1A Geografia Histórica brasileira vem passando, pelos últimos 15 anos, aproximadamente, por um significativo processo de desenvolvimento, que pode ser constatado pelo crescimento do número de dissertações e teses1 na área, bem como na já consolidada Rede Brasileira de História da Geografia e Geografia Histórica2 e pela existência e permanência de Grupos de Trabalho deste campo de pesquisa no Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação em Geografia (ENANPEGE) e no Simpósio Nacional de Geografia Urbana (SIMPURB). Não podemos deixar de registrar o papel pioneiro e fundamental dos professores Maurício de Almeida Abreu, Pedro de Almeida Vasconcelos e Antonio Carlos Robert Moraes no processo de divulgação, disseminação, formação de pesquisadores e de suas densas obras no campo, o que, sem dúvida, influenciou decisivamente na constituição desse campo de pesquisa no Brasil.
2No entanto, apesar de tal crescimento, não temos certeza se é possível afirmar que exista um campo devidamente consolidado, com uma comunidade de pesquisadores atuando de forma sistemática e um debate teórico e metodológico assentado. Há tempos, Hertal (2003: 30) sustentou que, no “Brasil, este ramo geográfico não conseguiu estabelecer uma tradição que se consubstanciasse numa escola”. Recentemente, Carneiro (2016: 61) afirma que:
O universo da teoria da Geografia Histórica é profundamente dominado pela extensa e reconhecida produção anglo-americana. Em países como Inglaterra, França, Estados Unidos, Canadá e Austrália, a disciplina conseguiu formar um universo de pesquisa respeitado e se impor pela qualidade dos quadros profissionais e da produção teórico-empírica. Em contrapartida, os lugares para além do espaço centro-ocidental desenvolvido continuam a ser sub-representados no conhecimento geográfico. No Brasil, por exemplo, apesar das importantes criações individuais, a área ainda carece de instrumentais teórico-metodológicos e, não poucas vezes, é confundida com “história do pensamento geográfico”, “estudo da paisagem”, “influência ambiental na história” ou simples “estudo do passado”.
- 3 Os trabalhos de Carneiro (2016, 2018) oferecem um bom panorama desta produção. Sugerimos ao leitor (...)
- 4 Carneiro (2016) argumenta que o campo de pesquisa na Geografia Histórica começa a se formar após os (...)
- 5 Ver, por exemplo, Baker e Bilinge (1982), Guelke (1982), Green (1991), Graham e Nash (2000).
3A vasta literatura em língua inglesa3 foi a base daqueles autores que deram início à constituição do campo de pesquisa no Brasil. Se, por um lado, é possível identificar já no século XIX elementos de uma Geografia Histórica,4 apenas com Carl Sauer que o campo é, definitivamente, apresentado e consolidado dentro da disciplina, com a publicação do artigo "Introdução à Geografia Histórica", em 1941. Devemos destacar ainda as obras de Henry Clifford Darby, Andrew Hill Clark e Donald Meinig. A partir do processo de renovação crítica da disciplina na década de 1970, o campo da Geografia Histórica passa por importantes transformações e ganha uma significativa diversidade teórica e temática,5 o que o caracteriza até hoje.
4O presente artigo se propõe a oferecer ao leitor uma modesta contribuição metodológica para a pesquisa em Geografia Histórica. Se o elemento central que confere singularidade ao campo é a densa articulação espaço-tempo, será necessário o aprofundamento metodológico para o desenvolvimento de pesquisas na área, principalmente em relação aos processos de periodização e recortes históricos da pesquisa (Estaville, 1991; Santos, 1996; Vasconcelos, 1999; Grataloup, 1996, 2006; Abreu, 2010; Silva, 2012; Godoy 2013) e da seleção, organização, sistematização, uso e apresentação das diferentes fontes de pesquisa utilizadas (Abreu, 1987, 1998, 2005, 2010; Norton, 1991; Lowenthal, 1998; Bloch, 2001; Cardoso e Brignoli, 2002; Pinsky e Luca, 2012). Neste breve artigo, vamos nos dedicar a três elementos: a) as periodizações; b) as escalas; c) as fontes.
5Na introdução da obra Geografia Histórica do Rio de Janeiro, Maurício Abreu apresenta suas concepções teóricas e metodológicas de forma clara, direta e objetiva. Logo no início do trabalho, afirma que a
análise dos lugares (assim como a das regiões), não precisa, entretanto, estar informada pelo presente; pode-se muito bem centrar a investigação em tempos pretéritos. Alternativamente, é possível discutir o passado segundo temáticas setoriais, isto é, sem que se trate de lugares ou regiões. Em qualquer um desses casos estaremos enveredando pelo campo da geografia histórica. (Abreu, 2010: 17)
6O autor afirma que “os trabalhos de geografia histórica tratam necessariamente de ‘geografias do passado’ e, por conseguinte, são guiados por objetivos e métodos de pesquisa próprios” (Abreu, 2010: 17). Os alicerces metodológicos do autor passam pelos seguintes pontos: a) como empiricizar o tempo; b) como estabelecer períodos; c) como estabelecer recortes espaciais e análises multiescalares.
7Tornar o tempo empírico, para este autor, significa torná-lo material para que seja possível geografizá-lo e, daí, realizar a análise das espacialidades pretéritas ou do “presente de então” (Abreu, 2000: 18). No entanto, o autor deixa claro que o objetivo fundamental não é apenas a análise da materialidade do passado, mas sim a articulação desta com as relações sociais e de poder que dão conteúdo às formas. Tal perspectiva está fundamentada na obra de Milton Santos. Para Santos (1996), os sistemas técnicos constituem materialmente o espaço, permitindo uma análise concreta da base material sobre a qual as sociedades se constituem e se reproduzem. Além disso, as técnicas são um produto e uma condição da própria história, portanto, eles carregam em si o tempo histórico e as distintas temporalidades das sociedades, classes e grupos que as instituíram. As técnicas, nessa perspectiva, são uma medida do tempo, pois nos informam, direta e indiretamente, as estruturas e conjunturas políticas, econômicas e culturais de cada período. A implementação diferenciada das técnicas no espaço em função de determinadas lógicas e relações sociais, orientadas por princípios e projetos políticos singulares, operam a diferenciação do espaço, produzindo as diferenças e desigualdades entre os lugares. Finalmente, cada lugar recebe conjuntos técnicos de períodos distintos, o que torna o espaço uma estrutura constituída por um acúmulo desigual de tempos. Aí, segundo Santos, está a chave para empiricizar o tempo e torná-lo concreto.
8Devemos ressaltar que partir dos sistemas técnicos para pesquisar o passado é apenas uma possibilidade metodológica. Sem dúvida rica e instigante, mas que não exclui outras formas de se apreender espacialidades pretéritas. Nesse sentido, podemos escolher outros elementos que permitam apreender a espacialidade, como os conflitos, as práticas culturais, dinâmicas políticas as mais diversas, por exemplo. No entanto, é importante salientar que partir de um desses elementos não significa desconsiderar, negligenciar ou marginalizar os demais. Não temos dúvidas da necessidade de se articular as diversas “dimensões” da dinâmica social ao invés de cair em determinismos ou fundamentalismos de qualquer tipo, que reduzem as análises da dinâmica social a uma relação causa-efeito atribuída a uma dessas “dimensões”, seja a economia, a cultura ou a política, por exemplo. A própria formulação de Milton Santos aponta para esta perspectiva: partir das técnicas e da materialidade não significa ficar restrito a elas.
9A empiricização do tempo, para Abreu, é o primeiro passo da pesquisa. O segundo é a definição do recorte espacial. Tal recorte se dá em função de uma determinada questão, um problema que será investigado, uma inquietação que instiga a reflexão e o pensamento. Assim, o recorte espacial é uma operação intelectual que permite a reflexão sobre uma determinada questão mais ampla, permite a construção de um objeto concreto que tornará possível sua apreensão pelo pensamento. E pensar uma questão a partir de um recorte espacial específico nos leva, necessariamente, a pensar na espessura histórica do lugar e da questão, nos obrigando a operar outra uma nova delimitação, um novo recorte, dessa vez, no tempo. No entanto, é possível perceber que o recorte espacial e o recorte temporal, aqui chamado de periodização, não são independentes. Suas escalas, magnitude e espessuras estão articuladas: a periodização histórica necessita se espacializar. Retomaremos esse ponto mais a frente.
Especificado o lugar, há que se dar conta agora da periodização a ser utilizada no trabalho. Como todos sabemos, periodizações são segmentos de tempo que apresentam forte coalescência entre seus elementos constituintes ou, como queria Milton Santos, ‘são conjuntos de relações e de proporções prevalentes ao longo de um certo pedaço do tempo’. Há, entretanto, alguns problemas com as periodizações. Em primeiro lugar, porque todas elas são arbitrárias, isto é, dependem daquilo que se quer analisar e da escala de observação utilizada. Em segundo lugar, porque raramente condizem com o tempo dos calendários, o que permite que se fale de um ‘longo século XVI’, como quis Braudel, ou de um ‘curto século XX’, como a ele se referiu Hobsbawm. Finalmente, porque elas tendem a priorizar temporalidades hegemônicas e a ação do Estado e agentes poderosos da sociedade, dando, por conseguinte, menor importância aos agentes subalternos e aos ‘tempos lentos’, isto é, às temporalidades não hegemônicas. (Abreu, 2010: 21)
- 6 Assim, o século XV ou a cidade do Rio de Janeiro não são, em si, nem questões, nem objetos de pesqu (...)
10O processo de periodização, desta forma, pode ser definido como um exercício intelectual e uma construção do pesquisador a partir das questões que coloca para a reflexão. É o problema a ser investigado que orienta a construção dos períodos e não o contrário, ou seja, a escolha a priori de um determinado recorte temporal em si, não coloca, de forma clara e explícita, uma questão ou um problema. Daí a importância de se delimitar explicitamente uma questão de pesquisa e, a partir dessa delimitação, construir um objeto que permita ao geógrafo analisar e refletir sobre uma determinada problemática.6
- 7 Nesta obra, tomando como critério de periodização o desenvolvimento e a disseminação desigual das t (...)
11Periodizar significa estabelecer recortes, instituir limites, operar demarcações e rupturas no tempo: onde iniciar e parar o recorte? São os processos e fenômenos relativos à questão e ao objeto que permitem ao geógrafo operar tais ações. O trabalho será mais consistente quanto maior for a capacidade do pesquisador em estabelecer periodizações coerentes. O que significa dizer que o processo de periodização, tal qual o processo de regionalização, sempre deve estar acompanhado de uma justificativa clara e explícita. Nesse sentido, é crucial que os elementos constitutivos e os critérios de periodização, ou seja, aqueles que dão consistência e coerência interna ao recorte histórico, sejam explicitados e justificados. Refletindo sobre uma periodização para a história do território brasileiro, Santos e Silveira (2000: 23),7 afirmam que a "questão é escolher as variáveis-chave que, em cada pedaço de tempo, irão comandar o sistema de variáveis, esse sistema de eventos que denominamos período" (grifo no original). E continuam: "períodos são pedaços de tempo definidos por características que interagem e asseguram o movimento do todo" (2000: 24). Os autores estão pensando a periodização sempre na tentativa de apreender a totalidade, o movimento global da sociedade. De forma mais modesta, ainda que sem desconsiderar a totalidade e, mais importante, estando sempre atento ao seu movimento, existem trabalhos e questões que podem usar critérios de periodização que não estejam diretamente preocupados com o movimento do todo, mas de certas partes ou certas conjunturas.
12No fim da citação anterior, Abreu coloca questões fundamentais sobre o processo de periodização. Em primeiro lugar, é necessário observar que os recortes estabelecidos e criados não devem se ater ao tempo cronológico ou a definições formais e oficiais de contagem do tempo, como o início e o fim de anos, décadas ou séculos. Para isso, ele utiliza o exemplo do longo século XVI de Braudel e do curto século XX de Hobsbawm: os mesmos 100 anos do calendário não exprimem a mesma experiência histórica. Da mesma forma, é comum encontrarmos periodizações utilizando como critério de demarcação o início e o fim do mandato de prefeitos, governadores e presidentes, por exemplo, de forma burocrática, pois o processo ou fenômeno analisado pode ultrapassar esses limites (salvo, evidentemente, quando os próprios mandatos são o objeto de pesquisa). Portanto, não há a coincidência entre o tempo cronológico e o tempo histórico, o que permite ao pesquisador manipular o tempo e seus recortes à luz de suas próprias questões. Nesse sentido, fica evidente o caráter arbitrário das periodizações. Longe de serem algo dado ou natural, as periodizações são fruto de uma intencionalidade, uma operação intelectual sobre uma série de eventos, processos e fenômenos escolhidos, selecionados e ordenados por um sujeito. Ainda que rejeitando relativismos e uma postura que tende a compreender a realidade fundada no discurso, desconsiderando sua base material e suas relações concretas, o sujeito que opera a periodização possui uma intencionalidade orientada pela sua posição no mundo (seu lugar concreto, sua classe, sua etnia, seu gênero, etc.). Portanto, a questão geral que orienta a pesquisa e os critérios da periodização possuem uma dimensão política, que pode ser explícita ou implícita. Daí a escolha para se utilizar certos critérios e descartar outros. Nesse sentido, é possível refletir sobre as causas de se priorizar, de forma hegemônica, os sujeitos, processos e estruturas dominantes, como o Estado, as empresas e os processos de acumulação e reprodução do capitalismo ao invés de se valorizar, como coloca Abreu, as temporalidades não hegemônicas, as temporalidades da insurgência, as temporalidades das resistências, enfim, temporalidades com outras racionalidades.
- 8 Um exemplo concreto a partir de nossa pesquisa de doutorado: o período central foi a duração da Gue (...)
13É fundamental sublinhar a dificuldade de se realizar uma pesquisa utilizando apenas uma única periodização. Geralmente, a análise de uma questão envolve processos e fenômenos complexos que possuem dinâmicas com temporalidades (ritmos) e historicidades (processos) distintas, mas que se tocam e se influenciam mutuamente. Portanto, é necessário saber identificar e demarcar tais elementos e apreender a forma como se articulam para que possamos dar conta da pesquisa que realizamos. Em outras palavras, é necessário criar periodizações auxiliares que nos permitam articular diversas dinâmicas. Podemos defini-las como aqueles recortes históricos relativos a fenômenos e processos que não são o objeto de pesquisa em si, mas que são indispensáveis para a compreensão de nossa questão central. Assim, as periodizações auxiliares devem ser utilizadas de forma precisa e econômica para circunscrever de forma clara e bem específica determinados processos. Tais recortes devem ser utilizados de forma a evitar recuos exagerados no tempo para buscar explicações sobre a dinâmica central que nos interessa de forma direta. De certa forma, esse instrumento deve ser utilizado para organizar o levantamento dos dados, estabelecer prioridades nas análises e na articulação entre fenômenos distintos.8
14Inspirado no historiador Fernand Braudel, Pedro Vasconcelos (2002) elaborou uma proposta metodológica que busca dar conta da necessidade de se estabelecer periodizações e articular temporalidades e historicidades distintas. Nesse trabalho, a questão central da pesquisa é a análise das transformações e permanências na estrutura sócio-espacial da cidade de Salvador. Nessa perspectiva, ele ressalta a importância das diferentes temporalidades e historicidades e suas articulações em diferentes escalas: tempos longos e tempos curtos, a estrutura, as conjunturas, eventos e rupturas, como processos globais influenciam o local, por exemplo (Vasconcelos, 2002: 18).
15A partir dessas orientações gerais, Pedro Vasconcelos propõe a periodização da longa duração, compreendida como um aspecto da temporalidade de estruturas caracterizadas por um longo período de estabilidade. Dessa forma, são estabelecidos recortes temporais caracterizados por determinados elementos conjunturais que os tornam singulares em relação aos outros e, ao mesmo tempo, apresentam os elementos estruturais que atravessam a longa duração, que funcionam como critérios de periodização devidamente explicitados e justificados. Cada um dos períodos estabelecidos deve ser analisado a partir de três eixos específicos: a) os contextos históricos nas escalas mundial, nacional, regional e local, que marcaram a sociedade e a cidade de Salvador; b) os agentes sociais, dando ênfase aos protagonistas com maior capacidade de ação em cada contexto e escala específicos; c) o desenvolvimento territorial da cidade, destacando os períodos de expansão e crescimento, as transformações na estrutura sócio-espacial (Vasconcelos, 2002: 20).
16O processo de periodização, segundo a proposta de Pedro Vasconcelos, pode ser facilitado através da identificação daquilo que o autor chamou de períodos densos e hiatos temporais. Segundo o autor, essas ideias podem contribuir para a identificação de processos de transformação e, ao mesmo tempo, de estabilidade ou continuidade.
17Os períodos densos são aqueles nos quais as fontes são mais abundantes, uma vez que os eventos e a conjuntura que os constituem são caracterizados por dinâmicas de transformação ou efervescência, como conflitos e manifestações culturais, por exemplo. Tais períodos podem ser indicativos de momentos pré-revolucionários ou de algum tipo de ruptura significativa na estrutura sócio-espacial. Daí sua importância como marcos para os processos de periodização, indicando o início ou o fim dos períodos, pois sua identificação e análise nos permite avaliar a intensidade das transformações e das permanências. Além disso, o autor salienta a importância dos períodos densos em relação à riqueza das fontes, tanto em relação à quantidade quanto à qualidade (diversidade, precisão, preservação) disponíveis para o pesquisador. Por outro lado, os hiatos temporais seriam aqueles períodos caracterizados pela ausência de fontes, o que dificulta seu estudo, ou pela estabilidade e continuidade refletida pelos dados, que não revelam grandes alterações, transformações ou rupturas na ordem sócio-espacial, mas aspectos da sua reprodução.
18Não poderíamos deixar de mencionar aquela que nos parece a mais famosa e difundida proposta metodológica no campo da Geografia Histórica em relação aos processos de periodização e organização dos recortes temporais, sistematizada por Estaville Jr (1991), a partir das ideias de sincronia e diacronia (Green, 1999; Vasconcelos, 1997, 1999, 2009 e 2011 ; Alves, 2011; Silva, 2012). A sincronia remete aos processos e fenômenos coexistentes e justapostos em um mesmo recorte temporal, ou seja, é o plano dos encontros em um mesmo período de tempo. A diacronia remete à sucessão dos processos e fenômenos na linha temporal.
19Estaville Jr. propôs a seguinte orientação metodológica:
20a) Corte temporal transversal: é a definição de um determinado período de tempo onde se prioriza a análise da sincronia, ou seja, da coexistência dos eventos e processos. Esse corte pode ser feito no passado, ou pode ser um estudo do passado a partir dos vestígios encontrados no presente.
21b) Cortes sincrônicos: refere-se ao recorte de diversos períodos históricos que tem como objetivo principal identificar a analisar, de forma comparativa, as transformações e permanências da estrutura sócio-espacial. Nesse sentido, é possível, através de recortes sincrônicos específicos, analisar pontualmente a dinâmica de determinados processos.
22c) Cortes diacrônicos: nessa perspectiva, a ênfase maior está na análise de um processo contínuo ao longo do tempo sem interrupções significativas (relativas, evidentemente, ao próprio processo ou fenômeno). Existem três possibilidades básicas de abordagem. A primeira, demonstra a possibilidade de se identificar um ou mais processos específicos que serão analisados ao longo do fluxo do tempo. A segundo é de articular a combinação dos cortes sincrônicos com a análise diacrônica, ou seja, é a articulação da análise de processos e fenômenos específicos, analisados ao longo do fluxo do tempo, porém fortemente ancorados na análise de conjunturas (períodos) caracterizados pela sincronia. Por fim, existe a possibilidade da análise diacrônica de um processo ao longo do tempo a partir dos seus vestígios no presente.
23Conforme sustenta Barros (2013: 27), as periodizações são uma forma de ordenar o tempo, definindo origens e fins, atribuem sentido aos processos e aos recortes delimitados. Esse autor afirma que "nesta operação, é já também um tempo territorializado. Ao definir sentidos e criar significados para os períodos de tempos em que examinam, os historiadores exercem poderes de diversos tipos". O uso da palavra "territorializado", nesse caso, pode ser associado ao exercício de poder por parte do historiador ao recortar o tempo. Pode parecer uma metáfora para um geógrafo, pois não foi utilizado no sentido de definir um território a partir de relações de poder projetadas no espaço. No entanto, é possível realizar essa articulação entre os processos de periodizações e o território. De forma mais precisa, entre as periodizações e o espaço geográfico. Nesse sentido, é fundamental retomar o diálogo com o geógrafo Christian Grataloup (2006).
24Uma determinada periodização, como já vimos, é um ato intencional e, queira o pesquisador ou não, é um exercício de poder (qual a intensidade e alcance desse exercício é outra questão). Uma vez que uma periodização atribui significado, qualifica um determinado recorte histórico, ela também incide sobre o espaço e, consequentemente, sobre o território, a região e o lugar. Portanto, o conteúdo histórico produzido por uma periodização remete a uma determinada espacialidade e seu conteúdo. Se a história só é possível através da sua espacialização, ou seja, através da produção social do espaço e, ao mesmo tempo, toda produção do espaço é, necessariamente, histórica, pois diz respeito a processos e ritmos, toda periodização implica, necessariamente, em uma espacialidade, pois a qualidade e os sentidos do tempo se expressam, se encarnam no e pelo espaço. A questão fundamental é que os processos de periodização, de forma geral, negligenciam a espacialidade que lhes são constitutivas. Em outras palavras, a prática dominante em relação às periodizações é recortar o tempo e estabelecer um conteúdo histórico sem referenciar, explicitamente, a que recorte espacial esse conteúdo histórico está vinculado. Essa é a questão fundamental do texto Os períodos do espaço (Grataloup, 2006).
25Quando se toma uma periodização como a Idade Média, geralmente admitimos, sem grandes questionamentos, que o conteúdo histórico deste período é válido para todo o espaço terrestre. Em outras palavras, o conteúdo histórico da Idade Média, constituído, fundamentalmente, pelos processos sociais concretos da Europa são tomados como válidos para todos os lugares do mundo, a despeito das inúmeras diferenças entre as sociedades e, principalmente, suas organizações sócio-espaciais. Toma-se o conteúdo histórico de uma determinada parcela do espaço como critério para se pensar toda diversidade sócio-espacial, a despeito das diferenças de historicidades e temporalidades coexistentes. A questão fundamental, portanto, é que a utilização do recorte Idade Média (ou qualquer outro), só tem validade se explicitamente articulado ao espaço. De outra forma, reproduzimos um modelo abstrato (que não encontra eco na realidade concreta) e eurocêntrico, pois toma um conteúdo específico como parâmetro e critério de análise que se quer universal e, na pior das hipóteses, de julgamento de graus de desenvolvimento.
Qualquer análise do período-região Antiga poderia igualmente aplicar-se à Idade Média. Sempre evitando comover-se com os limites temporais (Antiguidade tardia ou Alta Idade Média, Outono ou Primeiro Renascimento), indaguemo-nos onde tal periodização pode ter qualquer pertinência. Não sairemos além do pequeno cabo ocidental da Ásia. Ocorre que falamos da Idade Média para sociedades não européias, mas, seja que se trate de mundos estreitamente em contato com a cristandade latina (como o "Islã medieval"), seja que tenhamos em mente um tipo de estrutura social, seria mais justo classificar como feudal ao invés de medieval (frequentemente esse é o caso na história do Japão). A menos então que nos situemos numa reflexão evolucionista, falar de Idade Média européia permanece sendo um pleonasmo. (Grataloup, 2006: 34-35)
26É fundamental especializar as periodizações para que possamos valorizar e identificar com maior clareza a coexistência dos processos e fenômenos, ressaltando a diversidade e a complexidade das relações. Dessa forma, abre-se a possibilidade de se pensar interações e encontros que podem ser marginalizados e invisibilizados em função de uma estrutura de pensamento que separa tempo e espaço e reproduz a colonialidade do saber (Lander, 2005). Nesse sentido, coloca-se a necessidade de se pensar "as descontinuidades espaciais e as descontinuidades temporais das sociedades como um problema único" (Grataloup, 2006: 38).
27Tais formulações não significam, de forma alguma, a impossibilidade de se pensar a totalidade ou da possibilidade de periodizações que articulem o espaço global. Isso vai depender, evidentemente, dos processos e fenômenos que estão se desenvolvendo na dinâmica social concreta. As periodizações e as espacialidades vão ganhando conteúdo concreto em função do próprio movimento da sociedade, ao produzir tempo e espaço. A escala das periodizações não é imutável, tampouco são fixas ou limitadas e um único nível escalar. A tarefa fundamental, portanto, é a articulação entre tempo e espaço, História e Geografia.
Portanto, até o início de um nível mundial, a partir do século XVI, só existe periodização num âmbito espacial limitado. Certamente essa constatação desemboca em duas indagações. Primeiramente, isso pressupõe uma geografia das Histórias: . por que este percurso e não aquele outro? Por outro lado, a mudança de escala da mundialização beirando o início dos tempos modernos coloca em evidência a historicidade dessa própria geografia: o número de áreas temporais e seus níveis escalares varia. O mesmo ocorre com os enquadramentos dos Atlas históricos que se deslocam: o exemplo mais evidente é a passagem de uma cartografia da Antigüidade, centrada no Mediterrâneo, para as representações do mundo medieval, centradas na Europa. Os recortes espaciais só têm pertinência no âmbito de limites cronológicos particulares - e reciprocamente. Pensar ou classificar permanece sendo sempre uma tarefa delicada. (Grataloup, 2006: 35)
28Após uma breve apresentação de alguns elementos referentes às escalas, vamos tentar elaborar uma síntese que articula essas duas dimensões inseparáveis da pesquisa sócio-espacial, particularmente em relação à Geografia Histórica.
- 9 Sobre tais reflexões, sugerimos ao leitor consultar Lacoste (1988), Bahiana (1986), Cox (1996), Har (...)
29Devemos ressaltar que nosso objetivo não é fazer uma análise crítica do conceito de escala, mas sim sistematizar e apresentar elementos e procedimentos que possam ser utilizados para operacionalizar a pesquisa.9
30Neste trabalho vamos circunscrever a discussão à ideia da escala geográfica, sem tratar das questões relativas à escala cartográfica. Nessa perspectiva, podemos pensá-la a partir de três sentidos distintos, que não se opõem, mas devem ser articulados pelo pesquisador. São eles: a) a escala do fenômeno ou processo; b) a escala de análise; c) a escala de ação (Souza, 2013: 181).
31A escala do fenômeno corresponde à sua extensão no espaço geográfico, sua existência e abrangência física no mundo. Em outras palavras, refere-se a dimensão espacial de um fenômeno (cadeias montanhosas, fluxos de informações, processos migratórios, o tamanho de uma metrópole, o domínio de ecossistema, por exemplo).
32A escala da análise é uma construção do pesquisador para realizar a mediação entre o seu objeto de pesquisa e o processo de produção do conhecimento através da sua análise, ela é “capaz de nos facultar a apreensão de características relevantes de alguma coisa que estejamos investigando ou tentando elucidar, a partir de uma questão ou de um problema que tenhamos formulado” (Souza, 2013: 182). Assim, podemos considerá-la como uma lente ajustável, que nos permite observar determinados processos que são visíveis em uma escala, porém invisíveis em outras.
33A escala da ação apresenta um caráter fundamentalmente político, pois refere-se diretamente “a um raciocínio eminentemente estratégico, à reflexão acerca do alcance espacial das práticas dos agentes. É, portanto, um tipo de escala que se refere a determinados fenômenos sociais, concernentes a ações (em geral coletivas) e ao papel de agentes/sujeitos” (Souza, 2013: 182).
34Estabelecer tais distinções ajuda a organizar os procedimentos metodológicos da pesquisa. Assim como as periodizações, as escalas só são definidas após a delimitação da questão e a construção do objeto. Portanto, de uma forma geral, não existe, a priori, uma escala melhor ou pior do que outra, não há, necessariamente, uma hierarquia escalar que determina a relevância ou importância da pesquisa.
Em cada caso concreto, nos marcos de cada pesquisa específica, a construção do objeto definirá, sim, que, para focalizar e investigar adequadamente determinada questão, tais e quais escalas (e não outras) serão especialmente importantes, por serem as escalas prioritariamente necessárias para que se possa dar conta dos processos e das práticas referentes ao que se deseja pesquisar. Combinar/articular diferentes escalas é um apanágio da pesquisa sócio-espacial, mas isso não significa que, em todos os casos, as mesmas escalas e todas as escalas serão ´mobilizadas´ com a mesmíssima frequência. (Souza, 2013: 188)
35O primeiro passo concreto da pesquisa em relação a este procedimento é definir a escala do fenômeno, que pode ser considerada a escala central da pesquisa. No entanto, raramente, um único nível escalar será suficiente para dar conta de toda a complexidade de um determinado processo, por menor que seja sua extensão concreta no espaço geográfico. É necessário considerar a complexidade da produção social do espaço em função da articulação de processos que ocorrem em escalas distintas (sem esquecer a historicidade e as temporalidades). Se tomamos como exemplo o processo de reestruturação produtiva, não há dúvida de que a escala do fenômeno é global, no entanto, outras escalas de análise devem ser elaboradas para se compreender como tal processo se concretiza, efetivamente, e como transforma ou afeta as regiões e os lugares, por exemplo. Ao contrário, se construímos um objeto de escala local, uma cidade, por exemplo, temos que identificar e analisar os processos que se passam em outras escalas que influenciam ou condicionam sua dinâmica. Em ambos os casos, é necessário realizar uma análise multiescalar, ou seja, identificar e analisar as relações que se estabelecem entre os diferentes processos, passando de uma escala a outra, buscando apreender seus pontos de contato, suas influências recíprocas (afinal, a dinâmica do local não é sempre determinada ou subordinada ao nacional ou global, mas, ao contrário, pode impulsionar transformações nessas escalas), localizando no tempo e no espaço como os processos se condensam e ganham vida, concretude e existência.
36Daí a necessidade de se elaborar, de forma clara e justificada, escalas de análise que permitam a apreensão de tais processos relacionados ao objeto. Tais escalas de análise devem ser articuladas e conjugadas de acordo com as necessidades da pesquisa, de acordo com cada problema ou questão a ser investigada. No entanto, assim como as periodizações, as escalas de análise devem ser elaboradas de forma precisa para se evitar a multiplicação de processos e fenômenos que não contribuem efetivamente para o desenvolvimento da investigação. Assim como devemos evitar um excesso de periodizações que remetem a passados longínquos que pouco ou nada acrescentam, é prudente evitar a articulação de processos em escalas diferentes que estão distantes do objeto central da pesquisa. Acreditamos que tais observações são pertinentes para a organização da pesquisa, principalmente aquelas desenvolvidas no âmbito da pós-graduação, nas quais é comum um significativo gasto de tempo e energia com contextualizações que remetem a periodizações e escalas tão distantes do objeto de pesquisa que se tornam desnecessárias e burocráticas.
37Souza (2013: 191) chama atenção para o fato de que as escalas não são dados concretos independentes dos sujeitos, que devem ser descobertas ou identificadas, tampouco são realidades materiais a-históricas que condicionam e influenciam a vida dos homens, sem que as ações destes tenham alguma influência na dinâmica das próprias escalas, como se fossem uma moldura na qual a vida social se inscreve. Ao contrário, as escalas são dinâmicas e mutáveis, são produtos de determinados complexos espaço-tempo socialmente produzidos. Assim,
Não é apenas a natureza da interação entre as escalas, mas também o peso de cada uma delas e até mesmo a abrangência física de algo como ‘escala local’, ‘escala regional’ ou ‘escala nacional’ não está fixado de uma vez por todas, sendo, pelo contrário, parte do processo de criação histórica. Esse é o sentido da expressão ‘construção social da(s) escala(s). (Souza, 2013: 191)
38Quais são as consequências de tais formulações para a operacionalização da pesquisa? Em primeiro lugar, deve-se superar um formalismo rígido que aprisiona os processos e sujeitos em escalas pré-concebidas e dissociadas das práticas concretas dos protagonistas, que produzem e instituem as escalas. Em segundo lugar, as escalas tradicionais, a saber, local, regional, nacional e global, devem sempre ser contextualizadas à luz dos próprios processos e não dadas como prontas ou naturais. Em terceiro lugar a dinâmica de análise da articulação das escalas não necessita, a priori, estar organizada de forma hierárquica, mas sim relacional.
39Buscando contribuir para enriquecer com o debate acerca das escalas, Souza (2013: 198 e seguintes), elaborou uma tipologia das escalas, deixando claro que não deve ser encarada como algo fechado e rígido, mas ao contrário, como uma forma de estimular, continuamente, a reflexão acerca das escalas a partir de uma proposta aberta e que pode ser aprimorada. Em função do espaço limitado de um artigo, vamos apenas listar os níveis escalares (para maiores detalhes recomendamos ao leitor buscar o texto original). Vejamos: 1) Escala do corpo; 2) Escala dos nanoterritórios; 3) Escala local (subdividida em microlocal, mesolocal e macrolocal); 4) Escala regional; 5) Escala nacional; 6) Escala internacional (subdividida em grupo de países e global).
40Retomando a discussão acerca da operacionalização das escalas na pesquisa no campo da Geografia Histórica, podemos tomar o exemplo dos trabalhos de Maurício Abreu e Pedro Vasconcelos.
41Maurício Abreu define a questão central de sua pesquisa sobre o Rio de Janeiro da seguinte forma: “O que se pretende, em última instância, é realizar um grande esforço de análise e de síntese, que integre processo social e forma espacial e que dê sentido ao processo de formação de um lugar, no caso o Rio de Janeiro colonial” (Abreu, 2010: 20, grifos no original). Enquanto isso, Pedro Vasconcelos, em seu trabalho sobre Salvador afirma que a “principal questão levantada é a seguinte: como uma combinação de eventos e processos, ao longo do tempo, conduz à formação de uma sociedade e de um espaço com características próprias” (Vasconcelos, 2002: 18), destacando as transformações e as permanências. Os objetos empíricos construídos foram, respectivamente, as cidades do Rio de Janeiro e Salvador. A partir daí, foram estabelecidas as escalas dos fenômenos e de análise, onde o conceito de lugar é basilar para a análise e sendo compreendido como “tópos, como um segmento material da superfície da terra” (Abreu, 2010: 16), que se constituem como “campos de força, como produtos da interseção de processos socioeconômicos-culturais que têm origens e manifestações diversas, que atuam em escalas diferentes e que, por isso mesmo, estão sempre criando, recriando e dando novos significados a lugares e regiões” (Abreu, 2010: 16). A constituição e a dinâmica sócio-espacial dos lugares estão diretamente associadas a diferentes processos e fenômenos que atuam em escalas distintas. É crucial situar esse lugar em um contexto histórico mais amplo e identificar as relações entre processos que ocorrem em escalas diferentes, mas que contribuem direta e indiretamente para sua constituição e análise. Ainda que se reconheça a importância de outras escalas, devemos ressaltar que o lugar possui uma dinâmica sócio-espacial própria, ele não é meramente um reflexo do que ocorre em outras escalas. Trata-se, portanto, da articulação entre processos e escalas.
42Agora é possível tentar uma articulação entre os processos de periodização e a elaboração das escalas de análise. Na verdade, o que podemos sugerir é retomar aquilo que Haesbaert (2002), denominou "escalas espaço-temporais", que seria uma forma da análise conjunta e indissociável entre tempo e espaço, ou aquilo que Grataloup chamou de "períodos do espaço" (2006). Portanto, de que forma é possível articular, teórica e metodologicamente, tempo e espaço, escalas e periodizações?
43Em primeiro lugar, devemos retomar a proposta de Grataloup e reafirmar a necessidade de se espacializar as periodizações. Isso significa dizer que os critérios de definição dos períodos históricos e seus conteúdos devem explicitar em quais recortes espaciais ou em que formas de articulações espaciais esses conteúdos são válidos. É necessário explicitar a organização espacial nas quais tais critérios de periodização possuem validade e existência concreta, seja em estruturas espaciais contínuas ou descontínuas, suas formas de articulação, o papel das redes e das relações de poder.
44Em segundo lugar, é necessário criar uma verdadeira "teia" de feixes históricos e espaciais para operacionalizar a pesquisa, constituindo as escalas espaço-temporais propostas por Haesbaert ou complexos espaço-tempo, como denominamos anteriormente. Como esse processo é operacionalizado? Os primeiros passos são delimitar o recorte espacial do objeto (e sua escala de existência no mundo concreto) e o período histórico da análise do referido espaço. Assim, definimos nossa escala espaço-temporal ou, como preferimos chamar, nosso complexo espaço-tempo central. No entanto, tal objeto, provavelmente, é constituído por uma multiplicidade de complexos elementos constitutivos e instituintes, que possuem espacialidades, historicidades e temporalidades distintas, o que nos leva a identificar cada um desses elementos e traçar seu próprio feixe espaço-temporal até o momento em que todos se encontram para constituir nosso complexo espaço-tempo central de pesquisa e análise. Assim, é provável que para compreender e analisar nosso objeto, podemos encontrar processos e elementos constitutivos que remetem à longa duração e a estruturas sócio-espaciais, enquanto outros remetem ao horizonte espaço-temporal da conjuntura, e, por fim, aqueles que remetem aos eventos. Historicidades e temporalidades distintas, que, ao mesmo tempo, possuem escalas geográficas (tanto de abrangência, quanto de análise, distintas). Portanto, cada elemento ou processo que constitui, influencia ou condiciona nosso objeto, deve ser identificado e ter explicitadas suas escalas (de abrangência e de análise), bem como sua historicidade delimitada. Esse procedimento deixa clara a necessidade de se levar em conta o caráter multiescalar da pesquisa e da historicidade dos processos, que se articulam no tempo e no espaço.
45A leitura das obras de referência no campo da Geografia Histórica deixa explícita a importância que os autores atribuem à questão do uso das fontes. Creio que não é exagero afirmar que tal atenção se deve, em parte, à aproximação dos geógrafos com a produção dos historiadores, sem dúvida, mais consistente, substancial e profunda no que se refere ao seu tratamento metodológico. Portanto, para ampliar e aprofundar a reflexão sobre a questão, é necessário buscar na História elementos que possam contribuir e enriquecer de forma substancial a pesquisa em Geografia.
46O primeiro ponto fundamental é o próprio conceito de fonte histórica e sua historicidade. Durante o século XIX, a concepção de História estava baseada na ideia de verdade factual, que se fazia através da identificação, seleção e classificação dos documentos escritos que pudessem ter sua veracidade confirmada, o que constituía o método crítico (Brignoli e Cardoso, 2002). Tal metodologia foi duramente criticada, em primeiro lugar, pela Escola dos Annales e, posteriormente, por outras correntes da historiografia. No entanto, devemos ressaltar que tal metodologia não deve ser simplesmente descartada, como lembram Brignoli e Cardoso (2002: 23), quando afirmam que,
É evidente, no entanto, que o método crítico – penosamente constituído desde o Renascimento, principalmente – teve e tem sua utilidade. É necessário situar os documentos no tempo e no espaço, classificá-los, criticá-los quanto à autenticidade e credibilidade. Mas, este trabalho erudito já não representa a maior parte da atividade do historiador, como acontecia quando predominava a concepção positivista de história.
47No início do século XX, a Escola dos Annales transforma radicalmente a concepção de História e, portanto, de fonte histórica. Marc Bloch e Lucien Febvre desenvolvem a ideia da História como o estudo do homem no tempo, onde não se busca determinar a verdade absoluta dos fatos, mas sim analisar uma questão ou um problema construído pelo historiador.
48Amplia-se o campo temático das pesquisas e multiplicam-se as fontes, pois, agora, estas não se limitam aos documentos oficiais cuja veracidade deve ser comprovada, mas dizem respeito a tudo que foi produzido pelo homem e passível de ser utilizado na interpretação e análise de questões definidas pelo pesquisador, como diários, fotografias, mapas, entrevistas, artefatos, jornais, filmes, iconografias, obras literárias, entrevistas, memórias, etc.
49Além da ampliação dos tipos de fontes, para além dos documentos oficiais, é fundamental destacar a mudança do estatuto de verdade das fontes: não se busca mais estabelecer “a verdade” definitiva e factual, mas sim permitir uma análise da experiência histórica do homem. Assim, por exemplo, uma obra de ficção poder ser utilizada para se realizar o estudo de determinadas práticas sociais localizadas em determinada classe social em um contexto espaço-tempo específico, como as obras de Machado de Assis ou Kafka. Evidentemente que não se trata de ignorar ou desconsiderar a distinção entre falso e verdadeiro, no sentido de que é necessário provar e sustentar afirmações, hipóteses e argumentos, mas sim de não colocar como objetivo fundamental o estabelecimento de uma única verdade absoluta sobre a interpretação e análise de um determinado processo.
50A questão mais relevante que se apresenta agora não é a importância do documento em si, mas a análise que se faz dele a partir das questões formuladas pelo pesquisador e da contextualização dessa fonte no complexo espaço-tempo que é objeto de estudo. Portanto, o valor do documento está nas respostas que ele pode oferecer às questões que o pesquisador lhe coloca. Mais importante do que saber o que a fonte mostra diretamente é saber quais são as perguntas que devem ser feitas a ela.
51O tratamento analítico das fontes exige o esforço da articulação entre dois momentos históricos distintos: a fonte deve ser contextualizada no momento de sua produção e deve ser ressignificada quando passa a fazer parte de um processo de investigação. Quando foi criada, a fonte deveria responder a determinados fins definidos por protagonistas inseridos em um determinado contexto espaço-temporal/político/cultural/econômico, com objetivos específicos; ao mesmo tempo, quando o pesquisador incorpora essa fonte ao seu trabalho, ao seu processo de produção do conhecimento, essa fonte passa por uma ressignificação, portanto, deve ser compreendida à luz da posição do pesquisador no socius no qual ele está inserido. O processo de ressignificação a que estamos nos referindo diz respeito à novas nuances, possibilidades e abordagens a determinados processos e não uma completa distorção dos eventos ou a negligência para com a veracidade dos processos. Não se trata, efetivamente, de um relativismo pós-moderno onde as interpretações e ressignificações não possuem nenhum tipo de limite, critério ou balizamento, onde tudo é permitido e os significados tornam-se vazios e maleáveis a qualquer tipo de humor e projeto político. Portanto, concordamos com Saliba (2012: 324), quando o autor afirma que “se a própria distinção entre verdadeiro e falso for abandonada como uma curiosidade insignificante do passado, estaremos, certamente, diante de um perigo mais sutil e mais corrosivo, pois – no plano mais simples da vida – os mentirosos não terão nada a provar e os defensores da verdade não terão sequer uma causa para questioná-los”.
52Ainda que nosso levantamento bibliográfico seja introdutório, é fácil constatar a grande diversidade de tipos de fontes disponíveis para a pesquisa. Vejamos uma lista resumida:
- Documentos stricto sensu, encontrados em arquivos públicos e privados de diferentes esferas governamentais (federal, estadual e municipal), dos poderes constituídos (Executivo, Legislativo e Judiciário) e relativos às dinâmicas econômica e social: ofícios e requerimentos, listas de votação, leis, projetos de lei, discursos, matrículas escolares, inventários, testamentos, processos civis e criminais, notas e registros civis, registros paroquiais (batizados, casamentos, óbitos), censos, balanços financeiros, relatórios oficiais relativos a obras públicas, registros de imóveis e de terras, informes de gastos públicos, registros aduaneiros, mapas e cartogramas;
- Documentos produzidos por diversas organizações da sociedade civil, como sindicatos, movimentos sociais, associações: atas de reuniões, manifestos, inventários, balanços contábeis, fichas de associação, cadastros pessoais, publicações;
- Memória: entrevistas, biografias, diários;
- Registros visuais: fotografias, cartões postais;
- Obras de arte e expressões culturais: literatura, pintura, escultura, grafite, música, festas populares;
- Jornais e periódicos;
- Artefatos materiais e patrimônio arquitetônico: fontes arqueológicas, monumentos, conjuntos arquitetônicos, vestígios materiais dos mais diversos tipos.
53A partir desta diversidade, destacamos duas questões centrais: a) Uma pesquisa pode se valer de quantas fontes forem necessárias para garantir sua consistência analítica; b) Cada tipo de fonte requer um tratamento metodológico específico, desde sua localização, passando pela organização/sistematização até o momento da análise.
54Em relação à primeira questão, não há motivos, a priori, para que uma determinada pesquisa fique restrita a uma única fonte. O que irá determinar o uso das fontes é a questão central definida pelo pesquisador, sua hipótese de trabalho, seu objeto delimitado e as condições concretas de trabalho. Nessa perspectiva, uma determinada pesquisa pode demandar o uso combinado de fontes diferentes, ao passo que outras pesquisas podem ser desenvolvidas com o recurso a pouquíssimas fontes (no limite, utilizando apenas uma das possibilidades existentes). A precaução fundamental é articular de forma coerente tal diversidade, deixando claro para o leitor quais foram as fontes, as condições em que foram utilizadas, sua organização e sistematização, as complementaridades e, principalmente, seus limites analíticos. Montenegro (2010), por exemplo, articula fontes provenientes da história oral, principalmente através de entrevistas, com periódicos, discursos oficiais e documentação relativa aos presos políticos durante o regime ditatorial de 1964 no Brasil para conseguir reconstruir o discurso e o significado das práticas de trabalhadores rurais no nordeste brasileiro. Chama a atenção o fato deste autor, a todo momento, discutir teórica e politicamente sobre as condições de produção e uso das suas fontes, em um exercício intelectual de reflexão de sua própria prática, o que torna o trabalho ainda mais instigante.
55Em relação à segunda questão, não temos espaço, neste trabalho, para realizar uma análise específica acerca das singularidades, potencialidades e limites de cada tipo de fonte. A magnitude das análises e possibilidades nos impede, nesse momento, de realizar uma análise crítica de cada uma à luz da Geografia Histórica. Diante da variedade de fontes, o que podemos fazer é apresentar algumas formulações de caráter amplo e geral. Cada fonte apresenta uma linguagem específica, por isso, o tratamento analítico será diferente entre um mapa, uma fotografia, uma obra literária, um inventário e uma entrevista, por exemplo. Cabe ao pesquisador explicitar as condições de utilização da fonte, os critérios que foram utilizados para sua análise, e, principalmente, as potencialidades e os limites da fonte em responder determinadas questões ou problemas da pesquisa. Explicitar os procedimentos de análise das fontes é crucial para a consistência e credibilidade do trabalho. Diante de tamanha diversidade, o pesquisador se vê obrigado a dialogar com outros campos do conhecimento para adquirir um embasamento teórico mínimo que lhe permita realizar análises básicas sobre fontes cuja natureza ele não está plenamente familiarizado por não fazer parte de sua formação. Assim, a análise de fotografias e pinturas requer um determinado instrumental teórico no campo da teoria e história da arte e da semiótica, o uso de obras literárias, entrevistas e diários nos leva à análise do discurso e teoria literária e assim por diante.
56Após a definição da questão central e do recorte do objeto, o primeiro passo é definir a natureza das fontes que serão utilizadas para desenvolver a pesquisa. Por natureza da fonte, compreendemos o tipo de fonte, tal qual listamos anteriormente (documentos, periódicos, obras literárias). Após defini-las, é fundamental localizá-las. Cada tipo de fonte apresenta uma dificuldade própria em relação à sua localização: uma pesquisa que trate, por exemplo, das formas de representação do Rio de Janeiro a partir da análise dos cartões postais disponíveis em qualquer banca de jornal, mostra uma facilidade de localização e acesso muito maior do que uma pesquisa que usa como fontes primárias processos criminais no século XVIII. Portanto, é crucial que o pesquisador faça um bom planejamento para conseguir lidar com tais dificuldades, estipulando prioridades e criando alternativas para suprir lacunas e ausências.
57Antes e durante o processo de coleta dos dados, uma questão central se coloca: a amostragem e a natureza da pesquisa. As fontes são utilizadas para sustentar argumentações, comprovar ou não uma hipótese, no entanto, a sua amostragem é crucial para definir a consistência de todo o trabalho. Assim, é fundamental explicitar para o leitor o universo da amostra e seus possíveis limites. Sem essa precaução, corre-se o risco de se fazer afirmações e generalizações baseadas em um número pequeno de fontes e referências que não podem ser extrapolados para todo um universo social, por exemplo. Nesse sentido, o pesquisador deve proceder com cautela, uma vez que ele só tem a noção exata da qualidade e quantidade de documentos necessários para embasar sua pesquisa após começar o trabalho e não antes.
58Por fim, também é necessário chamar a atenção para aspectos relativos à linguagem (expressões e palavras que mudam de sentido ou cujo significado não conhecemos), à mudança de toponímia, às medidas de peso, comprimento e volume e, por fim, das conversões monetárias. Mais uma vez, não se trata de conhecer profundamente cada um desses assuntos, no entanto, de acordo com a pesquisa e com a necessidade, é importante dominar minimamente tais conteúdos para que a análise e a contextualização sejam consistentes e coerentes. Um bom exemplo é o trabalho de Abreu (2010), no qual a reconstituição da espacialidade canavieira do Rio de Janeiro dos séculos XVI, XVII e XVIII obrigou o pesquisador a conhecer a toponímia dos diferentes momentos históricos para poder reconstruir a cartografia dos engenhos no período histórico em questão. Da mesma forma, o autor teve que lidar com as transformações e as singularidades da língua portuguesa para dar conta da análise dos documentos relativos aos inventários, escrituras, certidões de casamento e testamentos.
59Em função do espaço, apenas esboçamos alguns procedimentos mais gerais em relação às fontes. Nosso objetivo básico foi chamar a atenção do leitor para a necessidade de certos cuidados que devem ser tomados no decorrer de uma pesquisa.
60A proposta deste trabalho foi de apresentar, de forma sintética e introdutória, a sistematização de alguns procedimentos básicos de metodologia, com o objetivo de contribuir, de forma modesta, para operacionalizar pesquisas no campo da Geografia, de uma forma ampla e, no campo da Geografia Histórica, de forma mais específica.
61Centramos nosso trabalho nos aspectos operacionais e técnicos, sem dúvida ancorados em formulações teóricas. No entanto, nossas preocupações não estavam voltadas para debates de caráter mais teórico, epistemológico ou filosófico acerca do método, mas sim de procedimentos cotidianos da pesquisa. Esperamos ter alcançado o objetivo.