1A
história das favelas, na versão mais difundida, conta que ela surgiu no
final do século XIX num morro localizado no centro da cidade do Rio de
Janeiro chamado “Morro da Providência”. Soldados que retornavam do
combate aos seguidores de Antônio Conselheiro, chegaram de Canudos e se
instalaram no referido morro para pressionar o Ministério da Guerra a
lhes pagar os soldos devidos (Valladares, 2000). Os soldados acabaram se
instalando lá mesmo. O morro, porém, se assemelhava a outro que se
tornara muito conhecido durante o conflito de Canudos por ter sido o
último reduto dos combatentes que se insurgiram contra a República: o
“Morro da Favella”. Se a associação entre o morro baiano e o morro
carioca surgiu da memória dos soldados combatentes, da presença da
planta “favela” (ou faveleira) no Morro da Providência, ou dos escritos
jornalísticos e literários, não sabemos. O fato é que a denominação
acabou se generalizando para todas as aglomerações análogas que vieram a
se constituir. Desde então, o Morro da Providência entrou para a
história como a primeira favela do Rio de Janeiro.
- 1 Não se trata da hoje famosa Favela da Mangueira, mas de uma aglomeração localizada, segundo Vallada (...)
- 2 Uma das antigas praias do litoral da cidade do Rio de Janeiro, em área que foi aterrada.
- 3 A partir de 1865 passou a chamar-se Rua D’América.
- 4 A partir de 1875 passou a chamar-se Rua Barão de São Felix.
2Contudo,
mesmo antes da palavra surgir no vocabulário dos cariocas, e antes
ainda da ocupação do Morro da Providência, outras colinas da cidade já
se encontravam ocupadas, como o Morro de Santo Antônio (Abreu e Vaz,
1991; Abreu, 1994), Mangueira1
e Serra Morena (Valladares, 2000, 2005). Segundo Gonçalves (2013), uma
das primeiras referências diretas à ocupação dos morros como construções
“pouco sólidas” é o decreto n° 1187, de 04/06/1853, assinado pelo
senador do Império Francisco Gonçalves Martins, mandando aplicar as
disposições do decreto n° 353, de 10/07/1845 sobre o desmoronamento do
Morro de Santo Antônio. No Correio Mercantil, em 5 de outubro de 1855, já há uma contagem de casebres pobres encontrados na Praia da Gamboa,2 na Rua do Sacco do Alferes3, em São Diogo, na Cidade Nova e na Princesa dos Cajueiros.4
O articulista destaca que buscou ater-se às casas, visto que os
cortiços já seriam contabilizados pelas comissões das freguesias.
Correia de Souza Costa (citado por Vaz, 1994), escrevendo em 1865,
afirma que
(...) há uma parte de nossa
população pobre, que, fugindo do centro da cidade (velha) onde as casas
são mais caras, vai habitar os arrabaldes ou mesmo as montanhas situadas
no coração da cidade. (Costa apud Vaz, 1994: 590)
3Embora
as aglomerações em morros no Rio de Janeiro tenham sido agrupadas sob a
denominação de “favela” (agora não mais nome próprio, mas substantivo
comum) na segunda década do século XX, como afirma Abreu (1994), a
existência de casebres, de construções rústicas, sem saneamento ou
arruamento, ocupando terras sem título de propriedade, mesmo em áreas
urbanas, não data do início do século XX. O tipo de construção
encontrada nas favelas, os casebres ditos “improvisados”, longe de ser
uma exceção no Brasil nessa época, se encontra por todo o país, seja nas
áreas rurais, nas suburbanas e mesmo nas urbanas.
4Na
verdade, mesmo antes da formação das aglomerações citadas anteriormente,
as florestas das montanhas do Rio de Janeiro há muito já abrigavam
aqueles que se insurgiam contra a escravidão. Fugindo às torturas e
correntes “civilizadas” dos senhores brancos, parte da população
afro-brasileira se armava e vivia em suas próprias comunidades (Karasch,
2000). Corcovado, Catumbi, Santa Teresa, os morros de Laranjeiras, o
morro do Castelo, as montanhas em torno da Lagoa e da Gávea e,
especialmente, os morros da Tijuca e do Andaraí: todos eram locais de
quilombos (Karasch, 2000). Muitos dos escravos fugidos do campo rumavam
para a cidade para esconder-se ou para misturar-se à população negra
livre, passando a ocupar sítios próximos à área central (Algranti,
1988). As encostas dos morros, especialmente devido à sua cobertura
vegetal, serviam como esconderijos para a construção de mocambos e
abrigavam um contingente variado de etnias (Campos, 2004). Karasch
(2000) destaca, ainda, que Inhaúma, Irajá e Engenho Velho também eram
zonas de quilombos. Mas a palavra “quilombo” era uma designação de fora,
e seus moradores preferiam a denominação de “mocambos” (Sodré, 2002),
vocábulo que, no século XX – assim como a palavra “favela” – passaria a
ser sinônimo de habitação anti-higiênica.
5Como
materialidade, portanto, as aglomerações de casebres rústicos nos
morros da cidade já existiam muito antes da palavra “favela” surgir para
reuni-las sob uma mesma classificação. Nesse sentido, o que ocorreu
para que, nas primeiras décadas do século XX, tais aglomerações
passassem a chamar a atenção da imprensa, de autoridades públicas e
estudiosos da cidade, e se tornassem um objeto de intervenção
governamental? O que aconteceu para que os agrupamentos de habitações
rústicas dos morros do Rio de Janeiro fossem considerados um novo
fenômeno que ameaçava os habitantes da capital do país?
6Como
já foi amplamente discutido (Benchimol, 1999; Costa, 2004 [1979];
Hershmann e Pereira, 1994; Lima, 2013; Machado et al., 1978), o saber
que mobilizava a reflexão sobre o espaço urbano no século XIX era o
saber médico. Dele emana um poder capaz de planificar as medidas
necessárias à manutenção da ordem e da saúde do espaço urbano. A
etiologia social da doença corresponde ao “esquadrinhamento do espaço da
sociedade com o objetivo de localizar e transformar objetos e elementos
responsáveis pela deterioração do estado de saúde das populações”
(Machado et al., 1978: 18). A cidade é, portanto, o “objeto privilegiado
ou mesmo exclusivo de intervenção médica por reunir em sua desordem as
causas de doença da população” (Id, ibid: 260). Os médicos formulam uma
verdadeira teoria da cidade. Tudo aquilo que compõe o espaço urbano –
seus lugares, objetos e habitantes – devem se submeter ao estrito
controle da medicina. Os médicos percorrem a cidade identificando os
locais de perigo atual e virtual, perigo este que decorre
necessariamente da desordem urbana. Por isso, se desejamos compreender
como, em um determinado momento da história, a favela emergiu como um
novo objeto de governo, a reflexão e a prática dos médicos constituem um
bom ponto de partida.
7A
literatura existente sobre a história das favelas costuma ressaltar que o
higienismo apreendeu a favela como foco de doenças, “nódoa do Rio”
(Revista da Semana, 1918), “lepra estética” (Agache, 1930), e propôs sua
erradicação. No entanto, por que esses médicos higienistas só passaram a
se ocupar das aglomerações de casebres nos morros da cidade no início
do século XX, se tais aglomerações já existiam na paisagem urbana
carioca pelo menos durante todo o século XIX? Por que a medicina social
(que também é uma medicina urbana) começou a deslocar suas atenções dos
cortiços e dos espaços de acúmulo para fazer da aglomeração de casebres
aparentemente tão inofensivos, um alvo de sua sanha higienizadora?
8Estudiosos
da história das favelas costumam considerar que o motivo desse novo
foco de atenção se deve ao surgimento da favela como fenômeno urbano,
argumentando que as pequenas e frágeis habitações encontradas nos morros
da cidade até o fim do século XIX ainda não podiam ser consideradas
favelas, visto que faltavam-lhes atributos tais como a conotação de
adensamento, ilegalidade, insalubridade, desordem, autoconstrução e
falta de serviços e de infraestrutura urbana (Vaz, 2002). A
transformação do foco de intervenção governamental sobre a cidade seria,
assim, justificada pelo surgimento de um novo objeto urbano, que
existiria independentemente dos discursos e práticas que se produzem
sobre ele. A favela é, portanto, considerada como um a priori,
como portadora de atributos definidores e coerentes, tornando possível
afirmar quais aglomerações podem e quais não podem ser caracterizadas
como favelas.
9Não
obstante, não há consenso na comunidade cientifica sobre quais seriam
esses atributos definidores, visto que a favela é um conceito que não
apenas se transforma no tempo – “impedindo que quaisquer critérios
permaneçam válidos por um longo período de tempo” (Un-Habitat, 2003: 11)
–, como também no espaço, pois além da enorme heterogeneidade interna
aos assentamentos, aquilo que é considerado favela em um país ou cidade,
pode não ser em outro (Un-Habitat, 2003). Por isso, Yelling (1986)
assevera que a palavra é um termo próprio do discurso político e não da
ciência, e Gilbert (2007) observa que, sendo um conceito relativo, não
pode ser definido, com segurança, de uma forma universalmente aceita.
Prunty (2011) argumenta, ainda, que as medidas absolutas utilizadas para
quantificar a favela se fundamentam no estabelecimento de padrões
mínimos de necessidade, abaixo dos quais a residência é classificada
como imprópria para a habitação. A favela seria, portanto, o “outro” da
habitação moderna e higiênica, e na medida em que os parâmetros da
habitação moderna se modificam, também o fazem aqueles referentes às
favelas.
- 5 Mesmo assim, Preteceille e Valladares (2000) afirmam que a favela teria especificidades sociológica (...)
10Como
apontam diversos estudos (Silva, 2005; 2009; Taschner, 2003), a enorme
heterogeneidade desses assentamentos – que apresentam diferenças quanto
ao estatuto jurídico da terra, às qualidades morfológicas e
topográficas, aos materiais de construção utilizados etc. – coloca um
desafio de difícil solução para a elaboração de uma definição universal.
Hoje, a apreensão da favela como uma unidade espacial distinta das
demais áreas da cidade tornou-se ainda mais difícil, visto que até mesmo
a representação desses espaços como “loci da pobreza” vem
sendo questionada. Preteceille e Valladares (2000) reúnem uma série de
dados estatísticos e comparam os setores censitários de favela e de
não-favela na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Segundo eles, não
há nenhuma unidade dos espaços das favelas, pois quase um terço delas
não se distingue dos bairros “normalmente” urbanizados, tanto em relação
à qualidade dos equipamentos urbanos quanto à situação jurídica da
habitação. Os autores concluem, também, que a favela não se distingue
tão fortemente dos demais bairros populares em relação à educação e à
renda, e que, além disso, as situações de pobreza urbana e social são
mais frequentes fora das favelas.5
11Apesar
de serem tão difíceis de definir, as favelas têm sido comumente
estudadas como objetos já plenamente constituídos, cuja existência
independe dos discursos e instituições que são formados em relação às
mesmas. O motivo talvez seja o fato de que as palavras, como lembra Paul
Veyne (2008 [1989]), nos exigem que reconheçamos a existência de
objetos naturais que nada mais são do que o correlato das práticas
correspondentes. A partir do momento em que historicizamos os supostos
objetos naturais, vemos que eles não são objetos senão para uma prática
que os objetiva. Aquilo que confere sentido à favela, portanto, não
advém de sua expressão numérica, suas condições higiênicas ou sua
densidade e crescimento desordenado, mas sim, de toda a rede de
relações, de discursos, práticas e instituições que se conectam e se
articulam de diferentes formas ao longo da história. Historicizar a
favela é desnaturalizá-la, dessacrilizá-la, arrancá-la das correntes que
a prendem a relações de causa e efeito, pois a história da emergência
da favela não é uma sucessão de eventos bem articulados entre si.
Criamos a favela como objeto, decidimos delimitá-la, para que ela
pudesse ser mistificada, excluída, silenciada, removida, adorada,
integrada e esquecida. O desafio de fazer uma geografia histórica das
favelas sem partir da mesma como objeto pré-constituído não é nada
simples e não cabe em um pequeno artigo como este. Nosso objetivo é mais
modesto e, por isso, se restringe a questionar o porquê dessa mudança
da prática médica, que instituiu um novo objeto de intervenção
governamental, sem o qual, hoje, é impossível pensar a geografia urbana
carioca.
12A
abordagem do presente texto parte do pressuposto de que a prática não
pode ser explicada pelo objeto, pois é a transformação da prática que
revela e reordena aquilo que se apresenta à sensibilidade. Em outras
palavras, a emergência de um novo objeto (a favela) só pode ser
compreendida por aquilo que se faz, isto é, pela prática que o objetiva
(Foucault, 1981; Ogborn, 2009; Veyne, 2008 [1989]). A pergunta que nos
orienta é a seguinte: o que se estava fazendo em relação à cidade, e o
que ocorreu para que fosse atribuído a essa prática, um novo objeto?
Como veremos, a emergência da favela como objeto de governo se encontra
fortemente entrelaçada à nova geografia da cidade revelada pelos
médicos. A geografia histórica da favela é, nesse sentido, a história da
emergência de uma nova geografia urbana.
13Até
o último quarto do século XIX, as bases epistemológicas da Higiene
encontram-se no chamado neo-hipocratismo, que propõe que as doenças e a
moral do ser humano derivam da relação estabelecida entre o corpo e o
ambiente (Kury, 1990). Duas posições alternam-se na explicação sobre as
causas e formas de transmissão de doenças: a contagionista e a
anticontagionista (ou infeccionista). Ambas compartilham de uma
concepção ambientalista da medicina, fundamentada na hipótese de que
haveria uma relação intrínseca entre doença, natureza e sociedade
(Ferreira, 1996). Os contagionistas acreditam que a doença poderia ser
transmitida por meio do contato físico direto com os objetos
contaminados pelo doente ou mediante a respiração do ar contaminado. A
moléstia contagiosa seria aquela que “se comunica de indivíduo para
indivíduo por um vírus fixo ou volátil, suscetível de ser disseminado no
ar ambiente” (Rego, 1851: 53). Eles prescrevem o isolamento dos
doentes, a desinfecção de objetos e a instituição de quarentenas.
14Já
os infeccionistas (ou anticontagionistas) explicam o processo de
adoecimento a partir do conceito de infecção, compreendido como a “ação
exercida na economia por miasmas mórbidos” (Chalhoub, 2006 [1996]: 64). A
moléstia de infecção é, portanto, aquela que depende “de causas locais,
que não estende sua influência além das localidades onde aparece, e que
é resultado de um miasma” (Rego, 1851: 53). A composição do miasma, no
entanto, era desconhecida, mas acreditava-se que ele era formado pela
ação que substâncias em putrefação exerciam sobre o ar (Chalhoub, 2006
[1996]). Os infeccionistas recomendam medidas abrangentes como
intervenções sobre ambientes considerados insalubres (águas estagnadas,
esgoto, lixo, locais de ocupação densa e pouca circulação do ar), e a
abertura de grandes vias na cidade. Eles foram responsáveis por
construir o arcabouço ideológico básico das várias reformas urbanísticas
que varreram as cidades ocidentais na segunda metade do século XIX e na
primeira do XX (Chalhoub, 2006 [1996]). Todavia, apesar das acaloradas
discussões, os médicos, não raro, atribuem ao contágio a origem de
determinada doença, enquanto explicam outras como consequência de
miasmas.
15O
meio urbano é considerado um meio hostil e foco de enfermidades. A
pureza das condições atmosféricas do campo é contraposta à insalubridade
do ar confinado nas cidades (Benchimol, 1990). Os higienistas possuem,
pelo menos, dois objetivos principais: analisar e agir sobre os lugares
de acúmulo, de congestionamento de tudo aquilo que poderia produzir os
“miasmas” e causar doenças; e controlar a circulação, especialmente da
água e do ar, considerados fatores patógenos. Para garantir a
salubridade do ar, torna-se necessário combater tudo aquilo que bloqueia
ou impede o ar de circular. Combate-se o amontoamento de imundícies em
valas, canos, praias e praças; os hospitais que amontoam doentes
portadores das mais diferentes moléstias (Machado et al., 1978: 284); os
cemitérios do centro, onde os cadáveres são atirados em um grande
valado mal coberto de terra (Id, ibid: 284); as ruas e vielas tortuosas
que dificultam a circulação do ar e das pessoas; e nivela-se o chão da
cidade de maneira a impedir o acúmulo de águas estagnadas. Propõe-se a
expansão urbana do Rio de Janeiro por bairros considerados mais salubres
para desafogar o populoso centro da cidade; normas para construir casas
higiênicas, arborizar as calçadas e fiscalizar as construções; e a
relocalização de mercados e matadouros (Benchimol, 1990). O cortiço
passa a ser sinônimo de habitação anti-higiênica, sendo o grande mal a
ser combatido precisamente porque propiciava a aglomeração de muitos
indivíduos em cubículos.
16No
Rio de Janeiro, os higienistas sonhavam em fazer da cidade – que
apresentava condições tão desfavoráveis à higiene – um exemplo do poder
transformador da medicina. Forjada numa dura luta contra o pântano, a
montanha e o mar, como observa Bernardes (1992 [1962]), a cidade era
balizada pela presença de quatro morros: Castelo, Santo Antônio, São
Bento e Conceição, e as primeiras vias da cidade foram construídas
presas ao sopé dos morros para evitar o brejo. A expansão da cidade se
fez sobre uma planície encharcada por meio de sucessivos desmontes de
morros, drenagem e aterro de brejos e lagoas (Bernardes, 1992 [1962]).
17Em
meados do século XIX, as epidemias de febre amarela (1849-50) e cólera
(1855) tomaram de assalto à população e ceifaram grande quantidade de
vidas, especialmente nas áreas centrais. A partir de então, quem podia
abandonava a “cidade empesteada”, mudando-se para áreas que se elevam da
planície encharcada (consideradas mais salubres), ou para os vales mais
distantes do centro. As montanhas do Rio de Janeiro foram logo
valorizadas como local de residência permanente, especialmente as
encostas de Santa Teresa, Glória e Rio Comprido. Além disso, as
montanhas eram consideradas locais de cura e lazer e diversos sanatórios
e casas de saúde particulares foram construídos em morros (Abreu,
1992).
18Os
ares saudáveis das montanhas representavam a fuga de uma cidade assolada
por epidemias. João Vicente Torres Homem (1877) em seu Estudo Clínico sobre as Febres no Rio de Janeiro,
conta que, em 1850, por ocasião da primeira epidemia de febre amarela
na cidade, e durante os três primeiros meses do ano de 1873, muitos
estrangeiros abastados e “não aclimatados” se retiraram para lugares
elevados, como Tijuca, Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo, a fim de
ficarem fora do alcance do miasma gerador da moléstia epidêmica. O
autor ressalta que, em sua prática médica, costumava enviar seus
pacientes para os morros da cidade:
Sempre que é possível, a
convalescença de um doente de febre tifoide passa-se em uma localidade
elevada, rica de vegetação e abrigada das fortes correntezas de vento. A
base da serra da Tijuca (fim do Andaraí Pequeno), o alto do Rio
Comprido, o morro de Santa Thereza e a Gávea, são os arrabaldes para
onde mando os convalescentes, desde que podem sem perigo suportar a
remoção. (Torres Homem, 1877: 311)
19Em
1851, José Pereira Rego destaca que a febre amarela não penetra lugares
elevados e, em 1878, mostra-se surpreso com a difusão da febre tifoide,
que “não respeitando, como nas outras epidemias, a população dos morros”
(O Progresso, 1878: 617), acabou arrebatando muitas vidas nos morros de
Santa Tereza e do Castelo. Os higienistas creem que as áreas elevadas
estão mais protegidas, visto que “o ar carregado de miasmas que se
desprendem das matérias animais e vegetais em putrefação, ocupa por seu
peso específico as camadas inferiores da atmosfera e exerce sua ação
deletéria” (Santos apud Freyre, 2004 [1936]: 427). Por isso, as casas
térreas eram criticadas pelos médicos, pois a altura de um primeiro
andar já contribuía para “pôr a abrigo o homem destes efeitos nocivos”
(Id, ibid: 427). Quanto maior a altitude, menor os efeitos nocivos dos
miasmas.
20Quando
os higienistas olhavam para a cidade, viam uma multiplicidade de focos
de produção de miasmas: os pântanos, o lixo acumulado, o mercado de
escravos, zungús, cortiços e estalagens. Nessa época, inúmeros morros do
Rio de Janeiro já estavam ocupados. Todavia, do ponto de vista médico, a
ocupação dos morros apresentava algumas vantagens em relação aos
cortiços. Em primeiro lugar, os casebres localizavam-se em áreas
separadas da população mais abastada e, por isso, apresentavam um perigo
menor de contágio. Em segundo lugar, ao localizarem-se nas colinas,
desfrutavam de uma melhor circulação do ar, elemento primordial para os
médicos na manutenção da higiene. Carlos Bernard, por exemplo, afirma em
1860, sobre os morros do Castelo e Santo Antonio, que “os habitantes,
que moram lá em cima, gozam de bom ar e excelente vista, e nisso se
cifra todo o benefício daquela eminência” (Bernard, 1860: 224). Além
disso, o casebre do morro era convergente com a “vida em lar isolado”,
considerada pelos médicos como “célula normal do organismo social”
(Fontenelle e Barreto, 1918 apud Vaz, 1985: 74). Portanto, sob o ponto
de vista dos higienistas, não havia muitos motivos para se preocupar com
as choças construídas nas colinas.
21Até
então, o problema dos higienistas era a aglomeração. Carlos Seidl
afirmava, em 1903, que graças a estatísticas cuidadosamente organizadas,
estabeleceu-se como um princípio em higiene que “a duração média da
vida dos habitantes está na razão inversa do seu número no mesmo
alojamento”. (O Brazil-Médico, 16/06/1903). Em 1900, o Decreto n° 762,
em seu artigo 33, determinava que “os barracões toscos não serão
permitidos, seja qual for o pretexto de que se lance mão para obtenção
da licença, salvo nos morros que ainda não tiverem habitações”. O
objetivo não é reprimir a ocupação dos morros, mas a acumulação
insalubre das casas. Talvez seja por isso que o Morro da Favella, já na
virada do século, tenha chamado tanto a atenção.
22Se
recorrermos a artigos sobre aglomerações de casebres um pouco mais
afastados da área central, veremos que as descrições se diferem
significativamente daquelas dedicadas aos morros da Favella e Santo
Antônio. Em 02 de junho de 1907, num artigo do jornal Correio da Manhã,
o autor discorre sobre sua visita ao Morro da Babilônia. O artigo chama
a atenção porque foi publicado num período em que o significado da
palavra “favela” não havia, ainda, se generalizado para designar toda e
qualquer aglomeração de casebres em morros, estando restrita ao Morro da
Favella (localidade já bastante conhecida por meio das colunas
policiais). O autor descreve a montanha como acolhedora e sadia, como
abrigo e refúgio. Segundo ele, as numerosas “sadias montanhas” – Tijuca,
Santa Tereza, Corcovado e Sumaré – cobrem-se de habitações ricas,
“palácios acastelados”, rendilhados de jasmineiros e rosas, “onde os
felizes vão receber ar puro, aquecer-se aos primeiros raios do sol,
entronizados como ídolos”. Contudo, diz ele, há também “outras montanhas
agasalhadoras que a pobre gente sem lar, que ficou exposta ao tempo,
expulsa do casebre em que vivia por intimação do Progresso, vai, pouco a
pouco, ocupando. São quase todos os morros que formam a cinta da
cidade”. O Morro da Babilônia, segundo ele, era um dos preferidos pela
pobreza. A descrição que ele faz da paisagem merece ser transcrita:
Posto no litoral, entre terra e
mar, com a cidade aos pés, o oceano em frente, emerge vultuosamente
diante da Copacabana, defendendo aquela maravilha branca dos enxurros da
cidade. (...) Por seus flancos, semeadamente, encontram-se choupanas. O
asilo é franco. Cortam-no caminhos varejando os matos em linhas
sinuosas, ramificando-se em veredas, cada uma das quais leva a um
rancho, a um casebre, a um simples mocambo coberto de folhas de lata,
afogado em verdura. (Correio da Manhã, 02/07/1907)
23O
autor descreve a vida nas colinas como uma vida simples, porém sadia.
Ele retrata a diversidade das habitações como testemunho da
inventividade de seus moradores. A única vez que se refere a uma casa
suja e inabitável, que “não serve de moradia a ninguém”, é para
descrever o posto semafórico, onde se encontra Phelipe Duque Estrada, o
encarregado do posto. “Quem ousará habitar aquela cafua imunda?”, se
pergunta o jornalista – salientando a “grande temerária coragem” do
vigia. A linguagem romântica do jornalista exprime uma paisagem
distante, onde o “arvoredo esconde as choupanas, a altura sufoca os
rumores, a distância faz com que o homem desapareça”. A cidade, diz ele,
não se digna sequer a “levantar os olhos para a mole de pedra, forrada
de terra fértil sobre o qual exubera a lavoura dos humildes”.
24O artigo referido acima em muito se diferencia das matérias sobre o Morro da Favella. Em 27 de abril de 1904, o Correio da Manhã
noticia um homicídio ocorrido no malsinado morro que, segundo o autor, é
um “covil medonho onde se açoita a pior espécie de facínoras que
infestam esta cidade” – “quartel general dos ladrões e assassinos”. Para
lá chegar, diz ele, é necessário atravessar caminhos estreitos e
perigosos, “cheios de reentrâncias, verdadeiros covis onde se alojam os
criminosos, em busca de refúgio, temendo a ação da polícia”. O Morro da
Favella é, para a imprensa carioca, “o grande mercado da prostituição
barata”, a “aldeia do mal”, a “aldeia da morte”, cheia de gente que “não
tem deveres nem direitos em face da lei” (Correio da Manhã,
05/07/1909).
O leitor conhece a Favella, pois
não? Conhece-a por certo. De resto, seria um absurdo não conhecê-la,
pelo menos de nome. É um dos lugares mais afamados do Rio. É o lugar
onde reside a maior parte dos valentes da nossa terra, e que, exatamente
por isso, - por ser o esconderijo da gente disposta a matar, por
qualquer motivo, ou, até mesmo, sem motivo algum – não tem o menor
respeito ao Código Penal nem à polícia, que também, honra lhe seja, não
vai lá, senão nos grandes dias do endemoniado vilarejo. [...] Os grandes
dias na Favella são os dias de muito sangue, as tardes de refrega, em
que há tripas humanas expostas ao sol, ou à lua, como aconteceu na
madrugada de ontem. (Correio da Manhã, 05/07/1909)
25No
início do século XX, inúmeras palavras eram usadas para se referir aos
casebres isolados ou aglomerações da população pobre nos morros, como
rancho, mocambo, choupana, choça, cabana, tugúrio, cafua etc.; palavras
que denotam mais as características rústicas desses aglomerados.
Designar os demais aglomerados de casebres nos morros do Rio como as
“várias Favellas” (Correio da Manhã, 06/05/1909) significa utilizar o
Morro da Favella como metonímia de todos os “ranchos” e “vilas” dos
morros da cidade, permitindo que todos eles pudessem ser, ao menos
potencialmente, um Morro da Favella – com todos os seus problemas de
imoralidade, crime e insalubridade. A palavra surge, portanto, como
expressão genérica para qualificar esses aglomerados negativamente.
26Em
todo caso, o artigo sobre o Morro da Babilônia é um exemplo de como essa
associação entre o Morro da Favella e os demais agrupamentos de
casebres em morros não foi sempre necessária ou evidente, na medida em
que não se considerava que tais agrupamentos compartilhavam
características comuns. Isso permitia descrever essas aglomerações de
casebres em morros sem remeter necessariamente às características do
Morro da Favella. Backheuser (1906), quando reconhece no Morro da
Favella algo distinto dos demais tipos de habitação do pobre, destaca
somente este e o Morro de Santo Antônio: os mais populosos. Mesmo assim,
na década seguinte, todos os agrupamentos de casebres em morros da
cidade seriam associados a habitações anti-higiênicas. A cidade crescia,
sem dúvida, e o número de casebres nos morros também. Mas pelo menos
até a década de 1940, poucos apresentavam condições de adensamento
capazes de preocupar os higienistas. O que, afinal, aconteceu para que a
partir da segunda década do século XX, os agrupamentos de casebres em
morros, tão heterogêneos entre si, fossem agrupados sob uma denominação
comum, tornando-se alvos de intervenção médica?
27A
partir do final do século XIX, o dissenso em torno dos fundamentos
epistemológicos do saber médico, que caracterizara o panorama da
medicina acadêmica na primeira metade do século XIX, começa a se
alterar. A medicina experimental pôs fim à fase de maior dissensão entre
os esculápios, que caracterizara as décadas anteriores (Edler, 2003).
Os médicos do Império, majoritariamente defensores do paradigma
climatológico, foram confrontados com as teorias parasitológicas das
doenças e a epistemologia médica começou um processo de transformação. O
estudo sistemático dos micro-organismos (a Bacteriologia) estabeleceu
as provas da teoria dos germes, e revelou que as doenças e as infecções,
assim como a putrefação e a fermentação eram, na verdade, obra de
micro-organismos (Hochman, 2012 [1998]). Os bacteriologistas puderam,
assim, revelar, com o uso do microscópio, o que efetivamente eram os
miasmas e os contágios.
- 6 É importante destacar que a plena aceitação da bacteriologia como novo paradigma médico (já consoli (...)
28A
teoria dos germes transforma a forma como a cidade é apreendida pelos
médicos. Os pequenos seres responsáveis pelas doenças não se atêm aos
espaços de acúmulo, mas percorrem grandes distâncias por meio da água,
do ar e de hospedeiros como mosquitos, pulgas e ratos.6
A chave para compreender as doenças não seria nem o contágio e nem a
infecção, mas a transmissibilidade. Em 15 de março de 1902, Hilário de
Gouveia, já orientado pela medicina de Pasteur, explica como os morros,
antes protegidos da febre amarela, passaram a possuir vários casos da
doença:
A boa reputação que tinham
conquistado todos os sítios altos dos arredores do Rio de Janeiro
durante o primeiro período da invasão da febre amarela, fez com que os
morros de Santa Tereza, Tijuca etc., se cobrissem rapidamente, dali em
diante, de habitações. Essas edificações trouxeram consigo numerosas
escavações, obstáculos de toda a sorte ao escoamento fácil das águas
pluviais, já não falando na construção de lagos artificiais, de
numerosos depósitos e mesmo de grandes reservatórios d’água, expostos ao
tempo onde os mosquitos puderam aninhar-se e procriar à vontade. (O
Brazil Médico, 1902)
29Quando
Oswaldo Cruz – que retornara recentemente do Instituto Pasteur, na
França – foi nomeado para a Diretoria Geral de Saúde Pública, em 1903,
sua grande missão era controlar as epidemias de febre amarela. Em menos
de três anos, ele já apresentava quedas surpreendentes das taxas de
mortalidade e morbidade (Britto, 1995). Cruz se baseara no modelo cubano
de combate aos mosquitos, desenvolvido por Carlos Finlay, em 1881, e
enfrentou uma oposição dura de médicos, da imprensa e da população. Ele
havia abandonado os métodos antigos empregados contra a doença, como a
desinfecção de roupas, de objetos e do ambiente onde se encontravam
aqueles acometidos pela doença, e um dos principais motivos dos ataques
era a sua insistência em combater só os mosquitos (Britto, 1995).
30Oswaldo
Cruz organizou a campanha em moldes militares, esquadrinhando a cidade
em 10 distritos sanitários, cada qual liderado por um delegado de saúde,
e incorporou à Diretoria funcionários de limpeza pública e médicos da
municipalidade. As “brigadas mata-mosquitos” foram incumbidas de limpar
calhas e telhados, exigindo a proteção das caixas d’água, ralos e
bueiros. A polícia sanitária multava e intimava proprietários a demolir
ou reformar seus imóveis insalubres. O objetivo não mais era apenas
evitar a aglomeração e o acúmulo, muito menos os miasmas, mas,
principalmente, acabar com os depósitos de larvas e mosquitos. Oswaldo
Cruz foi implacável contra os cortiços da cidade, mas não deixou de,
pela primeira vez, planejar o saneamento dos morros próximos à área
central (vistos, agora, como focos potenciais de reprodução dos
mosquitos), como o Morro da Favella, o Morro de Santo Antônio e o Morro
da Mangueira – onde demoliu 70 domicílios (Vaz, 1985). Cruz reorientou a
ação dos higienistas, conferindo maior nitidez no contexto caótico de
reformas de embelezamento e saneamento da cidade, e em meio à ofensiva
comandada pelos engenheiros contra muitos dos alvos que os higienistas
haviam apontado no século anterior, e que os pastorianos, agora, achavam
irrelevantes (Benchimol, 1999).
31O
estabelecimento de uma causa microbiológica da doença forneceu uma nova
possibilidade de intervenção terapêutica. A medicina não só foi munida
de novos recursos, como também modificou as representações do mundo
vivo, do corpo e das relações entre os seres humanos e a natureza
(Czeresnia, 1997), deslocando o olhar para um mundo no qual seres
pequenos ou microscópicos atuavam como mediadores de todas as relações
sociais. Segundo Bruno Latour (1988), a lição em Sociologia que os
pastorianos deram ao seu tempo, é que se nós desejarmos obter relações
sociais e econômicas em estrito senso, nós precisamos, primeiro,
extirpar o micróbio. Os pastorianos precisaram invadir a cirurgia para
que o cirurgião pudesse estar sozinho com seu paciente, pasteurizar a
cerveja para que seu fabricante pudesse estabelecer nada além de
relações econômicas com seus clientes, pasteurizar também o leite para
que não restasse nada além de amor entre a mãe e a criança durante sua
alimentação.
32A
ciência de Pasteur desencadeia uma transformação daquilo que se
apresenta à sensibilidade. Antes, o miasma ou o contágio eram as causas
das doenças, mas eram, também, forças ocultas e inapreensíveis, que não
se encontravam disponíveis à experiência. O que a teoria dos germes faz,
é expandir a fronteira da sensibilidade, revelando aquilo que orienta o
comportamento das causas das doenças. Assim, técnicas terapêuticas são
reformuladas (saem a desinfecção e a quarentena; entram os
mata-mosquitos), e a topografia médica – geografia do risco que mapeia
os locais prioritários de intervenção profilática – também se modifica
para adaptar-se às regras de comportamento dos germes. Há, portanto, uma
transformação do “regime de visibilidade”, isto é, daquilo que informa
os médicos “sobre o que deve ser visível, como que aquilo que é visto
deve ser entendido e, simultaneamente, o que não merece ser visto”
(Gomes, 2013: 52).
33A
nova ciência dos micróbios só alcançou a aceitação plena dos higienistas
brasileiros com a concretização do Instituto de Manguinhos, a criação
de um periódico específico para os trabalhos experimentais em
microbiologia e com o esforço de conectar a produção científica dos
novos pesquisadores com a rede internacional da ciência (Benchimol,
1999). As décadas de 1910 e 1920 foram marcadas pela consolidação da
Bacteriologia no Brasil e a formação de uma nova geração de médicos,
como Carlos Chagas, Belisário Penna e Arthur Neiva. Com as epidemias de
febre amarela sob controle na capital da República, os sanitaristas
passam a dedicar-se ao saneamento rural, em especial ao combate de três
endemias rurais (ancilostomíase, malária e Mal de Chagas
[tripanossomíase americana]). Esse é o momento da “descoberta dos
sertões”, dos seus habitantes abandonados e doentes e do esforço de
curá-los e de integrá-los às forças produtivas do país (Lima, 2013).
34Penna
(1923 [1918]: 28) assevera que grande parte da população brasileira
vegetava “na mais sórdida miséria, em ranchos de palha ou de taipa,
inçados de barbeiros, de percevejos e de piolhos”. A partir daí, a
habitação rústica se tornaria um dos principais alvos dos sanitaristas
para combater as doenças do interior do país. Monteiro Lobato (2010
[1918]) – entusiasta confesso do sanitarismo pastoriano – argumenta que,
nos climas temperados, o inverno funciona como uma “desinfecção anual
do solo”, impedindo a proliferação excessiva de insetos nocivos, vermes e
micro-organismos parasitários. A habitação teria a função principal de
proteger seu residente contra a intempérie das estações. Em climas
quentes, porém, não havia essa barreira do frio, podendo os
micro-organismos nocivos à saúde do ser humano proliferarem em uma
“perene bacanal vitoriosa” (Lobato, 2010 [1918]: 284). Nesse caso, a
casa possuiria uma função de defesa contra o “excesso de vida invasora”.
Segundo ele, já estava provado que é no sapê e nas fendas do barro que
“se alapa o hematófago noturno” (Lobato, 2010 [1918]: 285).
35Belisário
Penna também destaca o perigo da “choça, cafua ou rancho”. Segundo ele,
onde quer que se permita a construção de casas de paredes de taipa e as
cafuas, lá se encontrarão os barbeiros. Essas casas não possuem janelas
e nem iluminação, dormindo toda a família num mesmo cômodo. O barbeiro,
“inimigo da luz”, vive nas frestas das paredes em plena escuridão, e
das frestas “surgem, às centenas, as larvas, ninfas, e adultos do
terrível inseto” (Penna, 1923 [1918]: 247). Somente as casas de tipo
higiênico, com paredes lisas, caiadas e sem frestas, estariam livres da
doença.
36O médico Raul Azedo, em 1920, publica um artigo no Jornal de Medicina de Pernambuco
intitulado “As casas que matam” (referindo-se aos mocambos do Recife).
Para ele, os mocambos eram receptáculos de micróbios e, por isso, era
preciso registrá-los sanitariamente, divulgar estatísticas
correspondentes e isolar as casas contaminadas (Lira, 1994). Além disso,
era preciso educar os sentidos das “classes incultas” para que melhor
se protegessem contra o mal. O casebre passou a ser concebido como o
principal obstáculo à regeneração da população brasileira. Substituí-lo
pela casa higiênica era uma prioridade para todos aqueles que almejavam o
progresso.
37Todavia,
como observa Belisário Penna, para verificar-se a precariedade de saúde
da população brasileira não era preciso afastar-se da capital. Segundo
ele, os subúrbios à margem da Leopoldina e da Central do Brasil
“despejam diariamente centenas de passageiros na estação da Praia
Formosa e da Central” (Penna, 1923 [1918]: 31). Bastava a simples
inspeção ocular para verificar a manifestação dos “estigmas da malária,
da ancilostomose e da miséria orgânica consequente”. Como afirma, em
1922, o médico e romancista Afrânio Peixoto, professor de Higiene da
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro:
Veem-se, muitas vezes,
confrangido e alarmado, nas nossas escolas públicas crianças a bater os
dentes com o calafrio das sezões [...] E isso não nos ‘confins do
Brasil’, aqui no Distrito Federal, em Guaratiba, Jacarepaguá, na Tijuca
[...] Porque não nos iludamos, o ‘nosso sertão’ começa para os lados da Avenida. (Peixoto apud Hochman, 2012 [1998]: 70 [grifos nossos])
38As
choupanas construídas nos morros só passam a ser alvo dos médicos com a
emergência da teoria dos germes. Os médicos rumam em direção às terras
“sem governo” dos sertões para descobrir um povo isolado e enfermo. No
entanto, quando voltam seus olhares à cidade, percebem que esse Brasil,
isolado e doente, nunca estivera tão longe. Nos morros do Rio encontram
as cafuas do sertão, a vida rural, a roça, as galinhas e porcos e,
também, a gente mestiça, doente, ignorante e bárbara do interior do
país. Os morros, antes a salvo do ar viciado e protegido pela viração,
agora abrigam no mato, nas poças e no lixo, a prole dos organismos
transmissores de doenças. A casa, mesmo que isolada, sem janelas, sem
utensílios ou divisórias – casa feita de taipa, de madeira, de palha;
cabana do negro, do sertanejo, do caboclo – torna-se o meio ideal de
reprodução dos germes da doença. Morro e casebre passam a integrar um
conjunto de elementos médico-sociais que, quando combinados, constituem
um novo objeto urbano. Do sertão vieram os combatentes que ocuparam o
Morro da Favella, e de lá também veio a condenação da choça, da cafua,
do mocambo, por intermédio da boca e da pena dos sanitaristas. A favela,
vocábulo que deriva da planta faveleira (tão comum na caatinga
pernambucana e piauiense), traz ao Rio o sertão e o implanta na capital
da República: não por obra dos soldados combatentes de Canudos (que
criaram apenas um topônimo), mas por obra da medicina, pois são deles,
dos médicos, que emanam as luzes da ciência do governo.
39Se
nas primeiras décadas do século XX, jornalistas, engenheiros, médicos
higienistas e homens públicos ligados à gestão da capital “deixam pouco a
pouco, de se interessar pelo cortiço, que se torna ‘coisa do passado’,
de importância menor para o higienismo”, como afirma Valladares (2005:
28), não é porque os cortiços foram eliminados da cidade, ou apenas
porque as favelas haviam crescido, mas sim, porque algo de mais
fundamental havia se transformado. A teoria dos germes fez emergir uma
outra repartição do visível e do invisível, reordenando aquilo que se
apresentava à experiência, recortando na experiência um novo campo de
saber, redefinindo o modo de ser dos objetos que se apresentam à
sensibilidade, armando o olhar cotidiano de poderes teóricos e definindo
as condições em que se podia sustentar sobre as coisas um discurso
reconhecido como verdadeiro (Foucault, 1981). Não se trata somente da
cegueira ideológica das classes dominantes, de preconceitos ou da
imputação de estigmas, mas sim, da estrita expressão da ordem do
sensível, que organiza sua dominação, que é essa própria dominação
(Rancière, 1996).
40Os
critérios de definição das habitações anti-higiênicas tornaram-se
outros: não mais o acúmulo produtor de miasmas, não mais apenas as
habitações coletivas, mas toda a habitação (coletiva ou particular)
permeável e reprodutora de micro-organismos, parasitas e todo o tipo de
hospedeiros de doenças. Mesmo a preocupação com a densidade se modifica.
A lógica da densidade da população por área deixa de indicar,
exclusivamente, o valor sanitário, pois a própria organização da cidade
moderna pressupõe a localização de um grande número de pessoas em
pequena área. A periculosidade do adensamento não mais se refere ao
número de habitantes por quarteirão e nem mesmo ao número de habitantes
por casa, mas sim, à divisão interna da casa e à distribuição dos
membros da família por cômodo: ou como afirma Rubens Porto, à “distância
entre as massas de construção, ou, melhor dizer, do ângulo de insolação
e do número de habitantes por peças” (Porto, 1938: 63).
41Se
olharmos os levantamentos estatísticos da época, veremos uma mudança na
razão classificatória utilizada para descrever o estoque habitacional da
cidade. Até a década de 1920, as cidades preocupavam-se,
predominantemente, com os cortiços e estalagens, e as estatísticas
apenas diferenciavam entre habitações coletivas e habitações
particulares. Porém, em 1933, as habitações passaram, também, a ser
classificadas de acordo com a composição material das construções. Não é
mera coincidência que o ano de 1933 seja frequentemente citado como o
ano em que as favelas começaram a marcar a paisagem carioca. A afirmação
está presente na conferência proferida por Victor Tavares de Moura em
1942 (Moura, 1943), no levantamento realizado pelo IBGE, em 1953 (IBGE,
1953) e no estudo realizado pela Sagmacs (1960) publicado pelo jornal O Estado de São Paulo. O ano de 1933 foi o ano da publicação do documento intitulado Estatística Predial do Distrito Federal,
pelo Departamento de Estatística e Publicidade do recém-fundado
Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Nele, pela primeira vez,
foram contabilizadas as “habitações rústicas”, isto é, as moradias
construídas com material de “menor qualidade” (incluindo casebres de
madeira e de outros materiais, assim como barracões e galpões),
constituindo 25% das habitações cadastradas, e revelando um novo aspecto
do problema habitacional da cidade, antes concentrado no combate aos
cortiços (MITC, 1933).
42A
bacteriologia reorganizou o campo de visibilidade da intervenção médica e
ressignificou o morro (antes protegido dos miasmas pela altitude e pela
circulação do ar) e a casa isolada (antes destituída do elemento
definidor da insalubridade perigosa: o acúmulo produtor de miasmas). A
partir dessas transformações foi possível unir áreas heterogêneas sob um
conjunto homogêneo, associando topografia e arquitetura ao modo de
vida. Como afirma Timothy Mitchell (1991), quanto mais natural parece um
objeto, menos óbvia é a construção discursiva. A naturalidade da imagem
topográfica permitiu que o objeto “favela” fosse organizado como um
objeto externo aos discursos que o descreviam. Por meio dessa imagem, a
favela pôde ser integrada à cidade do Rio de Janeiro como um objeto
natural e, posteriormente, pôde se emancipar dessa imagem para se
referir a outros espaços da cidade. A favela nasce no morro: não por
causa do morro que lhe emprestou o nome, mas porque ambos, morro e
casebre, foram integrados ao discurso governamental por meio da
medicina. Semelhança “natural” e condicionante social comum: a imagem
topográfica foi a semelhança que permitiu atribuir à diversidade das
formas de habitação, mesmo nos pontos em que elas são diferentes, aquilo
que se reconheceu verdadeiro em relação a somente uma delas.
43As
palavras, diz Michel Foucault (1981, p. 161), têm sempre o seu lugar não
no tempo, mas num espaço onde podem encontrar seu sítio originário,
onde podem deslocar-se, virar-se para si mesmas, traçar lentamente uma
curva inteira: um “espaço tropológico”. O Morro da Favella, “reduto dos
fanáticos” (como diz Backheuser, 1906) pôde deslocar-se de Canudos para
colocar-se, desta vez, sobre um elemento interno da capital – o Morro da
Providência – constituindo, assim, o “reduto da miséria” (Backheuser,
1906). E foi por analogia que a favela pôde deslizar em seu lugar
gramatical e assumir uma nova classificação – não mais como nome
próprio, mas como substantivo comum –; e, ao mesmo tempo, pôde adquirir
uma nova função geográfica – deixando de ser signo toponímico para
tornar-se classe de área.
44A
denominação de um novo tipo de aglomerado de habitações anti-higiênicas
faz com que a favela possa vir a figurar numa proposição, ser inserida
num quadro geral mais amplo e, assim, ser articulada com o conhecimento.
No momento em que a favela é nomeada, ela regionaliza, tece e conecta
descontinuidades sob uma essência comum. E é nesse quadro geral sobre o
qual o mundo se torna inteligível, que ela se constitui: primeiro, como
um novo tipo de habitação anti-higiênica; e, mais tarde, como enclave
rural na cidade, espaço marginal. Ao ser nomeada, a favela esgota tudo o
que ela contém; elimina a possibilidade da fala, silencia – pois já
traz consigo todos os elementos daquilo que é nomeado, todas as
proximidades, as vizinhanças e as analogias: “foco de contágio”, “aldeia
demoníaca”, “terra sem lei”. A favela é, em si mesmo, produto de uma
análise e não de uma descrição. Análise esta que se antecipa à
possibilidade de nomear, mas que torna possível ver uma realidade que só
então será recortada pelo nome. Somente quando os casebres inofensivos
nos morros e a palavra “favela”, distintos uns dos outros, passam a
comunicar-se entre si numa representação, é que se poderá, então, ver e
dizer algo sobre aquilo que, agora, impõe-se como um objeto
perfeitamente concreto e natural aos nossos olhos, mas que por tanto
tempo permanecera como algo real, porém, desconhecido e sem nome.