- 1 Agradeço a orientação dedicada da Profª Drª Ana Maria Daou e as contribuições dos professores Lia O (...)
1O
presente texto é um relato de pesquisa realizada como tese de
doutoramento no âmbito no Programa de Pós Graduação em Geografia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGG), defendida em 2015.1
Mais do que apresentar as análises efetivamente desenvolvidas na tese,
aproveito este para discutir alguns aspectos de ordem metodológica na
construção e desenvolvimento da pesquisa.
2Interessa-me, sobretudo, abordar duas questões: i) a relação entre a história da geografia e geografia histórica do ponto de vista da abordagem analítica, i.e., a metodologia; ii)
a escolha e o tratamento das fontes. O artigo está dividido em três
partes. Para contextualizar o leitor, começo com uma pequena
apresentação sobre o objeto de estudos adotado na pesquisa: o Ministério
do Interior (MINTER); em seguida discuto a abordagem a partir da
História da Geografia e da Geografia Histórica; na terceira parte
reflito sobre o percurso de pesquisa no Arquivo; encerro com algumas
considerações finais.
- 2 São eles: “a) Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia; b) Superintendência d (...)
3Formalmente
criado pelo Decreto-Lei nº 200 de fevereiro de 1967, a gênese do MINTER
remonta a 1964, nos primeiros momentos de implantação do regime
militar, quando em 21 de junho de 1964 foi criado o cargo de Ministro
extraordinário através da Lei nº 4344 (Brasil, 1964a), que passa a ser
Ministério Extraordinário para a Coordenação dos Organismos Regionais
(MECOR) através da Lei nº 54026 de 17 de julho de 1964 (Brasil, 1964b).
Basicamente, o ministério extraordinário assumia para si onze órgãos
agrupados em torno da alcunha “organismos regionais”,2 que refletiam contextos e finalidades distintos, às vezes até contraditórios (Iorio, 2015).
4O
MECOR torna-se MINTER através da Reforma Administrativa desenhada pelo
Decreto-Lei nº 200/1967 (Brasil, 1967), inserido no rol denominado
“Setor econômico”. No entanto, o desenho administrativo do ministério só
ganhou formato mais definitivo através do Decreto 66.882/1970 (Brasil,
1970):
Art. 2º A estrutura básica do Ministério do Interior compreende os seguintes órgãos da administração direta:
I - Órgãos de assistência direta e imediata ao Ministro:
a) Gabinete
b) Consultoria Jurídica
c) Divisão de Segurança e Informações
II - Órgãos Centrais de planejamento, coordenação e contrôle [sic] financeiro:
a) Secretária Geral
b) Inspetoria Geral de Finanças
III - Órgão Central de direção superior:
a) Departamento de Administração
§ 1º São vinculadas ao Ministério do Interior as seguintes entidades da administração indireta:
I - Entidades de coordenação e planejamento regional:
a) Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia - SUDAM;
b) Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste - SUDENE;
c) Superintendência do Desenvolvimento da Região Centro-Oeste - SUDECO;
d) Superintendência do Desenvolvimento da Região Sul - SUDESUL;
II - Entidades de desenvolvimento sub-regional:
a) Superintendência da Zona Franca de Manaus - SUFRAMA;
b) Superintendência do Vale do São Francisco - SUVALE;
c) Departamento Nacional de Obras Contra as Sêcas - DNOCS;
III - Entidades relacionadas com o desenvolvimento urbano e local integrado e a melhoria das condições do meio ambiente:
a) Banco Nacional de Habitação - BNH;
b) Serviço Federal de Habitação e Urbanismo - SERFHAU;
c) Departamento Nacional de Obras de Saneamento - DNOS.
IV - Entidades regionais e sub-regionais de financiamento:
a) Banco da Amazônia S.A. - BASA;
b) Banco do Nordeste S.A. - BNB;
c) Banco de Roraima S.A.
V - Entidade de integração sócio-econômica ao processo de desenvolvimento:
a) Fundação Nacional do Índio - FUNAI.
§ 2º Os Territórios Federais,
unidades descentralizadas da Administração Federal, a nível
sub-regional, com autonomia administrativa e financeira, equiparados,
para os efeitos legais, às entidades da administração indireta, são
vinculados ao Ministério do Interior para os fins de supervisão
ministerial de que tratam o Decreto-lei nº 200, de 25 de fevereiro de
1967, e as demais leis e regulamentos pertinentes ao assunto.
- 3 Ainda que a maioria dos bancos regionais que passam a compor a estrutura administrativa do MINTER t (...)
5As
diferenças entre os textos de 1964 e de 1970 são sensíveis. Trata-se de
mudanças substanciais, muito mais do que mera nomenclatura. O texto de
1970 apresenta um arranjo institucional muito mais coerente e coordenado
de entidades, que se uniformizam no que tange a modos de operação e
metas a atingir. O desenvolvimento se torna o caráter central desse
ministério, suprimi qualquer ambiguidade; fato visível pela proliferação
de superintendências de desenvolvimento justapostas aos bancos
regionais.3
6O
caráter e o sentido do MINTER ao longo de toda sua trajetória são
definidos em seus aspectos estruturais neste intervalo entre 1964 e
1970, doravante chamado de fase de institucionalização. Neste período
estiveram à frente do ministério o mal. Cordeiro de Farias e o gal.
Albuquerque Lima, este é o intervalo temporal da análise desenvolvida na
tese.
7O primeiro, digamos assim, “paradoxo metodológico” com que me deparei nesta pesquisa foi: i)
tomar o MINTER enquanto uma instituição do pensamento geográfico e
assim investiga-lo como portador/reprodutor de representações sobre o
Brasil; ou, ii) por outra feita, assumi-lo como agente de
formação territorial, ou seja, assumindo o ponto de vista da Geografia
Histórica. Estava, portanto, entre uma dicotomia de difícil solução:
optar pela dimensão simbólica ou pela material. A solução era difícil
porque à medida em que aprofundava a análise e aproximava-me da
documentação a distinção entre um e outro parecia impossível.
- 4 Emprego o termo “discurso geográfico” de forma genérica e maleável, sem preocupação nem intenção de (...)
8Convenci-me de que a distinção proposta era irrealizável. O discurso geográfico4
sobre a ordem espacial, a composição intelectual de nexos articulando
as formas e os conteúdos espaciais (Gomes, 2006) prescreve e orienta
ações objetivas nas formações sociais, inclusive nos próprios processos
de territorialização (ou produção do espaço), ao que David Harvey
(1990), chamaria de estudo das representações geográficas como parte do
movimento geral de reprodução social.
- 5 O trabalho de Zusman (op.cit.) sobre a fronteira é bastante ilustrativo neste sentido: “Las práctic (...)
9Os
discursos sobre o território convergem com a formação territorial em
si, implicando, do ponto de vista analítico, que os estudos de história
da geografia se encontrem com aqueles da geografia histórica (Zusman,
2000). Essa confluência destacou o papel das práticas, sujeitos e
instituições que protagonizam a construção da representação geográfica
do mundo, manifestadas nas formações territoriais de fato.5
A formação social brasileira passa pela constituição de seu território,
e a formulação de um vasto e diversificado imaginário geográfico do
país atravessa esse processo (Moraes, 2000). O discurso sobre a ordem
espacial é parte da legitimação dos projetos territoriais:
É possível que fique óbvio o
fato de que, a certa formação territorial, deva proceder uma modalidade
discursiva e um conteúdo substantivo e que, por intermédio de ambas,
viabilize-se a legitimidade ideológica e a consecução prática daquele
projeto que o construiu materialmente. (Escolar, 1996: 141)
10A
historiografia da geografia tem avançado na compreensão do significado
de seus enunciados nas formações sociais concretas. Compreender as
histórias da geografia através da análise de seus discursos concretos é
uma tarefa empregada por Félix Driver (1992: 28) por meio da concepção
segundo a qual as modalidades discursivas são práticas sociais situadas:
- 6 Tradução livre. No original: “Broadening the scope of the critical history of geography during the (...)
Ampliar o escopo da história
crítica da geografia durante a era dos impérios poderia nos permitir
considerar mais diretamente as dimensões culturais e políticas do
conhecimento geográfico durante este período. Isto não é necessariamente
abandonar uma abordagem materialista, o desenvolvimento do
‘conhecimento’ seria ao invés apreendido como uma prática social situada
mais do que um reflexo espontâneo dos imperativos do desenvolvimento
econômico.6
11A
meu ver, a concepção do discurso geográfico como prática social situada
resume o que foi dito até aqui. Esta noção implica em reconhecer as
modalidades discursivas em seus sentidos intencionais e relacionais,
visualizar os sujeitos portadores e sua dinâmica íntima de produção.
Este horizonte analítico também é apontado por Vincent Berdoulay (1981)
em sua abordagem contextual. O contexto a qual se refere Berdoulay é mais objetivo do que aquele de que trata Harvey (op.cit.),
não está focado majoritariamente na escala ampla (que para Harvey é a
da reprodução do capital), atenta-se para questões mais palpáveis e
bastante significativas. No foco da análise sobre a história da
geografia estão aspectos de continuidade e descontinuidade de ideias; o
resgate de “ideias vencidas”, tendências significativas à época abordada
que não podem ser negligenciadas; o contexto social mais amplo; os
intercâmbios e debates de pensamento e, por fim, as razões que
justificam o uso destas ou daquelas ideias.
12As
investigações derivadas desta perspectiva metodológica têm se afastado
da busca pelos grandes sistemas teóricos no universo restrito das
ideias, direcionando-se para os “pequenos usos” na História da
Geografia. Por “pequenos usos” – na falta de expressão melhor –
entenda-se os enunciados concretos, contextualizados, socialmente
situados por agentes reais em circunstâncias empíricas da formação
social e territorial. Esta abordagem historiográfica enriquece a análise
da geografia histórica das formações sociais em si, e também fornecem
um instrumental capaz de acessar a riqueza e a diversidade das ideias.
13Por
esta trilha a História da Geografia é enriquecida não só quando é posta
ao lado da Geografia Histórica, mas também quando se dá conta das
multiplicidades de sujeitos que reinventam as tradições do conhecimento,
ofertando grande diversidade de discursos geográficos a serem
investigados. Uma das linhas de investigações mais profícuas e
instigantes que se abre é sobre o papel dos discursos geográficos como
mediação no processo de formação dos Estados e das nações, tarefa que
tem sido buscada pela historiografia da geografia brasileira.
14O
Estado se faz através das relações sociais que o compõem. A afirmativa
parece óbvia, e de fato o é. Entretanto, é comum deparamos com certas
análises que acabam por reproduzir uma visão reificada do Estado,
reduzindo suas funções e os seus sentidos práticos a uma atitude
pretensamente racional, apartada dos conflitos e dos jogos de poder
presentes na chamada “sociedade civil”. A concepção relacional do Estado
o interpreta como objeto em disputa, cuja natureza só pode ser
identificada em seu contexto social concreto.
- 7 “O campo político é o lugar em que se geram, na concorrência entre os agentes em que nele se acham (...)
- 8 Segundo Foucault (1981): “O que é importante para nossa modernidade, para nossa atualidade, não é t (...)
15Tomar
o Estado como relações sociais implica também reconhecê-lo como objeto
em movimento, ou, dito de outra forma, processo em formação. Por isso
Antônio Carlos de Lima (1995), inspirado em Michel Foucault, prefere
falar de processos de estatização ao invés de Estado. Os processos de estatização ocorrem através das disputas operadas no interior do campo político,7
mas também além dele. Envolvem-se nesse processo capitais simbólicos e
econômicos. Tradições de conhecimento convertem-se em formas estatais. O
dispositivo estatal é montado por processos de estatização, de diversas
fontes sociais, em momentos históricos dispersos, e seu arranjo atual é
a acomodação entre as heranças do passado e os imperativos do presente.
A execução deste aparato, a maneira pela qual ela é exercida como
mediação entre governo e aqueles definidos como objeto de sua ação (a
“sociedade civil”) é a governamentalização do Estado.8
Dito de outra forma, a governamentalização do Estado se faz em um
complexo campo de disputas onde se define o objeto da ação, seus meios e
suas metas.
- 9 Há uma ampla e profícua bibliografia que reflete sobre a construção social da escala, no entanto nã (...)
16O
MINTER é uma prática de governamentalização do território, um mecanismo
de ação cujo sentido pode ser buscado através de seu significado
enquanto dispositivo dentro de campos de poder. Neste ponto se impõe uma
questão escalar importante. Os campos de poder são objetivados por
agentes sociais cuja ação remonta a níveis diferentes, p.ex.; empresas
multinacionais, agências internacionais, órgãos governamentais
nacionais, regionais, estaduais e municipais, técnicos e empresários
locais, etc. Todos esses agentes se relacionam e através dessa relação
forjam campos de poder. Para a compreensão desta unidade exige-se o
reconhecimento de toda aquela multiplicidade, fato que impõe a
consideração da escala como construção social objetiva.9
17Ao
analisar a prática de governamentalização do MINTER fica evidente que
fatores de ordem diferente, mas interdependentes. são acionados. Na fase
de institucionalização do ministério – contemplado nessa pesquisa – é
perceptível que a montagem do desenho institucional do ministério
responde a imperativos geopolíticos estreitamente relacionados ao
movimento de mundialização do capitalismo, assim como questões
específicas da formação social brasileira e também aspectos próprios dos
sujeitos envolvidos e seus agrupamentos políticos mais diretos. A
escala se aponta aí como a estrutura hierárquica no qual um processo se
vincula ao outro, conformando relações de dependência entre os processos
(Brenner, 2001).
18O
exemplo da institucionalização da prática de governamentalização do
MINTER pode ser elucidativo. Ocorrido na segunda metade da década de
1960, ele enquadra-se perfeitamente no contexto da Guerra Fria no
Brasil, no fortalecimento das empresas transnacionais. Por outro lado,
se vertemos a mirada para a formação social e territorial brasileira,
percebe-se que o mesmo ministério é caudatário de uma longa tradição de
esforços no sentido de modernização do país e de seu território. Se, de
outra feita, contempla-se o MINTER pelos seus ministros, Cordeiro de
Farias e Albuquerque Lima, se nota uma visão do país marcada pelo peso
de sua instituição profissional (o Exército brasileiro) e pelas suas
relações pessoais e políticas particulares.
19Em suma, as reflexões apontadas me levaram a tomar MINTER como i) um agente territorial na confluência entre História da Geografia e a Geografia Histórica; ii) constituído a partir de um processo dinâmico de formação do Estado e de sua governamentalização; iii) animado por sentidos que extrapolam as unidades escalares rigidamente recortadas.
20Neste
processo não interessa investigar as consequências materiais
estritamente – o que se fez e o que não se fez sobre o território –
tampouco as grandes planificações, que revelam um conjunto articulado e
abstrato de intenções. Preferi debruçar-me sobre o nível mais concreto
da governamentalização, sem perder a dimensão do plano. Situei minha
análise no imediato encontro entre a planificação e a execução, sem ser
efetivamente nem um nem outro. Entendo esse encontro como a
governamentalização em si, fato que se revela nos projetos de ação (Lima, 1995). Faltava-me ainda uma base documental que possibilitasse a análise.
21Meu
contato com a documentação do MINTER vem da minha pesquisa de mestrado
(Iorio, 2010), na qual tive que lidar com a documentação do MINTER
depositada no Arquivo Nacional, sede de Brasília. No doutorado
continuaria a utilizar a mesma base, agora disposto a examinar a prática
de governamentalização do MINTER, o que exigiria uma busca bastante
diferente de documentos.
22As
práticas de governamentalização não poderiam ser reduzidas à bases
legislativas, aos pronunciamentos e discursos; ou às compilações de
dados, números e estatísticas sobre ações e inversões. Seria necessária
uma base documental que dê conta de revelar no cotidiano do ministério
aspectos que fundamentam os modos de ver e conceber sua prática. Neste
sentido a sugestão de Lima (1995: 96) é pertinente e enriquecedora para a
análise sobre a administração pública.
23Sua
análise [da administração pública] não pode, porém, se resumir a um
trabalho de arrolamento de leis e regulamentos administrativos, muitas
vezes sem sequer declarar seu estatuto diferencial e limites de
atribuição. Ainda que estes sejam matérias-primas importantes não se
pode nem desprezá-los nem autonomizar o estudo do texto da lei,
prescindindo-se de interpretá-los como peças de projetos de ação,
cujo sentido só pode ser melhor apreendido em estudos que considerem
também – mas não só – sua execução, perceptível através de investigações
específicas.
- 10 “Pero también podríamos preguntarnos si este interés por la reconstrucción histórica no supone, de (...)
24Esta
base documental está em geral depositada em instituições arquivísticas,
responsáveis pela organização e disposição dos documentos, tarefas
fundamentais que se refletem nas possibilidades de alcance das
pesquisas. A pesquisa arquivística é uma maneira de “dar voz” a sujeitos
históricos a partir daquilo que se quer compreender contemporaneamente;
é uma reconstrução histórica que tem como fim inserir o passado no
presente (Zusman, 2000).10
Há aí dois extremos: os sujeitos que produziram a documentação em suas
práticas e o pesquisador que se dirige a essa documentação com perguntas
que são dele, e não do sujeito primeiro. Há ainda um terceiro elemento
que é a mediação entre os dois extremos, representada pela instituição
arquivística, com seus procedimentos próprios, regidos por princípios
técnicos adaptados às especificidades dos documentos geridos.
25Vários
encontros e desencontros resultam desta tripla incidência. Em primeiro
lugar, o pesquisador procura por algo que não forçosamente foi formulado
de maneira clara e objetiva pelo seu sujeito pesquisado, com isso, a
resposta para o inquérito do investigador estará, provavelmente,
disperso em documentos avulsos, e não em um documento pronto, definitivo
e conclusivo. Em segundo lugar, o acesso a esses documentos dispersos
se dará por intermédio dos critérios de organização escolhidos pelo
arquivista; não necessariamente coincidentes com aqueles do sujeito e –
menos provável ainda – com os do pesquisador. Os princípios de ordenação
do arquivamento precisarão ser minimamente decifrados para facilitar o
acesso àquilo que se busca.
26Por
todo este complexo percurso, os arquivos revelam aquilo que eles
mostram e também o que não mostram. O investigador precisa de zelo para
não reproduzir acriticamente i) a intenção do sujeito, ao refletir justamente o que ele quis mostrar e silenciar sobre o que não foi pronunciado; ii)
ou os princípios e conceitos do arquivista, que impôs (mesmo que de
forma técnica, e não totalmente arbitrária) seus critérios de ordem
sobre os documentos.
27Este
zelo, recomenda Antônio C. de Souza Lima (op.cit.), implica em que o
pesquisador esteja munido de perguntas seguras, assentadas em critérios
claros para que o objetivo da consulta logre êxito. Em função de a
lógica de ordenação dos documentos serem alheias aos interesses de
pesquisa, a clareza sobre aquilo que se busca auxilia o pesquisador a
encontrar as trilhas dos documentos necessários para responder sua
própria questão. Na medida em que vão se revelando os conteúdos dos
documentos, outras questões relevantes surgem, o que parece enriquecedor
para a análise; mas há que se ter sempre a precaução em não reproduzir
princípios alheios à investigação.
28Esses
cuidados foram valiosos no enfrentamento da documentação do MINTER. Os
primeiros contatos com o arquivo passaram a nítida impressão de que eu
era um “geógrafo em terra estrangeira”, tão inusitada me era a “situação
de campo” em arquivo público. Lidar com arquivos é uma prática comum em
outras disciplinas, daí decorre certa familiaridade com pesquisas
documentais, estranha à formação de um geógrafo, ou mais particularmente
à minha formação, em que não fui incitado a esta prática, muito menos à
reflexão teórica sobre ela. De toda sorte, busquei nos arquivos por
alguma base de documentos que revelasse a governamentalização praticada
pelo MINTER a partir de sua lógica própria. Como estava intencionado em
verter a análise para os projetos de ação, e não para as “grandes
planificações” nem para o inventário de obras e gastos, me era
necessário encontrar algo que estivesse no intermédio destes dois
extremos. Busquei principalmente algo que pudesse ser organizado em
sequências seriadas, algo que identificasse sistematicamente uma
prática.
29A
documentação disponível estava organizada em uma base digitalizada, mas a
consulta ao sistema de busca e aos documentos em si só pode ser
efetuada na sede do Arquivo Nacional de Brasília. Esta base chegou ao
Arquivo Nacional via Ministério do Planejamento, instituição responsável
por organizar os documentos quando o MINTER foi extinto, em 1990. No
sistema digital a busca se faz por entradas livres nas categorias:
fundo, subfundo, grupo e subgrupo. Preenchi o fundo “Ministério do
Interior” com praticamente todas as combinações possíveis entre as
demais categorias. Desta busca deu-se uma primeira seleção de cerca de
cinco mil documentos, a maioria deles examinei pelas ementas e outros
tantos pelo documento físico. Fundamentalmente, estes documentos diziam
respeito a pareceres jurídicos de projetos, anteprojetos de leis,
convênios e parcerias com prefeituras (para construir obras, liberar
recursos de assistência, projetos comunitários, etc.). Há também
convênios com institutos de pesquisa, como o IBGE, esboços de regimentos
dos órgãos subordinados, e coisas do gênero. Alguns documentos emitiam
conteúdos que poderiam parecer mais substantivos, mas estavam sempre
isolados, o que dificultou os contextualizar e, a partir daí, extrair
qualquer significado. Além disso, esses documentos me forneciam uma
visão muito parcial e fragmentada da prática de governamentalização do
MINTER. Não encontrei ali qualquer possibilidade de seriação mais
sistemática. Os documentos de mesma natureza tinham procedências
diversas ou intervalos temporais muito longos.
- 11 “É importante salientar que o controle e a preservação da produção documentária do MINTER sempre se (...)
30Trabalhei
com essa documentação por dois anos, tentando estruturar alguma base
consistente e que me fornecesse conteúdos substantivos sobre a prática
de governamentalização do MINTER. Estava com muitas dificuldades, e as
possibilidades de se extrair elementos suficientes para realização da
tese não eram animadoras; a discrepância entre os documentos disponíveis
e os propósitos da pesquisa era gritante. Foram procurados relatórios
ministeriais, atas de reuniões, cartas de ministros a seus superiores ou
subordinados, ou qualquer outro material que indicasse os propósitos
que orientaram a prática de governamentalização do MINTER. Entretanto, é
flagrante a ausência de documentos de conteúdos mais substantivos.
Segundo Torres (1989), o MINTER primou cuidadosamente da administração
dos documentos produzidos,11
porém, o trabalho dela se refere à prática de documentação iniciada já
no fim da década de 1970, quando já se passavam mais de dez anos de
funcionamento desse ministério. De toda forma, mesmo considerando a
documentação a partir deste período, a flagrante ausência de documentos
com a natureza desejada permanece válida.
31Esta
me parecia uma situação incontornável, um empecilho difícil de superar e
que comprometeria forçosamente o bom andamento de minhas pesquisas.
Cheguei a crer que estes documentos poderiam não mais existir. Imaginei
isso frente ao que prescreve o Decreto nº 79.099 de 06 de janeiro de
1977, assinado pelo então presidente da República Ernesto Geisel e seu
ministro da Justiça Armando Falcão. Este decreto trata da salvaguarda de
assuntos sigilosos, sua tipologia e aplicação, na seção seis
(“Destruição”) do capítulo IV, intitulado “Documentos Sigilosos” a
prática de destruição de documentos está prescrita da seguinte maneira:
Destruição
Art. 70. À autoridade que elabora
documento ULTRA-SECRETO, SECRETO ou CONFIDENCIAL, ou autoridade
superior, compete julgar da conveniência da respectiva destruição e
ordená-la oficialmente.
§ 1º Os documentos RESERVADOS não
controlados serão destruídos por ordem da autoridade que os tenha sob
custódia, desde que, perdida a oportunidade ou a utilidade, sejam por
ela julgados desnecessários.
§ 2º A autorização para destruir documentos sigilosos constará do seu registro.
Art. 71. Os documentos sigilosos serão destruídos pelo responsável por sua custódia, na presença de duas testemunhas.
Art. 72. Para a destruição de
documentos ULTRA-SECRETOS e SECRETOS, bem como de CONFIDENCIAIS e
RESERVADOS controlados, será lavrado um correspondente "Termo de
Destruição", assinado pelo responsável por sua custódia e pelas
testemunhas, o qual, após oficialmente transcrito no registro de
documentos sigilosos, será remetido à autoridade que determinou a
destruição e ou à repartição de controle interessada (Brasil, 1977).
32Frente
a este decreto, imaginei que os documentos que buscava poderiam ter
sido objeto de destruição. Mesmo que tenha sido oficializado já no fim
da década de 1970, quando já se tinham aí treze anos de funcionamento do
MINTER (contando sua existência como MECOR), esse decreto revela uma
prática oficial de destruição que poderia se imaginar vinha sendo
adotada corriqueiramente.
- 12 Segundo o site do programa: “O Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil, denominado "Memó (...)
33Em
minha terceira visita ao arquivo, no último ano da pesquisa, em 2014,
vivia-se um movimento de elevação dos ânimos em relação às pesquisas e
investigações debruçadas sobre os arquivos do período do regime militar.
Isto por duas razões principais: i) porque neste ano completou quarenta anos do golpe de 1964, reacendendo o assunto na opinião pública em geral; ii) em função do andamento dos trabalhos realizados pelo projeto “Memórias Reveladas”..12
Este projeto, segundo a página “Histórico” de seu site, começou em 2005
através do Decreto nº 5.584, que transferiu a guarda dos documentos do
Conselho de Segurança Nacional (CSN) da Agência Brasileira de
Inteligência (ABIN) para o Arquivo Nacional. Mas foi entre agosto de
2013 e março de 2014 que cerca de treze milhões destes documentos,
depois de um longo processo, foram digitalizados. Esta digitalização
facilitou a consulta aos documentos. Interesses acadêmicos, de pesquisa,
ou pessoais, sobre perseguição, processos, etc., se voltaram para estes
documentos. Minha pesquisa estava agora em um ambiente mais favorável.
- 13 Nas outras vezes em que estive no Arquivo Nacional de Brasília não notei a presença desses pesquisa (...)
- 14 A funcionária chama-se Deyse, a quem agradeço fortemente.
34Assim,
nesta terceira visita, alguns pesquisadores do projeto trabalhavam no
próprio prédio do Arquivo Nacional, em uma sala reservada ao lado da
sala de consulta pública.13 Durante um dos intervalos da busca, em uma conversa despretensiosa com a funcionária do Arquivo que me atendeu14,
falávamos sobre o trabalho desses pesquisadores e a questionei sobre a
possibilidade deles encontrarem algo que poderia ser do meu interesse.
Foi desta questão que avançamos a conversa sobre a base em que estava
trabalhando, mencionei toda a dificuldade que estava encontrando e ela
referiu-se à existência de alguns documentos de naturezas diversas que
estavam dispersos e depositados em outra base, oriundos de outra
entrada, mas que havia a possibilidade de haver material do MINTER lá.
- 15 As CCMI’s eram comissões cuja finalidade era a de criar um espaço de interlocução entre as diferent (...)
35Esta base – doravante segunda base
– (Arquivo Nacional, 2000) está organizada em dois grandes fichários (o
conteúdo não está digitalizado) que elencam verbetes de entrada,
agrupados em ordem crescente pelas caixas em que estão depositados os
documentos (1, 2, 3,…). Não foi possível acessar qualquer pista sobre os
critérios de ordenação das caixas. Segundo o guia de fundos do Arquivo
Nacional, em sua página 23, o Fundo/Coleção MINISTÉRIO DO INTERIOR foi
organizado pela Coordenação de Documentos Escritos (CODES) e Coordenação
de Documentos Audiovisuais e Cartográficos (CODAC) do Arquivo Nacional,
e identificada pela Coordenação Regional do Arquivo Nacional no
Distrito Federal (COREG). A consulta aí foi difícil, a organização dos
arquivos é intrincada, os fichários acusavam entradas as mais diversas.
Mas o universo documental contido nesta segunda base veio a ser, para os
fins desta pesquisa, muito mais rico que o anterior. Aí foram
encontrados registros a respeito das Comissões Coordenadoras do
Ministério do Interior (CCMI),15
atas sobre propostas de reforma do ministério, entre outros tantos
documentos que podem ser úteis às pesquisas de variados interesses, se
houver paciência e persistência para situar-se no arquivo.
36Deste universo variado, considerei como material mais valioso para o que estava buscando os cadernos com as Exposições de Motivos do MINTER. Segundo o Manual de Redação da Presidência da República (Brasil, 2002), em seu item 4:
Exposição de motivos é o expediente dirigido ao Presidente da República ou ao Vice-Presidente para:
a) informá-lo de determinado assunto;
b) propor alguma medida; ou
c) submeter a sua consideração projeto de ato normativo.
37Em regra, a exposição de motivos é dirigida ao Presidente da República por um Ministro de Estado.
38Nos
casos em que o assunto tratado envolva mais de um Ministério, a
exposição de motivos deverá ser assinada por todos os Ministros
envolvidos, sendo, por essa razão, chamada de interministerial.
39Este
foi um canal direto entre ministros e presidentes da República, através
dele aqueles se apresentam em seus princípios a este. Matérias como:
pedidos de revisão de orçamento, apresentação de anteprojetos de lei,
movimentação de funcionários e tudo o mais que o ministro julgue
relevante de ser comunicado, solicitado ou reclamado passa pelas
Exposições de Motivo (daqui por diante, E.M.) Ao exporem seus motivos,
os ministros revelaram quais as prioridades, o que entendem como
demandas, quais as formas de equacioná-las; em suma, a orientação
política com a qual coordenam sua pasta e também como esta se relaciona
com a orientação geral do governo.
40Ao
me deparar com as E.M. fiquei convencido que estes documentos estavam
mais próximos dos propósitos desta investigação. As E.M. expressam a
comunicação entre o planejamento e a execução, estão na imediata
interface entre ambos. Elas são algo mais palpável que os planejamentos
que se fazem periodicamente baseados em intenções, ou os discursos e
escritos que idealmente tratam do que é e do que deveria ser feito. Ao
mesmo tempo, são mais abstratas, mais próximas do nível teórico do que
um inventário de obras, ou um orçamento de gastos e investimentos; seria
a forma mais concreta dos planos de ação de governamentalização. Dadas
estas possibilidades, optei por tomar definitivamente as E.M. como base
de análise e abandonar o esforço feito até então, que não havia surtido
efeitos maiores, considerando a qualidade e a dispersão do material,
como já observado. Outras escolhas metodológicas precisaram ser feitas
diante desse material, como extrair dele as respostas às perguntas que
eu carregava?
- 16 Os documentos foram organizados em tabelas que estão expostas nos capítulos três e quatro.
41As
E.M. do MINTER estão organizadas em brochuras por ano e distribuídas em
pastas. Para cada ano há cadernos suplementares distribuídos por
setores (pessoal, organização, administração geral, obras e orçamento)
replicando os documentos arquivados no caderno geral. Têm um formato
padrão: cabeçalho com a data, lugar e identificação da E.M.; cumprimento
respeitoso ao presidente; o texto expondo os argumentos; cumprimento
formal e assinatura do ministro. O tamanho era variável, entre uma lauda
até cinquenta ou sessenta, mas a maioria tinha entre duas e três. Os
conteúdos também eram diversos, tratavam de questões relativas ao
funcionalismo, de obras e compra de equipamentos, anteprojetos de lei,
demandas orçamentários, pedidos de isenção fiscal, relatórios
ministeriais, prestação de contas e coisas afins.16
42O
material, tomado em conjunto, tinha algumas vantagens evidentes. A
primeira delas é a anteriormente explicitada, a natureza do documento,
que permite ao analista observar o propósito do ministério, suas
intenções e sentidos; mas sem assumi-los em um nível demasiadamente
abstrato. Outro ponto positivo é o fato deles estarem dispostos de
maneira seriada e numerada. Isto me ofereceu um conjunto unitário, uma
sequência segura, sem lacunas. As lacunas e a falta de sequência tinham
me parecido um grande empecilho na primeira base pesquisada, pois
dificultava seguir as recomendações de Perla Zusman (op.cit.) e
evitar reproduzir uma visão parcial dos documentos, cuja parcela
visível poderia ser exatamente aquela que o sujeito produtor do
documento ou o organizador quis evidenciar; ou então mero acidente,
nunca se poderia saber. Também para evitar reproduzir a intenção dos
produtores dos documentos, optei por me debruçar sobre os cadernos
principais, com todas as E.M., descartando os cadernos temáticos, o que
totalizou mil cento e sessenta documentos no intervalo entre oito de
julho de 1964 e vinte e sete de janeiro de 1969.
43Desenvolvi
a análise dos documentos lendo-os individual e integralmente.
Sistematizei-os em um quadro sintético a partir da sua finalidade
(orçamento, institucionalização, isenções fiscais, funcionalismo, etc.)
procedências (órgão interessado), descrição do conteúdo e observações
suplementares, quando relevantes. Este quadro ofereceu uma visão geral
sobre o processo em análise. Esta organização me permitiu ainda tomar o
universo documental em seus aspectos tanto de conjunto quanto
individualmente, quando havia algo substantivo explicitado.
44A
visão do conjunto associada aos conteúdos individuais dos documentos
mais substantivos me permitiu buscar as respostas às minhas perguntas
com mais segurança, possibilitou que acompanhasse os planos de ação no
cotidiano do ministério, defrontado com as dificuldades e possibilidades
impostas, como restrições orçamentárias, desacordos com outros setores
do governo ou alterações nos planos iniciais. Enfim, foi possível, a
partir daí, verificar a operacionalização dos planos de governo em
planos de ação de governamentalização propriamente ditos.
45Além
das E.M., vali-me também de documentos consultados em outras fontes.
Valioso foi o arquivo pessoal de Cordeiro de Farias disponível no
arquivo do CPDOC/FGV no Rio de Janeiro. Nesta base encontrei
pronunciamentos e impressões pessoais do ex-ministro do MECOR sobre sua
própria atuação e o sentido que procurou imprimir ao ministério que ele
conduzia. A base documental que está sendo montada pelo programa
“Memórias Reveladas”, também do Arquivo Nacional, foi aproveitada
sobretudo pelos documentos relativos a Albuquerque e Lima. Alguns desses
documentos estão disponíveis na internet, outros estão digitalizados
mas só podem ser consultados nas sedes do Arquivo Nacional (de Brasília e
do Rio de Janeiro), outros não estão digitalizados. Utilizei ainda
memórias, depoimentos e textos de autoria dos ministros envolvidos,
assim como de pessoas relacionadas diretamente com a institucionalização
do MINTER.
46Conforme
dito, procurei neste texto compartilhar uma experiência de pesquisa em
seus detalhes mais práticos, derivados e substantivados a partir de uma
reflexão teórica e metodológica. Espero com isso debater as minhas
opções e possibilidades com o(a)s demais colegas, a fim de aprimorar a
pesquisa em arquivos nos campos da Historia da Geografia e da Geografia
Histórica.
47Gostaria
de ressaltar as dificuldades por mim encontradas ao longo da trajetória
acima exposta enquanto fragilidades a serem revistas nas práticas de
pesquisa de geógrafo(a)s em geral. O primeiro deles é própria
delimitação dos campos de estudos internos à Geografia e no seu diálogo
com formações disciplinares afins. As delimitações entre Geografia
Histórica e História da Geografia me pareceram demasiadamente
arbitrária. Felizmente pude me deparar com uma bibliografia muito
avançada neste sentido, destacaria os trabalhos de Perla Zusman (op.cit.), Manoel Fernandes Sousa Neto (2012), Vincent Berdoulay (2008) e Félix Driver (1992).
48De
outra feita, senti uma clara necessidade de debatermos com mais
sistematicidade o uso de arquivos históricos enquanto fontes de
pesquisa, sobretudo na esfera da Geografia que está em interface direta
com a História. Acredito que ainda prevalece na Geografia certa
concepção ingênua sobre os arquivos, o que nos leva e esperar deles
respostas prontas, objetivas e claras. Ficou bastante claro para mim
que, muito pelo contrário, é preciso muito zelo na formulação das
perguntas que nos levam ao arquivo; são as perguntas que falam por nós, e
não os documentos previamente dispostos. Soma-se a isso certa ansiedade
do geógrafo diante de arquivos imensos, aparentemente impenetráveis e
inesgotáveis. Neste quesito, contei com a valiosa contribuição de minha
orientadora, com bastante trânsito pela antropologia, ela me ensinou a
ter mais cuidado com o Arquivo. Valioso também foi o trabalho de Antônio
Carlos de Souza Lima (op. cit.) e Perla Zusman (op.cit.).