).
5Finalmente,
o autor cobre o amplo espectro do debate regional através de uma
derivação desses usos da região como categoria analítica e da prática,
agora ressaltando sua aplicação nas dinâmicas de regionalização em
termos políticos, de planejamento. Propusemos denominar essa abordagem
como o trabalhar da região a partir de seu caráter de categoria normativa
(Haesbaert, 2010), pela preocupação maior com “o que deve(ria) ser” a
região (uma espécie de “região-plano”), mais do que com alguma definição
do que “é” a região (de algum modo, a região como “fato”). Assim,
aparecem, na terceira e quarta partes de Geografía del Perú, a
proposta de uma “regionalização transversal”, apresentada à Comissão
Nacional de Regionalização, e um projeto de desenvolvimento através de
uma microrregionalização administrativa.
6Essas
três dimensões é que nos servirão de base para a estruturação deste
artigo: a perspectiva da região como categoria ou instrumento de
análise, envolvida com os instrumentos e métodos de regionalização do
geógrafo pesquisador, a região como categoria da prática, tal como
concebida e vivida no senso comum e na prática cotidiana dos grupos
sociais (a regionalização como ação incorporada na própria
prática efetiva, vivida), e a região como categoria normativa, através
da regionalização político-pragmática do geógrafo (ou do
técnico-político) planejador.
7Pode-se
afirmar que Javier Pulgar procurava não seccionar ou não dicotomizar o
universo analítico do intelectual, formulador de conceitos e teorias
“objetivos”, e o universo vivido, mais subjetivo, daqueles que
efetivamente construíam o espaço regional. Ao mesmo tempo em que se
preocupava explicitamente com a “correção” e o rigor acadêmico, nutria
um profundo respeito e consideração para com a sabedoria popular, como
fica evidente nas citações que abrem este artigo. Além disso, sua
própria análise, muitas vezes, era permeada por sua sensibilidade
pessoal, a ponto de realizar ricas e mesmo poéticas descrições da
paisagem.
8Em
termos analítico-conceituais, é interessante como, mesmo começando sua
investigação a partir de uma concepção que ele denomina de região
natural, esta vai além da simples “natureza natural”, pois inclui o
homem como, em suas palavras, seu “mais ativo agente modificador”.
Assim, afirma em sua introdução:
Consideramos que região natural é
uma área contínua ou descontínua na qual são comuns ou similares o
maior número de fatores do meio ambiente natural; e que, dentro de tais
fatores, o homem joga papel principal [“principalísimo”] como o mais
ativo agente modificador da natureza. (1987:11).
9Afirma
que no Peru é muito raro, exceto em alguns “vazios do ecúmeno”, não
haver intervenções expressivas do homem. A riqueza da diversidade
geográfica é outro ponto que, de saída, ele enfatiza em sua
caracterização do espaço peruano, pois “o meio ambiente natural peruano
contém quase todas as regiões naturais do planeta”, das florestas
equatoriais amazônicas ao gelo eterno “polar” das altas montanhas.
10Sua
argumentação em favor de uma regionalização através de regiões-síntese e
relativamente uniformes, em termos tradicionais, fica evidente quando
defende “a consideração analítica de todos os fatores do meio ambiente
natural” e uma “sistematização científica com base na comunidade [no
caráter comum] e homogeneidade de todos ou da maioria desses fatores”
(p. 12). Não há dúvida, entretanto, que um dos fatores fundamentais é a
diferença de altitude, que implica profundas mudanças climato-botânicas.
Seu mapa das oito regiões naturais traz claramente na própria legenda
uma faixa altimétrica para cada uma das respectivas regiões.
11Importante
é que, mesmo baseando-se ainda num conceito de região natural (que, em
outros momentos, ele denomina também de “pisos ecológicos” [p. 207, 209 e
210] ou mesmo de “geossistemas” [p. 209 e 210] ou, simplesmente,
“sistemas” [p. 210]), inclui como elemento da natureza o homem, pois os
“fatores básicos” a que se refere são identificados como “clima, relevo,
solo, subsolo, águas subterrâneas, águas superficiais, mar, flora,
fauna, grupos humanos, latitude e longitude” [grifo nosso] (numa articulação entre domínios materiais e localização em termos mais abstratos).
12Essa
região-síntese revela uma combinação “harmoniosa” e histórica “com a
obra, a adaptação e as modificações que o homem realizou e realiza no
território peruano”. (p. 12) Em sua proposta de regionalização as oito
regiões do Peru são apresentadas ao mesmo tempo como “realidades,
problemas, possibilidades e soluções” (p. 13), deixando clara sua
preocupação também com o planejamento regional, a regionalização
potencializando soluções para os dilemas do país, como enfatizaremos na
segunda parte deste artigo.
- 5 É importante lembrar que “monte” em espanhol significa também bosque ou campo.
- 6 O próprio nome do país, Peru, foi uma imposição dos espanhóis: “Os povoadores do Tahuantinguyo nunc (...)
13Um
ponto muito relevante que gostaríamos de destacar é sua apresentação
das oito regiões naturais (desde sua famosa tese dos anos 1930-40) a
partir do reconhecimento de sua identificação pelos povos antigos e
camponeses (“seus atuais herdeiros – detentores milenários desta terra”
[p. 12]), que irá depois confrontar “cientificamente com a realidade
geográfica”. Para Pulgar Vidal, a rapidez da conquista militar espanhola
durante o processo de colonização não teria lhes permitido assimilar os
conhecimentos dos povos indígenas. Assim, os colonizadores acabaram
impondo denominações geográficas utilizadas na Península Ibérica,
surgindo daí a clássica nomenclatura das três grandes regiões: “Llanos”
(planícies) ou “Costa” para as áreas baixas e onduladas próximas ao
Oceano Pacífico, “Sierras” ou simplesmente “Sierra” para as montanhas
andinas e “Montaña”5
para a área oriental baixa e florestal da bacia Amazônica. Além dessa
caracterização geográfica macro os espanhóis também modificaram
denominações de animais, plantas e locais (que recebiam o nome de santos
do dia em que ali chegaram). Assim, “os espanhóis acomodaram a
geografia, a botânica, a zoologia e a toponímia, entre outras ciências, à
sua própria cultura” (1987:13).6
14A
ideia da regionalização de um Peru dividido em apenas três regiões, como
propagado pelos colonizadores, era (e é) totalmente ignorada pelo saber
popular, o “saber geográfico indígena” tal como defendido por Pulgar.
Dessa forma, quando indagado sobre a região em que vivem, os camponeses
respondem que moram “na Yunga, na Quechua, na Suni etc.” Daí resulta a identificação das oito regiões como:
-
Chala (ou Costa), região junto ao mar na encosta ocidental dos Andes;
-
Yunga,
área quente dos vales e desfiladeiros (“quebradas”) que sobem aos Andes
em suas duas vertentes, oriental e ocidental (mesma nomenclatura que
pode ser encontrada até o norte da Argentina, na região de Tucumán e
Salta);
-
Quechua, terras temperadas que também se estendem nos dois declives andinos;
-
Suni ou Jalca, correspondente às “terras frias”;
-
Puna, região dos altiplanos e penhascos (“riscos”) muito frios;
-
Janca, picos nevados ou “regiões brancas”;
-
Rupa-Rupa (ou Selva Alta), parte de morros e vales florestados na vertente oriental andina;
-
Omagua (Selva Baixa ou Amazônia), grande planície oriental amazônica.
- 7 A propósito, ver a atualidade dos estudos toponímicos numa visão crítica da Geografia e mesmo com a (...)
- 8 Segundo o geógrafo Juan Manuel Delgado ele teria se inspirado no Diccionario Geográfico Estadístico (...)
15Foi
através dessa leitura da região como categoria da prática dos grupos
sociais em seu espaço vivido que o autor passou a enfatizar o estudo da
toponímia e da etimologia por seu “imenso valor documental” para o
conhecimento geográfico (p. 17).7 Em 1947 ele foi mesmo o responsável pela criação do Fondo Toponímico del Perú.8
Os antigos habitantes do país somente criavam uma denominação
geográfica depois de um minucioso levantamento das características
específicas de cada local, nome que, portanto, representava claramente
uma síntese dessas características. E mesmos nomes podiam ser aplicados a
espaços separados, mas com características semelhantes, o que
manifesta, a partir do próprio espaço vivido, a possibilidade de
identificação de regiões descontínuas. O autor leva em conta até mesmo
os tipos climáticos (também em número de oito) tal como identificados
pelos povos indígenas.
16Pulgar
Vidal propõe a noção de “produtos limite” para muitos produtos
agrícolas que podem ser considerados restritos ou específicos de
determinadas regiões, levando em conta suas características físicas,
especialmente clima/altitude e solo. A constante e diferenciada ação
humana também é ressaltada como fundamental na caracterização de cada
uma das oito regiões peruanas. Finalmente, ele ressalta que as oito
regiões não se referem a toda a extensão longitudinal do país, sendo
melhor identificadas na sua porção mais central (de Lima à Amazônia) e
que não há limites bruscos entre as regiões, pois “a diversidade de
zonas não só se deve à maior ou menor altitude, mas depende também da
orientação do lugar, da sombra dos morros, dos ventos dominantes e da
vertente, ocidental ou oriental, em que esteja situada”, resultando numa
interpenetração de regiões (p. 23).
17Após
sua Introdução, de caráter mais metodológico, sobre seu conceito de
região e seu método de regionalização, Javier Pulgar passa a descrever
cada uma das oito regiões, utilizando-se para isso de um quadro
sistemático praticamente padronizado. Fiel à importância que dá à
toponímia, inicia o estudo de cada região analisando sua nomenclatura. A
seguir analisa sua localização e faixa de altitude, antes de passar ao
estudo dos elementos físicos: relevo, clima, flora e vegetação,
“produtos (agrícolas) limite” e fauna. Depois, numa perspectiva
histórico-cultural, analisa “a obra do homem antigo” e a “obra do homem
atual”. Finalmente, onde se encontram algumas de suas descrições mais
ricas, que demonstram também seu pendor literário, trabalha o item
“paisagem”. É curioso como, mesmo sem nenhuma discussão conceitual sobre
paisagem, reserva para este item uma abordagem que não compreende a
paisagem simplesmente como morfologia, como nas leituras mais
tradicionais, mas também em sua dimensão mais subjetiva.
18Para
uma pequena mostra da riqueza dessa apresentação das paisagens,
reproduzimos abaixo uma passagem sobre a Puna, no original em espanhol,
não só pela dificuldade de tradução mas, sobretudo, para não perder a
sonoridade poética do texto:
Puna,
región grácilmente vestida con champas verdes o amarillentas: decorada
por los rios nacientes que describen juguetones y diminutos meandros o
que salen de la madre para dormir una siesta sobre el mullido lecho de
las plantas acuáticas, convirtiéndose en fugaces espejuelos. Lagunas
de diamantes guardados en arcas de piedra. Ojos de água viva. Conchas
cuyos fondos de ópalo, cobalto y esmeralda, reflejan el celeste y el
azul infinitos del cielo en los dias tranquilos, el gris caliginoso de
las lóbregas tormentas, el broche rutilante del relâmpago, la gélida
imagen de la luna y el guiñar tembloroso de los domos estrellados. (...)
Inmensa tierra de horizontes mayores que los del mar y de la selva. En
sus pampas no hace falta la energia y realmente no es triste; tiene si,
um lánguido sueño, como de recién nacido y toda la belleza delicada de
los seres tiernos (pp. 109-110).
19O
grande geógrafo, aqui, extrapola da região vivida pelos indígenas e
camponeses para a sua própria vivência da região, numa descrição poética
que não suprime a análise, mas a enriquece com a densa sensibilidade
subjetiva do “investigador”. Pulgar Vidal nos faz assim reencontrar o
grande geógrafo francês Eric Dardel, quando afirma:
A linguagem do geógrafo se torna
sem esforço aquela do poeta. Linguagem direta, transparente, que “fala”
sem esforço à imaginação, sem dúvida muito melhor que o discurso
“objetivo” do intelectual, pois ela transcreve fielmente a “escritura”
traçada sobre o solo (p. 3). O rigor da ciência nada perde ao confiar
sua mensagem a um observador que sabe admirar, escolher a imagem justa,
luminosa (...). Uma visão puramente científica do mundo poderia muito
bem designar, como nos indica Paul Ricoeur, uma tentativa de abdicar,
“uma vertigem de objetividade”, um “refúgio quando estou cansado de
desejar e que a audácia e o perigo de ser livre me pesam” (Dardel,
1990[1952]:126).
20Na
segunda parte do livro, intitulada “Otros criterios sobre división y
sub-división del territorio peruano”, é onde aparece de forma mais
explícita a região em sua perspectiva de instrumento de análise, e onde o
reconhecimento de múltiplas regionalizações implica concebê-las como
“setores, seções, zonas ou áreas” cuja divisão depende dos critérios
adotados pelo pesquisador. Ele elenca aí 13 critérios, desde regiões
elementares, definidas por um único critério físico-natural, até regiões
definidas a partir de um sujeito específico – os antigos povoadores que
vieram do Panamá e Colômbia, os colonizadores espanhóis ou, hoje, os
“aviadores” e sua visão do alto. É curioso como apenas dois desses
critérios focalizam o homem, visto ou em sua “adaptação” ao meio ou pelo
“critério político” para fins de administração pública. Mais
surpreendente ainda é verificar que nenhum desses critérios explicita a
questão urbana, tão relevante em várias propostas de regionalização
desde o ínicio do século XX, com a concepção de nodalidade formulada por
Mackinder e desdobrada por Vidal de la Blache (a propósito, ver Vidal
de la Blache, 2012a[1910] e 2012b[1911]).
21O
14º critério envolve sua própria proposta, a das oito regiões
“integrais” do Peru, ao lado das do geógrafo alemão Carl Troll e do
francês Olivier Dollfus. Fica evidente, aqui, que ele defende suas
“regiões integrais” ou “complexas” em relação às demais “regiões
elementares”, definidas basicamente por um único critério. O último
critério é o proposto por aqueles “que consideram que a divisão de um
território em regiões naturais deve ser feito com relação ao caráter
comum [“en atención a la comunidad”] de todos ou da maioria dos fatores
do meio ambiente natural” (p. 199), o que, obviamente, como já vimos,
inclui a ocupação humana e sua “sabedoria geográfica tradicional”. Nas
considerações gerais iniciais do capítulo ele traduz com outras palavras
este critério, dando muito mais destaque à imbricação homem-meio, pois o
lê como o critério dos que julgam que, “para dividir o território, é
necessário a análise integral de todos os fatores do meio, incluindo o
grupo humano” ou, em outras palavras:
(...) a análise cabal do
território só é possível mediante a consideração integrada de todos os
fatores do meio ambiente natural, combinados de maneira consciente e em
processo histórico e atual com a obra, a adaptação e as modificações que
o homem realizou e realiza no território peruano (p. 179-180).
- 9 A princípio uma iniciativa dos “comuneros” a universidade foi criada como instituição privada (proc (...)
22Javier
Pulgar Vidal, muito além de um intelectual no sentido do trabalho
acadêmico restrito ao ambiente universitário, foi uma personalidade
política de seu país, profundamente engajado na aplicação de seus
conhecimentos geográficos através do aparato estatal, especialmente a
partir de sua filiação à centro-esquerdista APRA (Aliança Popular
Revolucionária Americana). Sua atuação política, que para alguns começou
de maneira fortuita, convidado para a Secretaria de Fomento quando
ensinava em Huánuco, incluiu postos como o de secretário do Ministério
de Fomento, deputado no Congresso Nacional, primeiro reitor da
Universidade Comunal do Centro do Peru e embaixador na Colômbia.
Independente do amplo reconhecimento de seu prestígio intelectual, sua
participação junto à APRA foi por vezes polêmica, como no debate sobre a
fundação da Universidade Comunal do Centro, em que os interesses
partidários apristas acabaram se sobrepondo aos dos estudantes e comuneros.9
23Logo
no início de sua carreira e a partir de contato com o vice-presidente
americano Henry Wallace quando de sua visita ao Peru, em 1943, conseguiu
uma bolsa de estudos de oito meses nos Estados Unidos, quando trabalhou
na National Planning Association junto com intelectuais como
C. Jones, P. James e R. Platt. Segundo artigo de Córdova e Bernex (s/d),
com base em depoimento do próprio Pulgar, foi através desse estágio que
ele “aperfeiçoou sua técnicas de investigação geográfica a partir da
análise integral de áreas”. Por ocasião de sua estada nos Estados Unidos
teve contato e realizou intercâmbio com o geógrafo brasileiro Jorge
Zarur, membro do então Conselho Nacional de Geografia e conhecido por
seu estudo sobre o rio São Francisco (Zarur, 1946).
24Sua
participação em atividades junto a órgãos estatais de planejamento
incluiu diversos outros trabalhos, destacando-se sua atuação junto a
projetos de regionalização do Peru, fato que fica muito evidente na
terceira e quarta partes do livro Geografía del Perú, aqui
analisado. Pulgar Vidal apresenta aí aquela que, depois da definição das
oito “regiões naturais”, constitui sua mais divulgada contribuição aos
estudos geográficos: a “regionalização transversal” do país. Segundo o
próprio autor, essa regionalização foi proposta por ele em 1976 através
de comunicação ao primeiro-ministro General Oscar Vargas Prieto. Depois,
em 1978 e 1979, foi apresentada à Comissão de Regionalização da
Assembleia Constituinte e várias outras instituições, incluindo a
Associação Nacional de Clubes Departamentais do Peru.
25É
interessante ressaltar que o embrião dessa “regionalização transversal”,
como nos lembrou o geógrafo peruano Juan Manuel Delgado, já se encontra
em Mariátegui, o grande socialista peruano, pelo menos em termos da
relação entre Costa e Sierra. Segundo Mariátegui:
La
sierra y la costa, geográfica y sociológicamente, son dos regiones;
pero no pueden serlo política y administrativamente. Las distancias
interandinas son mayores que las distancias entre la sierra y la costa.
El movimiento espontáneo de la economía peruana trabaja por la
comunicación transandina. Solicita la preferencia de las vías de
penetración sobre las vías longitudinales. El desarrollo de los centros
productores de la sierra depende de la salida al mar (p. 133). (…) La
explotación de los recursos de la sierra y la montaña [Selva ou
Amazônia] reclama vías de penetración, o sea vías que darán, a lo largo
de la costa, diversas desembocaduras a nuestros productos. En la costa,
el transporte marítimo no dejará sentir de inmediato ninguna necesidad
de grandes vías longitudinales. Las vías longitudinales serán
interandinas. Y una ciudad costeña como Lima, no podrá ser la estación
central de esta complicada red que, necesariamente, buscará las salidas
más baratas y fáciles (Mariátegui, 1928:137).
- 10 Mariátegui é realmente precursor, também, no que se refere ao debate sobre o regionalismo peruano, (...)
26O
engajamento político de Pulgar Vidal tem forte relação com a relevância
adquirida pela regionalização enquanto projeto de descentralização
territorial, já tão enfatizada por Mariátegui, numa posição muito mais à
esquerda,10
mas também estimulada pelos governos apristas e que culminou com as
gestões de Alan García, um dos fundadores e principal liderança do atual
Partido Aprista Peruano. García foi presidente do Peru por duas vezes
(1985-1990 e 2006-2011) e é autor de pelo menos dois livros que revelam
uma grande preocupação com a questão regional: La revolución regional (García, 1990) e Mi gobierno hizo la regionalización: Fujimori la destruyó en un año (1998).
- 11 Em nosso livro “Regional-Global” reconhecemos, em uma nota, a importante especificidade desse “cará (...)
27É
interessante como Pulgar Vidal inicia a Terceira Parte do livro
(denominada “A regionalização transversal do Peru”) fazendo alusão,
também, ao caráter pedagógico da região, demonstrando sua preocupação
com a forma pela qual as regiões eram trabalhadas pelos professores em
sala de aula.11
À medida em que a região foi convertida em “objeto de estudo para o
Ensino Secundário”, “alguns professores incorreram em confusões que
dificultam o aprendizado e desorientam os estudantes” (p. 207). Seu
principal argumento para esclarecer a questão e, de modo simples, expor o
principal argumento da regionalização transversal e sua combinação com
as oito regiões naturais, é que:
(...) no Peru, assim como as
riquezas e os recursos naturais são melhor aproveitáveis de leste a
oeste ou ao revés, na direção dos paralelos, as regiões naturais se
orientam de sul a norte, isto é, na direção dos meridianos. A combinação
dos critérios utilizados e analisados no estudo das Oito Regiões
Naturais existentes no território facilita a compreensão da abordagem da
eventual Regionalização Transversal que foi aprovada em numerosos
fóruns (...) (p. 207).
28A
divisão regional em regiões transversais tem um claro caráter
prático-normativo, na medida em que prioriza o “melhor aproveitamento”
dos recursos do país e leva em conta, também, a questão administrativa, a
ponto de ter sido formulada com a pretensão de ser adotada em uma nova
política de divisão político-administrativa do país. A ideia de
transversalidade implica regionalizar o território peruano de tal forma
que cada região, recortada do litoral do Pacífico até a Amazônia,
corresponda a setores que reúnam características de todas as oito
regiões naturais. Seu propósito, portanto, é:
(...) assegurar a cada futura
região a possibilidade de dispor de toda classe de riquezas e recursos
naturais que lhe permitam alcançar um desenvolvimento sustentável e
conseguir a consequente abundância e folga. Dito de outra forma, cada
região deve dispor das proteínas animais e vegetais do Oceano Pacífico,
que é muito rico em espécies comestíveis, deve aproveitar todos os
recursos mineiros, agrícolas, pecuários e as fontes de energia
existentes na Costa e nas cadeias andinas; e, finalmente, deve utilizar,
conservar e melhorar os recursos florestais, hidrobiológicos, agrícolas
e pecuários das Selvas Alta e Baixa, bem como da Ceja de Selva (p.
208).
29Trata-se
de uma clara mudança de perspectiva, de uma regionalização “clássica”,
produto da relação homem-meio e “de baixo para cima”, no reconhecimento
enquanto regiões “vividas” por seus próprios habitantes, para uma
regionalização geoeconômica, prescritiva, “de cima para baixo”, ou
melhor, que indique um caminho para uma nova geoeconomia do país, dentro
de um discurso desenvolvimentista. Trata-se, portanto, de regiões
marcadas mais pelo princípio da complementaridade que da homogeneidade e
com claro caráter normativo com o objetivo, inclusive, de
transformá-las em regiões político-administrativas, oficialmente
instituídas. Como sua delimitação não obedece, obrigatoriamente, aos
limites dos departamentos já existentes, essa regionalização implicaria
uma substancial modificação territorial.
30O
autor demonstra sua preocupação com a descentralização
político-administrativa, o “desenvolvimento sustentável” (por mais
polêmica que seja a expressão) e, como em posturas contemporâneas de
“biorregiões”, uma espécie de região autossuficiente ou, pelo menos, que
disponha da maior diversidade de recursos possível dentro da realidade
geográfica peruana. A partir desse princípio de que cada região deveria
dispor do maior número de recursos ele critica a própria divisão
departamental do país, que não levou em conta “as fontes causais das
riquezas e recursos dos povos” (p. 209).
- 12 “Em resumo, podemos dizer que o homem mais remoto, talvez há dez mil anos atrás, mais ou menos, já (...)
31Para
a elaboração de sua regionalização transversal Pulgar Vidal discute
cinco “fundamentos”: o fundamento mais propriamente geográfico (com os
“quatro elementos geográficos: o Mar Pacífico Peruano, o Semi-Llano [Semi-Planície] Costeiro, a Cadeia dos Andes e o Semi-Llano
Amazônico), o fundamento ecológico (que surpreendentemente, aqui, ele
identifica com os “pisos ecológicos” ou “geossistemas” e elenca suas
oito regiões naturais), o fundamento pré-histórico e arqueológico
(demonstrando a importância que concedia à Arqueologia, onde enfatiza a
existência ancestral de um “intercâmbio transversal entre todos os
geossistemas” [p. 211]),12 o fundamento histórico propriamente dito e o “fundamento da história atual”.
32Vale
destacar que o autor comenta os projetos já então encaminhados para uma
nova regionalização administrativa do país, onde são defendidas
“regiões administrativas” que busquem “a integração geoeconômica
transversal” do país (p. 215, aludindo ao Anteprojeto de Decreto de Lei
de Regionalização Administrativa publicado em 1975). É muito
interessante perceber que, ao lado de sua preocupação com a urgência da
operacionalização dessa proposta de regionalização (que inclui outra, a
nível microrregional, comentada no último capítulo do livro), existe
também o reconhecimento de seu empenho, especialmente através de
publicações e conferências (inclusive junto à Assembleia Constituinte),
de “criar uma consciência regionalista que adote o critério da
transversalidade”. Muito além de mero caráter analítico e/ou aplicado,
trata-se igualmente da pretensão em fomentar uma nova “consciência
regionalista” na forma de pensar (e viver) o espaço peruano.
- 13 A única referência mais explícita ao papel das grandes cidades aparece quando da definição, no Segu (...)
33Concluindo, poderíamos propor que a Geografía del Perú
de Javier Pulgar Vidal, profundamente marcada por influências da
chamada Geografia Regional Clássica, de matriz francesa, deveria ser
lida pelo viés crítico já tão enfatizado por geógrafos neopositivistas e
marxistas, destacando aspectos como o peso excessivo da descrição e do
mesmo receituário de método para a análise de todas as regiões, o
menosprezo pelo papel das cidades13
ou a ausência de um estudo dos conflitos e das contradições
geoeconômicas impostas pelo sistema capitalista hegemônico (e que um
autor como Mariátegui, muito tempo antes, já havia ressaltado). Optamos,
porém, e isso deve ter ficado claro ao longo do texto, por uma outra
vertente “crítica”, aquela que, no lugar de destacar o que o autor “não
fez” ou, no seu tempo, não permitiu fazer, privilegia, no interior mesmo
do que ele “fez”, o que ainda nos inspira ou, em outras palavras, o que
nos permitiria (re)fazer, através de seu caráter de algum modo
inovador. Assim, ao invés de enfatizarmos a falta, destacamos o que
porventura existiria “a mais” em sua obra, o potencial que aporta para
releituras, as possibilidades que (ainda) abre e os cruzamentos que
permite no contexto da atual Geografia latino-americana.
34Ao
tratar a região tanto do ponto de vista dos próprios habitantes que
“fazem” a região, numa espécie de ação concreta de “regionalizar”,
inclusive pela atribuição de toponímias regionais integradoras, quanto
dos pesquisadores que a analisam a partir de múltiplos critérios de
regionalização (embora escolhendo um deles como o mais adequado) e dos
planejadores que invocam uma “região-devir” ou o futuro dos processos
regionais, Pulgar Vidal pode ser considerado um “geógrafo regional
pleno”. E isso não apenas no sentido de cobrir todas as facetas com que a
questão regional pode ser abordada, do prático-vivido ao analítico e ao
normativo (sem falar em sua preocupação pedagógica). Sua obra também se
caracteriza como uma abordagem do regional em sentido “pleno” porque
defende uma visão efetivamente integradora para a análise regional, o
que permite reavaliá-lo, hoje, à luz de conceitos como o de biorregião,
ao proporem um resgate, em novas bases, da relação sociedade-natureza,
fundamental para compreender as práticas “territoriais-regionais” de
tantos grupos subalternos, notadamente os indígenas e comuneros, tão reconhecidos por Pulgar.
35Suas
vinculações profissionais multidisciplinares e seu apego ao trabalho de
campo foram responsáveis por uma rica trajetória político-acadêmica,
amplamente alinhada como os interesses políticos do aprismo peruano (e
suas contradições). Mesmo atendo-se a uma “sabedoria geográfica
tradicional” que era focada sobre as relações homem-meio, e tendo como
objetivo proporcionar uma “visão completa” e um “conhecimento geográfico
preciso e exato” do país, Pulgar nem por isso deixa de reconhecer o
“dinamismo” no qual se inscreve a área da Geografia Regional e sua
necessidade de “permanente revisão e atualização” (p. 6). O fato de ter
finalizado Geografía del Perú já nos anos 1980 e mesmo assim
ter dado prioridade a sua tese das oito regiões naturais do final dos
anos 1930 (a primeira parte, que lhes diz respeito, ocupa mais de 2/3 do
livro) prova a importância de releitura de suas proposições originais,
associadas agora à tese mais pragmática das regiões transversais.
36Ao
mesmo tempo em que praticou uma Geografia Regional no seu melhor sentido
clássico, com ênfase nas relações do homem com o meio físico-natural (e
onde o homem, surpreendentemente, era encarado como um fator
constituinte da própria natureza ou, de maneira mais elaborada, de um
“geossistema”), esteve sempre atento à apropriação cultural efetuada
pelo homem comum em seu espaço cotidiano, a ponto de valorizar, um pouco
como um certo Vidal de la Blache e, mais tarde, Eric Dardel, a
percepção e o conhecimento que os próprios habitantes, neste caso
sobretudo camponeses (ou comuneros, como ele afirma),
construíam em conjunto com seu entorno geográfico. Ao mesmo tempo, seus
próprios princípios de regionalização, seja com propósitos de caráter
mais analítico (como nas oito regiões naturais) ou normativo (como na
regionalização transversal), advertem-nos para a importância de
contextualizar nossas regionalizações de acordo com o espaço-tempo a que
nos estamos referindo.
37Esse
reconhecimento e valorização da “sabedoria tradicional”, como o autor
denomina, adquire hoje uma enorme atualidade diante da releitura de
nosso contexto geo-histórico a partir do chamado pensamento pós ou
descolonial, ao destacar uma perspectiva latino-americana (neste caso,
também peruana) de construção do saber. Reler Pulgar Vidal em sua
vinculação com outros pensadores da região, dentro e fora do Peru, pode
inspirar, portanto, novas frentes de investigação.