A geografia é, segundo a etimologia, a "descrição" da Terra; mais rigorosamente, o termo grego sugere que a Terra é um texto a decifrar, que o desenho da costa, os recortes da montanha, as sinuosidades dos rios, formam os signos desse texto. [...] "Em toda parte", escreveu Vidal de La Blache a respeito da floresta [...] [ela] continua presente. Ela povoa a imaginação e a visão. É a vestimenta original da região [...] Presença, presença incessante, quase inoportuna, sob o jogo alternado das sombras e da luz, a linguagem do geógrafo sem esforço transforma-se na do poeta. Linguagem direta, transparente, que “fala” sem dificuldade à imaginação, bem melhor, sem dúvida, que o discurso “objetivo” do erudito, porque ela transcreve fielmente o “texto” traçado sobre o solo. (Dardel, 2011: 2-3)
1A epígrafe acima sugere a possibilidade de conciliar-se imaginação, arte e ciência. Não obstante, a tradição geográfica à qual o autor direciona a sua crítica situa o fazer geográfico na imagem do erudito e sua objetividade. Defendemos, porém, que a Geografia não se faz sem imaginação geográfica. Assim, esta se encontra, notadamente, quando negada enquanto tal. Uma de suas formas é aquela erigida em discursos criadores de “ideologias geográficas” (Moraes, 2008), muitas vezes se tornando hegemônicas e forjando visões estereotipadas sobre o povo e seu território. Para que elas funcionem, é imprescindível que sua qualidade ideológica e imaginativa seja negada, dotando-as de ares de neutralidade. Através destas ideologias, seus sujeitos são ocultados e pretendem autolegitimar seus discursos e valores. Ao assim fazê-lo, porém, revelam-se como construção geopolítica e geohistórica, a qual marginaliza e impossibilita outros corpos, saberes e espaços (Maldonado-Torres, 2009: 338-339; Cruz, 2017: 24). Este modus operandi ocorre, por sua vez, ao se proclamar a suposta natureza universal do conhecimento e revesti-lo sob o manto da neutralidade, promovendo assim uma hierárquica e homogeneizadora ordem dos lugares. Esta ordem entroniza uma organização do espaço que se pretende única, e, por isso, global.
2Colocar esse debate acerca da imaginação no centro do problema de análise apresenta-se como um caminho frutífero para desnaturalizar formulações moderno-coloniais, à medida que possibilita forjar outras utopias e outros significados. É possível analisar a obra de Oswald de Andrade a partir desta chave interpretativa, onde lugares e sujeitos em posições marginais são ressignificados e postos ao centro, valorizando saberes e geografias até então negadas: a defesa da toponímia Pindorama, em lugar de Brasil; o bárbaro tecnizado, em lugar do índio romântico.
3Ainda sobre a importância e o lugar dessa imaginação, Gregory (1994) identifica concepções as quais vão em direção à exata medida da orientação aqui assumida:
- 1 No original, lê-se: “At one level, these imaginative geographies are uneven ‘local knowledges’ with (...)
Em um nível, essas geografias imaginativas são “conhecimentos locais” singulares com seus distintivos silêncios, espaços em branco e distorções. [Em outro nível] nossas geografias imaginativas (dentro e fora da academia) são tanto globais quanto locais. Elas articulam não simplesmente diferenças entre este lugar e aquele outro, inscrevendo diferentes imagens daqui e de lá, mas também formatam os caminhos nos quais, das nossas perspectivas particulares, concebemos as conexões e disjunções entre eles. O “global” não é o “universal, em outras palavras, mas é ele próprio uma construção situada. (Gregory, 1994: 203-204. Tradução livre)1
4Essa perspectiva também vai de encontro às proposições de Antônio Carlos Robert Moraes, na medida em que ambos destacam a presença de conteúdos geograficamente pertinentes (assim, dotados de geograficidade) fora da Geografia com “G maiúsculo”, a acadêmica e disciplinar:
as mais eficazes ideologias geográficas não se apresentaram sob a rotulação explícita de “geografia”, e circunscrever as análises aos textos gerados no âmbito disciplinar redundaria em perder os mais importantes discursos norteadores da produção do espaço brasileiro e da própria produção das representações hegemônicas deste espaço. (Moraes, 2008: 14. Grifos nossos)
5Deste modo, tais considerações introdutórias são importantes na medida em que, mutatis mutandis, Oswald de Andrade irá implodir, com sua literatura, essas versões das narrativas e imaginações sobre o espaço, uma vez que ele sinaliza o aspecto parcial e subjetivo do que entendemos aqui por “ideologias geográficas”. Assim sendo, ele irá, ao mesmo tempo, propor uma nova leitura do Brasil: utópica e imaginativa, com fortes contornos geográficos.
- 2 Na geografia, em particular a francesa, rurbano remete ao conceito de rurbanização. O termo é apres (...)
- 3 Todavia, no afã de organizar o desenvolvimento e os desdobramentos dessa imaginação geográfica oswa (...)
6Um possível modo de analisar a imaginação geográfica na literatura oswaldiana se dá a partir de um temário comum ao Pensamento Social Brasileiro: os dualismos, cabendo dois Brasis antípodas, conflitantes, em um mesmo território. Em Oswald, esse binarismo é colocado na oposição floresta x escola. Ela emerge a partir de cotejamentos entre os manifestos modernistas do literato, nos anos 1920, atendo nossa análise,3 portanto, aos manifestos de 1924 (poesia pau-brasil) e 1928 (antropófago). Tais unidades binárias aparecem ora de modo explícito, ora analítico e/ou sugestivo, compondo assim a referência principal que deságua no conceito de rurbanização para a interpretação e retratação da “realidade brasileira”. O recorte proposto pode ser justificado não somente pela recorrente avaliação dos referidos escritos de Oswald como sendo os mais característicos, prolíficos e influentes para a cena e a intelectualidade modernista, mas também pela riqueza da sua imaginação geográfica, a qual demonstraremos ao longo do artigo.
- 4 Com a expressão “espírito infante” pretendemos designar a influência do filósofo Nietzsche na postu (...)
- 5 Há um relativo e substancial consenso de que, por conta de seu radicalismo, a simples presença de O (...)
- 6 Por “geografia nova” entendemos que há uma crítica à geograficidade, notadamente à “Geografia Senti (...)
7A postura enérgica e confrontadora de nosso literato em relação à literatura tradicional, combinando suas ideias de modo genial e contraditório – ou mesmo “esdrúxulo”, de acordo com Lucia Helena (1985) – faz Oswald, à beira da morte, reencontrar-se com a criança que já tinha sido um dia, no sentido de retomar ideias da juventude de modo radicalmente afirmativo. Seu espírito infante4 nunca deixou de ser um complexo híbrido de birra, criatividade e afirmação. Nesse sentido, nos momentos finais de sua vida, imbuído de vontade de afirmação de sua obra, reabilitando suas formulações da antropofagia (negadas durante o período de sua filiação marxista) e, por outro lado, temendo as recriminações5 da plêiade das mais variadas nuances do modernismo (em particular, suas vertentes conservadoras, como o Grupo Verde Amarelo), Oswald está sob as ordens de mamãe (subtítulo de seu diário confessional, cujo prenome fora alcunhado de “um homem sem profissão”), escrevendo suas memórias. Nelas, Oswald dá destaque às suas primeiras experiências na escola. Esta, possível lugar traumático de medo e de recalque, é por ele transfigurado em lugar de luta, crítica e afirmação, no qual a geografia representa o elemento perturbador. Ele dá um golpe bem-humorado, e vislumbra uma espécie de “geografia nova”,6 talvez sem que o saiba, abrindo caminho para suas utopias, para o “novo homem” e o “novo mundo”. Assim o faz:
No quarto ano, produziu-se a crise esperada. Encontrei pela frente um professor teutônico, pré-nazista, de peito emproado, purista e autoritário. [...] Chamava-se Carlos Augusto Germano Knuppell e era um produto da Faculdade de Direito, de que fazia os mais elevados elogios. Para ele, ser bacharel pela escola do Largo de São Francisco traduzia um incalculável penhor de saber e de caráter. [...] meu duelo desigual com o “Doutor Kinipel” atingiu o auge. [...] O primeiro exame em que eu o defrontei foi o de Corografia do Brasil, de que ele era catedrático. Durante o ano todo nos ensinou a decorar nomes de cidades, lagos, montanhas e rios, pouco interesse mostrando por qualquer ideia de cartografia. Os mapas fugiam de suas aulas secas. Na hora em que eu ia ser oferecido em sacrifício à ferocidade do professor, a sala de exame se encheu de colegas. Todo mundo queria assistir ao sádico espetáculo. Tirei o ponto “Portos de Segunda Ordem”. [...] quando Kinipel gritou: – Não senhor, não quero nada de cor! O senhor vai realizar uma viagem estranha! Vai subir num navio num porto do Estado do Rio Grande do Sul e desembarcar na Bahia. Exijo apenas uma condição para aprova-lo: que não entre nesse percurso em nenhum porto de primeira ordem. Vamos! [...] não achando meio, na minha pobre e mal exercitada memória cartográfica, onde pôr o pé, exclamei: – Rio de Janeiro! Foi uma gargalhada geral. Era o que ele esperava. Gritou: – Rio de Janeiro! A Capital da República, porto de segunda ordem! Vou expulsá-lo da banca! Mais morto do que vivo, eu respondi: – Desci para ir de barca a Niterói! O estrépito da classe atingiu o delírio. (Andrade, 2002: 77-79)
- 7 A alusão é explicitada à luz do pensamento de Freud, o qual, juntamente com o de Nietzsche, configu (...)
8Assim, a escola revela-se um espaço aberto de possibilidades e de tensões, onde “De qualquer lado que girasse minha curiosidade de criança, alimentavam-na do mais rico material da imaginação e da realidade brasileira.” (Andrade, 2002: 49). A geografia bem (não) poderia ser um caminho a ser evitado por Oswald, todavia, como fez melhor em vida, dela se apropriou pela devoração. Coube a Oswald a totemização desse tabu,7 estando essa geografia e o espaço largamente presentes, na qualidade de metáforas ou de imaginação geográfica mais aprofundada. Oswald revela, metaforicamente, a imolação, seu “rito sacrificial” frente a uma geografia enfadonha, quantitativa e enumerativa; a blague; a criatividade. A síntese de sua postura como intelectual, artista e (por que não?) “geógrafo”, a bordo de suas primeiras viagens e rumos pela geografia, através da qual busca correções e novas escalas. Essa proposta de uma nova geografia coloca uma busca de referências para orientar as bússolas nacionais. Isso acontece via Manifesto da poesia pau brasil, onde há a defesa da exportação de uma arte própria, findando os implantes estrangeiros, achando a “brasilidade modernista” (Moraes, 1988). Ao fazê-lo, há o intuito de inserir o país no “Concerto das nações” cultas, eruditas, mas sem o descarte do popular, tornando tênue a distinção entre erudição (aspecto exógeno) e popular (aspecto endógeno). Assim, o conceito de cultura não mais se sustentaria em uma essência, cujo elemento diferenciador seria a fronteira nacional, mas compondo um imbricamento entre local e global. Essa análise que propomos é representada no seguinte trecho do manifesto supracitado: “A síntese/ O equilíbrio/ O acabamento de carrosserie/ A invenção/ A surpresa/ Uma nova perspectiva/ Uma nova Escala” (Andrade, 2011).
- 8 Notadamente, a obra Urupês e a personagem de Jeca Tatu.
- 9 Conferência proferida na cidade de Bauru, em 1948, onde Oswald celebra a preservação de uma “civili (...)
- 10 A imagem, geralmente ufanista (e evitada por Oswald), que pinta uma natureza generosa e reserva ao (...)
9Pôr o pé ou dar um pé na geografia? Eis um dos dilemas de Oswald de Andrade. A preocupação telúrica, expressa na busca por uma terra imaginada, nova e nacional, é uma tônica importante em sua arte, representando a necessidade do poeta de achar o lugar dele, seguro, onde firmar os pés e chamar de seu. Assim, a terra assume um caráter ambivalente, ora positivada em seu discurso, nessa busca por uma terra nova, ora negativada, pelo próprio reconhecimento do “homem vitimizado [pela opressão da] terra”8 como tema por excelência do que é o moderno, o qual Oswald identifica como nascente pelas mãos de Monteiro Lobato. Também há essa mesma ambivalência na eleição do “sentido de interior”9 como o lugar rurbano e das máximas potencialidades brasileiras,10 pois, ao mesmo tempo em que a terra se coloca em relação ao seu povo, quando este é vítima dos símbolos da fábrica e da invisibilidade/impessoalidade típica dos grandes centros urbanos (também expresso em Sentido do interior), também há a possibilidade de preservar os valores e a civilidade rural, juntamente com a chegada dos vetores modernizantes. Isso é melhor entendido quando Oswald contrapõe Bauru, que ainda preserva a “civilidade rural”, e a “cultura cínica das cidades”, ao despojar a civilidade rural, tendo a capital paulista como exemplo maior dessa corrupção.
Ontem na PRG 8, a rádio de Bauru, essa estação que ainda não está deformada pelos trejeitos e pela publicidade dos grandes centros, ouvimos a história da formação desta cesta de frutos ótimos da terra paulista. Sem a energia cívica de um edil e sem o desbravamento que precedeu a estrada de ferro, não teríamos esta metrópole do próximo hinterland, que avançando em iniciativa progressista e em apuramento técnico, não perdeu a base do seu trabalho agrícola e se orgulha de sua civilidade rural. Aqui, campo e cidade, agricultura, pecuária e mecânica, saúde e progresso dão-se as mãos, que são as mãos de todas as raças da terra. [...] Só assim o sentido do interior prevalecerá sobre o cosmopolitismo e a cultura corrupta e cínica das cidades. (Andrade, 1992: 192-193)
10Além disso, a terra também é afirmada na antropofagia, homem que come e se alimenta da terra, tema desencadeado pelo assombro despertado pelo Abaporu de Tarsila do Amaral: o homem fincado à terra. O contexto do qual tratamos é, assim, dos escritos mais provocadores da década de 1920, o Oswald dos manifestos, figura de presença incendiária na fase mais radical e combativa do modernismo. Emergem daí a devoração (ressignificação) e o movimento (estilo telegráfico) como símbolos caros a Oswald que repercutiram fortemente na intelectualidade brasileira (modernista) como um todo, compondo dois aspectos decisivos na literatura oswaldiana, segundo Benedito Nunes (2011). O exímio intérprete e crítico Antônio Cândido (1977) explica o aspecto fragmentário que será marca da literatura oswaldiana, desde os primeiros romances, perpassando pelos manifestos e até seus ensaios que retomam a antropofagia e, por isso, relevantes de serem evidenciados:
‘Fora sempre um fragmentário’ – diz do protagonista d’A estrela de absinto. ‘Em torsos quebrados, estudos largados, concentrava, numa predileção alegre e constante, a força reveladora de sua arte’. Nessas linhas (que exprimem muito do que sentia a seu próprio respeito) percebemos todo o drama de sua criação, posta entre ancestralidades poderosas e impulsos de liberdade, que nunca se harmonizem de modo a permitir uma inspiração unânime. Dissociaram-no, pelo contrário, em experiências sucessivas, semeando a sua obra de contrastes e mesmo contradições. (Candido, 1977: 55)
- 11 A noção de “romance-mural” é um termo que o autor autoatribui a sua séria de romances intitulada Ma (...)
11Como proposto por Antônio Cândido, Oswald pode ser comparado às suas personagens, de modo que, muitas vezes, a linha que separa criador e criatura é demasiado tênue, fazendo do escritor modernista um “problema literário”. Embora Antônio Cândido (1977) refira-se especificamente a duas produções romanescas de Oswald, Memórias sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande, tentaremos defender que tal definição sugerida pelo crítico pode ser estendida às demais produções – notadamente as aqui analisadas. Apesar de, no que tange ao gênero literário, os ensaios e manifestos oswaldianos não poderem ser caracterizados como ficções, o caráter utópico qualifica sua produção como detentora desta natureza, de modo que Lucia Helena (1985), ao buscar uma síntese da vida e obra do autor, defenda que nele prevalece o ficcionista. Associaremos isso, como já dito, ao significado e ao lugar da utopia em suas formulações. Talvez Lucia Helena (1985) tenha captado em seu estudo o predomínio do Oswald ficcionista por conta de sua poética fragmentária, a qual compõe, como Oswald queria, um “romance-mural”,11 expondo toda a complexidade do real. É outro o crítico que atenta para mais esse elo que compõe a literatura oswaldiana, em toda sua potência:
[uma] obra ambiciosa, que, valendo-se de processo simultaneísta, cinematográfico, se estilhaça em miríades de fragmentos – que são suas cenas breves, densamente povoadas de personagens de vária condição – como se fossem milhares de cacos de mosaico bizantino a compor amplo painel de toda uma dada circunstância histórica numa dada geografia. Vasto tempo e vasto espaço se condensam nessas páginas tantas vezes desordenadas, até caóticas, porém desordenadas e caóticas como a própria realidade de que foram arrancadas ou que tentam captar. (Brito, 1972: 107-108)
- 12 Segundo Ângela de Castro Gomes: “eram críticos que recusavam o improviso e o álcool, preferindo um (...)
12Assim, apesar da busca de uma unidade, Oswald é atravessado por debates entre seus pares, os intelectuais modernistas e as vanguardas europeias, apresentando fases distintas e complexas, de difícil ordenamento e capaz de ludibriar o crítico. É isso que Antônio Cândido (1977) reconhece em sua digressão sentimental sobre Oswald de Andrade, obra na qual faz uma reavaliação do amigo. O exímio crítico reconhece seu erro e aproxima-se empaticamente de Oswald, relacionando a sua juventude com aquilo que Oswald chamava de “chato-boy”,12 termo por ele criado para se referir aos jovens acadêmicos da crítica literária das décadas de 1940 e 1950 da USP (tradição a qual encontra-se Cândido), os quais Oswald julgava não compreender a potência de sua obra. Com o mea culpa de Cândido, aprendemos que o monolitismo de Oswald não resiste a um olhar mais próximo e cuidadoso, frente aos perigosos embustes e armadilhas.
- 13 Aqui é importante sinalizar a distinção marcante entre o culto ao tempo futuro e ao primitivismo, e (...)
13Oswald forjará um novo sentido nas temporalidades, através de uma ambivalência no interior do próprio modernismo13 para interpretar as bases espaciais da formação brasileira (aquilo que estrutura seu modo de interpretar o Brasil, não mais pela estrutura do latifúndio e da escravidão), imaginativa e geograficamente, ao lançar luz sobre as antípodas floresta (saber autóctone do “primitivo tecnizado”) e da escola (a qual cabe a técnica). Ao que parece ser um procedimento dialético, proporá um enlace primitivista (valorização da matriz indígena, sob o signo do canibalismo, e não do índio romantizado e do matriarcado) sob a aguerrida do polêmico (escandalizando a cena modernista com a imagem do canibal, da devoração e da luta) (Nunes, 2011: 12). Ao assim o fazer, gerou afastamento, questionamento e crítica à tradição artístico-bacharelesca sediada fora da terra brasileira, na medida em que, por outro lado, aciona as esperanças no futuro, nas utopias, apresentando a técnica como redentora e a serviço do ócio.
14O estilo telegráfico proposto por Oswald de Andrade é uma materialização na forma escrita do seu movimento flâneur pelo espaço, traduzindo a interpretação do Brasil a partir de viagens para fora e dos contrastes estabelecidos nesse cotejamento de áreas, algo similar ao que fazem os geógrafos ao compararem regiões, diferenciando as áreas, duas a duas. Assim, como sugere Benedito Nunes, a poética oswaldiana estrutura-se no par mobilidade-devoração.
15Por vezes, a devoração é consigo próprio, já que Oswald tem contradições talhadas não só na sua poesia, mas em si mesmo e em sua própria visão sobre si, sendo a um só tempo o arauto entusiasta do novo e o “conservador”, vindo de uma oligarquia cafeeira, que se pretende porta-voz privilegiado do lugar do índio e do matriarcado, mesmo sendo homem e branco. É necessário que uma parte de Oswald, sua fidalguia, seja submetida à totemização, visto que está jogada na condição de tabu:
Quando digo a você que foi o povo quem desceu em São Vicente, é porque meus antepassados também desceram lá, há quatrocentos anos. E eu sou o povo. Do lado materno venho de uma decadência faustosa de guerreiros, os “fidalgos de Mazagão”, a quem D. José I mandou dar de presente um pedaço do Amazonas. Esses senhores meus avós, segundo me informou Gilberto Freyre, eram de uma indolência desoladora para a colonização. O contrário dos açorianos, donde veio meu ramo paterno. É natural, pois, que, dentro de mim se debatam o trabalhador e o aristocrata, o homem da rua que atravessa na frente dos automóveis para não parar e o enlevado que quer ficar em casa escrevendo ou lendo. (Andrade apud Brito, 1972: 11)
A POESIA "PAU BRASIL" é o ovo de Colombo — esse ovo, como dizia um inventor meu amigo, em que ninguém acreditava e acabou enriquecendo o genovês. Oswald de Andrade, numa viagem a Paris, do alto de um atelier da Place Clichy — umbigo do mundo — descobriu, deslumbrado, a sua própria terra. A volta à pátria confirmou, no encantamento das descobertas manuelinas, a revelação surpreendente de que o Brasil existia. Esse fato, de que alguns já desconfiavam, abriu seus olhos à visão radiosa de um mundo novo, inexplorado e misterioso. Estava criada a poesia "Pau Brasil". (Prado apud Andrade, 2003: 89)
- 14 Remete ao sentimento de religiosidade que Oswald defende como pertencente à natureza humana. O auto (...)
16A atitude burlesca e afirmadora da vida de Oswald provém, dentre outros, da influência nietzschiana, sob o símbolo da criança, acrescida da psicanálise freudiana. A interpretação dada por Antônio Cândido (1970) sugere um encantamento e uma descoberta do mundo através das viagens, ao tempo em que o espaço no Brasil era acompanhado de um olhar da falta, da incompletude. O próprio Oswald se imbui de traços infantis, expressos não só na burla e na criatividade, mas também naqueles vigentes em sua autobiografia pela observância às “ordens de mamãe”: aquilo que denomina de sentimento órfico,14 que nunca se fez ausente, mesmo quando de maior filiação ao marxismo.
17Em Oswald viajante, Cândido (1970) apresenta e interpreta a produção de Oswald de Andrade como sendo animada por sua primeira viagem à Europa, que representou um primeiro afastamento de sua terra e de seus familiares. Citando Baudelaire, compara Oswald a uma criança e a um flâneur, um incansável e curioso viajante a descobrir o mundo e, do umbigo deste – na Paris da Belle Époque – descobriu o Brasil, como o diria Paulo Prado:
Para sua personalidade, sabemos que foi decisiva a experiência da Europa, antes e depois da guerra de 1914. Na sua obra, talvez as partes mais vivas e resistentes sejam as que se ordenam conforme a fascinação do movimento e a experiência dos lugares. [...] entre o Novo e o Velho Mundo, exprimindo a posição do homem americano, que ele viveu com intensidade, ao adquirir consciência da revisão de valores tradicionais em face das novas experiências de arte e de vida. [...] Viajar para ele é não apenas buscar coisas novas, mas purgar as lacunas da sua terra [...] a viagem era também um meio de conhecer e sentir o Brasil, sempre presente, transfigurado pela distância. (Candido, 1970: 53-54)
18Sentir a paisagem brasileira em seu frescor, a terra profunda de valores reprimidos pela conquista europeia, eis o que Oswald de Andrade busca em suas viagens pelo Brasil e, sobretudo, fora dele. Nesse sentido, o contato com as vanguardas europeias, o pensamento de Nietzsche, Freud e o tema do primitivismo e da antropofagia foram referências caras à produção intelectual de Oswald, que requalifica o debate a partir da visão autóctone: o que para eles era externo e exótico tratava-se de nossa própria base de formação, dirá Oswald. Desse modo, notadamente, Montaigne, Thomas Morus – assim como uma série de pensadores aludidos em citações rápidas e estonteantes – fazem parte de um conjunto de referências, bem como o tão propalado marxismo para a fase de maior engajamento, filiado à causa socialista e ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), além da crítica da filosofia antiga (messiânica), em ensaio que relaciona tais filosofias aos feitos do patriarcado.
19Em A Arcádia e a Inconfidência, ensaio de 1945, Oswald fornece uma importante pista de roteiros que adotou em seu labor literário: se, por um lado, a poesia deve estar nos fatos, como brada em seu manifesto; por outro, a estética e a métrica poética devem andar pari passu às transformações políticas:
Os poetas da Escola Mineira não rompem com os cânones da Arcádia, ocupados que estão em libertar o Brasil. A roda da velha estética continua a girar. O seu sentido de revolução tem um primado, o político. O problema expressional não os atinge a ponto de fazê-los legislar. Estamos longe da Batalha do Ernani e da Semana de Arte de 22. (Andrade, 2011: 77)
20A literatura que Oswald combate é herança de tal quadro, os parnasianos e a alta pompa, o lado douto e as dores anônimas de um Brasil que se queria descoberto, a partir da criação dos símbolos nacionais e de uma identidade, as quais vêm, dentre outros, com a fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), no âmbito político, e do Romantismo, em sua estética literária. Aí se encontra o índio de José de Alencar, alvo de combate de Oswald, que requalifica o nativo via signo da antropofagia, da devoração.
- 15 Vide a ideia romântica do bom selvagem.
21Conforme nos lembra Vera Lúcia Figueiredo (1995), Oswald tem em mira o ato fundacional, o descobrimento do Brasil, o qual representou uma negação da cultura e das territorialidades dos grupamentos nativos. Longe de ser inocente e meramente econômica, a lógica da conquista colonial é simbólica, de modo que a sobreposição do poder político lusitano sobre a América vem através da afirmação cultural, o eurocentrismo, que “nega, elipsa a existência das sociedades indígenas que tinham a posse da terra e recalca o sentido guerreiro,15 violento, da ação dos conquistadores. Realiza, portanto, ironicamente, um primeiro encobrimento” (Figueiredo, 1995: 85).
22É contra esse conjunto de referências, as quais estabelecem um Brasil onde “só há os nomes geográficos ou botânicos e as incompreensões do tupi” (Figueiredo, 1998: 108), que o literato modernista imposta sua crítica. Conforme salienta Figueiredo, tais interpretações do Brasil – tradicionais – permanecem (como o próprio Oswald constatara ao avaliar os inconfidentes) com a ótica e a exata medida do europeu, sua escala de mundo. Mero “território-texto aberto a nova conquista e/ou leitura” (Figueiredo, idem.). Tal ideia de território-texto é fundamental para a imagem do Oswald-infante-geógrafo do rurbano que propomos.
23Como o conceito de texto-território nos permite avistar, não foi somente uma questão literária em si que estava em jogo, mas antes um aspecto político decisivo, de modo a sugerir uma nova configuração da literatura que não a aparte da produção e da vida social: a negação de um pedestal. Assim, Oswald capta uma referência através da qual não há lugar para a autonomia da arte frente à produção coletiva, tanto social quanto artística. O papel do intelectual é o da transformação, lema que orientará sua produção em seu período de militância pelo PCB, entre 1931 e 1945. A Conjuração Mineira ganha especial relevo por significar o germe da emancipação política, suas primeiras manifestações e, assim, para nosso literato, “Foram Tomás Antônio Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa e os dois Alvarenga, a constelação inicial de nossa independência literária e política” (Andrade, 2011: 111).
- 16 Aforismo do Manifesto Antropófago (1928).
24Todavia, tal não bastará ao espírito irrequieto de Oswald, que participará e incendiará como nenhum outro o modernismo e, a partir de tal marco, projetará uma redescoberta do Brasil e uma revisão do ato fundacional (o descobrimento ou, antes, o encobrimento), de modo a recuperar o índio guerreiro. Além disso, apresentará o diagnóstico da dependência e da cópia dos valores europeus, questionando o estatuto da dependência literária, política e econômica, sendo, assim, o centenário da emancipação um momento oportuno para refutar uma dependência substancial. Éramos ainda dependentes, “Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil”,16 desterrados de nossa própria terra, pois os valores que faziam dela uma terrae incognitae advinham de fora, do mapa mundi, urgindo, portanto, uma nova escala e um retorno, um acerto de contas com o elo perdido: o substrato do fundo subsolo de nossa raiz indígena. Por isso, a utopia oswaldiana se revestirá de contornos geográficos tensionados entre elementos opostos, como a “floresta” e a “escola”, na busca pela constituição das bases territoriais. Bases duplas, como sugere no manifesto da poesia pau Brasil.
25Uma vez referenciado e localizado em suas coordenadas, podemos nos dedicar às questões suscitadas pelos manifestos. O tema do primitivismo é olhado a partir do prisma nativo, e não do exótico, o que nos distinguiria da experiência europeia. Assim, a referência geográfica é um importante demarcador da imaginação. Mesmo em sua fase mais crítica, Oswald reconhece esse primitivismo nativo como o único (grande) achado da geração modernista de 20 (Nunes, 2011).
- 17 Quando o automóvel ainda era um símbolo incipiente da modernidade, na qual pairava um espírito de c (...)
26Segundo Nunes (op. cit.), o tema do primitivismo coloca no centro do debate, e no foco dos grandes problemas, fatores como o imaginário, o emocional e o pensamento mito-poético, de modo que a técnica “futurista” — da velocidade, do ritmo da cidade e do carro que anuncia sua pressa com a klaxon17 — não prescinde de um acerto de contas com o passado, estando o modernismo nessa tênue corda bamba, em que ora descamba para o primitivo, ora para o futuro, mas tendo o Brasil como lugar seguro e, ao mesmo tempo, fonte dos problemas e esperanças do futuro (utopia). Assim, a selva (floresta) do primitivo e a cidade de São Paulo (arquétipo e lugar da técnica e da reflexão sobre o moderno) irão requerer um novo conhecimento, e a escola, lócus de aprendizagem sobre um novo lugar, será produto dessa combinação singular de tempos, em que a selva e a escola produzem o Brasil rurbano:
Oswald de Andrade, condicionado por esse sobressalto, que já marca o Manifesto da Poesia Pau Brasil, tanto penderia para o primitivismo de natureza psicológica quanto para o da experiência externa na estética do cubismo, que Apollinaire estendeu, sem esquecer de associá-las à exaltação futurista da vida moderna nos grandes meios urbanos [...] O Manifesto [...] situa-se na convergência desses dois focos. [...] [É] um programa de reeducação da sensibilidade e da cultura brasileira. [...] Nos meios técnicos de produção, informação e comunicação da sociedade industrial [...] tem esse modo de conceber as condições objetivas, histórico-sociológicas, que o possibilitam, e que formam, em conjunto, uma nova escala de experiência perceptiva. (Nunes, 2011: 13-15. Grifos do autor)
27Já em seu primeiro manifesto, Oswald de Andrade sugere um caminho que ruma ao rurbano, tendo ele apresentado como base dupla formadora de nossa nacionalidade (e espacialidade) as antípodas floresta e escola. Também na poesia liberta da clausura da forma e da gramatiquice, grande sorte de “erros” e “experimentações”, há um projeto moderno da nacionalidade – tanto na poética (forma-conteúdo) quanto nas ficções e utopias. Porém, a consagração da técnica não poderia exercer pleno triunfo sobre nossa geografia diferenciada, rurbana, sob o preço de caracterizar uma civilidade artificial, que cultua as citações e imitações, a mímese, o lado douto. Assim coloca Oswald, com argúcia, seu ponto no manifesto pau-brasil:
O lado doutor, o lado citações, o lado autores conhecidos. Rui Barbosa, uma cartola na Senegâmbia. Tudo revertendo em riqueza. A riqueza dos bailes e das frases feitas. Negras de jóquei. Odaliscas no Catumbi. Falar difícil. O lado doutor. Fatalidade do primeiro branco aportado e dominando politicamente as selvas selvagens. O bacharel. Não podemos deixar de ser doutos. Doutores. País de dores anônimas, de doutores anônimos. O império foi assim. Eruditamos tudo. Esquecemos o gavião de penacho. A nunca exportação da poesia. A poesia ainda oculta nos cipós maliciosos da sabedoria. Nas lianas das saudades universitárias. (Andrade, 2011: 59-60).
28E avalia, sobre isso, o crítico:
[A] prática que os engenheiros e os especialistas mobilizam, originou-se na nova escala de experiência condicionada pela máquina e pela tecnologia, por todo esse conjunto dos meios de produção, comunicação e informação da época moderna, que transformaram a natureza circundante, criando a sobrenatureza do meio técnico da civilização industrial e urbana, a escala não livresca mas espetacular de um mundo supreendentemente mágico, de coisas mutáveis, de objetos que se deslocam no espaço e no tempo – de um mundo em que a própria ciência funciona como varinha de condão.18
29Para o crítico, o manifesto de 1924 é exatamente essa tentativa de conciliação da base dupla, a floresta e a escola, que estamos entendendo como símbolos de uma imaginação geográfica, duas antípodas, que se sintetizam no rurbano. Ele sugere ainda uma relação de universalidade com a regionalidade, de modo a não eleger nenhuma área como centro de difusão das experiências e dos valores. Assim, essa “geografia” brasileira tem lugar numa geografia universal que sempre a negou, a encobriu e desconsiderou seus nativos e seu habitat, levando Oswald a proclamar a emergência do homem novo no mundo novo. Explica o comentador que “[a] universalidade da época deixaria de ser excêntrica para ser concêntrica; o mundo se regionalizara e o regional continha o universal” (Nunes, op. cit.:19), retomando a colocação oswaldiana da necessidade de “ser regional e puro em sua época”, em observância ao manifesto pau-brasil.
30Com o Manifesto Antropófago, de 1928, há a implosão do constructo tradicional e, com ela, a negação da geografia enumerativa, enciclopédica e romanceada em suas regiões excessivamente naturalizadas. Oswald desloca o pêndulo para o urbano, para o futuro e para o conhecimento de base dupla anunciada no primeiro manifesto, mas um urbano que não é aquele conhecido pelo europeu. É um urbano muito rurbano, ainda desconhecido, uma terrae incognitae utópica, de poderosa força imaginativa e telúrica:
Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil. [...] Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Oú Villegaignon print terre. Montaigne. O homem natural. Rousseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à Revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos. (Andrade, 2011: 47-48)
31Oswald, já em seu primeiro manifesto, começa a tatear uma formação “plástica”, anfíbia, que é uma imagem presente tanto na visão utópica de Oswald quanto no tema “rurbano” de Gilberto Freyre.19 No caso do literato modernista, a base dupla floresta e escola é um primeiro momento dessa imaginação geográfica.
32A geografia está presente mesmo na fase marxista, comumente diminuída pela crítica, por conta de seu viés supostamente “ideológico” e doutrinário. Todavia, devemos lembrar que essa filiação ideológica de Oswald de Andrade, ainda que crítica ao pensamento marxista, por meio do que define como uma “vacina antropofágica”.
- 20 Aforismo do Manifesto Antropófago (1928). Vide Andrade, 2011: 49-50.
33Voltando ao manifesto antropófago, Oswald irá se refugiar em uma espécie de ode ao misticismo, ao irracionalismo que vocifera contra o calendário – e nisso, junto, a temporalidade – do colonizador e as marcas deixadas. Essa fuga visa atentar para o desconhecimento sobre o nacional, sendo necessário dar um passo atrás, na direção do primitivo, para que, a partir dele, conheçamos um novo mundo. Uma terrae incognitae: “O mundo não datado. Não rubricado”, que visa investir e destituir “Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo.”20
34Por outro lado, o urbano e o meio técnico em dinâmica e experiência crescente serviam de base material para divulgação e também de inspiração técnica, sem por isso escapar à crítica. Sem a coabitação com o elemento bárbaro, munido da técnica, a cidade seria demasiado artificial, lugar de empréstimos e mimeses: um urbano muito exógeno e muito aquém do que deveria preservar de sua antípoda – a selva. Esse descuido e esquecimento deliberado para com a outra base antípoda, a selva, por parte do saber que se claustra na cidade (escola) levará Oswald a se colocar “Contra as escleroses urbanas”.
35Antecipando a “geografia do riso” de seu último ensaio, o autor elege a alegria como a “prova dos nove”. O “matriarcado da Pindorama” se apresenta como a terra imaginada de promessas futuras, onde o bárbaro tecnizado alegre encontra seu lugar de direito, em um novo calendário, o ano “374 da deglutição do bispo Sardinha”, na “Piratininga”.
36O manifesto antropófago remete a uma posição política de destaque, segundo o comentador de Oswald de Andrade, Mário da Silva Brito (1972). Não somente uma nova arte e uma nova estética, mas uma nova arte-estética que esteja figurando como elemento politicamente favorável, e não a (des)serviço do “novo homem” na “nova terra”, ou seja, os brasileiros ameríndios, o bárbaro tecnizado do Matriarcado da Pindorama. Oswald de Andrade retomará e afirmará esse lugar político de modo mais explicitado na Arcádia e a Inconfidência.
37Duas correntes principais, assim, se digladiam no (e pelo) modernismo, um conservador e outro “radical”. “O verdamarelismo, escamoteado de uma costela de Oswald, caracteriza-se por seu conservadorismo, por sua prudência, e funciona como uma diluição ou amaciamento dos propósitos violentamente revolucionários” (Brito, 1972: 75. Grifo do autor) de Oswald, enquanto que no Grupo Anta, autenticamente oswaldiano, afirma-se outro tom político, outro índio e afirmação de outra terra, a rigor, outro Brasil. Enquanto um cultua valores que posteriormente se aproximariam do Estado Novo varguista para dele se nutrir e alcançar um impulso político, o outro o rechaça.
38O manifesto de 1928 ratifica a posição tomada no primeiro, promovendo nova ode ao primitivismo. Ainda não havia sido colocado por Oswald, cabalmente, a ideia da rurbanização freyriana, todavia, estava claro demais que a cidade europeia não era a nossa cidade anfíbia, rurbana, a qual Oswald apontará e encontrará em Bauru, quando em sua conferência, no ano de 1948. A civilidade artificial em novas terras brasileiras resultaria em tristeza, enquanto a “alegria é a prova dos nove”. Assim, alegria e civilidade são contrapontos.
39Anterior ainda é a apropriação tomada pelo nativo e para o nativo, é a feita em que há uma celebração da alteridade: “Só me interessa o que não é meu. Lei do [novo] homem. Lei do antropófago.” (Andrade, 2011: 47). O crítico explana que:
A Antropofagia valoriza o homem natural, é antiliberal, anticristã, e foi inspirada no capítulo “De Canibalis” dos Ensaios de Montaigne. Nele se relata o episódio do índio brasileiro que observa à corte de Ruão muito se admirar do conforto da cidade europeia, mas se admirar muito mais de que não fossem os palácios e os salões queimados pelos habitantes dos cortiços e casebres, populações que viviam na lama e no frio, na fome e na miséria. Nele se conta também que “levado à presença do rei, que era uma criança doente, sentado no trono ao lado de um suíço barbado e terrível, o índio perguntara por que não tiravam dali aquele incapaz e não sentavam no trono suíço. (Brito, 1972: 75-76)
40Aparentemente, à revelia dos que advogam a favor da imaginação geográfica na obra oswaldiana, em particular, na produção dos manifestos, verificamos na crítica literária uma tradição interpretativa de negar o lugar que reivindicamos para a geografia. Por quê?
41Foi este desconforto e as inquietações dele decorrentes que motivaram a investigação desse problema. Assim, pretendemos localizar a produção literária e intelectual de Oswald de Andrade a partir de um diálogo com as reflexões modernistas e seus aspectos geográficos, entendendo a “geografia” de modo amplo, isto é, o Pensamento Geográfico, em particular, as imaginações. Sobre tal elasticidade e as possibilidades da geografia, o entendimento de Moraes (2008) é mais que oportuno, pois possibilita a integração e o imbricamento entre geografia, história e literatura.
42Sustentamos que o campo da literatura que tem Oswald de Andrade como objeto é muito amplo e, a despeito disso, o lugar da geografia imaginativa contemplado pela crítica e teoria literárias é, se não “inexistente”, insuficiente. Para contornar tal hiato, nós centramos as análises sobre o “espaço” oswaldiano empreendidas por destacados intérpretes que sugerem e chegam a adentrar problemas de interesse espacial, embora algumas interpretações venham a refutar a geograficidade de Oswald e não tratem o que fazem com a alcunha explícita de “geografia imaginativa”. Dos poucos críticos que se aventuraram nos caminhos telúricos oswaldianos, quantidade ainda menor deles o viu de modo positivo.
43A interpretação de Lucia Helena21 é, nesse sentido, sintomática, pois se configura como importante referência no campo e nos permite sustentar que parte bastante expressiva da crítica literária debruçada sobre a relação entre Oswald de Andrade e espaço geográfico afasta diametralmente o literato da geografia.
44Ela defende a hipótese de que o literato modernista oscila entre uma postura alegórica (representação fragmentária) e simbólica (universal concreto que exprime uma visão de totalidade), sendo essas categorias entendidas à luz da filosofia de Walter Benjamin, decantada a partir do prisma da aura da obra de arte (em O drama barroco alemão). Segundo a intérprete de Oswald, seus momentos mais profícuos e criativos, de grande riqueza artística, estão atrelados à postura alegórica fragmentária, na qual estaria presente uma espécie de Oswald de Andrade artista. Já nos momentos universalizantes, de orientação simbólica, estaria presente o Oswald intelectual e panfletário, dos projetos salvacionistas e com tons de autoridade na condução da nacionalidade brasileira em sua perspectiva moderna, sobretudo nas décadas de 30 e 40, uma vez sob filiação ao PCB.
45Essa divisão operada por Lúcia Helena parece, em certos momentos, revestida de juízos de valores e enquadramentos maniqueístas, apesar do unânime reconhecimento da qualidade do trabalho, da autoridade e do conhecimento que apresenta com relação à crítica literária, sendo uma intérprete consagrada nesse cenário temático e no campo desses estudos.
46Outro ponto que merece nossa crítica no interior do trabalho de Lucia Helena é o lugar que ela (não) dá à geografia. É sintomático o uso de metáforas geográficas – que além de aparecerem periodicamente em toda a tese, muitas vezes, indo além das metáforas, iniciam e concluem seu estudo, com passagens de ímpar alusão espacial.
47Na análise da autora, a antropofagia oswaldiana é um “tecido alegórico de fragmentos” na qual há uma evocação da “heterogeneidade ‘macunaímica’ do nacional (Helena, op. cit.: 177). Assim, a intérprete identifica um encontro entre o maior projeto oswaldiano com a narrativa de Mário de Andrade sobre a brasilidade, defendendo que, em ambos, há essa progressiva “desgeografização” do Brasil. Todavia, Macunaíma trata da formação territorial e de uma viagem narrativa do espaço brasileiro, sendo antes uma nova geografia do Brasil. A despeito de o próprio Mário de Andrade montar um quadro que ele chama de “desgeografização”, permanece inabalada e não problematizada que tipo de Geografia era essa, notadamente inspirada pelos conceitos ontológicos. Sobretudo o conceito de “região” que é colocado no centro de gravidade, na medida em que há uma coincidência entre a institucionalização da disciplina, arraigada no métier do geógrafo. É essa mesma região que será, através do somatório de cada uma dessas partes, a composição do quadro nacional, em conformidade aos auspícios da política varguista. Esta é a principal referência da Geografia brasileira que se institucionaliza na década de 1930, contemporânea aos Andrades, tendo por objeto a região personificada por sua singular paisagem. Ao mirar o todo, com Macunaíma, há uma explícita orientação em desmontar a geografia, pois a região se desfacelava.
48A superação desses “geografismos” é, de certo modo, também necessária. Nesse sentido, a “desgeografização” da Geografia, aproxima esta disciplina às ciências humanas e das artes. A imaginação e a poética também encontram lugar em outra geografia que se fazia pelas mãos de Oswald, assim como a relação comunitária, animando sua produção intelectual. Em uma comparação com a Europa, a própria intérprete que evita o espaço permite uma leitura “telúrica”:
se na Europa o que se afirmou foi a racionalidade como matriz prioritária do pensamento, no Brasil ainda é forte uma pulsão telúrica (não falamos aqui em “irracionalismo”) em que o pensamento mágico, a relação comunitária, os vínculos com a tradição mostram-se prevalentes e determinam um hibridismo cultural peculiar. (Helena, 1985: 163)
- 22 Uma das principais referências da Teoria da Recepção, que desloca a construção dos significados de (...)
49Ao concluir a tese, a intérprete oscila novamente, parecendo redimir-se com a perspectiva pautada por Wolfgang Iser,22 tratando a literatura oswaldiana no contato com a “realidade” social, mas sem cair em determinismos que enquadrem fixamente a criatividade literária. A sombra da autonomia da arte parece distanciar-se. Refletindo sobre os últimos ensaios de Oswald de Andrade – marcados pela retomada da antropofagia dos manifestos dos anos 20 (A crise da filosofia messiânica e A marcha das utopias), Lúcia Helena mostra que Oswald ficcionista constrói um mundo só seu, que necessita habitá-lo, a despeito de seu isolamento no mundo (como a própria intérprete avalia), pois,
ao final, é o ficcionista que nele predomina, pensando o social e o político com as articulações que trabalha no nível literário. Os dois ensaios misturam, de um modo às vezes caótico, outras vezes inteligentíssimo, heranças vitais e montagens esdrúxulas. Nos dois ensaios Oswald se apresenta como um mesclador de caminhos que, se por vezes não nos levam, em termos teórico-científicos, a lugar preciso e rigoroso, têm a marca de um pensamento que jamais se conformou com o estabelecido, toda vez que isto coincidisse com a manutenção das distorções sociais, ou com o prejuízo coletivo em nome do individual. Nos compromissos que firmou, às vezes de modo desastrado e derrubando ao derredor, houve sempre o toque generoso de não caber em si, na festa da liberdade. – Mestre Oswald, este incansável “fazedor” de utopias. (Helena, 1985: 199. Grifos nossos.)