Os autores agradecem Leonor Bertone pela revisão da tradução.
1Uma
das marcas da atenção que Élisée Reclus deu, durante toda deu a
sua vida, à América do Sul é o artigo que ele publicou na Revue des Deux Mondes,15 de dezembro de 1867, intitulado “Guerra do Paraguai”.
2Quando
Élisée Reclus escreveu este artigo, a situação militar desta guerra,
que opôs Paraguai à “Tríplice Aliança” (Argentina, Brasil, Uruguai)
estava bloqueada e ele explica aos leitores franceses a situação
estranha na qual se encontravam os beligerantes. Ele analisa as
dissensões na Tríplice Aliança, a força do Paraguai e a fraqueza do
Brasil. Ao reler o texto fica claro a posição de Reclus que vê
no Paraguai uma espécie de reencarnação da França revolucionária em
guerra contra a totalidade a Europa dos reis. Ele vê no Brasil
um espelho tropical do Império de Napoleão III, que o condenou ao
exílio, sendo este um prisma que enviesa um tanto a sua
análise. Todavia, seria obviamente injusto e ridículo criticar
Reclus por conta de erros em suas previsões sobre o desfecho da guerra,
que era então muito incerto, quando – ao contrário – pode-se
admirar e ressaltar a precisão de suas análises geopolíticas
sobre a situação das potências envolvidas.
3Na introdução
do artigo tem-se logo uma excelente análise da situação,
embora Reclus esclareça que tenha apenas “a informação
que dão sobre o Paraguai nos jornais deste país
e de poucos estrangeiros que conseguiram cruzar as linhas
militares” (pp. 955-956). Deixa claramente ver aonde vão
as suas simpatias, em favor do Paraguai e contra “o império
escravagista” do Brasil, para o qual ele previu dificuldades
financeiras e crise política:
- 1 Vejam a Revue de l5 outubro I866. Vejam também, no número de l5 setembro 1866, La Guerre du Paragua (...)
4“Há
mais de um ano, estávamos falando aqui da guerra sem fim que
desencadeou o arrogante ultimato mandado pelo Brasil ao Governo de
Montevidéu no dia 18 de maio de 18641.
Desde a terrível batalha de Tuyuti, a mais letífera de todas aquelas
que derramaram sangue no solo da América do Sul, a situação dos
beligerantes não se modificou e o grande Império brasileiro permanece
impotente frente ao pequeno Paraguai, cuja população mal é igual à de
dois departamentos franceses. Apesar dos boletins de vitória que o
telégrafo nunca deixa de transmitir na chegada de navios transoceânicos,
os imperiais e a os argentinos, seus aliados, apenas conquistaram
pântanos onde eles estabeleceram o seu acampamento, ao passo que Lopez e
os seus soldados não abandonaram o enorme território que arrancaram da
província de Mato Grosso.
5Em
vão o Brasil obstina-se contra a pequena república; já perdeu mais de
40 000 homens e foi forçado a armar escravos; ele gastou mais de
600 milhões de francos e agora deve recorrer ao expediente fatal do
papel-moeda; depois de quarenta anos de aparente prosperidade, o jovem
império que se deu o nome de gigante da América do Sul está entrando em
um período de crise formidável e ameaçadora até para o futuro das suas
instituições políticas e sociais. Sua existência como unidade nacional
está em perigo, e não é impossível que, após a guerra atual, a
restauração do equilíbrio nos estados do continente se faça à custa do
império escravagista. Por isso, é importante estudar cuidadosamente e
expor claramente os principais acontecimentos de uma guerra cujas
consequências podem ser graves ” (pp. 934-935).
6Quando Élisée Reclus escrevia a
situação militar era estranha e provavelmente única: a
frota de alto mar brasileira estava trancada em
um trecho de rio, entre
duas fortalezas paraguaias. Este foi o
resultado – inesperado – do plano de
batalha das forças da Tríplice Aliança, após o fracasso
de sua ofensiva terrestre:
“Depois que o Exército,
parado nos pântanos do Tuyuti, tenha tentado, em vão, abrir à força um
caminho para Assunção, foi a vez de a Esquadra tentar fazer o mesmo. Os
três chefes dos aliados, Mitre, Flores e Polydoro
se reuniram com o Almirante Tamandaré e decidiram
que a frota teria que forçar a passagem do
Paraguai para bombardear redutos do inimigo enquanto as
tropas de desembarque dariam assalto” (p. 935).
Figura 1 Mapa das operações militares
7Para implementar este plano, os Aliados tinham tentado um desafio ousado:
“Os aliados resolveram dar um
golpe; mas a operação que planejaram se concluiu para eles pelo mais
desastroso fracasso e mostrou-lhes o quanto eles erraram ao imaginar que
os seus adversários estavam reduzidos à última extremidade” (p.
936-937).
8No início,
a tentativa de tomar os fortes
de Curuzú e Curupaiti, nas margens
do Paraná, foi um sucesso, mas foi, porém, dispendiosa em
termos de perdas humanas:
“Quando as colunas de
atacantes, dizimadas por balas de fuzis e canhões, finalmente
renunciaram a esta impossível tentativa, 6 000 mortos ou feridos,
mais de um terço do exército, estavam espalhados no chão entre árvores
caídas e galhos quebrados” (p. 937).
9Mas foi pelo menos uma vitória naval? É o que disseram então - e ainda dizem - fontes brasileiras:
“Foi um triunfo que o Brasil
tinha acabado de conquistar? Parecia ser, à primeira vista, e da
imprensa oficial do Rio de Janeiro se apressou de profetizar a queda da
fortaleza do Paraguai e captura inevitável de Marechal Lopez” (p. 946).
10Esta não é a opinião de Élisée Reclus, que vê em vez disso um impasse naval:
“Não é só a passagem fluvial
em Curupaiti que precisava ser forçada, eram os fortes de Humaitá que
tinha que ultrapassar para entrar em águas abertas e tentar estabelecer a
comunicação com o exército [...] Os navios blindados tinham sofrido
muito estrago em sua primeira etapa para ousar iniciar a segunda, bem
mais perigosa [...] Se a frota de navios de guerra do Brasil já tinha
sofrido dos canhões de um simples forte como Curupaiti, como se pode
acreditar que poderá passar com impunidade sob as armas em números
desconhecidos da grande fortaleza de Humayta, transformada por vinte
anos em passagem intransitável? Assim que o Almirante lgnazio reconheceu
a loucura que seria tentar a passagem de Humayta, ele pensou, sem
dúvida, em voltar à jusante de Curupaiti para se juntar ao resto da
frota na boca do Paraguai, e ele recebeu do Rio de Janeiro a ordem de
corrigir a qualquer preço sua primeira imprudência retornando o mais
rapidamente possível ao ponto de ancoragem de Tres Bocas. Mas era tarde
demais. Imediatamente após a passagem de navios blindados, o Marechal
Lopez mandou bloqueá-los a à jusante para aprisioná-los entre duas
fortalezas” (p. 947).
Figura 3 As operações navais e terrestres no rio Paraná
11De
acordo com esta análise, portanto, seria o Paraguai que teria ganho esta
batalha por aprisionar a frota brasileira neste trecho do Paraná:
“Diz-se que, após a passagem
dos navios couraçados além de Curupaiti, o Marechal Lopez teria elogiado
o seu exército por uma ordem do dia, 'Finalmente, exclamou-se, os
nossos desejos são satisfeitos! A frota brasileira está presa. Há dois
anos, no início da guerra, tentamos prender as naves inimigas entre
Corrientes e as baterias de Cuevas, e agora eles vêm colocar-se entre as
duas fortalezas de Humayta e Curupaiti' ” (p. 948).
12E Élisée Reclus se pergunta, parecendo se deliciar:
“O que será desta frota,
assim trancada em um impasse. Tentará passar a formidável linha de armas
inimigas, correndo o risco de afundar inteira nesta viagem perigosa, ou
será abandonada nesta posição insustentável por suas próprias
tripulações? ” (p.948).
Figura 4 Bateria paraguaia
Bateria paraguaya dirigida por los comandantes Autor: Jose Ignacio Garmendia - Museo Saavedra (Arg.). Paraguay de antes, Guerra del 70
13Sua conclusão é, portanto e logicamente, uma situação de impasse militar, apesar da desproporção das forças:
“Assim, no Norte como no Sul
da pequena República, a luta, as batalhas, várias expedições, nada
mudaram, durante os doze meses passados, nas posições dos beligerantes. O
Paraguai foi capaz de manter suas fronteiras militares, e se permanece
preso no lado do Atlântico, mantém ainda, pela Bolívia, suas
comunicações livres com o mar do Sul” (p. 955).
14As indicações “para o Norte como no Sul” e da saída pela Bolívia indicam algumas das novas especificidades desta guerra distante
15Observando
as imagens da guerra, quadros e gravuras, mas também fotografias, então
uma novidade, se percebe primeiro similaridades com outros conflitos
contemporâneos, principalmente a Guerra de Secessão dos Estados Unidos
(1861-1865). O traço mais óbvio são os uniformes, praticamente
copiados ou talvez comprados nos estoques disponíveis com o fim da
guerra (figura 5). Como os uniformes americanos tinham se inspirado de
uniformes europeus aparecem no Paraguai roupas exóticas, como os chapéus
dos bersaglieri italianos ou as amplas calças vermelhas
dos zouaves das unidades norte-africanas do exército francês.
16Esta
guerra tinha, porém, outros aspectos específicos. O primeiro é
que ela ocorreu muito longe das bases dos Aliados, porque depois da
primeira tentativa dos paraguaios de levar a guerra em território
brasileiro, as operações se restringiram rapidamente no seu território, e
quando Reclus escreve “mais de 40.000 homens estavam acampados nas
florestas e nos pântanos do Paraguai, a 3 000 quilômetros de
navegação de Rio de Janeiro” (p. 942). Isso para quem tinha sido
transportado por barco via o Rio de la Plata, as tropas brasileiras
enviadas para abrir uma segunda frente no Norte tiveram mais dificuldade
ainda para chegar no campo de batalha, a pé, e levaram um ano para
chegar no local:
“Depois de usar mais de um
ano para terminar a sua caminhada atravessando as florestas cortadas por
rios e pântanos que separa o planalto Atlântico da grande depressão
central da América do Sul, uma pequena força de cerca de 2 000
homens, recrutados nas províncias de Goiás, São Paulo e Minas Gerais,
tinha finalmente atingido em setembro 1866, a aldeia de Miranda, no
rio de mesmo nome, um afluente do Alto Paraguai” (p. 953).
17Embora
as operações fossem concentradas principalmente no rio, a
guerra ocorria, por conseguinte, em um vasto território, e o
Paraguai, privado da sua principal via de acesso, estava usando um
caminho tortuoso para obter suprimentos, pela Bolívia, “a estrada
pavimentada pela primeira vez em 1865 entre Paraguai e Bolívia, via
Corumbá e Santa Cruz de la Sierra, está cada vez mais frequentada por
caravanas” (p. 956).
18A guerra, nesta fase das operações, tinha se tornado principalmente uma questão de logística:
“Então, a guerra continua,
mais hedionda talvez que no passado. Não se trata mais de preparar
grandes movimentos estratégicos e de lutar em batalhas campais: a luta
que se trava na floresta, nos pântanos, ao longo dos córregos, não têm
outro propósito do que cortar as linhas de abastecimento e capturar os
comboios. Um rebanho de gado assustados, uma fileira de carrinhos cheios
de milho ou farinha, são o preço de cada escaramuça, de cada chacina:
dois exércitos estão lutando mais por comida do que para a glória ” (p
951).
19Juntamente
com a história das batalhas, Reclus, portanto, tem o cuidado de
descrever uma guerra de logística, menos gloriosa, mas crucial para o
futuro, e não esconde os piores aspectos do conflito, como o sofrimento
dos feridos e dos doentes.
20Como
na maioria das guerras empreendidas até então – ai
incluindo as guerras de Napoleão na Europa – muitas das mortes não
eram causadas pelos combates, mas pelas doenças que atacavam os soldados
acampados em precárias condições de higiene:
“Logo depois veio o flagelo
da cólera, o que reduziu o número de soldados muito mais do que tinha a
partida dos soldados vindos de Buenos Ayres. A insalubridade natural das
zonas húmidas tinha piorado como resultado da negligência das tropas e
sua ignorância absoluta das regras de higiene ” (p. 938).
21De
fato, as consequências da epidemia foram, sem dúvida, exacerbadas pela
negligência dos Aliados, que não tomavam as precauções que, por
exemplo, os exércitos europeus tiveram de aprender depois de muitos
desastres sanitários. Mais uma vez a inexperiência dos beligerantes tem
um aspecto positivo, porque mostra que o continente teve menos guerras
do que o Velho Mundo – se pagava caro:
“Todas as poças de água
estagnantes foram transformadas em esgotos imundos, milhares de
cadáveres humanos insepultos entraram em decomposição no chão, mais de
cem mil carcaças misturadas com a carne podre de animais abatidos
tornavam a atmosfera irrespirável, como o admitiu o relatório oficial do
Ministro Paranaguá. Mais de um terço do exército acampado em Tuyuti foi
atingido pela praga; 7500 pacientes encontravam-se nos três hospitais
de Cerrito, ltapirú e Corrientes, a mortalidade atingiu proporções
tais que metade dos pacientes morreram ” (p. 939).
22Esta
epidemia contribuiu para o isolamento dos combatentes e, certamente,
para a impopularidade da guerra, novamente por descuido das autoridades
militares:
“No final de setembro, quando
a estação quente tinha começado na região do Paraguai, a cólera
novamente fez a sua aparição no campo brasileiro, e as populações de
Buenos Aires e de várias outras cidades argentinas tiveram que impor
quarentena rigorosa a todos os navios vindos do porto de Itapirú. Além
disso, deve-se dizer, as precauções mais básicas são negligenciadas
pelos inspetores do acampamento, e em alguns casos, os próprios oficiais
parecem querer aumentar as causas da insalubridade ” (pp. 944 -945).
23A
menção de hospitais de campanha mostra que um esforço tinha sido feito,
mas devemos lembrar que, até na Europa foi apenas após a Guerra da
Criméia (1853-1856), graças à ação determinada de Florença Nightingale,
que foram organizados serviços médicos um pouco mais eficientes. Mesmo
para os feridos que escapavam da cólera, a falta de
medicamentos eficazes (sulfamidas foram disponíveis apenas durante a
Segunda Guerra Mundial e antibióticos depois dela) era a causa principal
dessa terrível mortalidade, junto com a ignorância da
medicina sobre a importância da assepsia. A assistência aos feridos se
resumia praticamente a amputar membros esmagados por balas ou fragmentos
de bombas, a aplicar curativos nas feridas, esperando que a gangrena
não se alojasse nelas.
Figura 6 Atendimento aos feridos
El practicante Carlos
Faba, del cuerpo médico, atiende a los oficiales de la legión militar
Sebastián Casares y Julio Muzzio, heridos en combate.
La Guerra del
Paraguay p.96/6 - Miguel Angel de Marco - Editorial Planeta
Argentina SAIC 1998). Paraguay de antes, Guerra del 70, http://www.meucat.com/main.php?LOJA=album&SCR=1280
24Outro
fator agravou o sofrimento dos soldados aliados pois os paraguaios
incapazes de expulsá-los de seus territórios praticaram uma
política de terra arrasada:
“Quanto ao país, ele não
oferece nenhum recurso, tudo foi devastado pelos próprios paraguaios,
que derrubaram até palhoças, demoliram até capelas de aldeias; todo o
território que se estende ao sul do Rio-Tebicuari virou uma vasta
solidão” (p. 953).
25E,
claro, eles também recorreram ao recurso clássico dos povos cujo
território é invadido, a guerrilha, para usar o termo usado desde a
Guerra Civil Espanhola, onde outro povo hispânico infernizou a vida das
tropas de um império vizinho. Reclus observa claramente o fenômeno,
provavelmente lembrando o precedente das Guerras da Vendée, onde cercas
vivas e estradas tortuosas foram usadas para frear o avanço do inimigo.
“Geralmente são os paraguaios
que têm o privilégio do ataque, graças ao seu conhecimento do país e à
série de escarpas e valas de onde podem saltar inesperadamente nas
colunas em marcha” (p. 951).
26Ele observa, porém, que outros inimigos podem aparecer:
“Os paraguaios não são os
únicos inimigos a temer, saqueadores dos dois exércitos, escondido no
mato, podem estar à espera de comboios que passam para roubar gado
errante e saquear carroças atoladas” (p. 952).
27Uma
caricatura paraguaia, da época, leva ainda mais longe a
lógica da resistência ao afirmar que os brasileiros pensavam que “não é
de estranhar que os paraguaios nos batam, uma vez que até os animais
selvagens declararam guerra à nossa bonita esquadra” (Figura 7).
Figura 7 Até os animais selvagens resistem
El Centinela -
20 de Junio 1867 - No es estraño que los Paraguayos nos den carrera de
baqueta, pues tambien los animales selvaticos han declarado la guerra á
nuestra bien ponderada escuadra.
Paraguay de antes, Guerra del 70, http://www.meucat.com/main.php?LOJA=album&SCR=1280
28As
dificuldades dos Aliados, de acordo com Reclus, não se resumiam aos
assuntos militares, às análises sobre as operações e sobre seus fundos
estratégicos, ele detecta também falhas significativas na Aliança,
começando pelos conflitos militares. Algumas delas estavam relacionadas
com as rivalidades inerentes a qualquer coalizão, e a história está
cheia, e ainda hoje, de exemplos neste campo, desde as guerras da Grécia
antiga até as do Afeganistão:
“O exército brasileiro
recebeu de mau grado o chefe estrangeiro, e de todos os lados foram
ouvidas queixas contra o intruso que, sem contribuir para os custos da
guerra, pretendia recolher glória. Oficiais deram a sua demissão para
não jurar obediência ao presidente argentino” (p. 944).
29Os
problemas, no entanto, foram piores do que o habitual, uma vez que
“Qualquer ação conjunta entre os líderes aliados se tinha tornado
impossível: a frota se recusou a cooperar com as forças terrestres;
imperiais e argentinos se rejeitavam mutuamente a culpa de cada
desastre” (p. 938). As tensões foram naturalmente agravadas pelos
reveses sofridos pelos Aliados, com graves consequências políticas:
“O fracasso era grave; mas as
recriminações, disputas, ódios aos quais deram luz entre os líderes
aliados foram muito mais graves em termos militares. O General Flores,
insatisfeito com o papel secundário atribuído a ele pelos líderes
aliados, deixou abruptamente o exército e voltou para Montevidéu, para
consolar-se, pelo exercício da ditadura, de todas as decepções
ressentidas” (p. 938).
30Essas
falhas foram bem exploradas pelo Presidente do Paraguai, que tentou,
sem sucesso, usar a solidariedade das repúblicas de língua
espanhola, em uma reunião com o general argentino:
“A partir de várias
informações obtidas sobre a conversa entre os dois generais comandantes,
parece que Lopez queria principalmente demonstrar o quanto era
deplorável e desastrosa para a república de Buenos Ayres esta aliança
com o império escravista do Brasil contra uma república irmã que têm a
mesma origem, a mesma história, os mesmos interesses. Ele falou sobre o
escândalo que esta aliança causou em todo o Novo Mundo, e lembrou o
protesto solene que o Peru tinha acabado de lançar, em nome da maioria
das repúblicas hispano-americanas. Além disso, ele declarou-se disposto a
fazer aos argentinos todas as concessões consistentes com a honra do
Paraguai, desde que a aliança com o Brasil seja rompida. A esse preço,
ele comprometeu-se a ser o campeão de toda a América espanhola e a
triunfar sozinho do inimigo hereditário. Sem dúvida, o General Mitre
deve ter entendido essa verdade tão fácil de apreender, que ao se aliar
para uma guerra de conquista com o Império brasileiro, ele havia traído
os interesses de todas as repúblicas americanas” (p. 936).
31Um
dos elementos de tensão apontados por Élisée Reclus é que os argentinos e
uruguaios eram, ao contrário dos brasileiros, beneficiários da guerra:
“Aos poucos, a Argentina
tornou-se mera espectadora do drama terrível cujos custos
recaem sobre o Brasil e o Paraguai. Ao mesmo tempo, eles são os
intermediários comerciais de grande movimento de homens e bens que
ocorre entre Rio de Janeiro e o acampamento de Tuyucué. É em Montevidéu,
Buenos Ayres e nas cidades ribeirinhas do Paraná que
se gastam os milhões oriundos da tesouraria do Brasil;
enquanto os impostos são dobrados e a moeda de papel substitui o ouro no
Império empobrecido, as duas repúblicas recolhem todas as riquezas
esbanjadas pelo seu poderoso vizinho para satisfazer a sua ambição de
conquista” (p. 960).
32Essas
tensões não afloraram durante a guerra e Reclus observou que “apesar do
ódio entre os dois povos e dos rancores surdos que se acumulam entre os
dois governos de Rio de Janeiro e de Buenos Ayres o Tratado de Aliança
permanece”, mas ele prevê que poderiam ressurgir ou até mesmo levar à
guerra (951 p.):
“Este tratado desastroso que
associou duas repúblicas ao Império para a conquista da outra república
só conseguiu confundir os aliados e prepará-los para a luta futura; já
se questiona se os brasileiros, por conta do ressentimento causado por
seu fracasso contra Humayta, não se virarão contra Buenos Ayres. Assim, a
guerra iria sair da guerra; como no drama antigo, o crime nasce do
crime” (p. 964).
33Este
não foi o caso, pelo menos não abertamente, mas Reclus
não hesita em falar de “ódio”, e observou que a opinião
expressa nos jornais era menos favorável para a Aliança que os governos:
“O gabinete de São Cristovão
[o governo brasileiro] não ignora que o ódio tradicional dos Platenses
contra seus vizinhos de origem portuguesa aumentou durante a guerra, ele
sabe que a imprensa quase inteira faz votos de sucesso para os 'irmãos'
paraguaios” (p. 964).
34Afloram aqui os medos recorrentes de países de língua espanhola frente ao imperialismo brasileiro ...
Figura 8 Realidades da Aliança
El Centinela - 24 de Octubre 1867. Paraguay de antes, Guerra del 70, http://www.meucat.com/main.php?LOJA=album&SCR=1280
35Em
comparação com as dissensões dos Aliados, o Paraguai – de
acordo com Élisée Reclus - está, ao invés, em uma situação bastante
confortável, que lhe permite encarar o futuro com otimismo “desde que o
exército da república tenha alimentos, roupas e armas, ele pode resistir
indefinidamente a todas as forças do Brasil, porque recebe ordenado e
não requer nenhum” (p. 957).
36Em
termos de armas o país não tem preocupações, uma vez que as produz em
abundância, graças à sua mobilização e à ajuda de técnicos estrangeiros:
“Quanto à fundição de
ferro em lbicuy e ao arsenal de Assunção, os
operários estão trabalhando dia e noite sob a direção de engenheiros
ingleses para fundir e estriar as armas de fogo, fabricar balas,
cartuchos e pólvora porque esta é da atividade incessante destas
instituições da qual depende a própria independência da nação” (p.
956).
37A mobilização geral não afeta apenas os homens, as mulheres também desempenham um papel crucial, alimentar a população:
“Na ausência dos homens, são
as mulheres que cultivam o solo e graças ao seu empenho em combinar
todos os seus trabalhos para a salvação pública, a nação paraguaia nunca
teve que temer fome durante a longa guerra, neste ano especialmente as
milho, mandioca, hortaliças e forragem, foram produzidos em grande
abundância” (p.956).
38O seu papel, no entanto, não se limita a comida, elas também galvanizam o entusiasmo dos combatentes:
“Nesta generosa rivalidade,
são as mulheres que se destacam: elas coroam de flores os jovens que vão
se juntar ao acampamento, e não entram em luto para aqueles que
caem no campo de batalha, até pedem para pegar em armas” (p. 957).
39Levado
por seu entusiasmo pela causa do Paraguai, Reclus chega a exaltar a
ação das damas da alta sociedade (o que pode surpreender o leitor a um
sorriso, para um anarquista elas não são entre os seus grupos sociais
favoritos) e a nobre resposta do Marechal López, outro herói improvável:
“Tendo coletado muitos
brincos e broches, as damas ofereceram solenemente a sua oferta para o
vice-presidente da República. No entanto, o Marechal Lopez não aceitou
este magnífico presente, e em uma carta datada do
quartel general e cheio de elogios para o 'sexo frágil', ele
afirmou que o Paraguai era rico o suficiente para que as mulheres ainda
não tivessem que renunciar a suas joias” (p. 957).
Figura 10 As mulheres da alta sociedade oferecem as suas joias
En
ofrenda del bello sexo del Paraguay de todas sus joyas y alhajas
para la defensa de la Patria. Asunción, 8 de Setiembre de 1867.
El Centinela - 12 de Setiembre 1867, Paraguay de antes, Guerra del 70, http://www.meucat.com/main.php?LOJA=album&SCR=1280
40Esta
indulgência para com o Paraguai tem provavelmente a sua fonte
– é a nossa hipótese – na assimilação que Élisée Reclus faz
provavelmente entre o Paraguai e a França revolucionária, atacada por
todos os poderes do Antigo Regime que a rodeavam e que não somente
resistiu aos seus ataques, mas levou a guerra aos seus territórios e
derrubou muitos reis e príncipes. Sente-se que ele sonha que a República
do Paraguai possa fazer o mesmo com o Império do Brasil... A
assimilação começa com uma observação sobre o “entusiasmo nacional” que
deve animar o Paraguai, que “prova” que ele não é uma ditadura:
“Não só o Paraguai tem os
meios materiais para continuar a guerra contra os invasores brasileiros,
mas ele também tem entusiasmo nacional, sem o qual nada grande pode ser
realizado. A maravilhosa unanimidade e a constância inabalável que o
povo mostrou nesta luta que já lhe custou tanto sangue, não podem ser
controlados por um déspota, eles devem ser o produto mais puro da vida
nacional” (p. 957).
41O
paralelo continua com a menção ao “bloqueio”, que faz parte do
vocabulário usado para referir-se à França submetida ao “bloqueio
continental” imposto pela Marinha britânica e que, como Paraguai, teve
que encontrar nos recursos do seu solo o que ela não podia mais importar
(incluindo a açúcar de beterraba, em substituição da cana-de-açúcar das
Índias Ocidentais: “Além disso, o bloqueio no Paraná obrigou o
Paraguai a gerar novas indústrias” (p 956).
42Aqui
é difícil não pensar no precedente francês do “levante
em massa” da Revolução, que chamou os cidadãos às armas, e
os enviou em batalhões formados para a fronteira. Neste
caso, em agosto 1792 um exército de 150 000 prussianos
e também de austríacos tinham entrado na França,
sendo o início das operações militares
catastrófico, pois o inimigo tomou Longwy e Verdun, abrindo a
estrada para Paris. Mas as tropas francesas vieram de Sedan e Metz,
fizeram a sua junção na Champagne e, no dia 20 de setembro, pararam a
invasão estrangeira no planalto de Valmy, que ficou como o
símbolo da força da Revolução.
Figura 11 Batalha de Valmy, 20 de setembro 1792, por Horace Vernet
http://www.histoire-image.org/pleincadre/index.php?i=1058
43Esta
guerra deixou uma marca duradoura na memória nacional francesa graças
às canções patrióticas dos voluntários do Exército no Reno (o
simétrico fluvial do Paraná), que cantavam no batalhão vindo
de Marselha e que se tornou o hino
nacional francês, a Marselhesa.
44Desse entusiasmo
positivo é muito fácil passar à antipatia que os paraguaios
tinham pelos brasileiros, vistos como o inimigo hereditário:
“Os Hispano-Guarani não
querem de jeito nenhum ser escravizados pela raça portuguesa que
combateram durante três séculos, e que agora tenta fazer conquistar seu
território por escravos; eles preferem sacrificar suas riquezas e suas
vidas, e é por isso que, mesmo começando a entender seus direitos como
cidadãos, eles observam uma disciplina tão rigorosa, toda a nação
tornou-se voluntariamente um exército” (p. 957).
45A
menção da “raça Português” lembra a do “sangue impuro” dos invasores na
Marselhesa. Este tipo de deslize ocorreu também no Paraguai,
cercado por inimigos poderosos como evidenciado pelas figuras 11 e 12
mas provavelmente Reclus nem era ciente deles.
Figura 12 Os três macacos, o Imperador, Tamandaré e Polidoro
El Centinela, 1867, Paraguay de antes, Guerra del 70 http://www.meucat.com/main.php?LOJA=album&SCR=1280
Figura 13 Como caçar os Negros
Así se cazan los negros Cabichuí n°34, 1867
46Élisée
Reclus, implicitamente compara o Paraguai com a França
revolucionária, e faz uma ilação ao comparar o Império
brasileiro ao Segundo Império Francês, ao qual ele tem boas
razões de odiar uma vez que ele foi exilado por ter se
rebelado, como muitos republicanos, contra o golpe de Estado de Luís
Napoleão Bonaparte, em dezembro de 1851. Depois de ficar por um tempo em
Londres e na Irlanda viveu na Louisiana e na Nova Granada (hoje
Colômbia) antes de retornar a Paris, enfraquecido por febres tropicais.
47Essa
hostilidade ao regime aparece ao longo do texto, primeiro pelo fato de
que ele chama, na maioria das vezes, o Brasil como “o Império” (a
palavra é repetida uma dúzia de vezes, geralmente ligada a adjetivos
depreciativos “escravagista”, “empobrecido”), raramente elogiosos
(“grande”, “poderoso” – mas muitas vezes para enfatizar a desproporção
com o Paraguai – e raramente neutros (“jovem”). Da mesma forma os
brasileiros se tornam “os Imperiais”, a guerra foi desencadeada por seu
“ultimato arrogante”, etc. Reclus opina “Deve-se os olhos para
a evidência e reconhecer que o primeiro a cansar desta guerra sem fim
foi o poderoso império e não a imperceptível república” (p. 950) e “o
peso da guerra cai quase inteiramente sobre o Brasil, não é de estranhar
que já mostre sinais de uma grande fadiga” (p. 961).
Figura 14 Soldados brasileiros ajoelham-se ante a estátua de Nossa Senhora da Conceição
Procissão em 30 de maio de 1868, autor desconhecido
Salles, Ricardo. Guerra do Paraguai: memórias & imagens. Rio de Janeiro, Edições Biblioteca Nacional, 2003 (p.117), http://olapaazul.com/tag/hino-nacional/
48Para
explicar essa fadiga, o peso da guerra que ameaça o Império, ele sugere
várias razões. Em primeiro lugar, o fraco apoio da população brasileira
naquela guerra distante
“Em outras partes do Brasil, a
uma distância de vários milhares de quilômetros da República do
Paraguai, as pessoas não sentem para a conquista distante do forte de
Humayta a raiva militar que leva a sacrificar alegremente sua vida” (p .
961).
49Na
verdade, a guerra despertou interesse apenas no início, quando se
alistaram em massa os “ Voluntários da Pátria” (um nome que foi
dado àruas em todo o Brasil), e no final, para os desfiles da
vitória.
Figura 15 Desfile da vitória, março de 1870
Desfile militar em 1° de março de 1870, depois da vitória sobre a Guerra do Paraguai, Ângelo Agostini.
Bolsa do Rio XXI, 2000
50A segunda razão é financeira, a guerra custa muito caro e ameaça seriamente as finanças do país:
“A longa luta não só tornou o
recrutamento muito difícil, ele também quase esgotou os recursos do
país e jogou o governo no mais cruel embaraço financeiro. Os
empréstimos, no exterior ou no próprio país, tendo-se tornado
completamente impossível, é agora necessário emitir papel-moeda em
grande quantidade [..] e do Império do Brasil, com seus 8 milhões de
habitantes livres, usa para seu comércio quase meio bilhão de notas e
promissórias garantidas por um Tesouro vazio. Em todo o mundo, não há um
único país que tenha uma percentagem tão elevada de dinheiro de papel, e
ainda assim este é apenas um começo. A temida avalanche de papel-moeda
vai continuar a crescer até que a Nação esteja completamente arruinada”
(p. 961).
51Mas
o principal problema não é esse, mas o recrutamento forçado que teve de
ser utilizado para compensar o declínio do número de voluntários desde
que a guerra se arrastava:
“Não é um recrutamento
regular, deve-se usar uma verdadeira 'caça ao home' para encontrar a
quantidade de 'carne para canhão' necessária para a dignidade do
Império. Os membros da Guarda Nacional designados para ir à guerra que
não obedeceram imediatamente ao convite dos governadores provinciais
foram caçados na floresta, acorrentados e levados para o porto de
embarque como criminosos. Os vagabundos, bêbados errantes, estrangeiros
ou nacionais, proletários brancos ou pretos que não tinham protetores
bem colocados foram capturados e lançados nas prisões que serviam de
casernas para os novos recrutas” (p. 940).
52Pior,
era necessário incorporar os escravos no exército para reconstituir os
batalhões após as batalhas sangrentas do início da campanha:
“Os escravos tinham de
preencher as lacunas que não preencheram os voluntários.
No dia 26 de abril de 1867, de acordo com o relatório do
Ministro Paranaguá, 1 710 escravos foram enviados para os
oficiais de recrutamento. É verdade que para fazé-los apreciar a glória
de ser morto no Paraguai, lhes era concedido o título de Brasileiros e
da liberdade de suas mulheres; mas a lei não tinha libertado os seus
filhos” (p. 940).
Figura 16 Liberação de escravos para a guerra
Patriotismo do senhor de escravos, Semana Illustrada, 11 de novembro de 1866.
http://confrariadospoetasdejaguarao.blogspot.com.br/
53E
para muitos deles – pelo menos aqueles que sobreviveram – o retorno da
guerra foi difícil, eles obviamente não desejavam voltar para a fazenda
(Figura 17) e os seus abusos. Muitos deles se estabeleceram no final da
guerra no Rio de Janeiro, ocupando o Morro da Favela, cujo nome
tornou-se sinônimo de moradia precária.
Figura 17 A difícil volta dos escravos após a guerra
Ricardo Salles, Guerra do Paraguai, Memórias e imagens, Biblioteca nacional 2003
54Para
este recrutamento tinha sido necessário que o governo desse o exemplo e
forçasse um pouco a mão dos donos de escravos, relutantes em doar para a
defesa da Pátria:
“Sobre o número desses
soldados improvisados, 344 eram de propriedade do Estado ou da Coroa, 76
foram oferecidos em contribuição à guerra por vários conventos de
beneditinos e carmelitas, 524 substituíram membros da Guarda Nacional
designados para o serviço e apenas 770 foram oferecidos gratuitamente à
Nação por proprietários isolados. Não sendo suficientemente pagos pelos
títulos honoríficos e condecorações dos quais o poder é tão pródigo no
Brasil, os produtores mostraram-se relutantes em oferecer generosamente a
sua propriedade viva, e para obter o contingente necessário, o governo
deve recorrer a empresários que compraram na fazendas grupos de escravos
logo depois transformados em regimentos de patriotas, o governo deve
recorrer a empresários que compraram na plantações grupos de escravos
logo depois transformados em regimentos de patriotas” (pp. 940-941).
55In fine, Reclus reconhece a eficácia militar destas medidas, mas sublinha o seu custo moral e político:
“Através de todos esses
meios, de moralidade mais que duvidosa, cujo resultado deve ser de
introduzir no exército elementos de indisciplina e de dissolução, as
perdas sofridas pelas forças brasileiras foram amplamente compensadas
durante os oito meses após o desastre de Curupaiti” (p. 941).
56Com
base nestas análises – e das suas óbvias simpatias e antipatias –
Reclus arrisca prognósticos, dos quais alguns mais tarde se revelaram
errados. Todavia criticar Reclus que escreve no calor do momento é
fácil quando se tem a grande vantagem sobre ele de saber o fim da
história. Outros foram não apenas justos, mas quase proféticos. Se pode
sorrir ao ler a pergunta ”Depois de ter sido por um longo período a
glória e a esperança do Brasil [a sua frota] será destinada a
transportar um dia para o Rio de Janeiro a bandeira do Paraguai? “ (p.
948). A idéia parece estranha hoje, mas devemos lembrar a marcha
triunfal dos exércitos franceses em toda a Europa após Valmy para
entender o que Reclus imagina quando ele escreve:
“Se ele for bem-sucedido para
terminar em triunfo esta guerra, e se a sua vitória faz dele o árbitro
dos destinos da Plata, os soldados que ajudaram a defender o solo
paraguaio podem seguir como conquistadores nas terras de seus vizinhos.
Há uma séria ameaça para o equilíbrio das nações do Rio da Plata, mas
essas nações criaram elas mesmas esse perigo por seu tratado desastroso
com o Império do Brasil” (p. 958).
57Parece
que ele tinha em mente o destino de reis e príncipes que acreditavam
triunfar facilmente dos exércitos de plebeus da Convenção. Outra
hipótese plausível que não foi confirmada, a de uma vitória de Pirro
brasileira, paga por uma ocupação cara e a revolta de todos os vizinhos
de língua espanhola:
“Mesmo se o Marquês de Caxias
tiver êxito na conquista de Humayta, mesmo entrando vitoriosamente em
Assunção, o império ainda seria obrigado a manter um forte exército no
Paraguai e nas repúblicas da Plata, para não perder um dia os frutos de
todas as suas Orientais [Uruguaios] que os Brasileiros teriam de
comprimir pela força, e esta árdua tarefa não pode deixar, mais cedo ou
mais tarde, de esgotar completamente a nação” (p. 964).
58Na
verdade Paraguai terminou a guerra tão esgotado que não foi necessário
ocupá-lo e as nações vizinhas preferiram compartilhar seus despojos com o
Brasil a se rebelar contra ele. Mas era impossível prever em 1867,
quando os Aliados estavam em tão lamentável situação.
59Curiosamente,
Reclus antecipa – mesmo julgando a sua realização improvável, mas com o
cuidado de uma fórmula conclusiva prudente – o movimento pelo qual os
Aliados prevaleceram no ano seguinte, tomando Humaitá:
“Nada sério poderá ser
tentado pelos brasileiros contra o quadrilátero inimigo até tê-lo
investido, até que tenham estendido suas linhas do rio Paraná ao Rio
Paraguai em um semicírculo de mais de 40 km. Mas se eles já tiveram
tanta dificuldade para manter seus dois acampamentos de Tuyucué e
Tuyuti, é provável que, mesmo dobrando o seu exército, um dia possam se
instalar ao norte de Humayta de forma segura, e fincar uma posição na
margem esquerda do rio Paraguai tomando a fortaleza de Tayi, localizado
em uma curva do rio, ao sul da cidade de Pilar? Isto é o que o futuro
nos dirá” (p. 953).
60O
resto da guerra, depois da queda de Humaitá e de Assunção, que a seguiu,
consistiu principalmente em perseguir o Marechal Lopez, que tinha
fugido, e foi conduzido pelo Conde d'Eu, genro do imperador (e filho do
ex-rei da França Louis-Philippe), que é visto na figura 18 cercado por
oficiais brasileiros.
Figura 18 O conde d'Eu, genro do Imperador, no Paraguai
Fotógrafo Dietze, Albert Richard (Auge da atividade em 1869), http://en.wikipedia.org/wiki/File:Conde_d_Eu_visconde_do_rio_branco_1870.jpg
61Mas
esta imagem, que parece ser o triunfo do regime e da dinastia, de fato
anuncia – como sabemos a posteriori – a queda próxima. Porque,
se a conduta da guerra não seguiu exatamente o curso previsto por
Reclus, no longo prazo ele esteve totalmente certo, antecipando
desenvolvimentos que ocorreriam mais de vinte anos mais tarde. Enquanto o
problema parecia militar, reunir tropas suficientes para preencher as
lacunas e tomar a ofensiva, ele presentiu que a solução
encontrada para resolver esta dificuldade tática seria a perda
estratégica do regime imperial brasileiro:
”No entanto, as enormes
dificuldades externas contra as quais luta o império devem
ser vistas como poucas em comparação com os infortúnios que o
ameaçam enquanto dura a escravidão, e que com certeza não deixarão de
abraçá-lo um dia “(p. 964))
62Na
verdade, a emancipação dos escravos como soldados abriu uma brecha em um
dos principais pilares de poder econômico e político e do sistema, e
era legítimo – e clarividente – perguntar:
”Seria contrário às leis da
história pensar que a emancipação dos trabalhadores ainda escravos no
Brasil, devido às consequências da guerra do Paraguai, será fatal para a
atual forma de governo?“ (p. 985).
63Assim,
a mudança do sistema escravista e imperial que Reclus vê além das
escaramuças no Paraná, além dos horrores de uma guerra malconduzida, e o
futuro que ele vê tomando forma – com otimismo, com voluntarismo – é
aquele que se realizou em 1888-1889, com a queda do Império que seguiu a
abolição da escravatura:
“Sem medo de errar, podemos
dizer com antecedência que, voluntariamente ou por força, os escravos do
Brasil serão um dia, próximo, cidadãos, ao lado de seus antigos
senhores. Os proprietários unidos para conservar seus escravos gritam
com horror que o Império não pode deixar de sucumbir com a servidão, e
seus temores não são infundados. A cada estado social corresponde uma
forma política particular. No Brasil e em Cuba, os dois únicos países da
América Latina onde ainda prevalecem instituições monárquicas
importados do Velho Mundo, essas instituições estão associadas com a
escravidão, e não é por acaso. Em um contraste mais marcante, a
emancipação dos negros tornou-se nas repúblicas espanholas o complemento
essencial da revolução política inaugurada em 1810” (p. 985).
Figura 20 Queda do Império e proclamação da República
Benedito Calixto Benedito Calixto (1853–1927), Pinacoteca Municipal de São Paulo
https://en.wikipedia.org/wiki/File:Proclama%C3%A7%C3%A3o_da_Rep%C3%BAblica_by_Benedito_Calixto_1893.jpg
- 2 Pelo menos em parte porque a frase completa era "Amor como princípio, ordem como base, progresso co (...)
64Foram
precisamente os oficiais do exército forjado pela Guerra do Paraguai,
nas dificuldades de uma campanha mal iniciada, que acabou por derrubar o
Império e instalar uma república pouco democrática, todavia mais de
acordo com as idéias registradas na bandeira nacional com o lema,
inspirado por Auguste Comte, ”Ordem e Progresso“2.
65Cento
e quarenta e cinco anos depois do fim do conflito, quais os traços que
ele deixou? No Brasil a sua memória é pouco visível, embora tenha sido o
único conflito armado em que o país participou fora das suas
fronteiras, além do envio de um contingente equipado e controlado pelos
Estados Unidos, à Segunda Guerra Mundial (na frente italiana). Algumas
ruas foram nomeadas ”Voluntários da Pátria“ em homenagem aos combatentes
brasileiros nesta guerra, e um monumento erguido em
Florianópolis, em 1877. No Rio de Janeiro o Centro de formação
dos soldados da Polícia militar é denominado de Centro de
Formação e Aperfeiçoamento de Praças 31º de Voluntários. Uma igreja de
Salvador e um município amazônico, nas margens do Madeira, bem longe do
Paraná, foram batizados Humaitá.
66No
Paraguai, a tragédia que foi a derrota contra os aliados e
principalmente as enormes perdas da guerra são sempre lembradas como a
principal causa de atraso no desenvolvimento, semelhante ao que foi para
a Bolívia perda de acesso ao mar durante a Guerra do Pacífico. No
centro da cidade de Assunção, o Panteão do Heróis abriga os restos
mortais do marechal Solano Lopez e recebe todos os anos uma homenagem
solene. A guerra também ajudou a ancorar no Paraguai uma desconfiança
significativa contra os brasileiros, que ainda se manifestou contra os
brasiguaios (brasileiros estabelecidos no Paraguai), e também nas
negociações difíceis para o aumento do preço da eletricidade de Itaipu,
vendidos ao Brasil.
Figura 21 Lembranças da guerra
De esquerda para a
direita e de cima para baixo: Placa de homenagem aos voluntários
catarinenses em Florianópolis. Igreja de Humaitá, Salvador, BA. Troféu
de guerra devolvido pelo Brasil ao Paraguai. Humaitá, cidade fluvial no
Amazonas.
H.Théry 2011. http://noitevsdia.blogspot.com.br/2010_04_01_archive.html. http://www.forte.jor.br/2010/03/07/brasil-devolvera-ao-paraguai-enorme-trofeu-de-guerra/. H.Théry 2005.
67Dentre
os traços que este conflito deixou, visualizamos no campo das relações
diplomáticas na América do Sul, no final do século XIX, e ainda no
âmbito do texto de Reclus, o pensamento de um outro intelectual
argentino com quem Reclus se relacionava, Juan Bautista Alberdi, autor
em 1864 de um livreto em francês,“Projet de reconstruction dynastique et
territoriale de l’Empire du Brésil”, no folheto El Crimen de guerra
(1869). Os questionamentos de Reclus e de Alberdi coincidem sobre a
desconfiança que ambos têm em relação ao Império do Brasil,
e principalmente também sobre a ideia de que um
Estado procede de um povo, não o inverso. O Brasil, espacialmente
desintegrado e cuja população é heterogênea, não parece à Reclus ser uma
nação, ao contrário do povo paraguaio, que tem a unidade
“Hispano-Guarani”. Para os intelectuais progressistas que foram Alberdi e
Reclus, é a partir dessas unidades nacionais pré-existentes que seriam
construídas os Estados, não o inverso. Mas essa guerra teve
precisamente o efeito de inverter a ordem dos
fatores, fazendo-a um poderoso instrumento simbólico da
integração nacional em volta do Estado, autoritário.
Além dos prognósticos sobre um conflito incerto, esses autores
em seus textos ilustram duas visões da relação entre o Estado, a
Nação e o Território que até então se opunham na América do
Sul