1Na
década de 2000, a emergência de uma nova configuração política na
América do Sul decorrente do fiasco das promessas neoliberais favoreceu a
ascensão de presidentes com apoio das diferentes matrizes culturais,
formadoras dos movimentos sociais, e dos diversos segmentos do
empresariado nacional descontentes com as medidas de abertura comercial,
conduzidas indiscriminadamente pelos governos anteriores. As mudanças
nas condições materiais do Brasil se alteraram em virtude do cenário
econômico internacional positivo, trazendo a cena o presidente Lula da
Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT).
2Na
escala regional-global, o governo Lula deslocou a trajetória da política
externa da esfera defensiva em direção a posições mais proativas. O
objetivo era recuperar o vetor de atuação do país por intermédio da
constituição de coalizões Sul-Sul para intervir no ordenamento
internacional através das organizações intergovernamentais (OIG’s).
Conquanto, o discurso oficial procurou valorizar a América do Sul na
agenda brasileira e a integração regional como instrumento funcional, na
intenção de assegurar maior autonomia do país no espaço mundial. Dentro
desse contexto, o Brasil ocupou um lugar singular ao promover
iniciativas de expressão política e econômica sul-americanas, como por
exemplo, a criação da UNASUL (União das Nações Sul-Americanas) e a
ampliação dos investimentos de empresas brasileiras por intermédio do
BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Social). Desse modo, a política
externa e o Ministério das Relações Exteriores aumentaram o seu grau de
prioridade na administração petista com forte rebatimento nas relações
do Brasil com a região.
3Nos
últimos anos têm-se produzido uma diversidade de trabalhos acerca da
administração Lula da Silva em diferentes campos do conhecimento. As
abordagens constituem-se em esquemas teóricos e analíticos sustentados
preferencialmente na dimensão econômica e/ou política, porém, raramente
espacial. Este trabalho se inscreve em um esforço interpretativo na
perspectiva brasileira sobre as práticas adotadas pelo presidente Lula
da Silva no âmbito dos projetos regionais. O debate integracionista
tornou-se relevante em função de ainda ser um tema persuasivo na agenda
da política externa dos países sul-americanos. Entretanto, os resultados
são limitados e têm revelado o descompasso entre o discurso diplomático
brasileiro e suas ações no fortalecimento da integração regional.
- 1 O novo-desenvolvimentismo incorporou temas que ficaram relegados ao segundo plano no período desen (...)
4A
crescente presença brasileira no espaço regional, em especial, após a
primeira eleição do presidente Lula da Silva, reacendeu os debates sobre
a retomada do projeto do país à condição de “potência regional” e
“global”. As discussões estão pautadas nas ações políticas, econômicas,
sociais, militares e culturais colocadas em curso pelo Brasil, e
sustentadas na articulação entre a agenda doméstica e a estratégia de
inserção internacional. Embora a política externa do governo Lula
operasse sobre a matriz que foi esboçada já no final do segundo governo
Fernando Henrique Cardoso (FHC), no período de 1999 a 2002, a correção
de rumos em direção a matriz de contornos novo-desenvolvimentistas1
deu maior visibilidade às proposições idealizadas pela administração
petista, já em seu primeiro mandato. As escolhas do Embaixador Celso
Amorim ao Ministério das Relações Exteriores, do Embaixador Samuel
Pinheiro Guimarães como Secretário-Geral e do Professor Marco Aurélio
Garcia a assessoria da presidência para assuntos internacionais
promoveram a tônica desse modelo desenvolvimentista e autonomista no
interior do Itamaraty.
- 2 “A ideia de promover a cooperação entre os países do Sul surgiu como complemento e ao mesmo tempo (...)
5O
redimensionamento do Itamaraty ocorreu por meio do aumento no quadro de
diplomatas, da elevação dos recursos financeiros, da abertura de novas
embaixadas na África e na Ásia, das alterações no processo de seleção de
diplomatas, entre outros, indicavam as pretensões do Brasil nas
relações internacionais. Essas mudanças são assinaladas por CERVO (2008)
em três pontos centrais, a saber: a) a defesa do multilateralismo de
reciprocidade nas negociações comerciais a partir da formação de
coalizões entre “países emergentes”, com intuito de discutir a natureza
das regras não somente no regime do comércio internacional, mas também
em outras temáticas; b) o enfrentamento da dependência estrutural em
diferentes esferas (financeira, empresarial e tecnológica) através de
parcerias estratégicas, de novo enfoque nas relações Norte-Sul e da
Cooperação Sul-Sul2;
c) a intenção de constituir a América do Sul como polo de poder e
plataforma política para a expansão dos empreendimentos brasileiros ao
exterior.
6Desde
os anos 2000 o Brasil vem ao mesmo tempo aumentando a sua capacidade de
projetar-se e de ser reconhecido como ator importante nas discussões
das principais questões internacionais. Para tanto, o país buscou
estabelecer um diálogo mais próximo as “potências emergentes” (China,
Índia e África do Sul, entre outras) e no âmbito do MERCOSUL, a
diplomacia brasileira objetivou construir um projeto estratégico que não
só ressaltasse os interesses econômicos, mas resgatasse a dimensão
política do processo de integração, constituindo assim, as chamadas
parcerias estratégicas (SARAIVA, 2007). Procurando afastar a política
externa de sua característica defensiva e de sustentáculo da
estabilidade macroeconômica dos períodos anteriores, o governo Lula da
Silva a conduziu para a posição mais ofensiva e pragmática, objetivando:
“a manutenção da estabilidade econômica; a retomada do papel do Estado
na coordenação de uma agenda neo-desenvolvimentista; a inclusão social e
a formação de um expressivo mercado de massas. (HIRST, SOARES DE LIMA e
PINHEIRO, 2010, p.1)
7A
política de Lula da Silva buscou aproveitar as experiências do seu
partido, o PT (Partido dos Trabalhadores), nas prefeituras de vários
estados brasileiros para a construção do Plano Plurianual (PPA
2004-2007). A estratégia visava identificar os principais problemas a
serem enfrentados, como a concentração social e espacial de renda, a
pobreza, a degradação ambiental, a cidadania, o desemprego e a
transformação dos ganhos de produtividade em aumento de renda para os
trabalhadores (LESSA, COUTO e FARIAS, 2009). Tais proposições domésticas
foram elencadas para a política externa brasileira, o que tornou o
Brasil possível “porta voz” para os demais “países do Sul”.
A fórmula adotada pelo governo
Lula tem sido vincular um novo acervo de políticas sociais que atacam a
pobreza e a desigualdade no plano doméstico com uma ativa diplomacia
presidencial. Ao mesmo tempo em que se transformou a questão social numa
bandeira de política externa(...) (HIRST, SOARES DE LIMA e PINHEIRO,
2010, p.6).
8No
plano global, o governo Lula da Silva utilizou a credibilidade do país,
propondo consensos com os demais “países emergentes” como forma de
contrapor as ações unilaterais das grandes potências nas discussões dos
organismos internacionais. De maneira pragmática, o Brasil aproveitou as
lacunas deixadas pela política de securitização do presidente
estadunidense, George W. Bush, após o onze de setembro de 2001, para
ampliar as exportações de bens e serviços e expandir os negócios do
empresariado brasileiro. Baseado no multilateralismo universal, o Brasil
articulou junto aos governos da Índia, da China, da África do Sul,
entre outros, a criação do G-20 Comercial no âmbito da Organização
Mundial do Comércio (OMC), a partir de 2003, em Cancun. A intenção era
debater o tratamento dado pelos “países centrais” as questões referentes
à abertura dos mercados, visto que a posição da Europa e dos Estados
Unidos pressionava os “países do Sul” a liberalizar a importação de
produtos industriais e serviços sem contrapartida para as exportações
dos produtos agrícolas desses países. A falta de propostas consistentes
sobre a suspensão das barreiras alfandegárias e a concessão de subsídios
que distorcem o comércio agrícola internacional em favor dos produtores
europeus e norte-americanos levou os negociadores brasileiros a se
colocarem contrários aos termos apresentados. Tal fato propiciou aos
“países do Sul” a defesa de uma posição comum na OMC. Porém, o embate
entre os dois grupos paralisou as negociações da Rodada de Doha em 2006 e
o impasse prosseguiu até o final da década.
9A
crise financeira e econômica iniciada em 2008 nos Estados Unidos e
estendida a Europa em 2009 produziu incertezas no cenário internacional.
O G-8 que reunia os sete países mais ricos, mais a Rússia, incorporou
os “países emergentes” como Brasil, China, Índia e África do Sul nas
discussões sobre a governança econômica global. A posição brasileira que
foi vencedora defendeu o aumento no número de países nos esforços para
conter os efeitos perversos da desregulamentação financeira. Assim, o
G-8 perdeu efetividade e, em seu lugar, entrou em cena o G-20
financeiro, cuja primeira reunião ocorreu em novembro de 2008 na cidade
de Washington e a segunda em abril de 2009 em Londres. Diante dos
efeitos da estagnação econômica, o governo brasileiro adotou três
iniciativas: a intensificação dos investimentos internos através do
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a consolidação de coalizões
ao sul com objetivo de obter apoio para as reformas do sistema
financeiro internacional, do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do
Banco Mundial e destinou dez bilhões de dólares ao FMI com o objetivo de
aumentar os aportes de capital dessa instituição (CERVO e BUENO, 2012).
10Nos
foros ambientais, como por exemplo, sobre Mudança do Clima (COP 15), o
Brasil adotou uma postura mais assertiva ao propor metas de redução de
emissão de carbono e cobrar maior responsabilidade dos países mais
poluidores. Posteriormente, esse desempenho resultou no acordo para a
realização da Rio + 20, a Conferência das Nações Unidas sobre
Desenvolvimento Sustentável (VISENTINI, 2013).
11Na
esfera da segurança coletiva, a diplomacia brasileira criticou a ação
preventiva unilateral estadunidense, a doutrina da ingerência europeia e
o terrorismo, enaltecendo a importância do Brasil nos processos de
solução de conflitos e manutenção da paz. Para isso defendeu a
democratização das decisões do Conselho de Segurança da ONU e, com
intuito de desempenhar papel relevante no campo da segurança, abandonou a
posição da não intervenção, ao assumir a liderança da missão de peacekeeping
da MINUSTAH (Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti) a
partir de 2004. Ainda nesse tema, por ter uma política externa pacifista
e defensora das negociações como mecanismo de solução de conflitos, o
país propôs uma reforma no Conselho de Segurança na intenção de torná-lo
mais representativo diante do cenário do século XXI. Tal proposição
contou com apoio de outros países que aspiram à condição de membros
permanentes, o chamado G-4 (Brasil, Alemanha, Índia e Japão). “O receio
de perda de poder pelos cinco membros permanentes, as rivalidades
regionais entre potências e a discordância quanto aos termos da reforma
mantêm o Conselho nos moldes obsoletos em que foi criado logo após a
Segunda Guerra” (CERVO e BUENO, 2012, p.541).
- 3 Segundo SOARES DE LIMA e DUARTE (2013), as viagens presidenciais representaram o grau de importânci (...)
12No
plano das parcerias estratégicas e da cooperação Sul-Sul, o Brasil
diversificou e expandiu suas relações internacionais. Outras iniciativas
relevantes foram à aproximação com o continente africano através das
negociações envolvendo o MERCOSUL e a União Aduaneira da África Austral
(SACU); do incremento de apoio técnico com a disseminação de informações
sobre os biocombustíveis; a cooperação nas áreas de agricultura, saúde,
educação, esportes, defesa e promoção dos direitos humanos; do aumento
de visitas oficiais de Chefes de Estado entre o Brasil e governos de
diferentes Continentes3;
do reforço nas relações com a Comunidade de Países de Língua Portuguesa
(CPLP); da implantação de novas Embaixadas e da presença crescente de
empresas brasileiras na economia de diversos países africanos. Em
relação ao Oriente Médio, o presidente Lula consolidou a realização de
Encontros de Cúpula América do Sul-Países Árabes (ASPA) e acordos de
cooperação MERCOSUL-Conselho de Cooperação do Golfo (CCG), defendeu a
participação brasileira nos esforços de paz no conflito
israelo-palestino, da mesma forma junto a Turquia propôs solução não
confrontacional em relação ao programa nuclear iraniano.
13A
política externa brasileira era favorável a formação de coalizões com
“potências emergentes” na convicção que esses países se constituiriam em
importantes aliados tanto nas negociações entre suas economias quanto
na articulação das diplomacias em diferentes instâncias de decisão
global.
A participação do Brasil nos
foros de governança global reflete não apenas uma política proativa de
constituição de ‘coalizões de geometria variável’, envolvendo algumas
nações emergentes, como os limites derivados das carências de recursos
de poder que permitam ao país uma carreira ‘solo’ em instâncias globais
(HIRST, SOARES DE LIMA e PINHEIRO, 2010, p.8).
14A
visibilidade desses países deveu-se ao crescimento acelerado de suas
economias diante da recessão vivenciada pelos países mais ricos. Dentre
os grupos políticos, destacam-se a criação do IBAS ou G-3 (Índia, Brasil
e África do Sul) em 2003, e a institucionalização em 2007, do BRIC
(Brasil, Rússia, Índia e China), com posterior adesão da África do Sul
em 2010. O primeiro grupo reúne três países-chave na Cooperação Sul-Sul
por serem importantes democracias em seus continentes. Além dos
interesses globais como a instituição da temática do desenvolvimento e
dos problemas sociais na agenda das organizações multilaterais, os
países procuram estreitar acordos em setores específicos, como
indústria, comércio, agricultura, serviços e tecnologia. Outro ponto
relevante é a intenção de concretizar um eixo
transoceânico-transcontinental meridional capaz de forjar uma
articulação entre seus espaços regionais. Isso ocorre no momento em que o
Oceano Atlântico Sul e o Oceano Índico despontam como zona de imensos
recursos energéticos e opção para uma base logística do comércio
mundial. Daí o desejo dos mesmos em instituir parceria que garanta a
manutenção de uma zona de paz para a navegação e bloqueio a qualquer
tentativa de militarização por parte das potências extrarregionais.
15O
segundo grupo se destaca não só pela grandiosidade de sua Geografia, mas
por se constituir uma alternativa a ordem global vigente. Por terem
economias crescentes, Brasil, Rússia, China e Índia poderiam produzir
intensas modificações no panorama geopolítico internacional. A
instituição Goldman Sachs, criadora do acrônimo, ressaltava na ocasião, o
potencial desses países de se tornarem peças-chave no cenário
político-econômico mundial, levando os BRICs a receberem maior atenção
do meio acadêmico e da imprensa. Assim, o diálogo político dos BRICs em
2006, na intenção de discutir temas comuns deu origem à primeira cúpula
em 2009, na cidade russa de Ekaterimburgo, cujo foco esteve centrado na
economia. Em 2010, a segunda reunião ocorreu em Brasília, onde as
discussões versavam preferencialmente sobre crise financeira e as
reformas das instituições. O destaque foi para a assinatura de um
memorando de cooperação entre os Bancos de Desenvolvimento dos quatro
países, o que possibilitou a criação do Banco dos BRICs em 2014.
Entretanto, a pretensa unidade desse bloco esbarra nas diferenças
substanciais de seus membros, em termos de peso econômico, importância
geopolítica, grau de integração à economia global, diversidade cultural,
as condições domésticas, a relação com a potência hegemônica, entre
outros. Diante desse quadro, os analistas levantam questionamentos sobre
a capacidade de poder que os BRICs possuem para funcionar como um novo
pilar da ordem global e ajudar a construir um sistema internacional mais
próspero e estável.
- 4 O eixo horizontal é representado pelas parcerias com as nações emergentes, por suas semelhanças com (...)
16As
mudanças no quadro de poder mundial promovida pela atmosfera da Guerra
Fria levou o Brasil a se adequar ao ambiente mais globalizado. O
posicionamento mais autônomo permitiu que o país diversificasse os seus
parceiros internacionais. Assim, apesar da manutenção da relação
vertical Norte-Sul, em particular com os Estados Unidos, a diplomacia
brasileira também intensificou o diálogo horizontal Sul-Sul4
e o eixo diagonal Sul-Leste, ou seja, com os países
“terceiro-mundistas” e com os “países socialistas” respectivamente
(VISENTINI, 1999). Essa característica de diversificar parcerias
conduziu as práticas da política externa brasileira no contexto
pós-Guerra Fria. O forte caráter integracionista utilizou “os processos
de integração para estabelecer ou consolidar a rede de cooperação e
poder [preferencialmente] ao sul, partindo da América do Sul e avançando
para alianças com outras regiões com o fim de realizar sua meta de país
globalista” (CERVO e BUENO, 2012, p.548).
17Os
esforços do governo Lula estavam pautados no resgate do papel da
política externa brasileira nas relações internacionais. Por isso, o
crescente número de viagens era um indicador das pretensões do
presidente de tornar o Brasil um global player, isto é, tornar o
país membro constante em eventos internacionais, presente nas reuniões
de cúpula e nos diálogos com os principais líderes de outros países. Tal
intento passava pela constituição de uma diplomacia ativa e afirmativa,
por isso era fundamental fortalecer as relações com os países vizinhos,
consolidar a América do Sul como área prioritária na agenda nacional e
superar o baixo perfil sul-americano na função de eixo alternativo de
poder na escala mundial. Assim, dos presidentes brasileiros a visitar os
Estados sul-americanos, Lula da Silva foi o que deu maior prioridade a
região. Por conseguinte, a invenção da tradição de “sul-americanidade”
acoplada à política externa brasileira “não significa a propagação de
uma inverdade, mas a reconstrução do mundo a nossa volta, ou seja, um
espaço sul-americano organizado que visa restabelecer o prestígio
internacional de seus Estados e os afastar do estereótipo
latino-americano atrasado e subdesenvolvido” (GALVÃO, 2009, p. 67). Daí,
a intenção do discurso oficial em reconstruir o MERCOSUL e privilegiar a
integração regional em diferentes esferas (econômica, cultural, social,
infraestrutura, segurança, entre outros) no intuito de criar uma zona
própria de poder e legitimar a liderança brasileira.
18 A
promoção da integração regional estava focada no desenvolvimento do
MERCOSUL, acordo originário do reaquecimento das relações diplomáticas e
do arrefecimento das tensões entre Brasil e Argentina. Essa
reaproximação permitiu aos países a consolidação de um regime de
intercâmbio livre e a instituição de uma união aduaneira que foi
estendida, pelo Tratado de Assunção de 1991, aos países limítrofes do
Cone Sul, o Paraguai e o Uruguai. O MERCOSUL representava um marco
histórico importante para a região, pois além de possibilitar o
desenvolvimento dos países locais também funcionava como um instrumento
de dissuasão entre as duas maiores economias da América do Sul. Essa
aproximação favoreceu a constituição de uma área de paz e de
confiabilidade mútua, pautada em valores democráticos; tornou o bloco em
sujeito de direito internacional com capacidade de negociação em várias
esferas; fortaleceu o poder de barganha do Cone Sul como bloco e
alavancou a ideia de América do Sul a partir das negociações com a
Comunidade Andina na Cúpula de Brasília de 2000 (CERVO, 2002).
19Apesar
da ampliação do comércio entre os países membros do Tratado de
Assunção, o MERCOSUL enfrenta dissonâncias, pois nem sempre as economias
do Brasil e Argentina são convergentes, em muitos setores são
competidores e não complementares. Quando Lula da Silva assumiu em 2003,
o MERCOSUL agonizava em virtude da oscilação cambial promovida pela
desvalorização do Real em 1998/1999 e pela crise econômica argentina em
2001. Nos dois países se falava na necessidade de relançá-lo.
A grande prioridade da política
externa durante o meu Governo será a construção de uma América do Sul
politicamente estável, próspera e unida, com base em ideais democráticos
e de justiça social. Para isso é essencial uma ação decidida de
revitalização do MERCOSUL, enfraquecido pelas crises de cada um de seus
membros e por visões muitas vezes estreitas e egoístas do significado da
integração. O MERCOSUL, assim como a integração da América do Sul em
seu conjunto, é sobretudo um projeto político. Mas esse projeto repousa
em alicerces que precisam ser urgentemente reparados e reforçados (FUNAG
– discurso do presidente Lula, 2008, p.14).
20No
entanto, segundo BUENO (2010), havia um descompasso entre os interesses
de ambos, pois, a Argentina concebia o bloco como instrumento de
expansão de suas exportações, portanto, um negócio. Por conseguinte,
agindo com pragmatismo, os argentinos estabeleceram imposições, como as
cotas comerciais e as licenças prévias de importação a certas
mercadorias brasileiras. Já o Brasil via o MERCOSUL para além do
comércio, ou seja, um instrumento de projeção de poder nas negociações
internacionais. Assim, segundo FLORES (2006, p.12), “a Argentina não
compartilha em igual intensidade o entusiasmo do governo brasileiro por
uma nova geografia comercial pautada na diversificação dos atores, com
ênfase no ‘sul econômico’”, porque seu potencial é restrito. Desta
forma, a união regional encontra-se fragilizada em virtude das
assimetrias, perspectivas e interesses distintos entre os parceiros do
MERCOSUL. Então, para FLORES (2006), o nacionalismo continua acima do
regionalismo e globalismo, dificultando a concretização de uma geografia
comercial mais atuante.
21A
preferência pelo aprofundamento das relações com os países vizinhos
sustentava-se no desejo de uma maior abertura das economias, mas os
resultados esbarraram nas assimetrias ente os Estados e em um modelo
voltado para as políticas industriais nacionais que direcionam os seus
compromissos para o mercado externo. “A ideia de criar uma economia
regional de escala nunca chegou a ser implementada devido a agentes
econômicos nacionais que colocaram obstáculos e ao caráter defensivo dos
processos de integração na região” (SARAIVA, 2010, p.6). Essas
resistências das “burguesias nacionais” tendem colocar em primeiro plano
os seus próprios interesses, o que impede qualquer tentativa de
formalização de um bloco sul-americano. Tais ações impõem desafios ao
Brasil que procura compatibilizar as suas aspirações universalistas e
protagonistas ao desejo de liderança regional (VIGEVANI, RAMANZINI
JUNIOR e CORREIA, 2008).
22A
tônica do governo Lula da Silva era revitalizar as relações de
cooperação com a América do Sul em virtude das debilidades estruturais
do MERCOSUL. As dificuldades de consolidar aliança estratégica com a
Argentina tornavam-se mais evidentes por parte da diplomacia brasileira.
Segundo RUSSELL e TOKATLIAN (2014), o governo de Néstor Kirchner
(2003-2007) procurou dar resposta ao poderio “sul-americano” do Brasil,
para isso adotou estratégias que pudessem contrabalançar o peso político
econômico do seu vizinho. A inquietação diante de uma eventual
hegemonia brasileira na região levou Buenos Aires acompanhar de maneira
relutante as pretensões geopolíticas de valorização da América do Sul
por Brasília. Dessa forma, como medidas de “proteção”, o governo
argentino buscou retomar a integração no patamar latino-americano ao
assinar acordos econômicos e comerciais com o México, na intenção de
aproximá-lo do MERCOSUL; via na construção do eixo Santiago-Buenos Aires
meio de limitar as aspirações do Brasil no Cone Sul e, apoiava a
inserção da Venezuela, de Hugo Chávez, no MERCOSUL como contraponto
regional alternativo as intenções do governo Lula. Na análise de
ALBUQUERQUE (2009-2010), as melhores chances para o Brasil exercer a sua
liderança tanto no nível regional quanto global era numa região de
equilíbrio convergente. Por isso, a intenção era pensar uma nova fase
que procurasse a aprofundar a integração com os países vizinhos e, a
partir daí, fazer com que a região passasse a ter um papel mais
relevante no cenário mundial.
23A
crença na organização do espaço sul-americano aos olhos de Brasília
passava por construir um cenário moldado pela interação entre o Estado e
o mercado. Dadas as condições estruturais, segundo CERVO (2008), a
estratégia do governo articulou elementos do liberalismo ao
desenvolvimentismo de modo que essa experiência permitisse o país agir
no cenário global não no papel de coadjuvante, mas de protagonista. A
introdução do paradigma logístico firmou-se em termos operacionais com
objetivo de elevar o patamar nacional ao nível das nações mais ricas.
Essa mescla, iniciada por FHC e consolidada na administração Lula
diferencia-se do paradigma
desenvolvimentista, com o qual pode conviver em certa dose, ao
transferir à sociedade as responsabilidades do estado empresário.
Diferencia-se do normal, consignando ao Estado não apenas a função de
prover a estabilidade econômica, mas a de secundar a sociedade na
realização de seus interesses. Limita a prevalência absoluta do Estado
que caracterizava o primeiro e elimina do segundo a crença
anticientífica no poder ilimitado do mercado de prover tudo o mais
(CERVO, 2008, p.86).
24O
paradigma logístico se apresentava como experiência brasileira e
latino-americana em que o Estado conduzia a política externa para
atender os “interesses nacionais”. No entanto, conforme assinala
POULANTZAS (1978), o Estado é arena de luta entre as classes dominantes,
portanto, a política externa traz no seu bojo os interesses das classes
ou frações hegemônicas no interior do bloco no poder, ou mesmo, de
alianças entre as classes. Assim, por intermédio de uma atuação mais
assertiva da diplomacia brasileira, os grandes empreendimentos de
empresas estatais e de alguns grupos nacionais privados tiveram seus
objetivos econômicos se expandindo sobre os países vizinhos e no
interior de nações extracontinentais (principalmente em países
africanos) por intermédio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
e Social (BNDES).
25Na
América do Sul, as empresas brasileiras adquiriram através das fusões e
incorporações várias empresas locais e/ou tiveram acesso a exploração de
recursos naturais na região. Esse movimento de “transbordamento” da
economia brasileira em direção aos países sul-americanos foi
impulsionado pela valorização das commodities e respaldado
pelos investimentos diretos brasileiros, capitaneados nas linhas de
crédito do BNDES a juros subsidiados. O objetivo do financiamento
promovido pelo BNDES visava aumentar mercados aos empreendimentos
brasileiros no exterior e produzir grandes saldos na balança comercial.
Assim, a internacionalização do Banco apoiada em políticas públicas
possibilitou que os interesses da burguesia interna se fizessem cada vez
mais presentes nos projetos de integração regional sul-americanos. Portanto,
a política externa do presidente Lula vinculada à dinâmica do plano
doméstico tornou-se um instrumento importante para a atuação
internacional dessa fração de classe. Outra medida importante adota pelo
governo brasileiro foi abrir em 2009, na cidade de Montevidéu, o
primeiro escritório do BNDES no exterior. A cidade uruguaia possui
localização estratégica por sua centralidade em negócios no MERCOSUL e
ser a Capital da ALADI (Associação Latino-Americana de Desenvolvimento e
Integração). O escritório visa funcionar como apoio aos projetos de
integração e de infraestrutura, a facilitação das atividades das
empresas brasileiras na região e a cooperação técnica.
26A
existência de conflitos entre as frações de classe que compõem a
burguesia interna no interior do bloco no poder, não impediu a
aglutinação dessas frações em defesa de interesses comuns nos planos
regional e mundial. A orientação da política externa brasileira nos
governos Lula estava associada às mudanças que ocorriam no ambiente
doméstico. Nesse sentido, a ascensão da grande burguesia interna
industrial e agrária influenciou a atuação internacional do Estado
brasileiro, definindo suas prioridades, estratégias e espaços de
acumulação de capital. Daí decorre um discurso presidencial mais afinado
junto os desejos da burguesia interna, a saber: i) o fortalecimento das
relações Sul-Sul contribui para a diversificação dos mercados e,
consequentemente, amplia as oportunidades de investimentos; ii) a
priorização da América do Sul como plataforma de expansão dos negócios
brasileiros interfere no ordenamento territorial vigente; iii) a
desenvoltura nas seguintes negociações: as multilaterais, tendo como
caso expressivo a atuação na Organização Mundial do Comércio (OMC), onde
o governo Lula procurava dar suporte aos grandes produtores agrícolas
ao se posicionar contrário aos subsídios e ao protecionismo dos países
mais ricos que prejudicavam a competitividade do agronegócio nacional;
as bilaterais, representadas pela negociação entre MERCOSUL-União
Europeia como contraponto as pressões norte-americanas em defesa de uma
integração hemisférica e as regionais, exemplificadas pelo arquivamento
da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), principalmente pela
medidas unilaterais estadunidenses e iv) o impulso à internacionalização
das empresas brasileiras em setores intensivos em recursos naturais e
no setor financeiro com a crescente expansão dos bancos (BOITO JUNIOR e
BERRINGER, 2013).
- 5 Aqui, podemos utilizar como caso emblemático dessa relação à contenda envolvendo Brasil e Equador e (...)
27Por
certo, iniciativas brasileiras deram densidade ao diálogo com os países
vizinhos no intuito de estruturar um novo arranjo regional que
promovesse à expansão das relações econômicas entre seus membros, a
propagação dos valores democráticos nacionais e o apoio automático as
aspirações globais do Brasil. Essas questões exigiram maior esforço do
país para ir além da mera integração comercial, possibilitando outras
formas de cooperação regional. Daí, a relevância da América do Sul “teve
menos a ver com novas ideias sobre governança coletiva ou sobre uma
suposta identidade regional comum do que com um cálculo instrumental
calcado em considerações de poder e autonomia” (SPEKTOR, 2010, p. 34).
Trata-se, portanto, da crescente presença brasileira na ingerência dos
assuntos sul-americanos, o que tem gerado desconfianças na redondeza
sobre as intenções das propostas do Brasil. Nas análises de SORJ e
FAUSTO (2011), esse temor dos vizinhos perpassa pelo enfrentamento da
aliança entre as empresas nacionais e o Estado brasileiro. A percepção
ganha efeito não somente em função da assimetria das economias, mas
principalmente na capacidade estatal do Brasil de responder aos
interesses da burguesia interna tanto no âmbito doméstico quanto no
interior dos países da região5.
28O
desafio do paradigma logístico consiste em reforçar o núcleo duro
nacional, torná-lo competitivo e alçá-lo ao nível comparativo das nações
mais ricas. Conquanto, cabe ao Estado empresário restringir a
vulnerabilidade externa por meio da canalização de recursos para
robustecer os empreendimentos públicos e, principalmente os privados,
estimulando-os a expansão global, a iniciar pela vizinhança. De acordo
com CERVO (2008), a conduta logística a partir do governo Lula modificou
as relações do Brasil com seus vizinhos através do aumento de suas
capacidades de poder. Segundo o autor, três requisitos podem ser
observados. Em primeiro lugar, o reconhecimento da interdependência real
da globalização supõe a incorporação das vantagens comparativas
intangíveis à administração das relações exteriores. Em segundo lugar,
ocorre a crença na integração regional como instrumento de acúmulo de
poder, tanto próprio quanto dos membros do bloco em construção. Em
terceiro lugar, o encaminhamento do processo de internacionalização da
economia nacional elenca a América do Sul em plataforma de expansão dos
negócios brasileiros.
29A
estratégia regional do Itamaraty e o ativismo do presidente Lula
conferiam densidade aos acordos sul-americanos. A iniciativa da
Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) representava
o avanço em direção à integração funcional dos territórios por meio da
construção da infraestrutura em transportes, energia e telecomunicações.
A idealização dos megaprojetos e as centenas de obras prometiam
redesenhar a Geografia da América do Sul, abrindo oportunidades às
empresas brasileiras, principalmente no momento em que a retomada da
política de desenvolvimento do BNDES atua na interface com as diretrizes
do paradigma logístico de incentivo ao empresariado. “Esse foi um
momento de grande êxito da logística internacional de Lula, em razão do
ritmo forte que ostenta e da segurança que a reverso imprime à economia
nacional” (CERVO, 2008, p.89). O entusiasmo pela intensificação das
relações Sul-Sul, apontava para uma maior articulação do país com a
América do Sul, já que o presidente defendia que o aumento da
complementaridade entre as economias poderia consolidar um
desenvolvimento da região. O discurso pautado numa política de
cooperação técnica e na instalação de uma infraestrutura mais moderna
permitiu o avanço das oportunidades de negócios para empresas
brasileiras como a Petrobrás, Banco do Brasil, Odebrecht, Camargo
Correa, Gerdau, Votorantim, Vale do Rio Doce, JBS, Companhia Siderúrgica
Nacional, entre outras.
30Em
suma, os efeitos das crises da década de 1990, a conjuntura
internacional balizada pela emergência de um eixo de desenvolvimento
constituído pelas “potências emergentes” (China, Índia, África do Sul e
Rússia) e as transformações regionais que redesenham a geopolítica
através da ascensão de governos de “ideologia desenvolvimentista”,
renovam as possibilidades de se constituir uma integração multinível.
Somados a isso, o crescimento econômico e a demanda por energia em
países como os Estados Unidos e a China, a partir de 2003, elevaram os
preços das commodities e a competitividade internacional. Por
ter enormes disponibilidades de recursos naturais, a América do Sul foi
elencada ao jogo geopolítico dos governos e dos atores transnacionais,
principalmente das “empresas transnacionais” (ETNs). Assim, a posição do
presidente Lula era aprofundar a política de desenvolvimento da
infraestrutura física regional esboçada pelo segundo mandato do governo
FHC, na primeira Cúpula de países sul-americanos em Brasília, em 2000,
que originou a criação da IIRSA. Posteriormente, houve o aumento dos
investimentos brasileiros diretos na região, o que tensionou as relações
entre sociedades, governos e empresas brasileiras devido ao
encaminhamento dos projetos direcionados a setores intensivos em
recursos naturais e de grandes impactos sociais e ambientais.
31A
visibilidade da diplomacia brasileira no plano sul-americano obteve
avanços, principalmente na esfera política e na segurança, embora os
resultados na área econômica ainda se mantêm limitados. Dessa forma, no
final de 2004, o Brasil procurou encaminhar ações mais concretas para a
criação da Comunidade Sul Americana de Nações (CASA), depois rebatizada
em 2007 de União de Nações Sul-Americanas (UNASUL), incluindo também o
Suriname e a Guiana. A UNASUL se constitui locus de diálogo
para tratar de temas político, da integração física do território, do
meio ambiente, da integração energética, dos mecanismos financeiros,
entre outros, demonstrando o seu interesse na cooperação técnica e
financeira.
32Segundo
SARAIVA (2010), a UNASUL se aproxima mais de um instrumento de
governança regional do que dos modelos clássicos de integração, já que
tem um caráter estritamente intergovernamental e de institucionalidade
limitada. Por isso ela pode acomodar diferentes iniciativas
sub-regionais como o MERCOSUL, a Comunidade Andina ou a Alternativa
Bolivariana das Américas (ALBA). Assim, para o Brasil, “ampliar a
institucionalidade do bloco por mecanismos supranacionais significaria
engessamentos e limitações advindas de uma governança regional que
poderiam limitar as pretensões internacionais do Brasil (DUPAS e
OLIVEIRA, 2008, p.241).
- 6 “A hipótese básica do regionalismo pós-liberal é que a liberalização dos fluxos de comércio e inves (...)
33O
interesse pelos processos de integração econômica é decorrente das
mudanças no Sistema Mundial que tem produzido uma variedade de acordos
regionais, sub-regionais e bilaterais, despertando em diferentes atores
oportunidades de inserção mais eficiente e ativa no comércio
internacional. Essas possibilidades de ampliação dos mercados, de acesso
as cadeias produtivas, da recepção de investimentos, da projeção de
liderança regional, mobilizaram os países sul-americanos a compor
diferentes arranjos cooperativos. Então, na década de 2000, a tendência
se traduziu em estratégias diversas. De um lado alguns países
(principalmente Chile, Peru e Colômbia) firmaram Tratados de Livre
Comércio (TLCs) com Estados Unidos e União Europeia para bens e
serviços, estabilidade de regras e proteção aos investimentos
estrangeiros. De outro, consolidou-se posições (Argentina, Brasil,
Venezuela, Bolívia e Equador) mais resistentes a abertura comercial
expressiva e a desconfiança em aderir a regras não estritamente voltadas
ao comércio nos acordos. Além disso, registram-se também, alguns países
que expropriaram ativos estrangeiros (Venezuela e Bolívia). Assim, as
divergências entre as estratégias nacionais ameaçam levar os projetos
integracionistas à crise. Isso ilustra as clivagens políticas que
impedem a decolagem do “regionalismo pós-liberal”6 e coloca em debate o papel que se poderia esperar do Brasil como vetor de integração regional (MOTTA VEIGA e RIOS, 2011).
- 7 “É importante lembrar que os Estados Unidos estavam empenhados em criar a ALCA nos mesmos moldes d (...)
34A
estratégia da política externa do governo Lula visava à busca pelo
desenvolvimento com autonomia, para isso tornava-se fundamental a
diversificação das parcerias econômicas na intenção de respaldar o
projeto por maior protagonismo no sistema internacional (VIGEVANI e
CEPALUNI, 2007). Portanto, as suas relações com o mundo estão ancoradas
no sucesso da liderança regional (ALBUQUERQUE, 2009-2010). O fato de
erigir a América do Sul na agenda brasileira perpassa pela expertise
diplomática de dar sentido geográfico e identitário a região. A tarefa
de criar consenso sobre a integração regional objetivava desviar a
atenção do cálculo de poder que estava embutido na reinvenção conceitual7. “Existia, então, a percepção de que a integração regional seria funcional para o Brasil desempenhar o papel de player
global, e o prognóstico de certa divisão de influência do espaço
geopolítico e econômico com os Estados Unidos” (SORJ e FAUSTO, 2011, p.
12).
- 8 O Brasil vem tendo divergências com os países vizinhos em virtude das formas de condução de suas em (...)
35Para
CAMPOS (2008), a América do Sul enfrenta três desafios para a
concretização de um projeto maior: a tendência à fragmentação regional; a
necessidade de conviver num clima de pluralismo ideológico; a
interpretação do tema das lideranças como uma fortaleza para a
coletividade. Tais desafios tende a exigir do Brasil maior flexibilidade
em suas decisões, já que se no meio internacional o país possui um
ativismo reconhecido, no contexto regional existe uma inconsistência de
sua posição e de sua atuação como líder. Mesmo que haja uma afinidade
ideológica entre os presidentes isso não significa aceitação automática
às posições do Brasil nos temas regionais e internacionais8.
“Para não perder apoio político doméstico, essas lideranças por vezes
exacerbam seus discursos e práticas de política externa. (...) a nova
onda sul-americana de líderes ‘esquerdistas’ (...) acaba por operar
contra essa tendência” (DUPAS e OLIVEIRA, 2008, p.239).
- 9 Na análise de SOARES DE LIMA (2013, p.197), geralmente a liderança é entendida por pesquisadores t (...)
36As
capacidades materiais e o peso político assimétricos do Brasil
comparados aos demais países sul-americanos não o credencia a uma
liderança9
inconteste. O país tem lidado com situações de conflitos na área
econômica envolvendo interesses do empresariado nacional e governos e
sociedades de países por onde se estendem o capitalismo brasileiro. O
quadro complexo impõe desafios de escolhas ao Brasil, ou seja, preferir
jogar na escala global ou ter influência política real na região. “Os
limites e possibilidades da atuação do Brasil como vetor de integração
regional requer a análise das condicionantes econômicas, das estratégias
de inserção internacional dos países sul-americanos e das prioridades
brasileiras em suas relações com a região e com o mundo” (MOTTA VEIGA e
RIOS, 2011, p.73). O dilema para o governo brasileiro, então, passaria
especialmente, “por optar pelo tipo de liderança mais compatível com
seus objetivos e, sobretudo, com seus recursos de poder” (ALBUQUERQUE,
2009-2010, p.17).
- 10 Carlos Mesa GISBERT (2011) interpreta a relação Brasil-Bolívia como preocupante devido à excessiva (...)
37No
entanto, a liderança brasileira tem enfrentado posicionamentos reativos
justamente na área eleita como prioritária. A América do Sul tem
reforçado seu caráter diverso e heterogêneo, principalmente no momento
em que os países procuram reorientar os interesses e objetivos no
relacionamento com o Brasil. Na análise de MOTTA VEIGA e RIOS (2011),
nos últimos anos, os países sul-americanos e os atores que intervém na
arena de política externa adotam preferências políticas e econômicas
distintas frente ao seu grande vizinho regional. No grupo dos países
revisionistas (Argentina, Bolívia, Equador e Venezuela), a política
externa foi conduzida muitas vezes pelas práticas da política doméstica,
assim as relações com o Brasil foram convergentes quando o conteúdo era
essencialmente político ou reticente aos mecanismos e regimes
internacionais de regulação. Entretanto, quando o assunto diz respeito à
esfera econômica bilateral, esses países fazem outra leitura do tipo
“Norte X Sul”, comportando-se como “países do Sul” diante da potência
“imperialista”10.
No tocante ao grupo de países (Chile, Colômbia e Peru) que seguiu com
mais afinco as diretrizes neoliberais da década de 1990, o mesmo adota
posturas menos entusiasmadas em relação às iniciativas políticas
regionais de Brasília. A intenção dos governos e empresários daqueles
países é melhorar a participação de seus produtos no mercado brasileiro e
atrair investimentos de empresas do Brasil, o que reforçaria a sua
posição de apoio a um projeto liberalizante regional. Finalmente,
Uruguai e Paraguai, apesar de terem fortes relações econômicas dentro do
MERCOSUL se sentem negligenciados por Brasil e Argentina. Dessa forma,
aqueles países têm acenado para propostas que os aproximam das agendas
de Peru e Colômbia. Neste cenário, onde as estratégias nacionais são
cada vez mais divergentes, os autores citados apontam que os esforços
políticos realizados no âmbito da UNASUL tampouco conseguiram superar os
obstáculos impostos pelo nacionalismo econômico e o predomínio das
agendas domésticas sobre a regional. Dessa forma, o projeto de
integração sul-americana parece cada vez mais confinado à retórica.
38Embora
a importância do Brasil na agenda externa dos países do entorno parece
ter crescido, ainda permanecem em aberto questões-chave sobre a
percepção dos vizinhos acerca da liderança regional brasileira. Por
conseguinte, o governo brasileiro enfrenta desafios quanto às
expectativas dessas nações em relação ao peso do país na América do Sul.
SOARES DE LIMA e HIRST (2009, p. 16-17) assinala tal dilema: “(...) o
tamanho econômico do país é quase a metade de toda a região respectiva, o
que acirra o temor de pretensões hegemônicas e, simultaneamente, fortes
expectativas de cooperação e de tratamento diferenciado”. Essas visões
reacendem os questionamentos sobre a capacidade e o interesse de
Brasília em conduzir o ativismo regional.
39Na
análise de SPEKTOR (2010), a ausência no Brasil de um consenso que apóie
uma política mais articulada aos anseios da região, favoreceu uma baixa
expectativa na vizinhança sobre os compromissos ou preocupações
brasileiras voltadas para o projeto regional. Assim, como aplacar as
desconfianças mútuas, se a “potência regional” parece conduzir a
política externa em baixo perfil?
O movimento em direção à região
convive com uma política externa que enfatiza soluções nacionais mesmo
quando os problemas são compartilhados, busca o desenvolvimento
econômico interno, mantêm firmes suspeitas sobre as intenções dos
vizinhos, é cautelosa e avessa ao risco. Na vizinhança, a percepção
dominante em relação ao Brasil é a de que o país, apesar de ser o
principal centro de poder regional, não traduz essa ascendência em
liderança amigável. Segundo essa visão, não é fácil seguir o Brasil a
reboque. Mesmo que os vizinhos não temam uma suposta dominação
brasileira nem tenham uma visão negativa das intenções do Brasil, eles
sentem que o país não responde eficazmente à vasta assimetria de poder
que marca a região. Paraguai, Uruguai, Bolívia e Argentina sentem-se
comumente negligenciados pelo Brasil. Assim, apesar do peso relativo do
Brasil, nas praças diplomáticas sul-americanas, não é óbvio que Brasília
seja capaz ou tenha interesse em catalisar o ordenamento regional
(SPEKTOR, 2010, p.29).
40De
acordo com SOARES DE LIMA (2013) existe ambiguidade entre analistas e
lideranças políticas dos países vizinhos sobre essa questão. No mesmo
instante em que temem a hegemonia brasileira, principalmente diante do
peso econômico do país na América do Sul, setores políticos e acadêmicos
criticam o pouco envolvimento do Brasil com a região e/ou desejam que o
país assuma o seu papel de paymaster, ou seja, Brasília
absorva os custos da integração através de maiores concessões na
produção de bens coletivos regionais. No entanto, segundo BUENO (2010), o
exercício da hegemonia ou mesmo liderança impõe elevados custos
econômicos e financeiros para efetivação de projetos que unam a região
em um destino comum e, a aceitação da liderança significa participar do
futuro do líder. Porém, auxílios pontuais realizados pelo hegemon
como forma de solidarizar-se com os objetivos de desenvolvimento das
nações do seu entorno são insuficientes para superar resistências e
desconfianças. E o Brasil tem graves problemas sociais que ofuscam o
poder de atração e de referência para as sociedades locais. Além disso,
não existe um consenso entre os brasileiros sobre que prioridades devem
ser atribuídas à inserção do Brasil na América do Sul e, muito menos, a
percepção das vantagens em tal liderança.
- 11 “De fato, o Brasil tem sido um ator de veto nas questões financeiras, tomando-se como evidência as (...)
41Na
abordagem de SPEKTOR (2010), o Brasil tende atuar de maneira seletiva,
voltado preferencialmente para o “interesse nacional” em vez de promover
um amplo projeto que atenda as necessidades regionais. Para o autor,
embora o país tenha institucionalizado diálogos em questões econômicas e
de segurança e apoiado iniciativas de integração, o Brasil hesita em
patrocinar instituições e normas regionais profundas que limitem sua
autonomia face aos vizinhos. No mesmo contexto, a redondeza tampouco
percebe na atitude do Brasil o desejo de desenvolver um projeto
coletivo, principalmente quando o país exercita sua liderança ao acionar
o poder de veto11
sobre iniciativas que prejudicam os interesses das empresas públicas e
privadas brasileiras. Porém, segundo SOARES DE LIMA (2013), já em outras
questões, o Brasil exerceu a liderança cooperativa. Isso poderia ser
exemplificado pela criação do Fundo de Convergência Estrutural do
MERCOSUL (FOCEM), a resposta conciliadora à nacionalização dos
hidrocarbonetos pela Bolívia em 2006 e a renegociação com o Paraguai do
acordo de Itaipu em 2009. Contudo, tal interpretação não encontrou
consenso na literatura especializada que viu nessas atitudes brasileiras
gestos de “generosidade”, “ingenuidade”, “indulgência” e
“partidarização” (ALMEIDA: 2010; BUENO: 2010; BODINIER: 2014, entre
outros).
- 12 Segundo HURREL (2009), tal estratégia representa o ato de se aliar ao país ou coalizão mais forte. (...)
42Por
outro lado, há uma preocupação acerca do grau de importância da
integração regional na agenda da política externa brasileira,
principalmente no momento em que o Brasil diversifica o seu horizonte
geográfico. “O país não assume a posição de principal agente da ordem
regional e hesita diante de situações onde é forçado a se impor. (...),
especialmente quando isto significa pressionar vizinhos menores a
respeitar o número crescente de regras formais que estrutura a
vizinhança” (SPEKTOR, 2010, p.26). Assim, o ativismo regional brasileiro
assume um caráter oscilante, ou seja, suas ações pontuais ora convergem
a favor dos anseios de desenvolvimento dos países sul-americanos ora
reacendem o temor das pretensões “imperialistas” de Brasília. Portanto,
“a idéia de que o peso relativo do Brasil atrai (e não afasta) os
vizinhos é relativamente nova e revela uma interpretação sobre o
funcionamento do poder na região que valoriza uma dinâmica que a
literatura especializada denomina bandwagoning”12
(SPEKTOR, 2010, p.37). No entanto, essa concepção do Brasil como
“locomotiva” do processo integracionista esbarra tanto nas percepções
divergentes da sociedade brasileira acerca da estrutura de governança
regional quanto na aceitação dos demais governos do papel exercido pelo
Brasil.
43De
fato, o governo brasileiro adensou o seu envolvimento em negociações
multitemáticas no intuito de ressaltar a relevância do país nos foros
globais. A estratégia do presidente Lula visava melhorar as capacidades
de poder do Brasil articulando as ações políticas em diferentes escalas.
Entretanto, a diplomacia do mandatário foi criticada por querer adotar
as mesmas prerrogativas tanto para o plano regional quanto para o plano
internacional, vistas como inconcebíveis por alguns autores
(ALBUQUERQUE, 2009-2010; ALMEIDA, 2010; BUENO, 2010). Portanto, a
condução da política externa no âmbito das relações global-regional nem
sempre eram convergentes, pois a demasiada atenção as questões tratadas
em várias arenas multilaterais ameaçava reduzir gradualmente a
importância da América do Sul na agenda brasileira. Se isso ocorreu de
fato, corroborou “com a posição de paciência estratégica e de
complacência diante da paralisia da agenda econômica de cooperação e
integração que caracterizou o governo Lula” (MOTTA VEIGA e RIOS, 2011,
p.86-87).
44A
América do Sul, ao longo da década de 2000, passou a conviver com
inúmeras iniciativas integracionistas promovidas pelo Brasil com intuito
de mobilizar recursos para a concretização de uma governança regional.
No entanto, o governo brasileiro não mostrou capacidade e/ou a vontade
política de conduzir o regionalismo em alto perfil, com ações
compartilhadas que enfrentassem os desafios comuns, como por exemplo, o
combate ao tráfico de drogas; a expansão dos fluxos migratórios; a
cooperação e integração de assuntos referentes à energia, ao meio
ambiente, aos direitos humanos, entre outros. Também as relações
intrarregionais esbarraram nas orientações político-ideológicas dos
governos locais, nas assimetrias de suas economias e nas diferentes
percepções dos países sobre inserção internacional. Assim, múltiplos
arranjos e baixa unidade na discussão de temas comuns possibilitaram que
potências extrarregionais e demais atores não-estatais ocupassem
espaços no interior da região e projetassem seus interesses em busca de
recursos naturais, de mercados e do aumento de poder nas escalas
regional e mundial. Em razão disso, tomou impulso às relações
triangulares Estados Unidos-Brasil-China que têm se constituído o vetor
de desafio a liderança brasileira e aos processos de integração
sul-americana.
45Na
avaliação de PECEQUILO (2013), podemos dividir cronologicamente as
interações entre as três potências em dois momentos. Primeiro, o período
referenciado a partir de 2000 até 2008, marcado pelo predomínio das
ações Brasil-China e o segundo pela ofensiva norte-americana após a
crise financeira de 2008, correspondendo o último ano do governo George
W. Bush e a gestão de Barack Obama. Nesse contexto, ocorreu o
encolhimento relativo brasileiro e a ascensão do país asiático. Quanto à
relação Brasil-China, o governo de Benjing pautado numa política
desenvolvimentista e “pacifista” nas relações internacionais,
intensificou o diálogo com o eixo Sul-Sul. A intenção chinesa visava
fortalecer a sua posição autônoma através de medidas que reduzissem as
vulnerabilidades político-econômico-estratégicas frente aos Estados
Unidos. Para isso, o governo pôs em prática a estratégia chamada de “going global”,
isto é, uma forma de apoio financeiro e logístico, dentre outras formas
de ajuda, com o objetivo de incentivar as empresas chinesas a
investirem no exterior. Assim, o poder público definia os setores que
eram considerados essenciais para manutenção do crescimento, da
modernização da economia e da estabilização social interna da China. Na
América do Sul, o governo de Beijing assinou acordos comerciais com
países da região cujo objetivo era torná-los consumidores de produtos
manufaturados e fornecedores de matérias-primas e insumos energéticos.
Além disso, procurava enfraquecer a proximidade de Taiwan com governos
locais, evitando possíveis apoios futuros à declaração de independência
taiwanesa.
46Segundo
os estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) (2010),
entre 2003 e 2008 o comércio chinês na região cresceu 700% no valor
bruto enquanto, no mesmo período, as exportações brasileiras aumentaram
282,8%. Em muitos mercados (Peru e Chile), a China já se tornou o
principal destino das exportações, em outros, como o argentino e o
venezuelano, o país asiático ameaça superar o Brasil na função de
principal parceiro comercial. Os investimentos chineses na América do
Sul vão principalmente para setores de recursos naturais como cobre,
soja, minério de ferro e petróleo. Entretanto, para viabilizar o acesso a
esses produtos e exportá-los, a China também canaliza recursos em
direção a infraestrutura dos países (ferrovias, portos, rodovias,
hidrelétricas, dentre outros). Na região é crescente a presença de
empresas chinesas que injetaram bilhões de dólares tanto na compra de
empresas locais quanto na formação de joint ventures com empresários sul-americanos.
47A
possibilidade de fazer negócios com os investidores estrangeiros tem
levado os Chefes de Estado a adotar esforços mais contundentes para a
concretização de acordos voltados para o potencial regional. Essas
“vantagens comparativas” têm atraído a atenção de empresas e governos na
exploração dos recursos naturais. É o que ressalta a reportagem de
COSTA (2008, p.45) sobre os interesses diversificados dos chineses junto
aos países:
[...]Chávez assinou em Pequim
acordos para ampliar a exportação de petróleo de 364 mil para 500 mil
barris/dia (esperando chegar em 2012 a 1 milhão , 38% da atual produção
venezuelana), construir uma nova refinaria de 300 mil barris/dia na
Venezuela , três refinarias para petróleo venezuelano em Cantão e elevar
de 6 bilhões para 12 bilhões o fundo de investimento conjunto dos dois
países, a ser usado em infra-estrutura e projetos petrolíferos na
Venezuela, ocupando o espaço abandonado pelas transnacionais
anglo-americanas.
A China já compra mais de metade
da soja e 30% do minério de ferro exportados pelo Brasil, 70% da soja
em grãos e um terço do óleo da Argentina e 20% do cobre do Chile. Tem
projetos conjuntos com a Petrobras (petroquímica, tecnologia e
exploração de águas profundas) e a Vale (CSV Baosteel, no Espírito
Santo), investe 5 bilhões de dólares no setor petrolífero argentino, tem
projetos de minério de ferro e gás na Bolívia, participa de empresas
petrolíferas no Peru e Colômbia, vende armas para Cuba e se aproxima do
Paraguai.
48Nesse
cenário de adensamento das relações econômicas sino-sul-americanas, a
emergência chinesa ameaça redesenhar a geografia comercial do
subcontinente, impactando os interesses das demais potências na região. A
China em sua trajetória de projeção de poder em escala regional pôs em
prática a tática de se tornar o parceiro central de cada país. Para
isso, procura diminuir a influência dos demais poderes, em particular o
Brasil e os Estados Unidos, privilegiando as relações econômicas como
estratégia de aproximação junto aos Estados sul-americanos (PECEQUILO,
2013). O predomínio do capital chinês já é perceptível em determinados
setores dos países, conforme os estudos do IPEA (2010). No Uruguai,
produzem automóveis; no Peru e Venezuela, financiam obras de
infraestrutura; no Chile, fomentam a pesca; na Colômbia, pretendem se
associar na construção de um oleoduto de grandes proporções. Conquanto, o
principal interesse dos chineses na América do Sul está associado aos
recursos naturais e minerais, por isso a presença crescente nas
licitações dos governos locais tem objetivo de dominar setores
estratégicos e tornar-se um contraponto aos capitais norte-americanos e
brasileiros. Entretanto, o governo de Beijing procura ampliar sua
influência na região ao reafirmar repetidamente que a intenção chinesa é
contribuir para estabilidade e prosperidade, portanto, não dá sinais de
envolvimento em questões geopolíticas sul-americanas nas próximas
décadas, confirmando a posição “pacifista” fora da Ásia-Pacífico.
49A
intensificação das relações sino-brasileiras não se limitou ao
intercâmbio comercial e tecnológico, mas objetivava construir uma agenda
comum que pudesse mitigar o peso político-econômico-militar dos Estados
Unidos no cenário internacional. Assim, os governos de Brasília e de
Beijing privilegiaram as ações bilaterais e multilaterais na intenção de
solidificar parcerias em temas estratégicos e consolidar o eixo Sul-Sul
como polo de poder alternativo a potência hegemônica. De acordo com
CERVO (2008), as relações Brasil e China devem ser compreendidas a luz
do que ele chamou de “parceria ascendente”, ou seja, ela foi construída à
base de vontade nacional, potencial similar e nível emparelhado de
desenvolvimento alcançado. Por conseguinte, essa afinidade impulsionaria
futuramente novas oportunidades que impactariam a economia brasileira e
deixariam um legado tão relevante quanto à parceria constituída entre
Brasil e Estados Unidos.
50Embora
esse eixo sino-brasileiro, por um lado, tenha trazido benefícios ao
Brasil devido aos recursos direcionados ao agronegócio, a ampliação da
infraestrutura, a instalação de montadoras de automóveis, a compra de
papeis de empresas brasileiras como a Vale e a Petrobras, ou seja,
colocado a relação dos dois no plano de prioridades e elevado a China ao
patamar de principal parceiro comercial do Brasil, por outro, veio
acompanhado de possíveis efeitos negativos de longo prazo, não só pela
ameaça à especialização regressiva da pauta exportadora e da estrutura
da indústria nacional, mas também, pela posição que os chineses assumem
na percepção dos países sul-americanos, isto é, uma opção a assimetria
geoeconômica e geopolítica entre o Brasil e a região.
51A
crise financeira de 2008 que assolou a economia norte-americana e
contaminou muitos países europeus, levou os Estados Unidos a darem maior
atenção a América Latina, principalmente a partir do governo de Barack
Obama, embora esse mandatário continuasse a política externa de George
W. Bush. A intenção do presidente Obama era tornar a região válvula de
escape tanto às tensões econômicas quanto passível a introdução de
medidas ordenadoras de segurança. Isso coincidiu com o momento da
expansão chinesa e da projeção brasileira na América do Sul. Assim, a
política de reafirmação da supremacia norte-americana não emergiu de
“uma política construtiva para o continente ou que vise o aprofundamento
da colaboração, mas sim de uma necessidade de preservar a zona de
influência hemisférica e conter o avanço dos novos polos de poder nesta
região e em escala mundial” (PECEQUILO, 2013, p.112). A política
norte-americana visava transformar o mundo em campo de operações
militares, no intuito de combater o terrorismo visto como uma ameaça de
caráter global. Nesse cenário de instabilidade permanente, Washington
põe em prática o modelo de reequilíbrio estratégico em diversas regiões,
articulando os seus interesses econômicos à temática da segurança. Na
América do Sul, o objetivo está balizado na renovação e ampliação das
alianças no subcontinente como meio de conter a expansão das economias
da China e do Brasil, já que essas potências através de suas empresas
intensificariam a corrida pelos recursos naturais.
52De
acordo com BATTAGLINO (2009), o projeto hegemônico de Washington
estruturou-se na projeção do poderio militar. No âmbito regional, as
disputas pelos recursos naturais, principalmente os energéticos, e a
deterioração da democracia foram combustíveis para que os Estados Unidos
reativassem a IV Frota, fortalecessem o Comando Militar do Sul (USSOUTHCOM) e criassem o Comando militar da África (USAFRICOM).
O discurso de Washington estava pautado na construção de coalizões com
países sul-americanos na intenção de dissuadir possíveis agressões aos
mesmos. Porém, havia fortes desconfianças entre os Estados da região
quanto às reais intenções estadunidenses. O presidente Lula da Silva
cogitou que tais medidas estariam relacionadas à descoberta de petróleo
no litoral brasileiro. Por conseguinte, para os Estados Unidos, o
Atlântico Sul tornou-se geoestratégico “devido à crescente presença
brasileira, chinesa e indiana neste espaço, destacando-se sua relevância
como zona de passagem e de produção de recursos energéticos (pré-sal,
acesso a petróleo e gás) e de commodities” (PECEQUILO, 2013, p.112).
- 13 Segundo CECEÑA (2008, p.22), as bases norte-americanas se multiplicaram dentro da Colômbia e foram (...)
53Nesse
jogo de forças, os Estados Unidos reconfiguraram suas políticas e sua
rede de posições militares de forma que lhe garanta responder de maneira
preventiva qualquer tipo de ameaça. Para tanto, Washington desenvolveu
um poderio tecnológico que dá ao país o controle concentrado de diversas
regiões consideradas prioritárias tanto pela disponibilidade de
recursos estratégicos quanto por necessitarem de atenção devido à
presença de governos refratários as práticas norte-americanas (CECEÑA,
2008). Assim, ao voltar seus interesses em direção a América Latina, o
governo estadunidense procura assegurar de maneira irrestrita o acesso
aos territórios, utilizando-se do discurso de combate ao narcotráfico e
das guerrilhas esquerdistas como as FARC-EP (Forças Armadas
Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo) e o ELN (Exército de
Libertação Nacional). Nesse sentido, a intenção perpassa pelo apoio
orçamentário do Legislativo do país e da permissão de governos para que
os Estados Unidos instalem/ampliem bases militares na região, as quais
podem ser exemplificadas por aquelas materializadas no Plano Colômbia13.
Portanto, a condução da política externa norte-americana para a América
Latina pode ser compreendida a luz da influência dos códigos
geopolíticos. De acordo com PINA (2007, p.102), a política externa de um
Estado é moldada a partir de um código geopolítico em vigor, isto é,
“um código é definido por diversas idéias conjugadas que explicam as
intencionalidades de um Estado em relação a outros Estados, e ainda
definem que tipo de conduta deve-se realizar para responder aos riscos
que existem (ou são inventados) externamente”.
- 14 De acordo com PADULA (2013, p.7-8), “a Aliança do Pacífico, firmada em 06 de junho de 2012, também (...)
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escalada militar introduzida nas relações intrarregionais pelo governo
norte-americano não foi o único desafio aos processos de integração
sul-americana. O fracasso da concretização da ALCA levou Washington a
desenvolver acordos bilaterais, os chamados TLC´s com países da região.
Utilizando-se da assimetria econômica, os Estados Unidos procuraram
alcançar maiores vantagens em assuntos como acesso a compras
governamentais, investimentos e serviços financeiros, direitos de
propriedade intelectual, e também acordos militares. Certamente, a
intenção era contornar limitações impostas pela resistência do eixo
Brasil-Argentina-Venezuela a proposta da Casa Branca, e apoiar novos
projetos enquadrados na concepção do regionalismo aberto. Todavia, a
recente formação da Aliança do Pacífico14
(México, Chile, Colômbia e Peru, dentre outros) que tem 209 milhões de
habitantes e somatório do PIB de US$ 2 trilhões contra 279 milhões de
habitantes e PIB de US$ 3,3 trilhões referentes ao MERCOSUL, acrescentou
mais diversidade ao espaço regional ao ser visto como contraponto ao
regionalismo pós-liberal.
55Tais
países da Aliança já possuem vínculos com os Estados Unidos e a
constituição dessa proposta instala uma possível competição entre dois
modelos. SOARES DE LIMA (2013, p.186), ressalta que esse projeto dá mais
visibilidade ao grupo de países que “enfatizam as soluções de mercado, a
liberalização comercial e a integração às cadeias produtivas globais,
com políticas externas mais convergentes com os Estados Unidos e
favoráveis ao status quo da governança global”. Essa percepção
põe em xeque a proposta denominada pós-liberal encaminhada por
iniciativas bastante heterogêneas como a CASA, a UNASUL e a ALBA. Esse
regionalismo pós-neoliberal procura reduzir o peso dado à dimensão
comercial e ressaltar outras temáticas na agenda, principalmente aquelas
que resgatam o desenvolvimento e/ou a equidade, segundo a anuência da
administração estatal.
56Neste
contexto, as iniciativas de integração propostas nas décadas de 1990 e
de 2000 perderam fôlego e estão fragilizadas diante das expectativas de
países da América do Sul em busca de inserção nos mercados globais.
Assim, a possibilidade de articular a região sul-americana à
dinamicidade das economias asiáticas tem ameaçado produzir clivagens no
subcontinente entre posições liberais e nacionalistas, o que
favoreceriam, sobretudo, a influência política e econômica de potências
extrarregionais e de suas grandes corporações transnacionais no
subcontinente. Desse modo, a Aliança do Pacífico serviria como um
instrumento para a projeção de poder norte-americano no intuito de frear
a ascensão chinesa na América do Sul e possivelmente na Bacia do
Pacífico - instituindo outra ordem geoeconômica no Arco do Pacífico. Por
conseguinte, o apoio a um projeto de integração regional neoliberal
esvaziaria a importância das iniciativas regionais lideradas pelo
Brasil, principalmente o MERCOSUL e a UNASUL, e manteria a fragmentação
regional (PADULA, 2013).
57Ao
analisarmos a relevância da escala internacional nas gestões do governo
Lula da Silva, observamos que o objetivo era diversificar o vetor de
atuação do país no cenário global e consolidar a liderança regional,
para isso era fundamental elevar a política externa à categoria dos
temas prioritários na agenda brasileira. Assim, houve o
redimensionamento do status quo do Ministério das Relações
Exteriores e a ingerência da diplomacia presidencial nos assuntos
internacionais. Em termos gerais, ocorreu uma mudança de percepção sobre
a capacidade de atuação do país nos assuntos externos por meio de
postura mais autônoma e pela diversificação das parcerias estratégicas,
principalmente sustentadas no diálogo horizontal Sul-Sul. Nesse
contexto, a orientação da política externa do governo Lula estava
voltada para a promoção de oportunidades para o capital doméstico.
Então, a postura governista era enfatizar a cooperação com os países da
América do Sul como plataforma de expansão dos negócios brasileiros.
Dessa forma, a integração tornou-se tema recorrente no Itamaraty e no
ativismo do presidente Lula que conferiram densidade aos acordos
regionais.
58Embora
a América do Sul ocupe posição prioritária na agenda brasileira,
assistimos atualmente a inflexão de alguns países em direção a outras
potências e regiões. O adensamento das relações intrarregionais visíveis
na década de 1990 e início dos anos 2000 acentuou as assimetrias
econômicas com vantagens expressivas ao Brasil. Certamente, a região
possui relevância na pauta de exportação brasileira, principalmente de
manufaturas, mas, também, é o principal destino de investimentos de
empresas nacionais, além dos vários projetos de cooperação em diversas
temáticas. O potencial mercado brasileiro poderia representar
oportunidades aos países vizinhos e criar interdependências, afastando a
ingerência de potências externas em assuntos regionais e as propostas
cunhadas no regionalismo aberto. No entanto, a busca do governo Lula da
Silva de circunscrever o país na esfera internacional relativizou a
importância do subcontinente na política externa brasileira. Essa
atenção vacilante em relação ao seu “entorno geográfico imediato” tem
permitido que potências extrarregionais aumentem o seu peso na América
do Sul e desloque a liderança brasileira para a retórica. Somados a
isso, a relação entre Brasil e países sul-americanos enfrenta desafios
tanto em virtude das iniciativas integracionistas que ameaçam não
“decolar” quanto no aprofundamento dos focos de tensão política nos
territórios dos países vizinhos, já que os crescentes investimentos de
empresas brasileiras, financiadas pelo BNDES, em setores de energia e
recursos naturais têm causado impactos sociais e ambientais nos países
onde estão disseminadas.