1Sobre
a história que antecede a formação do Clube de Engenharia do Rio de
Janeiro destacamos que já no período imperial duas instituições eram
responsáveis por legitimar a ação dos engenheiros, promovendo assim o
início da organização desta classe e buscando o reconhecimento
profissional. Eram estas o Instituto Politécnico Brasileiro (IPB) e a
Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (SAIN).
2A
SAIN era formada por profissionais liberais e diferentes setores da
elite imperial e tinha como principal objetivo impulsionar o progresso
do País a partir da discussão dos principais problemas do Estado
monárquico, que ia da constituição de vias de comunicação até novidades
tecnológicas úteis à agricultura. Foi também neste contexto da arena de
debates em que se transformou a SAIN que surgiu a publicação, no período
de 1833 a 1892, de uma revista chamada O Auxiliador da Indústria
Nacional. Foi no fim da monarquia, muito por problemas internos, que a
SAIN perdeu espaço para outras associações, fechando definitivamente
suas portas em 1904.
3Já o
IPB foi fundado na noite de 11 de setembro de 1862 por “dezoito
cavalheiros” dentre os quais se destacam o conselheiro Manoel Felizardo
de Souza e Mello (lente da Academia Militar, ex-ministro da Marinha e da
Guerra e senador do império), o marechal Pedro de Alcântara Bellegarde
(lente e ex-diretor da Escola Central e ex-ministro da Guerra e de
Viação e Obras Públicas) e o engenheiro Guilherme de Such de Capanema
(responsável pela expansão das linhas telegráficas no Brasil durante o
Império), além de outros engenheiros que serviam prioritariamente ao
aparato estatal e foram formados na instituição que abrigaria em seu
prédio a nova associação (Coelho 1999).
4O
início das atividades do IPB está atrelado a diversas iniciativas de
valorização profissional dos engenheiros neste mesmo período afinal, em
1862, por exemplo, o Brasil participou pela primeira vez de uma
Exposição Universal, na cidade de Londres. Esse evento reunia as
inovações tecnológicas do período, principalmente no ramo das
engenharias, além de ser um ambiente de apresentação das efemérides
nacionais. Também neste mesmo ano foi criado o corpo de engenheiros
civis no Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas (MACOP).
- 1 Havia inclusive aqueles que se mostravam favoráveis à livre concorrência e liberdade de profissão c (...)
5Porém,
apesar destas ações de valorização do trabalho dos engenheiros, o
decreto que regulamentava a contratação dos profissionais de engenharia
exigia a titulação acadêmica apenas para os engenheiros nacionais,
dispensando os estrangeiros da comprovação de que frequentaram cursos de
engenharia, bastando apenas o reconhecimento de suas aptidões. Além
disso, havia reclamação por parte de integrantes do instituto
politécnico de que, apesar do diploma, não havia monopólio de mercado,
como ocorria com a medicina e a advocacia. E apesar destas tentativas de
regulamentação da profissão,1
este não era o principal objetivo do IPB, “criado como uma associação
dedicada ao estudo de temas técnicos-científicos, não como entidade
representativa de interesses corporativos” (Coelho, 1999: 203).
6O
historiador Pedro Marinho (2008), a partir das discussões presentes nas
atas das reuniões do Instituto, fornece um relato da amplitude das
preocupações, como por exemplo a criação de um banco de dados de
assuntos ligados a atuação profissional dos engenheiros, a criação de
uma carta geral do Brasil e até a proposta de intercâmbio internacional
com instituições afins. Além das preocupações institucionais, as
memórias lidas pelos sócios nas reuniões mostram bem o perfil
intelectual do IPB. Como na sessão de 18 de junho de 1863 onde,
o sr. Américo de Barros lê um
trabalho sobre o anel de saturno (...) Na sessão de 8 de setembro de
1864 o Dr. Pereira Passos “apresentou mapa indicando a duração relativa
de quarenta e duas especies de madeiras empregadas como dormentes na
estrada de ferro D. Pedro II (...) Na sessão de 7 de maio de 1867 “o Dr.
Rebouças ofereceu duas tabuas, uma para redução de pés e polegadas
ingleses,desde uma polegada até mil pés e onze polegadas, ao sistema
metrico com a aproximação de meio milimetro, e outra para conversão de
metros, decimetros e centimetros, a pés e polegadas (...) “A
Nitroglicerina”, de Guilherme Schuch de Capanema, memória lida na sessão
de 19 de março de 1867. (...) “Os torpedos na Guerra do Paraguay”, do
1º tenente Luiz Philippe de Saldanha da Gama, da Armada Imperial,
memória lida na sessão de 9 de setembro de 1869. (...) Na sessão de 19
de março de 1884 foi lida a memória do Sr. Rodrigues Vieira, denominada
“Circulometria” (...) “O saneamento da cidade do Rio de Janeiro”,
conferência realizada do engenheiro Antonio de Paula Freitas, na sessão
de 7 de abril de 1897 (...) “A meteorologia no Brasil”, pelo Dr. Alfredo
Lisboa, em sessão de 8 de maio de 1901. (Coelho, 1999: 203-205)
- 2 Este perfil monárquico pode ser exemplificado pelo papel importante ocupado pelo Conde D´Eu, presid (...)
7Como
podemos notar pelas preocupações principais dos associados do IPB
descritas anteriormente, o perfil dos engenheiros brasileiros era
bacharelesco, academicista, ligado ao regime monárquico2
e este tipo de profissional não mais encontrou espaço em meio às
transformações do final do século XIX no Brasil. As grandes questões
territoriais brasileiras ao final da Guerra contra o Paraguai, a ânsia
por uma maior inserção do País no sistema capitalista internacional e o
advento do regime republicano necessitavam de novas formas de
organização de um saber técnico indispensável à promoção de mudanças no
território e na sociedade.
8Por
essas razões, os engenheiros, muitos deles sócios do Instituto
Politécnico, fundariam em fins de 1880, o Clube de Engenharia, a um só
tempo produto dessas transformações de conjuntura, econômica e política,
e propiciadora delas. A prova mais cabal disso está no fato de tanto a
SAIN quanto o Instituto Politécnico, terem desaparecido como eram, para
fundirem-se aos modelos do novo regime político. Já o Clube de
Engenharia não só sobreviveu às mudanças como foi agente delas e
fortaleceu-se imensamente com a República (Sousa Neto, 2012: 83).
9A
ampla gama de interesses do IPB e da SAIN, ligadas principalmente à
divulgação da ciência, já não satisfazia aos anseios deste grupo de
profissionais que deveria dar conta dos problemas de integração e
modernização do País. Afinal, os projetos ferroviários, telegráficos e
de reforma urbanística necessitavam da atuação de engenheiros que
tivessem conhecimentos práticos necessários ao planejamento,
fiscalização e execução destas obras.
10O
Clube de Engenharia do Rio de Janeiro surge justamente em meio a estas
transformações políticas e econômicas, mostrando já em seu início sua
principal característica, qual seja, a união entre engenheiros e
empresários com o objetivo de discutir questões técnicas e modos de
facilitar os negócios e o processo de modernização. Como bem define
Maria Inez Turazzi,
O Clube de Engenharia (...)
reuniu em suas fileiras engenheiros do Brasil e do exterior,
industriais, políticos e negociantes de várias partes do país, mas
principalmente do Rio de Janeiro, interessados no desenvolvimento da
engenharia enquanto instrumento para o “engrandecimento da pátria”. Por
isso mesmo não era um clube de engenheiros apenas, mas antes, uma
instituição a “serviço da engenharia”, compreendida já em seus estatutos
a partir de sua estreita ligação com o “desenvolvimento da indústria no
Brasil e a prosperidade e coesão das duas classes” – engenheiros e
industriais – que a nova entidade propunha-se a representar. (1989: 39)
- 3 A reforma urbana do Rio de Janeiro no início do século XX foi muito discutida nas reuniões do conse (...)
11O
Clube representava a expansão da modernização capitalista pelo
território nacional, tendo como grande representante a figura do
engenheiro. Esta primazia dos engenheiros pode ser verificada no fato de
que boa parte dos sócios da instituição acabavam se tornando
empresários, donos de fábricas ou representantes dos interesses do
capital internacional, trabalhando, por exemplo, na construção das
estradas de ferro e nas grandes reformas urbanas.3
De uma maneira geral, a mudança no perfil das instituições formadoras,
como a verificada na Politécnica no final do século XIX, repercutiam
nesta nova mentalidade que começava a ganhar força entre os
profissionais da engenharia. Porém, este processo ainda seria cercado de
ambigüidades, pois a modernização se fazia, prioritariamente, a partir
das demandas do modelo agroexportador. Assim,
Com formação escolar e prática
profissional voltadas para o encontro das necessidades demandadas pelas
frações agrárias hegemônicas, de agentes em sintonia com os últimos
avanços tecnocientíficos e aptos a desenvolver e manter o complexo
agroexportador, no que este poderia prover em termos de modernidade, os
engenheiros civis se encontravam coagidos em uma ambiguidade semelhante
àquela característica das próprias transformações socioeconômicas, bem
como culturais, que contribuíram para a sua formação. (Marinho, 2010:
181)
12Dessa
maneira, o Clube de Engenharia se transformou em uma grande arena onde
eram discutidos os problemas relacionados à modernização do País, com
destaque para as questões relacionadas à integração do território por
intermédio das ferrovias e do telégrafo. Não é de se espantar que em
1882, um ano após sua fundação, o Clube tenha organizado o Primeiro
Congresso Ferroviário, contando com a participação de diversos
profissionais do ramo e de boa parte das empresas ferroviárias que
atuavam no Brasil.
13Da
organização de congressos às discussões implementadas no espaço do
Clube, os engenheiros tentavam delimitar seu campo de ação, mostrando
disporem da capacidade técnica necessária ao processo de modernização ao
mesmo tempo em que conseguiam maior prestígio junto aos órgãos
administrativos e às frações de classe hegemônicas. Nas palavras de
André Azevedo,
Conscientes das vantagens
advindas do relacionamento econômico entre o Estado e o capital privado,
que a República inaugurara, os engenheiros buscaram delimitar o seu
campo de atuação, a fim de usufruir das oportunidades oferecidas pelo
poder público. O Clube de Engenharia era a principal instituição
incumbida de cumprir este intuito. Através dela os engenheiros faziam
gestões junto ao parlamento brasileiro, criavam eventos, organizavam
estudos, seminários e debates, além de produzirem uma série de discursos
que buscavam ampliar o espaço de atuação do engenheiro na cidade. Tais
discursos eram, em parte, publicados através da revista do Clube de
Engenharia. Eles dão nota do esforço que a corporação dos engenheiros
operava em prol da delimitação do campo técnico brasileiro. (2003: 153)
14Podemos
afirmar que os engenheiros buscavam mostrar como as transformações
necessárias ao progresso do País somente poderiam ser executadas por
profissionais com competência técnica, numa tentativa explicita de
delimitar o campo de atuação da engenharia. A concepção de progresso
estava ligada às grandes reformas urbanas, à construção de portos, à
expansão da rede ferroviária e das linhas telegráficas, ou seja, passava
a ser cada vez mais associado à implantação materialidades sobre o
território, sendo que caberia a eles a condução deste processo e o Clube
de Engenharia já se mostrava preocupado com essas questões há muito
tempo, como mostra César Honorato:
A engenharia vista como missão
civilizatória está presente nas preocupações do Clube de Engenharia
desde sua origem. Convém recuperar o discurso do engenheiro Pereira
Passos na sessão ordinária do Conselho Diretor em 16 de Maio de 1907:
“Está nas tradições desta casa [Clube de Engenharia] tomar a iniciativa
do estudo ou pelo menos secundar com mais vivo interesse, e sempre com
grande proveito, a discussão de todas as questões importantes que
interessam o futuro nacional”. (1996: 46)
15No
período entre 1903 e 1905, o Clube de Engenharia se envolveu em uma
série de debates sobre o acordo realizado entre os governos brasileiro e
boliviano conhecido como Tratado de Petrópolis, que definia que o Acre
seria incorporado ao Brasil mediante o pagamento de uma indenização e a
construção da ferrovia Madeira-Mamoré com o objetivo de permitir o
acesso boliviano até o oceano Atlântico. A partir de parecer de um de
seus sócios, o engenheiro Enrique Morize, o Clube acusou erros nas
definições geográficas utilizadas para o acordo, criticando o valor do
mapa da região do território em litígio. Outro ponto analisado do acordo
foi o da retomada da construção da ferrovia Madeira-Mamoré, sendo que
para isso foi montada uma comissão, com a direção dos engenheiros Julio
Pinkas e Alberto Morsing, que deveria produzir um parecer sobre as reais
condições de implantação desta obra.
16Ainda
sobre as questões de integração do território brasileiro, a ata da
reunião ordinária do Conselho Diretor do Clube de Engenharia do dia 1º
fevereiro de 1907 (Clube de Engenharia, 1912) mostra que o engenheiro
Francisco Bhering solicitou um parecer da diretoria da instituição a
respeito de um estudo sobre a possibilidade da efetivação de um projeto
de ligação telegráfica que integrasse o Amazonas à capital federal.
Neste período, como já citado, aumentaram as preocupações sobre esta
região do País como forma de efetivar a integração dos territórios recém
incorporados pelo Tratado de Petrópolis em 1903. Estas preocupações
eram tão latentes que o referido parecer chegou a autorizar a
publicação, na revista do Clube de Engenharia deste mesmo ano, do artigo
intitulado “O Valle do Amazonas e suas Communicações Telegraphicas”
(Bhering, 1905), onde o engenheiro defende a execução de seu projeto,
que acabaria sendo levado a cabo, com algumas alterações, pelo então
Major Candido Mariano Rondon na Comissão de Linhas Telegráficas
Estratégicas do Mato Grosso ao Amazonas.
- 4 O engenheiro Francisco Bhering (1867-1924) formado na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, membro (...)
17Como
visto, o Clube de Engenharia e seus sócios manifestavam grande
interesse pelas questões da “geografia do Brasil”. Não é por acaso que
se fizeram presentes no I Congresso Brasileiro de Geografia, organizado
pela Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro (SGRJ) e realizado nesta
mesma cidade em 1909 e participaram do projeto de uma coleção sobre a
Geografia do Brasil em comemoração ao Centenário da Independência. Neste
projeto, o Clube seria responsável por fornecer materiais cartográficos
que seriam fruto de outro de seus projetos para o País, qual seja, a da
Carta do Brasil ao Milionésimo, sob relatoria do engenheiro Francisco
Bhering.4
18Ainda
no primeiro quartel do século XX o Clube de Engenharia se comprometeu
com a produção da primeira Carta Geral do Brasil republicano, a ser
entregue em 1922, como parte das comemorações ao Centenário da
Independência. Para além das questões de reconhecimento efetivo do
território nacional, este projeto também adquiriu contornos
internacionais e de maior inserção do País no rol das ditas “nações
civilizadas” pois também fazia parte do plano de unificação das
cartografia mundial conhecido como International World Map
(Mapa Internacional do Mundo). A gênese deste plano se encontra no 5º
Congresso Geográfico Internacional, realizado na cidade de Berna em
1891, onde geógrafo alemão Albrecht Penck propôs este que seria um “novo
mapa para um mundo novo” e deveria ser confeccionado pelas instituições
cartográficas das principais potências. Este seria o ponto de partida
para o projeto da Carta Internacional do Mundo ao Milionésimo (Figura
1), do qual o Brasil participaria ativamente, enviando representantes
(dentre eles o engenheiro Francisco Bhering) às conferências
internacionais da Carta Internacional do Mundo (realizadas em Londres em
1909 e Paris em 1913) (Herffernan, 2002).
Figura 1: O progresso na elaboração das folhas que comporiam a Carta do Mundo até 1926 e seus respectivos realizadores.
Fonte: HEFFERNAN et all, 2006: 156.
19Esta
ânsia em realizar um mapa único do mundo traduzia os interesses e as
disputas coloniais entre os grandes impérios. O historiador Eric
Hobsbawn explica que neste período havia um
novo tipo de império, o
colonial. A supremacia econômica e militar dos países capitalistas há
muito não seria seriamente ameaçada, mas não houvera nenhuma tentativa
sistemática de traduzi-la em conquista formal, anexação e administração
entre o final do século XVIII e o último quartel do XIX. Isto se deu
entre 1880 e 1914, e a maior parte do mundo, à exceção da Europa e das
Américas, foi formalmente dividida em territórios sob o governo direto
sob dominação política indireta de um ou outro Estado de um pequeno
grupo: principalmente Grã-Bretanha, França, Alemanha, Itália, Holanda,
Bélgica, EUA e Japão. (...) Duas regiões maiores do mundo foram, para
fins práticos, inteiramente divididas: África e Pacífico. (Hobsbawm,
1998: p.88-89)
20Essa
cartografia de contornos imperiais, além de ressaltar os limites entre
as nações, também representaria a demarcação das possessões,
principalmente na Ásia e na África. Como relata Vidal de la Blache sobre
a possibilidade do governo francês à época recusar participar do
projeto, “se nossa participação deva se limitar, como é provável, a uma
parte da África e a uma parte menor da Ásia, não me parece que os custos
justifiquem uma renúncia cujas consequências certamente lamentaremos”
(2012: 445). A possibilidade de ver suas colônias mapeadas por outras
potências afligia o geógrafo francês.
21Assim,
acima de tudo, a uniformização dos mapas seguia o ritmo ditado pelo
avanço do capitalismo, e principalmente, atendia aos interesses do
imperialismo europeu em sistematizar informações das áreas sob seus
domínios, pois
os mapas de tipo europeu
operavam com base em uma classificação totalizante, que levou os seus
produtores e consumidores burocráticos a políticas de consequências
revolucionárias. Desde a invenção do cronômetro, em 1761, por John
Harrison, que permitiu o cálculo exato das longitudes, a superfície
curva de todo o planeta havia sido submetida a uma grade geométrica que
enquadrava os mares vazios e as regiões inexploradas dentro de
quadriculados medidos com precisão." A tarefa de, por assim dizer,
"preencher" esses quadriculados ficava a cargo de exploradores,
topógrafos e soldados”. (Anderson, 2008: 239)
22Além
de reforçar o sentido de nação, com mapas que apresentariam os limites
territoriais dos diferentes Países do mundo, essa cartografia também
serviria de propaganda sobre o domínio das regiões colonizadas. Sobre
isso, o historiador John Brian Harley (2005: 85) faz algumas reflexões:
- 5 Tradução nossa. Na versão original: Al igual que las armas de fuego y los barcos de guerra, los map (...)
Da mesma forma que as armas de
fogo e os navios de guerra, os mapas foram armas do imperialismo. Na
medida em que os mapas foram usados na promoção colonial e como forma de
assumir as terras no papel, antes de ocupá-las efetivamente, os mapas
anteciparam o império. No começo, os topógrafos marchavam ao lado dos
soldados para traçar mapas com a função de reconhecimento, depois como
informação geral e, com o passar do tempo, como uma ferramenta de
pacificação, civilização e exploração nas colônias implantadas. Sem
dúvida, vai além do traçado de fronteiras para a contenção prática,
política e militar das populações submetidas. Os mapas foram usados para
legitimar a realidade da conquista e o império.5
23É
neste contexto do imperialismo europeu que diversas “áreas em branco”,
principalmente nas áreas colonizadas, foram reconhecidas e cartografadas
à revelia dos povos nativos, tendo inclusive suas referências
geográficas substituídas por nomes mais familiares ao colonizador
branco. Assim, “Estados, regiões, aspectos naturais e cidades fora da
Europa eram identificados por nomes europeus, não nativos e com a mesma
consistência os limites nativos eram ignorados em favor das fronteiras
da autoridade imperial europeia” (Black, 2005: 109).
24Para
aqueles que estavam interessados na participação brasileira, a
possibilidade de mapear a nação representaria a afirmação da soberania
nacional e, principalmente, dos avanços científicos no Brasil, que
demonstraria ser capaz de realizar um estudo sistemático e sob bases
científicas de seu território, pois
[nos] debates sobre a nação, o
território é um ponto central por ser o lugar onde a nacionalidade se
espraiaria. Desta forma, a carta nacional é a imagem gráfica desse
espaço. O mapa não inventaria o sentido do espaço, mas produziria uma
forma – perceptiva, conceitual, técnica – que acabaria por parecer
indissociável da própria espacialidade. (Vergara, 2010: 142)
25Com
isso, o mapa enquanto representação gráfica que registra a ordenação
territorial dos fenômenos acaba por conter em seus traços, que nada tem
de “neutros”, uma série de intencionalidades e representações produto e
produtoras de discursos sobre o território, como observamos na defesa
das “metodologias e técnicas adequadas” para a produção da Carta do
Brasil pelos engenheiros, e também sobre o mundo, e neste caso no
emblemático projeto de unificação da cartografia mundial proposto pelo
geógrafo Albrecht Penck no final do século XIX. Afinal como aponta
(Harley, 2005: 204),
- 6 Tradução nossa. Na versão original: “El poder viene del mapa y atraviesa la forma en que están hech (...)
[o] poder vem pelo mapa e de
como os mapas são feitos. A chave para esta força interior é, portanto, o
processo cartográfico. (...) Classificar o mundo é apropriar-se dele,
de modo que todos esses processos técnicos representam atos de controle
sobre sua imagem, que se estende para além das utilizações propostas da
cartografia. Se disciplina o mundo. Se padroniza o mundo.6
26E o
contexto brasileiro do primeiro quartel do século XX de alguma forma
contribuiu para que o Brasil participasse ativamente e realizasse
rapidamente a entrega das cartas sob sua responsabilidade para o Mapa do
Mundo.
27Vale
ressaltar que as atribuições para a confecção de uma carta geral do
Brasil republicano têm início nos meios militares, com a criação do
Serviço Geográfico do Exército em 1890 e do Estado Maior do Exército em
1893, cuja 3ª Seção foi encarregada de propor e organizar o projeto da
carta. Somente em 1903 se consolida a Comissão da Carta Geral do Brasil,
iniciando os trabalhos pelo Estado do Rio Grande do Sul. Nos anos
seguintes, os trabalhos avançaram muito pouco, sendo esta uma das
principais críticas advindas principalmente de engenheiros ligados ao
Clube de Engenharia.
- 7 Engenheiro e astrônomo nascido na França em 31 de dezembro de 1860 e naturalizado brasileiro, formo (...)
28As primeiras críticas oficiais dos engenheiros tiveram como referência um parecer elaborado por Enrique Morize,7
apresentado na sessão do Conselho Diretor do Clube de Engenharia em 16
de julho de 1908. Neste parecer foram ressaltadas as tentativas
anteriores de confecção da carta geográfica do País, principalmente as
que foram feitas pela Comissão Geral da Carta do Império. Foram feitas
críticas veementes a estas comissões que “succumbiram deixando apenas
resultados parciaes”. Esta referência às Comissões imperiais visava
sobretudo atacar a morosidade dos levantamentos iniciais realizados pela
Comissão da Carta Geral do Brasil no Rio Grande do Sul, considerando
que esta insistia nos mesmo erros das anteriores ao utilizar uma
metodologia errada para os padrões do território brasileiro. Para o
engenheiro, apesar da exatidão proporcionada pelos métodos de
levantamento topográfico adotada pela Comissão militar (principalmente o
método francês de triangulações, que demandava mais equipamentos,
medições mais precisas e maior tempo de trabalho), a execução da Carta
seria muito lenta e em um território de proporções continentais seriam
necessárias
muitas dezenas de annos antes
que ella possa corresponder á necessidade, cada vez mais imperiosa, de
possuirmos uma carta do Brasil, não rigorosamente exacta, mas
simplesmente isenta dos erros grosseiros das actuaes, reproduzidos em
cada edição que, copiando as precedentes, pretende ser nova. (Clube de
Engenharia, 1913: 27)
29A
opinião de Morize representava as ideias de um grupo de engenheiros,
dentre os quais Bhering, sobre a metodologia ideal para a realização dos
levantamentos geográficos que forneceriam as bases para a elaboração da
Carta do Brasil. Assim, a técnica ideal seria fixar alguns pontos de
referência por métodos mais complexos, como o astronômico, contando
sempre com o apoio do Observatório Nacional. Este trabalho precederia os
levantamentos de menor precisão, que consumiriam menos recursos e
tempo. Por fim, seria indispensável a publicação da Carta na escala ao
milionésimo (1:1.000.000), com a finalidade de tornar desprezíveis os
possíveis erros do processo de medição. Nas palavras de Morize:
“Ter-se-ia sempre em vista, como preceito geral, não sacrificar a
rapidez da execução pela obtenção de pormenores não essenciaes, ou de
uma precisão exagerada” (Clube de Engenharia, 1913: 33).
30Porém,
mesmo dentro do Clube de Engenharia havia pressões pelo não
envolvimento da instituição neste projeto. Nas reuniões subsequentes à
apresentação do parecer, o engenheiro Henrique Kingston teceu diversas
críticas às pretensões de seus colegas. Assim foram apontadas diversas
inconsistências técnicas no parecer, principalmente na adoção dos
métodos e da escala propostas, pois levariam a imprecisão muito acima do
aceitável, o que poderia comprometer o caráter científico da Carta que
seria produzida. Para ele, não seria uma Carta Geográfica e nem mesmo
topográfica, mas sim um simples mapa de exploratório (Clube de
Engenharia, 1913).
31Mesmo
contando com vozes dissidentes, este debate envolvendo a possível
organização da Carta do Brasil retornaria algumas vezes às sessões do
Clube de Engenharia nos anos seguintes, ganhando força a cada nova
crítica recebida pelos militares devido ao atraso nos trabalhos. Assim, o
intento dos engenheiros em relação à Carta foi oficializado em sessão
junto ao Conselho Diretor no dia 16 de junho de 1915, com a proposta de
que o Clube se encarregasse de confeccionar a nova Carta Geral do
Brasil. Como consta da ata desta reunião:
Passa-se á 3º parte da ordem do
dia – discussão da proposta do Sr. Álvaro Rodovalho relativa aos
trabalhos cartográphicos do Brasil.
O sr. Presidente lembra a
conveniência de se collecionar todos os dados existentes, os trabalhos
das coordenadas, os de escriptorio, os da Comissão Geográphica e
Geologica do Estado de São Paulo, os documentos existentes no antigo
Archivo Militar, os mappas do Ministério do Exterior, da Guerra, da
Marinha e da Viação, as cartas do Almirante Mouchez e outras e sobre
todas essas bases construir a Carta Geral do Brasil em commemoração á
grande data que temos de celebrar.
Depois de falarem os srs. Fábio
Hostilho, Francisco Bhering e Humberto Antunes, o Sr. Presidente propõe a
nomeação de uma comissão para organizar as bases geraes da construcção
da Carta Geral do Brasil.
Concordando o Conselho, o Sr. Presidente
nomeia para esta comissão os Srs. Henrique Morize, Fabio Hostilho,
Francisco Bhering, Alvaro Rodovalho e Mario Ramos. (Clube de Engenharia,
1929: 303-304)
32Deste
modo os trabalhos da Comissão da Carta Geral do Brasil se encerraram em
1915, com o fim do projeto dentro dos meios militares, assumindo a
Comissão da Carta do Brasil ao Milionésimo sob liderança do Clube de
Engenharia.
- 8 Neste quesito, o Brasil seguia tendência presente em outros países da América Latina, como o México (...)
33Ao
se colocarem como único corpo técnico do Brasil capaz de realizar a
tarefa de fornecer uma Carta do território para a República, os
engenheiros do Clube de Engenharia demonstram a preocupação não apenas
ao processo de modernização do território e de como esta instituição
estaria na vanguarda das discussões e realizações de projetos de
interesse nacional, mas também com a questão da delimitação do campo de
atuação dos engenheiros. Dessa maneira, as atividades geográficas,
dentre as quais se incluía a cartografia, envolvendo as noções de
topografia, astronomia e geodésia, deveriam ser desenvolvidas
prioritariamente por engenheiros.8
34Neste
quesito, Francisco Bhering defendia veementemente a formação de
engenheiros geógrafos, profissionais capazes de realizar o trabalho de
mapeamento do território e por diversas vezes pediu a palavra na reunião
do Conselho Diretor do Clube de Engenharia para ressaltar a importância
de se promover o reconhecimento sistemático do território, pois apenas
assim se poderia desenvolver a formação da rede de transportes
terrestres e fluviais, o aproveitamento das riquezas naturais e, como
ressaltado no trecho a seguir, também garantir o emprego aos engenheiros
no tempo de “paralisação” que pareciam adentrar:
Porque, pois, não empreender-se
agora o estudo da geographia economica dos três grandes Estados do
Noroéste, fazendo collaborar nessa operação patriótica os engenheiros
militares, os officiaes da Marinha e os engenheiros civis? (...) Na
época da paralyzação em que, segundo parece, vamos entrar, não seria
descabido gastar-se algumas centenas de contos com a organização do
trabalho econômico-estatístico, á que me refiro, que fornecerá ás chaves
para a solução dos problemas do Noroéste da Republica, o qual, como bom
contribuinte do Thesouro, bem merece esse auxílio da União para o
conhecimento de suas riquezas, sua expansão commercial e seu
desenvolvimento social. (Clube de Engenharia, 1929: 210)
35E
essa verdadeira militância de Francisco Bhering pela modernização e
integração do País sob a liderança dos engenheiros acabou sendo
reconhecida por seus pares, como mostra a proposta encaminhada pelo
engenheiro Álvaro Rodovalho durante reunião ordinária no Clube de
Engenharia,
Proponho que o Club de
Engenharia represente ao Governo: 1º, demonstrando a necessidade e
urgência de organizar-se a cartographia do território nacional (...) 2º,
indicando os processos mais rápida e economicamente conducentes a esse
objectivo, já estudados entre nós pelo distincto Engenheiro Dr.
Francisco Behring. (...) Proponho que na acta da sessão de hoje se
declare que o Conselho Director reconhece e applaude os patrióticos
esforços que tem desenvolvido o Dr. Francisco Bhering na demonstração da
importância e necessidade dos trabalhos cartographicos e no estudo do
melhor modo de executá-los. (Clube de Engenharia, 1929, p. 212)
- 9 Em seus escritos, Bhering faz constante propaganda de seus conhecimentos técnicos, como mostra o tr (...)
36Foi
a partir deste reconhecimento que Bhering não só faria parte como
ocuparia o cargo de relator da Comissão da Carta do Brasil ao
Milionésimo (Figura 2). E esta indicação ocorreu não somente por seus
conhecimentos técnicos,9
mas também, e talvez principalmente, pela abertura que Bhering tinha em
instituições que seriam fundamentais para a realização deste projeto,
como a Repartição Geral dos Telégrafos, o Ministério da Guerra, o
escritório da Comissão Rondon e a Sociedade de Geografia do Rio de
Janeiro. A articulação com estas instituições seria crucial à Comissão
na tarefa de compilar o maior número possível de produções cartográficas
sobre o País.
37Um
exemplo da capacidade do espaço oferecido a Bhering por estas
instituições pode ser verificado em conferência realizada na Sociedade
de Geografia do Rio de Janeiro, em 7 de dezembro de 1917. Nesta fala,
intitulada “A Geographia no Centenário da Independência”, o engenheiro
conseguiu contextualizar o momento geopolítico vivido como de “máximo da
sensibilidade patriótica” devido à intensificação dos combates da
Grande Guerra que “já se alastrou até os Açores, a poucos dias de
Pernambuco”. E são os conflitos bélicos que fornecem os primeiros
argumentos favoráveis aos estudos geográficos do Brasil, afinal “como
resolver o problema da artilharia contra o inimigo invisível, sem o
conhecimento sufficiente do terreno?” (Bhering, 1912-1922: 30-31).
38A
preocupação estava nas “incógnitas geográficas”, ou seja, as áreas do
território brasileiro que ainda eram representadas por “grandes espaços
em branco” ou pelo epíteto de “áreas desconhecidas”. Assim, a
modernização do País passaria por um esforço de reconhecimento,
sistematização e divulgação dos recursos contidos em seu território. Nas
palavras de Sérgio Adas (2006: 6-7),
tratava-se não só de dirigir
esforços para o autoconhecimento do país em bases territoriais como de
expor o que já era conhecido, para a superação de seus problemas, em
afinidade com o “despertar geracional” da boa-elite com vistas à atuação
política (...) Em síntese importa ressaltar que, nas quadras dos anos
1920, embora as análises de intelectuais e as iniciativas das Sociedades
acerca da realidade nacional não fossem despojadas de contrastes,
quando tomadas em conjunto ao menos um ponto de convergência permaneceu
demarcado entre suas eventuais nuanças diferenciadoras: o Brasil
ostentava um patrimônio geográfico invejável, que não o deixava ser
confundido com os demais países, detentor de fronteiras quase
continentais que inflamavam essa visão largamente disseminada na cultura
da época.
Figura 2: Esquema das
folhas sob responsabilidade do Brasil na Carta Internacional do Mundo,
elaboradas a partir da confecção da Carta do Brasil ao Milionésimo.
Fonte: BHERING, 1922: 258.
- 10 Basta lembrar que a capital “mais progressista” do Brasil, São Paulo, seria palco da Semana da Arte (...)
39Nada
mais simbólico do que o centenário da independência como marco da ânsia
da “boa-elite” em mostrar o Brasil em passos largos rumo ao restrito
grupo de nações civilizadas e modernas.10
Daí a urgência em se substituir o mais rápido possível as expressões
“sertões desconhecidos ou “áreas habitadas por índios incivilizados” das
cartas herdadas do período imperial e ainda sem solução mesmo com os
esforços da Comissão militar. Para isto, Bhering contava com todos
aqueles que conheciam ou tinham informações das áreas “incógnitas”, para
que fosse possível melhor representar a terra brasileira. Neste ponto,
cabe lembrar o contexto de época e a preocupação da elite letrada com a
formação de uma identidade nacional. Como bem analisou Antônio Carlos
Robert Moraes, “Observa-se, então, que as classes dominantes forjam sua
identidade tendo a concepção de conquista territorial como um de seus
componentes fortes de solidariedade. A idéia do nacional tem, assim,
forte conotação cartográfica. O Brasil como uma dada porção de espaço”
(2005: 99).
40E,
além de servir a estes discursos civilizatórios, a confluência de forças
em torno de tal projeto também se justificava em razão dos acertos
geopolíticos internos. Em seu discurso, Bhering cita os recentes
acontecimentos no sul do Brasil, em uma clara referência a região de
disputa entre os estados de Santa Catarina e Paraná, em conflito que
ficou conhecido como Guerra do Contestado (1912-1916).
- 11 Sistema implantado pela Constituição de 1891 que, ao longo do tempo, em vez de reforçar os laços de (...)
41Disputas
como estas serviam de exemplo aos que se preocupavam com os problemas
de litígio fronteiriço entre os estados brasileiros. Neste ponto, a
responsabilidade por estas disputas costumava ser atribuída ao
federalismo11 e
ao ideário cientificista que versava sobre o tamanho ideal dos
territórios e sua relação com o desenvolvimento econômico produziu um
quadro de instabilidade na manutenção dos limites interestaduais.
42Para
engenheiros como Bhering, preocupados com o processo de modernização do
território, estas disputas poderiam dificultar os investimentos em
infraestrutura, além de dificultar os esforços de propaganda do País
para investidores estrangeiros e migrantes europeus, pela péssima imagem
que produziam. Esta preocupação reforçava o apelo pela conclusão
satisfatória dos trabalhos da Comissão pois, “na Carta Geral
Commemorativa, não seria possível deixar de abordar a importante questão
interna e mesmo deixar de fazer o maximo esforço para resolvel-a”
(Bhering, 1912-1922: 36).
43Ao
final de sua conferência o engenheiro defenderia mais uma vez os
levantamentos geográficos e topográficos feitos para a confecção da
Carta ao Milionésimo, a partir de “simples e efficazes processos”. Estes
e a escolha da Escala de 1:1.000.000, defendidos por Henrique Morize
desde 1908, estariam em consonância com a padronização acordada segundo
as resoluções da Comissão Internacional do Mapa do Mundo, em reunião na
cidade de Londres em 1909. E como último pedido, solicitava à SGRJ que
procedesse à revisão das denominações dos “acidentes topográficos” de
forma que as grafias atendessem às regras internacionais de
nomenclatura.
44Esta
defesa técnica da padronização cartográfica indica o caminho adotado
por aqueles que defendiam o processo de rápida expansão do capitalismo,
via unificação material do mundo. Afinal, desde o último quartel do
século XIX as redes ferroviária e telegráfica já devassavam áreas para
além dos países centrais. E esta unificação viria acompanhada da
padronização dos horários nacionais e dos sistemas de medida. Avanços
técnicos e padronização estão intimamente ligados a este processo de
intensificação da circulação de mercadorias, pessoas e ideias. Neste
sentido, tornava-se claro para os homens deste tempo o início do
processo que deveria culminar com a realização plena dos objetivos
liberais e iluministas de um mundo totalmente fluido, ou seja, a
evolução técnica assistida permitiria unir a utopia revolucionária do
surgimento de grandes repúblicas democráticas ao sonho da economia
clássica de uma grande união mercantil.
45Esse
“admirável mundo novo” das ferrovias, dos telégrafos e de outras
maravilhas técnicas como o telefone, a lâmpada, o fonógrafo ou das
grandes obras de engenharia como o Canal de Suez e a possibilidade de
conectar o mundo via cabos submarinos, possibilitou essa nova concepção
de mundo, onde as barreiras entre povos e raças seriam abolidas.
Civilização e progresso técnico se tornam homólogos e também fonte de
ideologia.
46E
as discussões sobre a padronização cartográfica acabariam sendo
contagiadas por este momento histórico. Assim, ideias ligadas às
melhores técnicas de mapeamento, normatização do mapa e padronização dos
topônimos eram defendidas por aqueles que se responsabilizavam pela
produção cartográfica, como os engenheiros da Comissão da Carta do
Brasil ao Milionésimo. Neste sentido, para eles,
o trabalho cartográfico seria um
trabalho estritamente técnico – quase esbarrando no discurso da
neutralidade – e acaba criando o vício da desconsideração de
representações espaciais que não seguem o rigor cartográfico na análise
espacial. Sendo o mapa uma forma de representação do espaço –
representação gráfica e visual – podemos também entendê-lo como uma
mediação entre a realidade e o leitor dessa realidade espacial, como uma
imagem (possível) do mundo. Assim, o mapa reproduz um sistema de
valores sociais que são culturais e históricos. (Girardi, 2000: 46)
47Acompanhando
a análise de Gisele Girardi, esse processo de padronização cartográfica
atendia às pretensões de homogeneização imposta pela expansão do
capital. Assim, atos extremos de violência, real e simbólica, estariam
plenamente justificadas e visões únicas de mundo poderiam ser traçadas e
replicadas nos mapas produzidos no período.
48Ao
analisar a atuação do Clube de Engenharia, notamos grandes preocupações
dos engenheiros da época em fechar o que estes chamavam de “Geografia
Heroica” do Brasil, ou seja, terminar o processo de reconhecimento e
integração do território nacional, que seria materializado no projeto da
Carta do Brasil ao Milionésimo. Não por acaso, personagens como o
engenheiro Francisco Bhering defendiam a formação de profissionais como
os engenheiros geógrafos, que seriam aqueles de deteriam os
conhecimentos necessários a este processo de “devassa dos distantes
sertões” que ainda teimavam em apresentar “áreas vazias” e distantes da
“civilização” do litoral.
49Neste
sentido, a análise da atuação destes engenheiros se torna um convite à
investigação sobre um período anterior à institucionalização da
Geografia no Brasil, ou seja, um momento em que tínhamos a produção de
discursos geográficos sobre o território brasileiro mesmo sem a presença
de geógrafos.
50Ao
fim e ao cabo, estes discursos buscavam atender à ânsia modernizadora do
Estado brasileiro e daquela elite letrada, como parte de dominação e
controle do território e de sua população.