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Dossiê “Geografia Histórica em questão”

Geografia Histórica

Considerações metodológicas
Geografía Histórica: Consideraciones metodológicas
Historical Geography: Methodological considerations
Géographie Historique: Considérations méthodologiques
Paulo Godoy

Resumos

A discussão sobre o método e as concepções em torno da geografia e da história serão apresentadas a partir da perspectiva marxiana da resolução metodológica. Dadas as referências teóricas e bibliográficas relativas ao tema, os seguintes pontos serão abordados: fundamentação ontoprática do conhecimento; a determinação social do pensamento e a presença histórica do objeto; a teoria das abstrações racionais e o complexo da lógica de concreção. E, finalmente, a exposição e o desenvolvimento categorial.

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Introdução

1Em leitura mais atenta sobre publicações recentes que tratam da geografia histórica, particularmente no Brasil, nota-se, numa primeira aproximação, a imensa variedade de interpretações que procuram dilucidar um determinado campo de pesquisa e seu possível objeto de estudo. Há, também, uma série de indagações a respeito de sua especificidade e das metodologias que as acompanham, bem como de seus critérios de periodização e concepções de tempo e espaço. O que se percebe, portanto, é um leque temático tão expressivo e variado que, além do risco de tornar-se apenas um rótulo de pesquisa, a geografia histórica pode se converter em uma arena polifônica cujas notas soam como o canto da sereia do chamado ecletismo metodológico.

2O que há de comum nesta geléia temática e metodológica? O estudo do passado do território “e/ou” do espaço. Mas, o que é o passado? A geografia histórica não responde, apenas recorta fatos, dados e mapas como forma de modelar empiricamente o tempo em sua fenomênica expressão espacial. Em concepção inteiramente distinta, e sob a perspectiva benjaminiana, o passado é a rememoração da tradição dos oprimidos, é um passado reaberto que cumpre uma função política e revolucionária. Porém, reabrir o passado significa, para Walter Benjamin, interpretá-lo a contrapelo, elucidando o amontoado de escombros sobre escombros da dominação histórica dos vencedores e, ao mesmo tempo, a luta de resistência ao progresso da catástrofe e da barbárie. Na interpretação Fabio M. Querido (2012: 115), “o reconhecimento do amontoado de ruínas que espanta o anjo da história é, por isso, momento fundamental da formulação estratégica das lutas das classes subalterna no presente”.

3Na geografia histórica, tudo indica que o substantivo histórico e sua transitividade adverbial se apresentam como um sinal que necessariamente remete ao passado. Mas, como dizem os pós-modernos, a noção de passado mudou e se dissolveu com a aceleração tecnológica do tempo e a supressão do sujeito, esse processo deu-se com tal violência e astúcia que, a partir de agora, a história corre como uma louca atrás de nós, quase que lambendo o calcanhar e fazendo com que o presente seja apenas um instante, mas, de fato, ele não passa de uma ilusão.

4De toda maneira, concebe-se que a geografia histórica constituiu um campo de análise do espaço sob o mirante da perspectiva histórica de seu processo de formação social. Assim sendo, qual seria a especificidade desses meandros de investigação que pressupõe um determinado método de análise de processos históricos de formação territorial ou, ainda, da espacialidade das relações sociais em temporalidades pretéritas? Há, neste caso, um procedimento metodológico que difere daqueles utilizados em outros campos de investigação da geografia humana? A conformação de uma abordagem histórica da espacialidade social confere, nesse sentido, o “estatuto” de geografia histórica e, portanto, de um campo específico de indagação teórica? Ou, em último caso, as indagações postas não fazem qualquer sentido, quando o que se deseja é exatamente um manual de cunho gnosiológico que oriente o sujeito cognitivo na arrumação objetiva de sua subjetividade no decorrer do desenvolvimento da pesquisa?

5O debate sobre o método nas ciências humanas e, particularmente, na Geografia, deve considerar alguns pontos que, na concepção aqui defendida, são fundamentais para o aprofundamento teórico acerca de especificidade do tema em pauta. A apresentação desses pontos segue a partir de notas recolhidas em quatro autores, a saber: José Chasin (2009), com a obra Marx: o estatuto ontológico e Resolução Metodológica; Jesus Ranieri (2011) em Trabalho e Dialética; e Helmut Reichelt (2013-2011) com a obra Sobre a Estrutura Lógica do Conceito de Capital em Karl Marx e o artigo intitulado Que método Marx ocultou? E, finalmente, as contribuições de Michel Heinrich (2014) no artigo Os invasores de Marx: sobre os usos da teoria marxista e as dificuldades de uma leitura contemporânea.

6O primeiro ponto refere-se à fundamentação ontoprática do conhecimento; o segundo, diz respeito à determinação social do pensamento e a presença histórica do objeto; o terceiro ponto é o que podemos chamar, com base em Lukács, de a teoria das abstrações racionais e o complexo da lógica de concreção. E, finalmente, a exposição e o desenvolvimento categorial. O objetivo mais geral é dado pela exposição, como diz a Profa. Odete Carvalho de Lima Seabra, da lógica das formas em relação à dialética dos conteúdos (2004).

Nota 1: A fundamentação ontoprática do conhecimento, determinação social do pensamento e a presença histórica do objeto

7“A fundamentação ontoprática do conhecimento, pela autogênese do homem e o correlativo engendramento de sua própria mundaneidade, remete, de saída, à determinação social do pensamento, [ou seja], a sociabilidade como condição de possibilidade do pensamento” (Chasin, 2009: 105). A teoria marxiana procura elucidar o complexo do pensamento unificando sujeito-objeto, isto é, a determinação social do pensamento e o processo de formação histórica do objeto. Ou melhor, considera

a atividade da consciência no interior da malha real em que ela se manifesta e produz [...]. Qualquer variante de razão autossustentada ou pura, não contaminada materialmente, cede lugar à altitude maior da razão interessada, atributo do homem ativo que confirma seu ser pela objetivação, a cujo processo sensível aquela está integrada de modo decisivo e indissolúvel, motivo bastante para que seja afirmada a validade e a relevância de sua investigação e esclarecimento. Ocorre, portanto, no tratamento marxiano da questão do saber, um deslocamento corretivo, que vai da rarefação das formas gnosiológicas de abordagem para a encorpada analítica da determinação social do pensamento e da entificação do objeto, ou seja, o problema é transmutado em circunscrição peculiar no universo de investigação concreta do complexo humano-societário global, delimitada e operacionalizada sobre os esteios da nova ontologia histórico-imanente constituída em fundamento. (Chasin, 2009: 120)

  • 1 As passagens de textos em itálico são todas referentes às obras de K. Marx, apresentadas na bibliog (...)

8Em relação à crítica da Economia Política, Marx escreve, em Miséria da Filosofia (primeira edição: 1847), que: À medida que é burguesa, ou seja, ao invés de compreender a ordem capitalista como um estágio historicamente transitório de evolução, a encara como a configuração última e absoluta da produção social, a economia política só pode permanecer como ciência enquanto a luta de classes permanecer latente ou só se manifestar em episódios isolados.1

9Quadro esse que se esgota quando o processo de instauração e dominação do capital é completado, explicitando as entificações e os contrastes engendrados por ele mesmo: A burguesia tinha conquistado poder político na França e Inglaterra. A partir de então, a luta de classes assumiu, na teoria e na prática, formas cada vez mais explícitas e ameaçadoras. Ela fez soar o sino fúnebre da economia científica burguesa (...) No lugar da pesquisa desinteressada entrou a espadacharia mercenária, no lugar da pesquisa científica (...) a má intenção da apologética.

10Neste caso, a teoria investe como fundamento último de seus pressupostos, a dimensão da práxis social em sua totalidade. Pode-se afirmar que obra de Marx é não somente uma crítica radical à teoria burguesa e a sociedade capitalista, mas, sobretudo, uma obra teórica revolucionária. Os ambiciosos objetivos a que Marx se propôs em suas pesquisas, levantou sérios problemas quanto ao método, daí a natureza complexa e nebulosa dessa questão em toda a sua obra.

A teoria das abstrações e a lógica da concreção

11As abstrações entendidas por Marx são representações gerais derivadas do mundo social.

Apropriações mentais, as abstrações ontológicas são determinações ou categorias simples, e, enquanto tais, como em toda ciência histórica e social em geral, estão dadas tanto na realidade efetiva como no cérebro, ou seja, exprimem, portanto, formas de modos de ser, determinações de existência. (Chasin, 2009: 132)

12A supressão da diferença essencial implica na recusa dos objetos reais e, portanto, aquilo que possuem historicamente como específicos. Este esquecimento [diz Marx] é responsável por toda a sabedoria dos economistas modernos, que pretendem provar a eternidade e a harmonia das relações sociais existentes no seu tempo.

13O segundo aspecto das abstrações encontra-se na Introdução de 1857, o famoso segmento intitulado O método da economia política. Marx inicia por uma advertência: Parece que o correto é começar pelo real e pelo concreto, que são a pressuposição prévia e efetiva (...). No entanto, graças a uma observação mais atenta, tomamos conhecimento de que isso é falso.

14Na argumentação de Chasin (2009: 143),

é a respeito dessa demanda teórica bem específica que se desenrola a explicação marxiana; assim, é argüido que partindo do todo imediato, manifesto por seus complexos parciais (cidade, campo, produção, população, classes etc.), desemboca- se numa representação caótica do todo, pois a totalidade ou cada parte abordada redunda em simples abstração, se desconsiderados os vetores que a integram, por exemplo, a população sem as classes. Essas, por sua vez, (...) são uma palavra vazia de sentido se ignorarmos os elementos em que repousam: o trabalho assalariado, o capital etc. Estes supõem a troca, a divisão do trabalho, os preços etc. O capital, por exemplo, sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o preço etc., não é nada.

15Marx, nesse sentido, considerando a nascente economia do século XVII, mostra que suas investigações começavam sempre pelo todo vivo: a população, a nação, o Estado, vários Estados etc., mas observou igualmente que terminavam sempre por descobrir, por meio da análise, certo número de relações gerais abstratas que são determinantes, tais como a divisão do trabalho, o dinheiro, o valor etc.. Ou seja, partindo do todo vivo, porém sem se deter na representação caótica: através de uma determinação mais precisa, através de uma análise, chegaríamos a conceitos cada vez mais simples; do concreto idealizado passaríamos a abstrações cada vez mais tênues até atingirmos determinações as mais simples. Por meio desse aprofundamento analítico das abstrações, vale dizer, da determinação mais precisa de elementos da representação caótica, é que se atinge, a certo custo e demora, a configuração de abstrações relativamente bem recortadas, chamadas por Lukács de abstrações isoladoras, que são fundamentais, pois, como estabelece o texto marxiano, esses elementos isolados, uma vez mais ou menos fixados e abstraídos, dão origem aos sistemas econômicos, que se elevam do simples, tal como trabalho, divisão do trabalho, necessidade, valor de troca, até o Estado, a troca entre as nações e o mercado mundial.

Essas abstrações depuradas, são, portanto, o ponto de partida da elaboração teórica, uma vez que, chegados a esse ponto, teríamos que voltar a fazer a viagem de modo inverso, até dar de novo com a população, mas dessa vez não com uma representação caótica de um todo, porém com uma rica totalidade de determinações e relações diversas. Viagem essa de retorno das abstrações ao concreto que é manifestamente o método cientificamente exato. Donde a perfeita distinção dos métodos considerados e o completo esclarecimento da questão relativa ao ponto de partida, para a qual as abstrações razoáveis são a própria resposta. No primeiro método, a representação plena volatiliza-se em determinações abstratas, no segundo, as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto por meio do pensamento. [...] o método que consiste em se elevar do abstrato ao concreto não é senão a maneira de proceder do pensamento para se apropriar do concreto, para o reproduzir como concreto pensado. (Chasin, 2009: 153)

16As abstrações razoáveis, relações mais simples das categorias - pontos de partida da investigação, são determinantes, pois, sem as quais não poderia delinear nenhuma formação social concreta.

Realização metodológica que subentende, pois, uma complexa metamorfose das abstrações razoáveis, pela qual, mantendo a condição de pensamentos, isto é, de abstrações, deixam de prevalecer como momentos abstratos, para se converter em momentos concretos da apreensão ou reprodução dos graus históricos efetivos dos objetos concretamente existentes. (Chasin, 2009: 155)

Nota 2: A presença histórica do objeto

17No desenvolvimento do método,

permaneceu em Marx uma forte articulação sintética do objeto na sua imanência. Quer dizer, o próprio percurso do objeto é que coloca a questão do conhecimento parelha como o desenvolvimento do ser, posto que somente na dissolução das determinações deste objeto se observa e se compreende a formação resultante – o método como sendo o próprio fluir do conteúdo. (Raniere, 2011: 146-147)

18O autor argumenta ainda que

Nesse sentido, o conteúdo do proceder metodológico marxiano se põe como conceito de exposição – explicação racional-imanente do objeto, no interior do qual só pode subsistir aquilo que foi adequadamente compreendido (...) Para Marx, expor corretamente significa fundar, para a qualificação correta dos elementos componentes do objeto, uma teoria das abstrações racionais (verständige abstraktion) – ou seja, aquela forma sempre adequada de captação e apropriação do ser objetivo com base em suas determinações particulares (...). Para Marx, o método é a explicação do desdobramento do objeto em dois níveis: em primeiro lugar, no que diz respeito às suas articulações internas e próprias; em segundo, a partir da forma pela qual o pensamento capta do objeto, até traduzi-las em conceitos no interior de um discurso metódico. Nesse sentido, nos Grundrisse, a dialética aparece como o desenvolvimento do conceito de capital; a exposição, como crítica da contradição interior desse mesmo conceito com base em sua contradição fundamental – o trabalho enquanto potência subjetiva que dá efetividade ao capital. (Raniere, 2011: 147-148)

19O concreto é concreto porque é síntese de múltiplas determinações, portanto, unidade da diversidade [...] o método de ascender do abstrato ao concreto é somente o modo do pensamento de apropriar-se do concreto, de reproduzi-lo como um concreto mental. Mas de forma alguma é processo de gênese do próprio concreto (Marx apud Raniere, 2011: 149).

A dialética resume-se então na demonstração metódica do movimento da matéria, cujo conteúdo somente pode estar em condições de ser compreendido se sua maturidade o permitir (...) Em resumo, se as categorias avançadas subsistirem como elementos particulares pertencentes à nova formação social e forem capazes de revelar as conexões que imperam no interior desta última (...). A apreciação ontológica do capital, sua exposição, somente tem lugar se considerado o seu movimento imanente. O conceito de capital é esta unidade. A imanência é a contradição da valorização do capital na sua relação com o trabalho vivo tornado trabalho abstrato objetivado – trabalho subsumido à universalidade do trabalho morto. O método expositivo é justamente o desenvolvimento dessa relação e subsunção imanentes, pois é na valorização do capital que se encontra a finalidade última da reprodução social sob o capitalismo. (Raniere, 2011: 154-155)

Nota 3: A exposição Categorial

20Reichelt (2013: 139) apresenta como ponto de partida do método marxiano a partir da

[...] existência de um conjunto de trabalhadores assalariados livres constitui o pressuposto para a elaboração conceitual do sistema capitalista global na forma da exposição dialética das categorias, mas que esta forma de exposição, por seu turno, não é imediatamente idêntica à reconstituição da gênese histórica do capital e do trabalho assalariado livre.

21Neste ponto, contudo, é preciso lembrar que Marx descreveu de modo totalmente diverso o seu método de exposição no tocante à sucessão das categorias e à sua relação com o desenvolvimento histórico:

22Nos Grundrisse, Marx escreve que:

Seria impraticável e falso, portanto, deixar as categorias econômicas sucederem-se umas às outras na sequência em que foram determinantes historicamente. A sua ordem é determinada, ao contrário, pela relação que têm entre si na moderna sociedade burguesa, e que é exatamente o inverso do que aparece como a sua ordem natural ou da ordem que corresponde ao desenvolvimento histórico. Por outro lado, o que é muito mais importante para nós, o nosso método indica os pontos onde a análise histórica tem de ser introduzida, ou onde a economia burguesa, como simples figura histórica do processo de produção, aponta para além d si mesma, para modos históricos de produção anteriores. Por essa razão, para desenvolver as leis da economia burguesa não é necessário escrever a história efetiva das relações de produção. Mas a sua correta observação e dedução, como relações que devieram ela próprias históricas, levam sempre a primeiras equações – como os números empíricos, p. ex., nas ciências naturais – que apontam para um passado situado detrás desse sistema. Tais indicações, juntamente com a correta apreensão do presente, fornecem igualmente a chave para a compreensão do passado – um trabalho à parte, que esperamos também poder abordar. (Marx apud Reichelt, 2013: 140)

23O objeto de Marx é a dinâmica do sistema real. Quando Marx se pronuncia em O Capital sobre o seu método de apresentação, sempre tem em vista esse movimento efetivo, o vínculo interno das diferentes formas de desenvolvimento; e acentua: caso consiga-se apresentá-lo de forma correspondente e refletir de modo ideal a vida da matéria, terá que ser sob uma figura sistemática, de modo que pareça tratar-se de uma construção a priori [...] O desenvolvimento da apresentação levará mais tarde, por sua própria dialética, àquelas formas mais concretas (Marx apud Reichelt, 2011: 65).

24Se no sistema burguês completamente desenvolvido cada relação econômica pressupõe outra sob a forma econômica burguesa, portanto, cada posto é ao mesmo tempo pressuposto.

Não é preciso acentuar que aí se trata de mais do que mero flerte com o modo de expressão de Hegel. Marx diferencia a realidade do capital de seu conceito; esse é chamado por ele no Rohentwurf de a imagem contraposta abstrata e, mais tarde, de um espelhamento ideal, mas então é só isso? Deixando de lado os problemas epistemológicos ligados à ideia de reflexo, está de qualquer modo subentendida uma espécie de cópia da realidade objetiva à qual o método se achega. (Reichelt, 2011: 71)

25Implicitamente, fica claro por que Marx no Rohentwurf não se empenhou muito em desenvolver uma incontestável dedução metódica da forma dinheiro. Não era necessária nenhuma grande investigação para mostrar que o dinheiro resulta da troca, mas sim para mostrar que do dinheiro, enquanto a primeira forma de riqueza, desenvolve-se o capital como relação de produção capaz de atrair e aumentar a riqueza, enfim, de constituí-la. Desse modo, a sua fonte real torna-se cada vez mais conhecida pela teoria (Reichelt, 2011: 77).

26Nesse contexto, deve-se discutir também o significado do conceito de trabalho criador de valor de troca. A sua caracterização de trabalho moderno como sendo trabalho abstrato, como trabalho sans phrase, que só no presente se tornou verdadeiro na prática, baseia-se no mais-trabalho industrial. No contexto da apresentação da transição dos processos de produção, esse trabalho, que a época moderna tornou verdadeiro na prática, também é reproduzido pela teoria e posto no desenvolvimento enquanto tal das categorias.

27Uma vez que apenas equivalentes são trocados, não surge riqueza, ou mais precisamente: nenhuma riqueza autonomizada frente aos trabalhadores. Somente com a categoria de lucro, e também de juros, a riqueza surge como produto do mais-trabalho, mas como essas formas não são decifráveis, o conteúdo dessas formas não é descoberto – pelo menos nos seus estágios iniciais. Ele deve ser pressuposto também no interior da apresentação como sendo apenas em si ou para nós: ele entra em nossa reflexão subjetiva (...) Marx procura desenvolver dialeticamente também o conceito de trabalho, de forma análoga ao conceito de capital, enquanto totalidade e abstração (Reichelt, 2011). Assim,

Aqui duas idéias estão colocadas em uma única. A genuína definição dialética do capital, enquanto totalidade e abstração, pressupõe a autonomia do valor que se mantém como algo geral no processo de circulação, seja em unidade imediata com a mercadoria particular, seja sob a forma de dinheiro. Essa é a condição de possibilidade para um conceito de capital social conjunto pleno de sentido macroeconômico. O conceito correlato, de um trabalho social conjunto, Marx introduziu na segunda edição, como vimos, mas ele só pôde apreendê-lo como unidade com a ajuda de um conceito de validade que não pode ser formulado sem recorrer ao processo de circulação. Entretanto, o trabalho que forma a substância do valor é força de trabalho humana igual. O conjunto da força de trabalho da sociedade, que se apresenta nos valores do mundo das mercadorias, aqui vale como uma e mesma força de trabalho humana, embora consista de muitas forças de trabalho individuais. (Reichelt, 2011: 79)

Nota 4: Desenvolvimento das categorias

28Acerca do desenvolvimento das categorias marxianas, Heinrich (2014: 35) apresenta a seguinte advertência:

Quando lemos O Capital é necessário não levar em consideração apenas o seu nível de abstração, mas também a sua construção. A sequência de categorias não é de modo algum arbitrária ou orientada de acordo com considerações didáticas. Marx desenvolve categorias, isto é, ele procura deixar claro que categorias em um nível são necessariamente incompletas e, consequentemente, precisam de categorias posteriores, ou o nível no qual Marx havia argumentado até então deve ser abandonado. A progressão da própria apresentação, portanto, transmite informações particulares sobre aquilo que está sendo retratado. Essa informação só está completa quando chegamos ao fim de toda apresentação [...]. A acumulação, por exemplo, não tem um papel importante apenas no primeiro volume; ela reaparece, com determinações variadas, no segundo e, finalmente, terceiro volumes. Não percebemos isso se tentarmos entender a acumulação no nível de determinação do primeiro volume. A mesma coisa se dá com o fetichismo, que não se limita ao fetichismo da mercadoria do primeiro capítulo. O exame do fetichismo atravessa os três volumes e culmina na fórmula trinitária, que é analisada ao fim do terceiro volume: a naturalização do modo de produção capitalista não apenas como fundamento de consciência cotidiana, mas também da economia burguesa.

Considerações Finais

29Os fragmentos de obras e artigos mencionados acima cumprem apenas a função de indicação de fontes bibliográficas que, sem dúvidas, requer estudos mais demorados e com maior profundidade sobre o método de investigação e o método de exposição, assim como, a compreensão adequada das conexões lógicas das categorias em seu movimento antitético e, em suas formas de manifestação histórica no processo de reprodução do capital e de sua peculiar sociabilidade mediada pelo trabalho abstrato e, consequentemente, pela valorização do valor.

30Se a história, como diz Marx, é o modo próprio como os homens produzem suas condições materiais de existência e suas correspondentes formas de consciência, a geografia não é senão a espacialidade inerente a essas relações de produção e reprodução da vida social. O intercâmbio material do metabolismo sociedade-natureza, mediado pelo trabalho, constitui a base primeira sobre a qual as categorias de análise derivam tanto como dimensão da práxis, quanto das formas de representação abstrata do real. Nesse sentido, a montagem de uma geografia histórica a contrapelo, como quer Benjamin, implica a elucidação do presente histórico mediante a consciência crítica e da práxis sobre o amontoado de catástrofes produzidas pelo motor das contradições da luta de classes e que, ao mesmo tempo, permite uma abertura do passado como tradição dos oprimidos em sua luta de resistência contra a obsessão do capital em tornar-se totalidade.

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Bibliografia

Benjamin, Walter (1987). “Sobre o conceito de história”. In: Benjamin, Walter. Obras Escolhidas, v. 1. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense.

Chasin, José (2009). Marx: o estatuto ontológico e Resolução Metodológica. São Paulo: Boitempo, 2009.

Heinrich, Michel (2014). “Os invasores de Marx: sobre os usos da teoria marxista e as dificuldades de uma leitura contemporânea”. Tradução: Leonardo Marques. Crítica Marxista, Campinas, n. 38, pp. 29-40.

Marx, Karl (2011). Grundrisse – manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. Tradução: Maria Duayer e Nélio Shneider. São Paulo: Boitempo.

Marx. Karl (2007). Contribuição à Crítica da Economia Política. Tradução: Florestan Fernandes. São Paulo: Expressão Popular.

Marx, Karl (2010). Para a Crítica da Economia Política – Manuscrito de 1861-1863 (cadernos I a V) – Terceiro Capítulo – O capital em geral. Tradução: Leonardo de Deus. Belo Horizonte: Autêntica Editora.

Marx, Karl (2017). Miséria da Filosofia. Tradução: José Paulo Neto. São Paulo: Boitempo.

Querido, Fabio Mascaro (2012). “Rememoração revolucionária”. Margem Esquerda, São Paulo, n. 18, junho, pp. 106-121.

Ranieri, Jesus (2011). Trabalho e dialética: Hegel, Marx e a teoria social do devir. São Paulo: Boitempo.

Reichelt, Helmut (2013). Sobre a Estrutura Lógica do Conceito de Capital em Karl Marx. Tradução: Nélio Schneider. Campinas: Editora da Unicamp.

Reichelt, Helmut (2011). “Que método Marx ocultou?”. Crítica Marxista, Campinas, n. 33, pp. 67-82.

Seabra, Odette C. (2004). “Territórios do Uso: cotidiano e modo de vida”. Cidades, Presidente Prudente, v. 1, n. 2, pp. 181-206.

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Notas

1 As passagens de textos em itálico são todas referentes às obras de K. Marx, apresentadas na bibliografia deste ensaio.

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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Paulo Godoy, « Geografia Histórica », Terra Brasilis (Nova Série) [Online], 12 | 2019, posto online no dia 29 dezembro 2019, consultado o 15 março 2021. URL : http://journals.openedition.org/terrabrasilis/4497 ; DOI : https://doi.org/10.4000/terrabrasilis.4497

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Autor

Paulo Godoy

Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”/Campus Rio Claro
Doutor em Geografia
E-mail: p.godoy@unesp.br

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