1O
objetivo desse artigo é traçar um breve panorama de alguns aspectos
biográficos e intelectuais da trajetória da geógrafa Ellen Semple
(1863-1932), geógrafa que teve um papel decisivo para o fortalecimento e
a institucionalização acadêmica da Antropogeografia nos EUA. Na
primeira parte do artigo apresentaremos um sumário cronológico de
aspectos importantes da trajetória de Semple, com ênfase em suas
publicações mais relevantes e em sua filiação institucional. Na segunda
parte será realizada uma apreciação de elementos epistemológicos que
marcaram a sua obra, com destaque para os desenvolvimentos teóricos
apresentados em Influences of Geographic Environment (1911) e
para a discussão da importância desse livro como um marco histórico para
o surgimento de um programa de pesquisa antropogeográfico em terras
estadunidenses. Na última parte comentaremos brevemente sobre a relação
entre as concepções filosóficas presentes na obra da geógrafa e o
Darwinismo Social, corrente de pensamento que teve significativa força
no campo intelectual anglo-saxônico nas primeiras décadas do século XX.
- 1 Sobre o período crítico de institucionalização disciplinar no caso francês ver Berdoulay (2017 [198 (...)
2A
Geografia estadunidense do período entre as décadas do final do século
XIX e do início do século XX é marcada pelo atraso em relação aos
desenvolvimentos pioneiros que já vinham ocorrendo na França e na
Alemanha desde a década de 18701
e pela incipiência institucional que caracterizava a situação da
disciplina no país. Até as décadas finais do século XIX, a disciplina
era praticada nos EUA por estudiosos isolados, dentre os quais se
destacavam Louis Agassiz (1807-1873), Arnold Guyot (1807-1884) e
Nathaniel Southgate Shaler (1841-1906). Conjuntamente a esses
desenvolvimentos isolados, até as últimas décadas do século XIX, a
produção de conhecimento geográfico no país esteve bastante ligada às
sociedades geográficas amadoras e à tradição dos field surveys que produziam uma série de informações sobre o oeste estadunidense (Schulten, 2001).
3O
impulso que levaria à construção de um campo disciplinar específico nos
EUA começou a ganhar força apenas na década de 1880, quando W. M. Davis
(1850-1934), um geólogo de formação que foi decisivo para o
fortalecimento da disciplina no país, se tornou professor de Geografia
Física na Universidade de Harvard, onde o erudito lecionou entre 1885 e
1912 (Martin, 2005: 341). Davis, que havia proposto, na última década do
século XIX, uma teoria geral dos processos de formação do relevo
conhecida como teoria do “ciclo da erosão”, foi fundamental para que a
afirmação da identidade disciplinar da Geografia como ciência das
relações homem-ambiente se consolidasse nos EUA (Martin, 2005: 346).
- 2 É bom lembrar que a existência de cursos de Geografia em algumas dessas instituições, como são os c (...)
4Davis também foi diretamente responsável pela fundação da Association of American Geographers
(AAG), em 1904. A criação dessa instituição foi um momento decisivo
para a profissionalização disciplinar porque ela marcava uma ruptura com
o amadorismo das sociedades geográficas até então existentes. O
nascimento da AAG foi acompanhado pelo surgimento, entre os anos de 1899
e 1914, de cursos de Geografia em importantes instituições, como são os
casos das universidades de Harvard, da Pennsylvania, de Yale e de
Chicago (Martin, 2005: 354).2
O crescimento das preocupações com a Antropogeografia teve, no período
das duas primeiras décadas do século XX, papel decisivo para que a
disciplina conquistasse condições de autonomia mínima em relação à
Geologia. Além da emancipação em relação à Geologia, havia a necessidade
de distingui-la, no estudo dos problemas humanos, de outras disciplinas
das humanidades. O estudo da influência ambiental sobre o homem operou,
nesse período, como um quadro de referência que distinguia a
especificidade epistemológica da disciplina em um contexto de crescente
divisão do trabalho intelectual nos EUA.
5Esse
conjunto de circunstâncias nacionais particulares delineou o contexto
em que a obra de Semple surgiu e se consolidou como um esforço pioneiro
fundamental para o desenvolvimento acadêmico da Geografia estadunidense.
Ellen Churchill Semple nasceu em 1863, durante a Guerra de Secessão
(1861-1865), em Louisville, no estado do Kentucky. A geógrafa teve uma
origem social elevada que lhe possibilitou acesso precoce à educação
formal. Sua primeira experiência intelectual mais significativa ocorreu
quando deixou Louisville para estudar no Vassar College, localizado na cidade de Poughkeepsie, em Nova York, onde estudou entre 1878 e 1883. Semple obteve um Bachelor of Arts Degree por essa instituição (Keighren, 2010: 12-13). Posteriormente, a geógrafa retornou a essa instituição para obter um Master Degree
em 1891. O período entre o bacharelado e o mestrado, passado por Semple
no Kentucky, foi marcado por sua inserção nos círculos intelectuais que
existiam em Louisville e pelo início de seu contato mais sistemático
com trabalhos de Economia, Sociologia e Geografia.
6Em
1887, alguns anos antes de obter o seu mestrado, a geógrafa viajou para
Londres, onde conheceu Duren James Henderson Ward (1851-1942), um doutor
recém-formado pela Universidade de Leipzig que lhe recomendou o estudo
da obra de Friedrich Ratzel, erudito que então ministrava cursos de
Geografia na universidade onde Ward se doutorara. Semple pegou
emprestada de Ward uma cópia do primeiro volume da “Antropogeografia”
(1882) de Ratzel e, após permanecer seis meses estudando a obra, acabou
ficando irreversivelmente influenciada pelas ideias do geógrafo alemão. A
dissertação apresentada por Semple no Vassar College tratava
da escravidão. Durante esse período do mestrado, Semple manteve
correspondência com Ward, na qual falava de temas com forte teor ratzeliano,
como a questão da evolução e da influência dos vários tipos de
ambientes sobre as sociedades. Assim que terminou o mestrado em 1891,
Semple viajou a Leipzig para estudar com Ratzel (Keighren, 2010: 14).
7Os
debates que a autora teve com o erudito alemão durante esse primeiro
período de um ano e meio na Alemanha foram fundamentais para a
articulação posterior de seu pensamento antropogeográfico. Dentre essas
discussões, a geógrafa relatou que as reflexões sobre a importância do
estilo da escrita nos trabalhos antropogeográficos foram fundamentais,
pois Ratzel ressaltava, segundo a autora, que como a disciplina deveria,
assim como a História, ter o homem no centro de sua abordagem, sua
linguagem também deveria resguardar certo teor literário. Semple
concordava com isso e acreditava que esse “charme” trazido pelo uso de
uma linguagem mais literária poderia facilitar a difusão da
Antropogeografia nos EUA (Keighren, 2010: 15). Após passar esse período
na Alemanha entre 1891 e 1892, Semple voltou novamente a Leipzig em 1895
para estudar mais uma vez com Ratzel (Colby, 1933: 232).
8Em
1897, ao retornar aos EUA após seu segundo período de estudos na
Alemanha, Semple começaria a publicar seus primeiros trabalhos. Embora
seu primeiro artigo date desse ano, a primeira publicação da geógrafa a
produzir alguma repercussão foi seu trabalho “The Anglo-Saxons of the
Kentucky Mountains”, que apareceu no The Geographical Journal em
1901 (Colby, 1933: 232). Nesse texto, Semple aplica o método
antropogeográfico para descrever como se deu o processo histórico de
formação de uma população geograficamente e culturalmente isolada nas
áreas montanhosas do leste do Kentucky, seu estado de origem (Keighren,
2010: 31-32). A capacidade da autora em demonstrar, nesse artigo, a
relevância da influência ambiental como um referencial explicativo para
questões culturais e demográficas teve certo impacto em uma situação
nacional em que a Antropogeografia apresentava um desenvolvimento ainda
bastante incipiente na primeira década do século XX.
9O primeiro livro de Semple, American History and Its Geographic Conditions,
foi publicado no ano de 1903. A boa recepção de seu artigo sobre o
Kentucky acabou criando uma situação favorável para que a autora
escrevesse uma obra buscando considerar a história dos EUA a partir do
ponto de vista antropogeográfico. O livro abordou, em grande medida, uma
discussão sobre os fatores ambientais que teriam, no entendimento de
Semple, condicionado as guerras, as migrações, o desenvolvimento
comercial, a localização das cidades, a provisão dos transportes e o
comércio exterior dos EUA ao longo de sua história. American History
curiosamente foi publicado no mesmo ano em que outro geógrafo, Albert
Perry Brigham, publicou um livro tratando do mesmo tema, intitulado Geographic Influences in American History.
A despeito da similaridade temática, os autores chegam a conclusões
distintas. Semple tomou como base a influência de fatores ambientais
individuais sobre o histórico da ocupação dos EUA, enquanto Brigham
ofereceu uma abordagem mais regional ao considerar a combinação de
fatores geográficos em províncias fisiográficas específicas (Keighren,
2010: 33-34).
10Essa
obra fechou o primeiro ciclo da trajetória intelectual de Semple e
estabeleceu para a autora um lugar distintivo na nascente
Antropogeografia estadunidense. American History desfrutou de
ampla aceitação como um texto padrão para cursos de Geografia Histórica
dos EUA e alargou bastante a esfera de influência da geógrafa (Colby,
1933: 233). O texto foi lido em vários estados e colocado em listas
formais de leituras de Geografia e História de algumas universidades,
além de ter sido adotado por bibliotecas da marinha dos EUA (Keighren,
2010: 33-34). A recepção favorável à primeira obra de Semple se seguiu à
etapa de sua trajetória que seria dedicada à escrita do principal livro
de sua carreira, Influences of Geographic Environment, cuja
publicação ocorreria no ano de 1911. Com a morte de Ratzel em 1904, a
autora começou a trabalhar na empreitada de elaboração de uma obra que
comunicasse os princípios antropogeográficos de seu mentor intelectual
para o mundo de língua inglesa. Pouco antes de sua morte, o próprio
Ratzel encarregou Semple de difundir as suas ideias no mundo anglófono
(Keighren, 2010: 35). A geógrafa entraria, então, em um período de sete
anos de trabalho que resultaria na publicação de sua principal obra.
- 3 Mesmo diante de sua situação como ministrante de uma visiting lecturership, que a diferenciava dos (...)
11Em 1906, Rollin Salisbury, o líder do departamento de Geografia de Chicago, convidou Semple para oferecer uma visiting lecturership
em sua universidade (Keighren, 2010: 37). O departamento de Chicago,
criado em 1903, teve um papel decisivo para a institucionalização da
disciplina nos EUA e foi o primeiro do país a abrigar a Geografia
autonomamente. Semple lecionou em anos alternados em Chicago entre 1906 e
1924. A entrada de Semple nessa instituição evidencia a autoridade
científica que seu trabalho já tinha na metade da primeira década do
século XX.3 O
estudo dos aspectos humanos da Geografia, abrigado no departamento de
Chicago, teve um papel decisivo para a construção da especificidade
epistemológica do campo disciplinar nos EUA em oposição à Geologia.
Nesse contexto, o trabalho antropogeográfico de Semple encontrou um
terreno fértil para a sua difusão.
- 4 Semple publicou artigos no Bulletin da American Geographical Society, além de ter participado, ness (...)
12Quando
não estava lecionando em Chicago, Semple dividiu seu tempo entre
Louisville e as montanhas do estado de Nova York, lugares onde trabalhou
na escrita de Influences of Geographic Environment sem
interrupção. Entre 1907 e 1910, a geógrafa publicou artigos que
evidenciavam já alguns desenvolvimentos parciais que estariam expostos
em Influences (Keighren, 2010: 41).4
A publicação de sua obra principal em 1911 rendeu a Semple um
crescimento de sua autoridade intelectual tanto dentro quanto fora dos
EUA. Em consequência disso, a autora foi convidada para lecionar durante
um período no verão de 1912 na Universidade de Oxford. Seu trabalho foi
tão bem recebido em terras inglesas que ela acabou sendo convidada a
retornar para Oxford para lecionar novamente no verão de 1914 (Colby,
1933: 234).
13Após lecionar pela segunda vez em Oxford, em 1914, Semple retornou aos EUA e trabalhou no Wellesley College
durante o ano acadêmico de 1914-15 e na Universidade do Colorado no
verão de 1916. Em 1915 apareceu o seu primeiro artigo sobre a região
mediterrânea, que seria o tema da sua última grande obra. Desse período
em diante, o estudo dessa parte do mundo tomou a maior parte de seu
tempo como pesquisadora. Semple havia viajado bastante pela Europa e
pesquisado material sobre a região. O livro sobre o Mediterrâneo, que
foi publicado em 1931, é o resultado desse terceiro grande período
produtivo de sua trajetória. O trabalho acadêmico de Semple foi
parcialmente interrompido nos anos em que os EUA estiveram envolvidos na
Primeira Guerra Mundial. Entre dezembro de 1917 e o final de 1918 a
geógrafa realizou estudos especiais sobre o Mediterrâneo para o Bureau of Inquiry for the Peace Terms Commission. Esses estudos foram realizados na sede da American Geographical Society
que ficava, à época, na cidade de Nova York. Seu trabalho em Nova York
acabou proporcionando a oportunidade para que lecionasse na Universidade
de Columbia durante o verão de 1918 (Colby, 1933: 235).
14Após
o fim da guerra, a autora retornou à normalidade de sua pesquisa e
escrita e nos anos de 1920, 1922, 1923 e 1924 voltou a dar aulas na
Universidade de Chicago. Nesse período, Semple também se tornou
professora de Antropogeografia da Universidade de Clark, instituição na
qual começou a trabalhar em 1921 e com a qual manteve ligações até a sua
morte. Durante os anos que passou lecionando em Clark, a geógrafa
desfrutou de grande liberdade de ensino. Após entrar como professora em
Clark, Semple ainda lecionou durante um semestre em 1925 na Universidade
da Califórnia, em Los Angeles. Em 1931, um ano antes de sua morte, já
após sofrer, em 1929, um ataque cardíaco que debilitaria sua saúde
significativamente, a autora publicou “Geography of the Mediterranean
Region”, sua última grande obra, que resultava de uma pesquisa de mais
de uma década (Colby, 1933: 235-237).
15Os
dois temas fundamentais que marcaram as contribuições de Semple foram a
reflexão sobre o papel que as condições geográficas exerceram no
processo de desenvolvimento histórico dos EUA e a formalização de uma
discussão epistemológica sobre a especificidade disciplinar. A respeito
do primeiro tema, seu importante e longo artigo de 1901, “The
Anglo-Saxons of the Kentucky Mountains”, e sua primeira obra de maior
fôlego, American History and its Geographic Conditions, de
1903, constituem as contribuições de maior destaque da primeira fase de
sua produção intelectual. Em relação ao segundo tema, seguramente, a
contribuição mais significativa é “Influences of Geographic
Environment”, de 1911, obra que teve grande repercussão em todo o mundo
anglófono por ser uma das primeiras tentativas mais longas de
sistematização teórica da Antropogeografia nos EUA. Privilegiaremos aqui
a análise de algumas posturas epistemológicas e filosóficas presentes
nessa obra.
- 5 O título completo da obra incluindo o subtítulo (Influences of Geographic Environment – On The Basi (...)
16No prefácio de Influences,
Semple alega que seu objetivo ao escrever a obra era reafirmar os
princípios que estavam enunciados na “Antropogeografia” de Ratzel
(Semple, 1911: V). A geógrafa afirma que buscou, com a aprovação do
próprio Ratzel, realizar uma reafirmação adaptada de seus princípios
para o mundo de língua inglesa, onde eles eram desconhecidos no início
do século XX (Semple, 1911: V).5
17A
mobilização da autoridade científica da obra de Ratzel para justificar a
sua empreitada intelectual aparece já na apresentação do livro. A
autora atribui a Ratzel o papel de ter colocado a Antropogeografia no
que chama de uma “segura base científica” e argumenta que mesmo que seu
mentor intelectual tivesse tido precursores como Montesquieu, Humboldt,
Ritter e Peschel, ele foi o primeiro a investigar o tema “do ponto de
vista científico moderno” construindo seu sistema “de acordo com os
princípios da evolução” e baseando suas conclusões em “induções de
abrangência global” (Semple, 1911: V). Semple apresenta a obra
reivindicando essa filiação simultânea com Ratzel e com a teoria da
evolução. Logo após reivindicar essas duas filiações, a autora enuncia o
método de pesquisa que procurou seguir em Influences:
- 6 Do original: “(...) compare typical peoples of all races and all stages of cultural development, li (...)
(...) comparar povos típicos
de todas as raças e de todos os estágios de desenvolvimento cultural que
vivem sob condições geográficas similares. Se esses povos de diferentes
estoques étnicos, mas de ambientes similares, manifestarem
desenvolvimento social, econômico ou histórico similares, é razoável
inferir que tais similaridades se devem ao ambiente e não à raça.
(Semple, 1911: VII)6
18A
pesquisa empírica deve oferecer dados para comparar povos que estão em
“estágios” de “desenvolvimento cultural” diferentes, mas que vivem sob
“condições geográficas similares”. O objetivo da comparação é clarificar
até que ponto o ambiente pode interferir nos processos históricos,
econômicos e culturais. A afirmação desse método é seguida pela
explicitação, no capítulo que abre a obra, intitulado “The Operation of
Geographic Factors in History”, dos pressupostos gerais que fundamentam o
seu programa de pesquisa antropogeográfico:
- 7 Do original: “Man can be no more scientifically studied apart from the ground which he tills, or th (...)
O homem não pode mais ser
cientificamente estudado separadamente do solo que ele cultiva, ou das
terras pelas quais viaja, ou dos mares pelos quais realiza comércio, da
mesma forma que o urso polar ou o cacto do deserto não podem ser
entendidos em separado de seu habitat. As relações do homem com o seu
ambiente são infinitamente mais numerosas e complexas do que aquelas da
planta ou animal mais altamente organizado. Elas são tão complexas que
constituem um legítimo e necessário objeto de estudo especial. A
investigação que elas receberam na Antropologia, na Etnologia, na
Sociologia e na História é fragmentada e parcial (...) todas essas
ciências, junto com a História, na medida em que a História busca
explicar as causas dos eventos, falharam em encontrar uma solução
satisfatória de seus problemas, principalmente porque o fator geográfico
que entra nelas não foi detalhadamente analisado. O homem tem estado
tão ruidoso sobre a forma pela qual ele tem ‘conquistado a natureza’ e a
natureza tem sido tão silenciosa em sua influência persistente sobre o
homem, que o fator geográfico na equação do desenvolvimento humano vem
sendo negligenciado. (Semple, 1911: 2)7
- 8 Do original: “In every problem of history there are two main factors, variously stated as heredity (...)
Em todo problema de história
existem dois fatores principais, designados de formas variadas como a
hereditariedade e o ambiente, o homem e suas condições geográficas, as
forças internas da raça e as forças externas do habitat. O elemento
geográfico na longa história do desenvolvimento humano tem operado
longamente e persistentemente. Aqui reside sua importância. É uma força
estável. Nunca se esvai. Esse ambiente natural, essa base física da
história, é, para todos os intentos e propósitos, imutável em comparação
com o outro fator no problema – o homem; mutável, plástico, progressivo
e regressivo. (Semple, 1911: 2)8
19A
insuficiência da explicação que as outras disciplinas das humanidades
ofereciam a respeito das relações entre o homem e o ambiente é vista por
Semple como justificativa para a existência da Antropogeografia. Esse
apontamento das insuficiências das disciplinas vizinhas na explicação do
objeto reivindicado por uma disciplina ainda em processo de construção é
uma estratégia clássica de luta por territórios epistemológicos em
contextos de enrijecimento da divisão do trabalho intelectual.
20Quando
a geógrafa afirma que em “todo problema de história” existem sempre
dois fatores principais, como “a hereditariadade e o ambiente”, “o homem
e suas condições geográficas” ou “as forças internas da raça e as
forças externas do habitat”, revela claramente a filiação da sua
perspectiva antropogeográfica com as concepções evolucionistas,
especialmente com toda a problemática da relação organismo-ambiente que
esteve no cerne das pesquisas da Biologia do século XIX e início do
século XX. A perspectiva evolucionista misturada a uma tradição de
pesquisa geográfica que já carregava, desde pelo menos o início do
século XIX, a preocupação com o estudo da relação homem-meio, molda todo
o programa de pesquisa antropogeográfico da autora nessa obra que é um
marco da sistematização disciplinar nos EUA.
21A
geógrafa destaca a colocação de um “problema de história” no mesmo
momento em que justifica a existência da Antropogeografia como
disciplina específica. Isso sugere que a sua preocupação é a elaboração
de uma filosofia da história que contemple o papel das “influências” ou
dos “fatores” geográficos. Além de desenvolver reflexões teóricas
bastante elaboradas sobre as relações entre os grupos humanos e o
ambiente, Semple, nessa obra, sistematizou uma terminologia para
distinguir quatro classes de influências geográficas (tema do segundo
capítulo, intitulado “Classes of Geographic Influences”), propôs uma
teoria geográfica do Estado amplamente escorada em pressupostos ratzelianos
(abordada no terceiro capítulo, cujo título é “Society and State in
Relation to the Land”) e ofereceu uma série de discussões mais
específicas sobre povos costeiros e insulares, habitantes de planícies,
desertos e estepes, influências de ambientes montanhosos sobre os grupos
humanos, relações do homem com as águas, entre outros temas variados
nos dezessete capítulos em que se divide o trabalho de mais de 600
páginas.
22A
preocupação de explicitação sistemática de uma ciência antropogeográfica
que explique as relações sociedade-ambiente e que sirva para a
afirmação da importância do elemento ambiental na formulação de uma
filosofia da história, que tem em Influences seu produto mais
bem acabado, pode ser antecipada, até certo sentido, nos escritos
anteriores publicados pela geógrafa. Já em seu artigo de 1901, “The
Anglo-Saxons of the Kentucky Mountains”, é possível verificar a
existência de traços teórico-metodológicos que seriam exaustivamente
trabalhados posteriormente em Influences. Ao explicar,
nesse artigo, as especificidades dos habitantes da região montanhosa do
Kentucky entre o final do século XIX e o início do século XX, Semple
demonstra com clareza o método geográfico de descrição integrada das
características antropológicas e naturais que deve, em seu entendimento,
ser empregado para explicar a realidade das regiões terrestres.
- 9 Várias resenhas que exaltavam o mérito e excepcionalidade do esforço monumental realizado por Sempl (...)
23A
autora associa o isolamento das populações, a homogeneidade étnica de
sua herança anglo-saxônica e o atraso econômico dessa região de seu
estado de origem à ausência de rios navegáveis, que impediu o contato
com os estados localizados mais a oeste, à barreira montanhosa dos
Apalaches a leste, que obstruiu a ligação com o extenso litoral
atlântico dos EUA e ao relevo montanhoso da região, que criou
dificuldades de circulação interna e isolou suas modestas concentrações
populacionais umas das outras (Semple, 1910 [1901]). Nesse período
importante de sua trajetória, que vai da publicação de seu artigo de
1901 até o surgimento de sua obra magna em 1911, Semple, além de
publicar sua primeira grande obra, American History and its Geographic Conditions, em 1903, publica também alguns artigos com desenvolvimentos parciais que posteriormente virariam capítulos inteiros de Influences.
O núcleo fundamental das contribuições epistemológicas da autora e a
sua consolidação como uma das figuras de maior peso da nascente
Antropogeografia estadunidense são delineados nessa década altamente
produtiva.9
24O
esforço intelectual de racionalização teórica da Antropogeografia
empreendido por Semple está inserido em um contexto mais amplo do campo
intelectual estadunidense marcado por uma forte influência do Darwinismo
Social. Essa corrente filosófica e epistemológica exerceu um peso
decisivo para que a disciplina pudesse se institucionalizar
academicamente nos EUA. A partir da segunda metade do século XIX, a
reputação da Geografia como um conhecimento suplementar para as
conquistas ultramarinas das grandes potências e como uma agregação sem
rigor científico de informações referentes às regiões terrestres passou a
ser cada vez mais insuficiente para legitimar seu papel como disciplina
universitária (Livingstone, 2008 [1992]: 177).
25A
articulação do discurso geográfico com a explicação global fornecida
pela teoria da evolução foi, no caso dos EUA, uma das estratégias
fundamentais de legitimação intelectual da disciplina em um contexto de
enrijecimento da divisão do trabalho intelectual. Quando Semple diz, ao
reivindicar sua filiação com a obra de Ratzel, no prefácio de Influences,
que o erudito alemão foi o primeiro a investigar o tema “do ponto de
vista científico moderno” construindo seu sistema “de acordo com os
princípios da evolução” (Semple, 1911: V), está atrelando explicitamente
os pressupostos de seu discurso geográfico a essa preocupação com uma
filosofia evolucionista de abrangência explicativa global.
- 10 Dentre os quais é possível destacar figuras como Herbert Spencer, Ernst Haeckel, Cesare Lombroso, J (...)
26O Darwinismo Social pode ser entendido como o conjunto de ideias formado por aqueles autores10
que, entre o final do século XIX e do início do século XX, tentaram
compreender a realidade humana através de esquemas de desenvolvimento
evolucionário e analogias orgânicas (Hofstadter, 1992 [1955]: 4) não
apenas para explicar as propriedades físicas da espécie, mas também a
sua existência social e os seus atributos psicológicos (Hawkins,
1998:31).
27O
marco fundamental de divulgação das ideias evolucionistas que,
posteriormente, seriam desdobradas em sua aplicação para a análise das
sociedades humanas provocando o surgimento do Darwinismo Social, é a
obra “A Origem das Espécies”, publicada pelo naturalista inglês Charles
Darwin (1809-1882) em 1859. Darwin construiu, nessa obra, uma teoria que
tinha como objetivo explicar como as espécies se transformavam ao longo
do tempo. Para isso, propôs a tese de que as variações no funcionamento
de qualquer organismo observadas ao longo do tempo eram escolhidas pela
natureza em um processo chamado de seleção natural. Essas
variações seriam selecionadas se dessem ao organismo uma vantagem sobre
outros organismos que poderia ser mensurada pelo seu êxito em sobreviver
e reproduzir-se. A seleção natural ocorreria, para Darwin, através de
um processo de luta pela existência, termo que o naturalista usa para descrever o sucesso de um indivíduo em sobreviver e deixar descendentes (Hawkins, 1998: 25-26).
28O
principal expoente das tentativas de aplicação de ideias evolucionistas
para a explicação da vida social nesse período foi o filósofo inglês
Herbert Spencer (1820-1903). A maior parte de seus trabalhos foi escrita
entre as décadas de 1850 e 1900. Spencer propôs uma síntese filosófica
que buscava explicar a totalidade do mundo e da sociedade humana a
partir do que chamou de “evolução universal”. Esse filósofo acreditava
que o processo da vida era essencialmente evolucionário e que
incorporaria uma mudança contínua da homogeneidade incoerente, ilustrada
por organismos simples como os protozoários, para a heterogeneidade
coerente, manifesta no homem e nos animais mais elevados (Hofstadter,
1992 [1955]: 37). Para Spencer, o estímulo à luta pela existência
provocado pela pressão populacional sobre os recursos escassos levaria a
uma disputa constante entre indivíduos da mesma espécie e de espécies
diferentes que geraria modificações e adaptações que produziriam um
desenvolvimento progressivo e cumulativo. Aqueles que falhassem em se
adaptar estariam, para o filósofo, condenados à extinção
(Hawkins,1998:85).
- 11 Tal como definida por Hobsbawn (2010 [1988]) em sua caracterização do período que vai de 1875 a 191 (...)
29Essas teses darwinistas sociais spencerianas
desfrutaram de um quadro de recepção bastante favorável nos EUA nas
décadas entre o final da Guerra de Secessão (1861-1865) e a Primeira
Guerra Mundial (1914-1918), período que coincide, justamente, com a
institucionalização acadêmica da Geografia no país e com o surgimento
dos principais trabalhos de Semple. A emergência dos EUA como potência
com projeção geopolítica global durante a Era dos Impérios,11 somada à necessidade de legitimar o status quo
político a nível doméstico e ao processo de expansão da concorrência
capitalista no país, que esteve frequentemente associado à ideologia do laissez-faire, favoreceu
a instrumentalização conservadora de jargões darwinistas como a “luta
pela existência” e a “sobrevivência dos mais aptos” para a justificação
da existência da ordem social que então se consolidava em terras
estadunidenses.
30Os
pressupostos epistemológicos que fundamentam o esforço intelectual de
Semple são diretamente derivados do Darwinismo Social. Isso é
evidenciado por passagens, presentes tanto em Influences como em seus artigos, que deixam as suas posturas teóricas explícitas:
- 12 Do original: “(…) complex geographic influences cannot be analyzed and their strength estimated exc (...)
(...) influências geográficas
complexas não podem ser analisadas, nem sua força ser estimada, exceto
pelo ponto de vista da evolução. Essa é uma das razões pelas quais esses
princípios geográficos crus ficam pesados em nossa digestão mental.
Eles foram formulados sem referência ao fato bastante importante de que
as relações geográficas do homem, como a sua organização política e
social, estão sujeitas à lei do desenvolvimento. Assim como o Estado
embrionário encontrado na tribo saxônica primitiva passou por muitas
fases para atingir o caráter político do atual Império Britânico, cada
estágio nesse crescimento para a maturação foi acompanhado, ou mesmo
precedido, por uma estável evolução das relações geográficas do povo
inglês. (Semple, 1911: 12)12
- 13 Do original: “It is a law of biology that an isolation environment operates for the preservation of (...)
É uma lei da biologia o fato
de que um ambiente de isolamento provoque a preservação de um tipo pela
exclusão de toda a mistura que poderia eliminar características
distintivas. Nessas comunidades isoladas (do Kentucky) nós encontramos,
portanto, o estoque anglo-saxônico mais puro em todos os EUA. (Semple,
1910 [1901]: 566)13
31Na primeira passagem, extraída de Influences,
a geógrafa defende que o problema das influências geográficas somente
pode ser analisado pelo ponto de vista evolucionista e defende que as
relações geográficas, assim como a organização social e política dos
grupos humanos, estão sujeitas ao que chama de “lei do desenvolvimento”.
Essa “lei” consiste na ideia spenceriana de que as sociedades
humanas se desenvolvem, progressivamente, da homogeneidade incoerente
para a heterogeneidade coerente. O filósofo inglês acredita que as
sociedades, assim como os organismos biológicos, são incialmente simples
em suas estruturas a ponto de serem consideradas sem estruturas, e que,
gradualmente, no curso de seu crescimento, ganham uma complexidade
estrutural cada vez maior aumentando assim a dependência mútua das suas
partes constitutivas (Spencer, 1996 [1860]: 272). Quando Semple sugere
que o discurso geográfico deve ser fundamentar na “lei do
desenvolvimento” está replicando claramente esse raciocínio spenceriano
evolucionista e progressivista. O Império Britânico do início do século
XX é visto como uma espécie de progressão evolutiva “natural” do Estado
embrionário encontrado nas tribos saxônicas primitivas.
32Em
relação à segunda citação, a geógrafa demonstra acreditar que, o
isolamento das populações do Kentucky, estudado em seu clássico artigo
de 1901, é uma consequência direta da operação de uma lei biológica, que
teria, em seu entendimento, preservado a homogeneidade étnica dos
grupos que viviam em seu estado de origem. Nas duas citações o recurso a
analogias organicistas e a mecanismos cumulativos e progressivos de
desenvolvimento, característica típica do Darwinismo Social, é empregado
como forma de organizar epistemologicamente o discurso geográfico que
procura explicar o papel das influências ambientais no destino dos
grupos humanos e no condicionamento de seus elementos socioculturais.
- 14 Devemos o apontamento sobre o peso dessas concepções teóricas a Stoddart (1966) que, em um importan (...)
33As
posturas epistemológicas de Semple espelham claramente o peso das
concepções darwinistas sociais associadas à ideia de que um movimento
evolutivo e progressivo determinaria as mudanças ocorridas na sociedade
humana, à problemática da relação organismo-ambiente, que marcou a
Biologia da segunda metade do século XIX e ao léxico da “luta” e da
“seleção” na Geografia do período.14
O êxito da autora em se colocar como uma figura-chave para a
institucionalização da disciplina nos EUA no período das primeiras
décadas do século XX decorreu, em parte, da internalização das ideias
darwinistas sociais que marcou sua obra. O contato com o Darwinismo
Social no período em questão foi fundamental para os desenvolvimentos
teóricos da disciplina e para que ela obtivesse um sistema explicativo
que contribuiu para superar, ao menos parcialmente, a sua reputação de
saber puramente descritivo, legitimando assim a sua presença na
universidade.
34Dentre as obras mais importantes de Semple, certamente Influences of Geographic Environment (1911), seu trabalho de maior repercussão, é o grande destaque. Vale destacar também o seu livro American History and its Geographic Conditions (1903) e o artigo “The Anglo-Saxons of de Kentucky Mountains”, que foi publicado pela primeira vez no The Geographical Journal em 1901 e posteriormente republicado no Bulletin da American Geographical Society
em 1910. Bibliografias que tratam da trajetória e da recepção da obra
de Semple são bastante escassas. As duas indicações mais ricas são, em
nosso entendimento, o artigo publicado por Charles Colby nos Annals da AAG em 1933, alguns meses após a morte da geógrafa, que reconstitui certos elementos de sua trajetória e o livro Bringing Geography to Book – Ellen Semple and the Reception of Geographical Knowledge,
que é um meticuloso e recente estudo de Innes Keighren, atualmente
professor da Royal Holloway University of London, publicado em 2010.
Nessa obra Keighren faz uma análise rigorosa, à luz dos referenciais
teóricos da história do livro, da recepção de Influences of Geographic Environment e da reputação que a obra desfrutou nos anos seguintes à sua publicação.