- 1 O presente artigo retoma parte da tese de doutorado do autor, defendida na Unicamp e publicada c (...)
1A natureza brasileira foi tema recorrente para diversos autores. Viajantes,
políticos e escritores de renome demonstraram interesse em relação aos
recursos naturais, alguns com estupefação, outros com receio de uma
degradação irreversível. Nomes como os de Euclides da Cunha, Alberto
Torres, José Bonifácio de Andrada e Silva e Joaquim Nabuco viam no
histórico padrão nacional de desenvolvimento promovido por nossas elites
um risco para os ecossistemas brasileiros e defendiam com veemência sua
preservação (Pádua, 1987; Fico, 1997).
- 2 Ver também o trabalho de Helouise Costa (1994) sobre a revista O Cruzeiro e a temática indígena.
2O
fotojornalismo é outro meio de comunicação que estabeleceu a temática da
natureza brasileira como central. Grandes revistas como O Cruzeiro e Manchete
apresentaram nos anos 1950 e 60 nossas virtudes naturais à semelhança
dos grandes espetáculos, fenômenos coloridos e grandiosos adequados à
sua linguagem visual.2
3Os
anos setenta representam para o Brasil a consolidação da indústria
cultural como atividade empresarial, e o momento em que o aparato
técnico adquire maior importância no interior do campo comunicacional. E
como será representada a natureza através dessas novas linguagens
técnicas, em um período de grande interdição do espaço público por conta
da ditadura militar?
4Para tratar essas questões faremos uma breve análise do programa Amaral Netto, o Repórter,
uma série de documentários da televisão brasileira que foi ao ar entre
os anos de 1969 e 1984, que entre outras coisas retratou as condições da
natureza brasileira e auxiliou a formar novas representações sociais
sobre esse tema.
- 3 Fidélis dos Santos Amaral Netto foi um político e jornalista de destaque no Brasil entre as décadas (...)
- 4 O Jornal Nacional foi lançado em rede nacional em setembro de 1969, enquanto o Globo Repórter surgi (...)
5Ligado
estreitamente ao regime militar, o deputado Amaral Netto prestou
recorrentemente homenagens ao Exército em seus programas, e muitos deles
explicitavam esse apoio.3
Esse foi um dos primeiros programas de destaque da televisão brasileira
a sair dos estúdios e auditórios, espaços de interiores onde se
desenrolavam as principais atrações do veículo, e a buscar imagens
externas e campos ampliados de forma ágil e inusitada, que propiciaram
aventuras espetaculares em que o ambiente natural adquiriu especial
importância. Amaral Netto ficou conhecido como o comunicador urbano que
se dispôs exatamente a viajar pelo território nacional com o interesse
expresso de desvendar os aspectos que se mantinham em segredo para o
grande público (Amaral Netto, 1991). As gravações externas eram
incomuns, e Amaral Netto veio, antes do Globo Repórter e do Jornal Nacional, preencher um pouco dessa lacuna na televisão brasileira em ascensão.4 Em suas andanças pelo país, ele trouxe relatos de lugares distantes que não mantinham ligação direta com seus espectadores.
6Mais
do que um simples cenário, a natureza brasileira tornou-se personagem
atuante de uma narrativa específica cujos aspectos principais
procuraremos apontar ao longo desse artigo. Discutiremos mais
detidamente dois filmes produzidos pelo deputado Amaral Netto: a Pororoca e o Atol das Rocas.
7Paul
Virilio (1993) afirma que o desenvolvimento das tecnologias da imagem é
próximo dos aprimoramentos na área militar, uma vez que a visão à
distância e os sensores correspondem a inventos mais propriamente
bélicos que civis. Aviação e cinema são contemporâneos, assim
como guerra e movimento são elementos indissociáveis. Em virtude disso, a
necessidade de vigilância ampliada e de deslocamento incessante tornou o
cinema a arte por excelência dos confrontos militares em nosso século.
Em muitas situações, câmeras ocupam a função de armas, causando tanta
destruição quanto estas. Em um trecho instigante ele afirma: “antes
de serem instrumentos de destruição, as armas são instrumentos de
percepção, ou seja, estimulantes que provocam fenômenos químicos e
neurológicos sobre órgãos do sentido e o sistema nervoso central” (Virilio, 1993: 12).
8A
abrangência do olhar cinematográfico e sua rapidez tem resultados às
vezes tão potentes como os armamentos, por isso o cinema em época de
guerra é uma das atividades mais estratégicas, financiada sem limites
pelos governos.
9Podemos
seguir o raciocínio de Virilio no caso do Brasil dos anos setenta. Em
um período de guerra interna, com interdição dos canais institucionais e
cerceamento dos direitos civis, Amaral Netto ficou conhecido como o
jornalista que defendeu com veemência os interesses do regime militar
brasileiro em uma fase de aguda modernização.
10O
deputado, acima de tudo, reverencia posturas militares dissimuladamente,
militarizando o relacionamento entre o campo comunicacional e as
regiões do país que ele busca documentar. Um país inóspito pode ser
conhecido de diferentes maneiras, especialmente através da conquista e
de uma visão ampliada. As regiões e paisagens desconhecidas podem
tornar-se, entre outras coisas, inimigos a serem vencidos, na guerra
simbólica travada pela nova ordem política contra a rudeza do ambiente
natural, as distâncias etc.
11Ao
retratar a natureza brasileira em seus filmes, ele a transformou em um
conjunto heterogêneo de fenômenos ímpares e, muitas vezes, assombrosos,
que realçam o caráter predestinado da nação brasileira. Como um
aventureiro determinado, ele adentra pelo território brasileiro e
transforma-o, na medida em que institui uma visão específica sobre suas
características e dimensões.
12Um
aspecto especial sobressai de seu filmes: neles é travada uma guerra sem
tréguas entre civilização e espaço natural, um enfrentamento forjado
técnica e narrativamente mediante diversos recursos estilísticos.
- 5 Pororoca é um termo indígena utilizado para designar o estrondo produzido pelo encontro das águas d (...)
13Por exemplo, o fenômeno da pororoca5 do rio Araguari recebeu da parte do deputado uma denominação prosaica, até assustadora: Monstro das Mil Faces.
Ele reconhece que essa denominação é dele mesmo, fruto de sua
contemplação ativa, fascinada e, principalmente, de uma avaliação
pessoal livre. Em relação à pororoca, Amaral Netto afirma: “eu a
chamei de Monstro das mil Faces, porque ela se enrosca, se desdobra, se
enrola, desenrola, desenrosca, por um percurso de quase cem quilômetros
acima do rio Araguari” (Monstro das Mil Faces, 1995).
14O
jogo de palavras e com ele a oscilação da realidade, mais a estimativa
aproximada, e possivelmente exagerada, da extensão do fenômeno, são
indicativos de que Amaral Netto se sentia livre, descompromissado frente
a qualquer rigor, seja jornalístico ou científico. Uma licença poética
secretada geralmente por viajantes e descobridores que, ancorados pela
legitimidade que lhes conferem a distância e o pioneirismo, encontram-se
desobrigados de um rigor supremo e da objetividade.
15No
decorrer dos filmes, esses aspectos tornam-se explícitos. Ainda no
episódio sobre o fenômeno da pororoca no rio Araguari (Pará) fica clara
sua adesão à figura do viajante que reverencia a memória e os relatos de
viajantes anteriores. Em determinado momento da viagem ele afirma, com
indisfarçável orgulho, que está refazendo um trecho do perigoso percurso
do navegador espanhol Vicente Yañez Pinzón, um dos primeiros europeus a
adentrar pelo rio Amazonas em 1500.
16Mais
adiante, após o desenrolar de toda a trajetória da viagem, entra-se em
contato com o fenômeno da pororoca. Diversos viajantes são evocados,
como Veiga Cabral. Em meio a uma tomada panorâmica do rio Araguari o
deputado recita o depoimento daquele sobre o fenômeno, uma reverência
especial aos que, como ele, desbravaram nosso território e,
principalmente, nossos perigos. Será reproduzida uma parte do depoimento
do navegador português para demonstrar as similaridades para com a
abordagem de Amaral Netto: “Num rugido surdo, alta, à galope,
rápida, rolando como um pedaço de mar que se precipita pelo continente,
estendendo-se até a foz do Amapá, logo, embolada ao meio da costa,
arrastando florestas, formando entulhos, uma engenharia selvagem...” (Pororoca, o Monstro das Mil Faces, 1976)
17As
aventuras de Amaral Netto corresponderiam a uma continuidade desses
esforços anteriores, porém facilitadas pelos recursos técnicos agora
disponíveis. É interessante notar uma similaridade entre as duas
descrições: selvageria e monstruosidade, deformidade e violência estão
presentes no fenômeno.
18A
bem da verdade as descrições possuem caracteres diferentes. É
interessante notar que Veiga Cabral inicia sua fala se reportando ao
rugido do fenômeno, ou seja, ao som por ele produzido, enquanto que
Amaral Netto realiza um diagnóstico quase que estritamente visual.
Obviamente, este e outros exploradores da região não poderiam ter acesso
às tomadas aéreas em helicópteros e outros recursos e seus relatos
possuem a marca dessas condições, mas podemos afirmar que a fascinação e
a sensação de perigo são extremamente semelhantes nos dois casos.
19Ao
se comportar como um conquistador moderno, o ambiente natural, para
Amaral Netto, concentra um grande rol de fenômenos estranhos e
aberrantes, sendo que sua narrativa aventureira garante um teor de
enfrentamento generalizado, um heroísmo forjado e constantemente
ritualizado.
20Após
uma travessia muitas vezes sacrificante e que exige um esforço
excepcional da parte do deputado e sua equipe, tem-se a recompensa da
espera do telespectador e do investimento daqueles, que consiste na
chegada do clímax do episódio, do local ou do fenômeno a ser observado.
Os fenômenos inusitados, como a pororoca do rio Araguari e o Atol das
Rocas com suas paisagens fantásticas passam por uma exposição frenética,
obsessiva, de forma a comprovar advertências anteriores em torno da
periculosidade e do caráter excepcional dos fenômenos e regiões
apresentados.
21Amaral
Netto se identifica mais com os aventureiros que cruzaram nosso país em
busca do desconhecido. Um país misterioso e cheio de riscos é o que
aguarda a expedição de nosso aventureiro. E todo aventureiro é alguém
que se arrisca precavendo-se, levando consigo suas armas. Os navegantes
europeus viajavam em embarcações que eram, antes de tudo, navios de
guerra e traziam consigo, entre outras coisas, seus artefatos bélicos. É
difícil imaginar um aventureiro desarmado, que enfrente o desconhecido
totalmente alijado de instrumentos de percepção e intervenção.
22Os
símbolos da modernização brasileira na década de 1970, como o
crescimento urbano, grandes hidrelétricas e a ponte Rio-Niterói são
reverenciados como o atestado de bom encaminhamento dos rumos da nação,
enquanto que nossa natureza esconde monstros disformes e acessos
perigosos. Arpões, helicópteros, aviões da Força Aérea Brasileira,
fenômenos naturais grandiosos e desproporcionais, equipamentos
audiovisuais e um repórter destemido. Todos esses elementos concatenados
instituíram um olhar agressivo sobre a natureza brasileira, plenamente
integrado ao momento político e ao estágio de aprimoramento tecnológico
que o país atravessava, na época. Amaral Netto foi nosso narrador
agressivo, buscando tornar inteligível um espaço simultaneamente hostil e
exuberante, uma alegoria de Brasil forjada pelas elites dirigentes de
então, no caso os governos militares, também agressivas.
- 6 A estética do lixo corresponde à produção intensa de um grupo de cineastas que atuaram nos anos 70 (...)
23Se
no campo cinematográfico temos ao final da década de sessenta um
momento extremamente fecundo e cheio de contradições (o período
1967-70),6 com a
passagem da estética da fome de Glauber Rocha para uma estética do lixo,
no setor televisivo Amaral Netto declara a chegada de uma estética
agressiva que incide sobre o nosso território, principalmente em seu
potencial natural (Xavier, 1993). Abdicando de intenções autorais em
termos cinematográficos e experimentando uma linguagem de
teledocumentários até então inexistente no país, o deputado Amaral Netto
estabelece conexões importantes com o pensamento ufanista daquele
período.
24As
grandes dimensões de Foz de Iguaçú, o “Monstro das Mil Faces”, a
desproporção dos rios amazônicos e a condição inóspita do Atol das Rocas
traduzem a natureza brasileira para a área do anômalo, do absurdo. A
percepção dessas áreas se dá pelo recurso ao caricatural, ao exagero,
elementos historicamente presentes na cultura popular e utilizados à
exaustão pelos espetáculos e festas, desde o circo até chegar aos shows
de auditórios.
25A
imagem de natureza construída nos anos setenta traz em si parte das
tensões vividas no campo social, em que os grandes projetos tecnológicos
representam o futuro, enquanto a natureza é o grotesco, a anomalia.
Amaral Netto estetiza, por uma via autoritária, os relatos de viajantes e
desbravadores do país dentro do modelo de televisão popular vigente no
período. Assim como os programas de auditório estetizam a anomalia das
classes populares, Amaral Netto exorciza nossa natureza como aberrante
(Sodré, 1992).
26A
protagonização fortemente centralizada, a recusa a uma postura autoral e
a dramaticidade afastam o trabalho de Amaral Netto da linha de
documentários de perfil científico e o aproximam dos espetáculos
ruidosos das classes populares. A violência de nossos recursos naturais
estilizados, o caráter anômalo e grotesco das áreas desconhecidas do
país demandam a construção de uma estética agressiva, militarizada.
27Amaral
Netto desvenda nossos mistérios constantemente “armado”, real e
simbolicamente, apresentando uma realidade nacional múltipla,
exuberante, rica, mas, ao mesmo tempo, perigosa. Um país em constante
estado de guerra, permeado por potências desconhecidas que demandam
precaução.
28Ele,
provavelmente, não tinha uma compreensão tão aprofundada do
relacionamento entre belicismo e ambiente. Mas seguiu a trilha do
tratamento que nossas elites reservaram ao nosso espaço natural, uma
atitude híbrida de respeito e profanação. Nesses termos, os equipamentos
de visão fetichizados adquirem, explicitamente, por intermédio de
Amaral Netto, uma configuração estritamente bélica, a única possível
capaz de tornar mais civilizado um país inóspito e perigoso como o
Brasil, especialmente naquele período de repressão.
- 7 Silvio Santos e Flavio Cavalcanti podem ser considerados dois apresentadores paradigmáticos da TV b (...)
29Há
algo de aberrante no ambiente amazônico, com sua paisagem
permanentemente inundada, pois os fenômenos diluvianos adquirem
conotações grotescas, gigantescas e anormais aos olhos da tecnologia que
os prescruta. O espetáculo ambiental promovido por Amaral Netto
parece estabelecer uma ponte com os shows de auditório que habitam
constante e proficuamente a televisão brasileira. Há algo no deputado
Amaral Netto que o aproxima dos animadores de auditório como Sílvio
Santos e Flávio Cavalcanti.7 Vale a pena voltar a essa questão ao observar-se o enfoque dado à pororoca-dilúvio.
30Segundo
Bakhtin (1996) os espetáculos populares, que constituem as matrizes dos
shows de auditório modernos, são festividades através das quais as
camadas populares constróem sua identidade fazendo paródia da cultura
oficial e profanando suas crenças mais arraigadas. Nesse processo ocorre
que seres e situações grotescas, desproporcionais, de corporeidade
escatológica, fazem parte das comemorações dentro de um caráter
positivo, de festa, na medida em que não há um parâmetro
pré-estabelecido de formas perfeitas, de corpo saudável e belo.
31Apoiada
em Bakhtin, Mira (s/d) busca demonstrar, que antes da Idade Moderna o
grotesco escapava à sua caracterização de vulgar, de baixo nível como
ocorre atualmente, exatamente por inexistirem definições precisas e
impositivas de uma estética universal. Nesse sentido, por intermédio dos
aspectos grotescos e cômicos de suas formas corpóreas as camadas
populares se permitem rir das manifestações das classes altas e de si
mesmas o tempo todo e parodiá-las.
As
manifestações do grotesco (...) estão intimamente ligadas ao contexto
da cultura cômica popular e à visão de mundo que a organiza. Formas
totalmente estranhas aos cânones estéticos que surgem no período
moderno. Não existe naquele contexto a idéia do corpo perfeito, acabado e
completo. O corpo representado pela cultura popular não é individual,
mas coletivo, em transformação, em movimento. Daí a preferência em
representá-lo em seus estados limítrofes, na passagem de um estado ao
outro. A falta ou o excesso são signos dessa incompletude, condição e
necessidade de transformação. (...) O grotesco degrada e regenera. O
alto não existe sem o baixo (Mira, s/d.: 134).
32Os
programas de auditório modernos resgatam, a seu modo, essa estética do
grotesco, de modo que as camadas populares urbanizadas se alimentam
continuamente de seus próprios sinais culturais. Histórias de
crime e festas arranjadas em torno de situações em que predominam a
comicidade e o corpo desproporcional são constantes, assim como a
paródia é travestida em chanchada e a algazarra e o desleixo atestam o
lado incivilizado e popularesco dos shows televisivos (Mira, s/d).
33Seguindo por esse caminho, percebemos que o corpo do Monstro das mil Faces
é, por sua própria denominação, aberrante, desproporcional, nocivo à
sociabilidade. É constante e enfaticamente expurgado e exorcizado como
sinal de incivilidade, da mesma forma que o carnaval popular descrito
por Bakhtin recebe censuras e condenações tácitas por parte da Igreja
reformada e dos grupos letrados.
34E
como a abordagem fílmica sobre a pororoca é capaz de diagnosticar, de
forma conservadora e pueril, esse aspecto grotesco e desproporcional de
nossas manifestações naturais?
35A
imprevisibilidade desse mundo caótico e de exceção só pode ser
destrinchada tecnicamente, mediante a atuação indiscreta e dominadora
dos aparatos de percepção construídos na modernidade. As ondas que
compõem a Pororoca perdem sua grandiosidade e impetuosidade ao serem
como que profanadas pelos instrumentos de medição e controle do
Repórter. “O Sargento Bruno aqui ao meu lado acaba de me dar a
velocidade aproximada calculada pelo helicóptero, 10 nós, cerca de 17
km/h, é a onda avançando e subindo o Araguari. Essa é a velocidade
dela...” (Pororoca, o Monstro das Mil Faces, 1976)
36Em
sua jornada constante pelo país documentando e dramatizando nossa
realidade natural, Amaral Netto e seus objetos não encontram limites,
pois intervêem hereticamente em fenômenos respeitados e mitificados
pelas populações indígenas, ribeirinhas e pelos antigos viajantes.
37A
partir de então, uma competição incessante é produzida durante todo o
percurso em que o helicóptero acompanha as ondas, a margem do rio e a
entrada do mar sobre a foz do rio Araguari. A seqüência do helicóptero
acompanhando as ondas do mar que adentram pelo rio contém esses
elementos explicitados. “Não tem fim. Mais de 6 km., notem bem. O
helicóptero tá correndo, e correndo, e não consegue chegar ao fim da
pororoca dentro do rio” (Pororoca, o Monstro das Mil Faces, 1976)
38O
helicóptero não representa simplesmente um meio de transporte utilizado
para proporcionar belas imagens sobre o fenômeno. Mais do que isso, ele
constitui parâmetro de comparação para se ter idéia da pujança das águas
diluvianas que “invadem” impetuosamente o rio Araguari.
39Os
termos invadir, dominar, empurrar, destruir, avançar, atacar, que
possuem conotação explicitamente bélica, são recorrentes na narrativa do
Repórter em sua descrição da pororoca. As causas naturais do fenômeno
parecem ser suplantadas por seus efeitos, dotados de conotações
militares e agressivas.
40A
velocidade da máquina serve, nesse momento, para atestar a desproporção
de seu tamanho, e põe em xeque sua normalidade frente aos parâmetros
sociais reconhecidos. Um helicóptero em alta velocidade abarca um
intervalo de espaço tido como incompatível a um fenômeno natural e só um
aspecto primitivo, diluviano, anormal, pode fazer frente a ele.
41Além
do helicóptero possibilitar imagens de registro, detectar a velocidade
das ondas e sua extensão, os equipamentos de áudio colocados
estrategicamente no igarapé captam o “ronco” da pororoca vários minutos
antes de sua chegada à foz do rio.
42Por
intermédio de sofisticados equipamentos técnicos (câmeras, microfones e
helicópteros) dá-se o confronto entre mundo civilizado, estipulado pelo
pensamento tecnológico, ordenado e racional e a natureza disforme,
abissal, destituída dos parâmetros de cálculo e organicidade caros à
modernização que o país então atravessava. Por todos os lados, em várias
frentes de batalha, ocorre uma verdadeira dissecação, violação
intestinal do fenômeno amazônico. Técnica e natureza constituem, nesse
ínterim mundos à parte, estipulam um conflito entre caos e previsão,
disformidade e cálculo.
- 8 A revista foi fundada em 1928 e por quase cinco décadas foi referência no fotojornalismo brasileiro (...)
43Nada
muito diferente em relação à abordagem que os índios brasileiros
receberam por parte das reportagens de fotojornalismo, como os da
revista O Cruzeiro.8 Explicitava-se aí, também, uma relação de colonização icônica, domesticação do outro por força de imagens. A
contraposição efetuada entre a civilização ocidental, tecnológica e
moderna e a cultura indígena é patente, construída por diferentes formas
de edição das imagens e das narrativas fotográficas (Costa, 1994).
44A
abordagem de Amaral Netto, semelhante a um cronista moderno, é incapaz
de transcender esse dilema. Ele não se dispõe a integrar esse espaço
que, por não respeitar seus cânones de racionalidade e impulso
tecnológico, é visto apenas como hostil e imprevisível, e nunca como
complexo.
45O
dilúvio incessante desafia a sociabilidade assentada nos parâmetros
racionais ditados pelo desenvolvimento tecnológico e pela economia de
mercado, atividade regular e previsível. Os dispositivos técnicos, com
sua velocidade e capacidade ilimitada de apreensão, permitem uma
captação desmistificadora e civilizatória sobre esses elementos
primitivos e destruidores.
46Em 1978 o Atol das Rocas foi filmado pela equipe da Plantel e ganhou também uma nova denominação dada pelo próprio Repórter: A Ilha do Nada. É
oportuno discutir alguns aspectos contidos nessa atitude do deputado
Amaral Netto. De início observa-se que o próprio fato de imputar um nome
novo ao arquipélago já prenuncia mais do que uma atividade de
documentar, relatar jornalisticamente uma situação ou lugar
desconhecido.
47Essa atitude aproxima seus documentários de uma perspectiva ficcional. Na linguagem cinematográfica corrente equivaleria a um thriller ambiental,
um filme de ação sobre uma área natural inexplorada e perigosa. Caso
contrário, se fosse unicamente um trabalho documental, não se
justificaria o recurso de dar um título ao arquipélago.
48O Atol das Rocas, distante cerca de 260 km do litoral do Estado do Rio Grande do Norte, é um arquipélago de 7 km2
que detém grande quantidade de aves marinhas migratórias, uma
diversidade enorme de peixes, crustáceos, tartarugas de diferentes
espécies e uma conformação de recifes difícil de ser encontrada em
outros pontos do Atlântico. Um ecossistema ao mesmo tempo rico e frágil,
resultado de uma série de circunstâncias naturais que envolvem
trajetória de correntes marinhas, temperatura da água, rotas
migratórias, cadeia biológica, entre outros elementos.
49Mesmo com toda essa diversidade de vida marinha, ele recebeu a pecha de Ilha do Nada.
Não teria sido mais fiel às suas características chamar o Atol de oásis
ou algo de conotação semelhante a um reservatório biótico? Diga-se de
passagem, o Atol das Rocas não é um ecossistema vazio, destituído de
manifestações de vida.
50Não
é o caso de criticar Amaral Netto por seu conhecimento científico
limitado ou por falta de assessoria técnica equivalente a suas
pretensões de desbravador do país. Ao contrário, o caráter vazio ou
cheio do arquipélago está relacionado aos procedimentos estéticos e
conceituais do realizador do filme e seus propósitos.
51Mais
uma vez, ele demonstrou sintonia para com os cronistas portugueses dos
séculos XVII e XVIII que, por sua atividade desinteressada em termos de
rigor científico e compromisso maior com considerações estéticas, eram
incapazes de catalogar e diferenciar a nossa variedade biológica (Valle,
1997).
52Na descrição de suas aventuras, Amaral Netto posteriormente explicou que emprestou esse nome ao local, Ilha do Nada, devido ao fato de que “aqui nada de poluição, nada de progresso, nada de gente, nada de civilização, tudo de natureza...” (As aventuras de Amaral Netto, 1992)
53Explicação
sem dúvida simples, banal. Ela é baseada em uma contraposição a seu ver
tranqüila. De um lado tem-se a poluição e a civilização que compõem o tudo, e de outro, o espaço natural composto pela fauna e flora abundante que perfazem o vazio, a falta, o nada.
54Pode-se
constatar que, através dessa fala, Amaral Netto explicitava sem
constrangimentos e de uma forma até mesmo didática, o pensamento vigente
nos anos setenta acerca da problemática ambiental. A pergunta que se
colocava era exatamente esta: como pensar progresso sem poluição? Algo
inviável naquele momento, pois tanto a poluição como o progresso se
encaixavam no projeto de modernização tecnológica da tecnoburocracia
militar.
55É
simples, ou “eles”, poluição e progresso, ou o nada dominado pelo
natural primitivo. Em outras palavras, a hidrelétrica de Itaipu e a
ponte Rio-Niterói seriam elementos “cheios”, plenos de racionalidade e
funcionalidade, enquanto que espaços como Rocas se definiriam pelo
vazio, a despeito de sua riqueza biótica.
56Um
esforço de compatibilização entre sustentabilidade ambiental e
desenvolvimento social encontrava-se fora da agenda de todas as
correntes políticas importantes naquele momento, e nem se fale junto aos
setores mais nacionalistas e conservadores (Viola, 1987; Ferreira &
Ferreira, 1992).
57O
“nada” evocado por Amaral Netto para designar o Atol das Rocas significa
que este é marcado pelo estigma da falta. Nessa condição, seus perigos
advém exatamente de seu aspecto inacessível, inabitável e pouco afeito
às necessidades humanas.
58Os
riscos da falta de visibilidade, falta de água potável, falta de
comunicação etc. sobrepujam a riqueza biótica e a diversidade de
espécies ali em exposição. Ao invés da desproporção e da disformidade
evocadas por ocasião do dilúvio amazônico, representado pela pororoca, o
Atol das Rocas define-se pela incipiência e aspecto selvagem.
59É o
predomínio do vazio que torna aquele espaço redundante, sempre igual e
destituído das condições básicas para uma sociabilidade salutar. Não é
forçar a nota afirmar que a interlocução inexistente no contexto mais
amplo da sociedade brasileira, entre o Estado autoritário e os partidos
de oposição e movimentos sociais da sociedade civil, recoloca-se também
no espaço do Atol das Rocas.
60Os
governos militares possuíam, entre outras coisas, um projeto
civilizatório para o Brasil, deixando de lado toda sua truculência. Ao
ditar os encaminhamentos da nação de forma unilateral eles
desautorizavam todos os outros setores sociais que se diziam portadores
de alternativas ao país, mas que ao mesmo tempo não se alinhassem ao
ideário do bloco no poder.
61Apesar
de a literatura especializada chamar atenção para a interpenetração
constante entre condições naturais e sociedade, relação que se manifesta
mesmo nos espaços mais aparentemente recônditos e primitivos, a
abordagem do ambiente nos anos setenta no contexto brasileiro mantém uma
perspectiva excludente. Ela cinde reiteradamente técnica de natureza
não permitindo sua reconciliação.
62O
trabalho de Corbain (1989) tem importância na compreensão do processo
que se desenrola na construção do imaginário sobre a nossa natureza. Ao
tomarem contato com a praia, universo que se mantém distante das
relações modernas, os viajantes dos séculos XVIII e XIX detectam as
fissuras que se produzem entre os espaços cheios da civilização e os
lugares vazios do litoral inculto.
Seria
conveniente analisar melhor a correspondência que se estabelece entre o
território litorâneo e o corpus legendário em vias de constituição. É
evidente que essa atividade do imaginário implica uma recusa da
apropriação e da exploração econômica desses lugares. (...) Nessa
perspectiva as praias, juntamente com os matagais e os pântanos,
autorizam um discurso de recusa da modernidade (Corbain, 1989: 236).
63Uma
das formas de se rejeitar os princípios civilizatórios da modernidade
repousa em apontar para outras lógicas de encadeamento, que podem ser
detectadas nos espaços naturais. A instabilidade, a falta de
encadeamentos mecânicos e a explosão do complexo desafiam o olhar
analítico dos modernos, rejeitam seus princípios de regulação e
equilíbrio estático.
64A
falta de instituições ou procedimentos sociais facilmente identificáveis
dentro de sua própria lógica acusam a presença do inelutável vazio, que
marcou o relacionamento ocidental com o ambiente litorâneo.
65Só
assim se legitima a intenção dos homens modernos de, armados concreta e
simbolicamente, instituírem um projeto civilizatório vertical, assentado
na técnica e na pura cisão para com o ambiente circundante. O olhar de
Amaral Netto contém aspectos distantes e disciplinadores que o impedem
de perceber a variedade e multiplicidade de manifestações de vida
marinha ali presentes. O arquipélago se transforma assim em um vazio de
sociabilidade, que só pode ser preenchido pela narrativa aventureira e
excludente dos dispositivos técnicos prescrutadores de nosso território.
66A
sociologia ambiental mostra que a construção social da natureza no
Brasil dos anos setenta é uma questão delicada e complexa (Ferreira
& Ferreira, 1992). A partir das manifestações observadas,
percebe-se que ela congrega também elementos que remontam à segurança
nacional e à sobrevivência do projeto de sociedade colocado pelos
setores hegemônicos de então. Repleta de dilúvios, castigos divinos,
destruição e elementos grotescos, só pode se tornar inteligível e
dominável por intermédio dos símbolos de nossa racionalidade e avanço
econômico.
67Com
a consolidação de um mercado de bens simbólicos, durante os anos
sessenta e setenta, a discussão acerca dos nossos recursos naturais
adquire novas conotações. Além das temáticas serem permeadas por novas
questões, outra diferença fundamental se sobressai: com as imagens sendo
sintetizadas na tela de televisão utiliza-se um arcabouço técnico cada
vez mais sofisticado e performativo para a apresentação da problemática
ambiental no Brasil.
68Mas
todas as nossas condições ambientais estão aí disponíveis? Não, somente
aquelas que nos possibilitam verdadeiros espetáculos da natureza.
Florestas, rios, lagos, corredeiras, ilhas e morros são cenários
privilegiados e cabem perfeitamente nessa sucessão de ficções e
narrativas triunfantes. Soberania, exploração de recursos e
desenvolvimento balizam os contornos desses espetáculos, além obviamente
das condições cênicas.
69Até
os anos setenta, período em que a integração nacional representava
ainda um ideal a ser buscado e o aparato de telecomunicações permanecia
restrito, o território brasileiro constituía ainda um campo propício
para os viajantes e seus relatos. Diversas regiões mantinham-se ainda,
real e imaginariamente, distantes do homem urbano e estimulavam a
intervenção dos aventureiros.
70Amaral
Netto refez rotas de diversos descobridores e reverenciou suas perícias
e coragem, de forma claramente sintonizada com práticas espetaculares.
Munido com sua retórica inconfundível e relações políticas bem
articuladas, encarnou, sem subterfúgios, esse papel de desbravador
moderno do Brasil.
71Entretanto,
essa não foi a sua única munição. Suas posições políticas e as ligações
com a cúpula das Forças Armadas constituíam as armas mais facilmente
perceptíveis de sua trajetória, mas não eram as únicas e nem as mais
potentes. Com um vasto arsenal, ele se dispôs a relatar as
características do nosso ambiente.
72Num
país ainda em vias de modernização e cujo território não estava
plenamente integrado, as tecnologias de comunicação tinham que
desempenhar um papel fundamental, estratégico mesmo. O nosso
aventureiro-repórter levou isso ao extremo. Seus equipamentos de
filmagem e meios de transporte, mais do que simplesmente objetos
técnicos aptos a interligarem criativamente sociedade e natureza,
constituíam, na verdade, um símbolo incisivo de modernidade que
desafiava os recantos excluídos desse projeto de desenvolvimento.
73Coloca-se
aí a chave da explicação para o papel central das tecnologias
audiovisuais nos filmes da Plantel, uma perspectiva também bélica,
representação de força frente às incertezas secretadas pelo território
desconhecido.
74Espontaneamente,
civilização e vida selvagem constituem realidades excludentes. Assim
como a questão ambiental caracterizava-se nos anos setenta por conter um
elenco de debatedores sem diálogos produtivos, inexistem intersecções
entre o modo de vida urbano-industrial e as outras áreas, desprovidas
das instituições políticas e econômicas capitalistas.
75O
olhar sobre a natureza adquire aspectos tanto documentais como
ficcionais, em uma mistura de poesia e distanciamento seguro. Sujeito e
objeto aparecem reiterada e explicitamente cindidos, impossibilitando
intersecções entre a mentalidade urbana e o ritmo peculiar dos espaços
naturais abrangidos. A medição da velocidade das ondas e a busca
frenética pelos pássaros marinhos são, nesse sentido, exemplos cabais.
76O
pioneirismo de Amaral Netto nesse comportamento reificador da técnica
foi que ele estilizou, até as últimas conseqüências, a enunciação desses
objetos modernos, tornando-os muitas vezes o próprio alvo de
contemplação e admiração dentro de uma dicotomia explícita construída
entre as regiões civilizadas e as incultas e perigosas do nosso
território.
77O
Atol das Rocas, a pororoca do rio Araguari ou Fernando de Noronha são
belos porque distantes, uma aproximação desavisada representaria
necessariamente caos, destruição. A natureza passa por uma efetiva
estetização, mas a custo de sua exterioridade e estranheza frente ao
arcabouço tecnológico que a registra. E também encontra-se condicionada,
ou melhor, cerceada a uma composição fílmica portadora das marcas do
homem urbano qualificado.
78Amaral
Netto traduz, exemplarmente, o comportamento ambíguo de nossas elites
nacionalistas frente às condições ambientais do território brasileiro.
Ao lado de manifestações retóricas de estupefação e regozijo frente à
quantidade e qualidade de recursos naturais, mescla-se uma repulsa de
insensatez e perigo que essa diversidade ambiental oculta.
Simultaneamente fascinante e grotesco, desproporcional, o nosso espaço
natural é depositário da rejeição civilizatória que os setores
hegemônicos historicamente impuseram sobre o nosso território, uma
possível metáfora para apontar a persistência de setores incultos e
hostis ao processo de desenvolvimento e a presença latente do dilúvio
enquanto castigo expiatório e capacidade de reposição do caos inicial. E
assim como nosso espaço público se encontrava esvaziado, interditado
por meio de medidas políticas verticais e autoritárias, o ambiente
também se definia pela falta, pela ausência de racionalidade e
ordenação. Em suma, um espetáculo grotesco e agressivo.