1Nestas
breves páginas buscaremos discutir as memórias apresentadas por
Theodoro Sampaio, no 5° Congresso Brasileiro de Geografia e a
importância deste personagem como intelectual influente na criação e
manutenção de representações sobre o interior brasileiro seus
habitantes. A ênfase dada ao 5º Congresso Brasileiro de Geografia
justifica-se uma vez que este ocorreu em meio a uma série de importantes
eventos históricos que ajudaram a formar, afirmar e consolidar o campo
científico da Geografia na Bahia e no Brasil, devido ao destaque dado ao
ensino e à pesquisa da ciência geográfica àquela época.
2Segundo
André Sousa (2015), os pesquisadores participantes do 5º Congresso
Brasileiro de Geografia estavam envolvidos em um esforço de modernizar
os métodos de estudo e ensino da Geografia, que permitiria a diminuição
das imprecisões presentes nas descrições espaciais. Isso ocorria em uma
tentativa de aproximar a pesquisa geográfica brasileira daquela
realizada nos centros culturais europeus, especialmente Alemanha e
França, países que haviam avançado muito na sistematização da Geografia
como ciência moderna, e que se tornaram referência para a produção
geográfica brasileira.
3Buscaremos estruturar este artigo em três partes. A primeira, intitulada Theodoro Sampaio e os estudos geográficos no Brasil,
discorre sobre a importância deste autor, intelectual multifacetado,
para a formação de instituições de feição geográfica no Brasil e também
sobre as atividades desta personalidade em diversos campos do
conhecimento; a segunda parte, denominada de As memórias de Theodoro Sampaio no 5º Congresso Brasileiro de Geografia,
versa sobre os trabalhos por ele apresentados no referido evento, bem
como sobre seus interesses de pesquisa; e a última seção, Laços intelectuais e representações geográficas,
tem como centro das discussões as relações entre Theodoro Sampaio e
Euclides da Cunha, e as representações criadas ou reforçadas por eles
que permanecem presentes, de algum modo, no imaginário social
brasileiro.
4No
contexto de organização inicial dos estudos geográficos no Brasil, é
preciso destacar a importância do engenheiro baiano, tendo em vista seu
envolvimento direto em instituições públicas e provadas nominalmente
geográficas, como a Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo (daqui
por diante, CGGSP), o Instituto Geográfico e Histórico de São Paulo
(IHGSP) e o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB). No âmbito
de tais instituições, Theodoro Sampaio produziu uma vasta obra
científica e literária, na forma de relatórios técnicos, trabalhos
topográficos e escritos históricos e linguísticos.
5Dentre as suas principais publicações, devemos mencionar O Tupi na geografia nacional, datado de 1901, O Rio São Francisco e a Chapada Diamantina, de 1905, e História da fundação da cidade do Salvador,
de 1959 (obra póstuma). É interessante destacar que se trata de uma
produção científica inserida no contexto de uma Geografia descritiva e
enciclopedista, em um período em que esta não havia adquirido, ainda, um
formato disciplinar. A formação ampla de nosso personagem, apesar do
diploma de engenheiro-geógrafo, lhe permitiu contribuir também para
outras áreas do conhecimento, como a Arquitetura, a Geologia, a História
e a Arqueologia, conforme aponta Ademir dos Santos (2010).
6Este
arquiteto e pesquisador, autor de um alentado livro sobre Theodoro
Sampaio, destaca que a formação versátil não era uma característica
exclusiva do engenheiro baiano, sendo uma característica relativamente
comum na trajetória de diversos profissionais de sua geração. Cabe
lembrar que, nesta época, o domínio de conhecimentos abarcado pelo curso
superior de engenharia ultrapassava os limites das atribuições
específicas do bacharel formado em tal habilitação, dada a variedade de
demandas atribuídas a estes profissionais. Assim, a formação em
engenharia englobava conhecimentos em cartografia, geologia,
geomorfologia e hidrografia; ao mesmo tempo, conhecimentos ligados às
humanidades estavam relacionados a todas as formações em nível superior
existentes no II Império, período em que Theodoro Sampaio completa seus
estudos.
7A
peculiaridade deste versátil profissional estava, justamente, em sua
“capacidade de exercer e conciliar todos esses campos de saber para
atividades de natureza e fins diversos” (Santos, 2010: 306). Foi
precisamente por sua capacidade de refletir teoricamente e aplicar seus
conhecimentos de forma prática, desde a realização de projetos até a sua
implantação, que Theodoro Sampaio se distinguiu dos seus
contemporâneos. Assim, converteu-se em personagem central na compreensão
do desenvolvimento dos diversos campos disciplinares em que atuou, com
influencia direta na produção científica de outros personagens ilustres,
como é o caso de Euclides da Cunha (Freyre, 2002).
8O
interesse de Theodoro Sampaio pela Geografia está intrinsecamente
relacionado ao seu contato com Orville Derby (Santos, 2010; Lucio,
2014), com quem trabalhou por um período na CGGSP e trocou
correspondências. Este contato com Derby influenciou a visão de Theodoro
Sampaio sobre a pesquisa científica, despertando seu interesse pela
coleta de materiais, registro cartográfico e análise de fenômenos
geológicos e geomorfológicos. Este interesse fica patente em suas
diversas anotações em cadernetas de campo e também pelos seus desenhos
das paisagens visitadas. As imagens contidas no livro de Ademir dos
Santos ilustram o talento e preciosismo de Theodoro Sampaio.
Figura 1: Fotografia da Cachoeira de Paulo Afonso em 1942
Autor desconhecido. Intitulada Paulo Afonso. Outros Aspectos das catadupas alagoanas
Fonte: Santos, 2010: 114
Figura 2: Desenho de Theodoro Sampaio da Cachoeira de Paulo Afonso
27 de agosto de 1879
Fonte: Santos, 2010: 115
9Além
do seu interesse por estudos geológicos e geomorfológicos é importante
destacar a atenção dispensada ao planejamento urbano pelo Presidente do
5º Congresso, destacadamente nos períodos em que morou em São Paulo e em
Salvador. Em São Paulo, Theodoro Sampaio foi membro da CGGSP e chefe de
sua seção de Geografia, sendo responsável pela realização dos trabalhos
de topografia e das expedições de exploração (Lucio, 2014). Theodoro
Sampaio teve ainda participação direta e central no processo de
modernização de São Paulo. No contexto então conturbado das adaptações
do espaço urbano aos impactos da industrialização
concebeu leis, planos, estudos
históricos, etnográficos, programas e projetos, definiu e construiu
obras para um denso e dramático cenário urbano, a virada do século XIX,
em São Paulo, quando emergiu a maior metrópole do Hemisfério Sul.
(Santos, 2010: 185)
10Ainda
no âmbito de seus trabalhos na CGGSP, Theodoro Sampaio esteve
relacionado à verificação do potencial das áreas ainda pouco conhecidas
do estado, visando, a partir do levantamento topográfico e ambiental
realizado, planejar, orçar e executar as obras de infraestrutura capazes
de transformar estes “espaços naturais” em áreas potencialmente
ocupáveis. Por isto, nos seus estudos, as observações in loco
estão sempre mescladas com suas articulações concepções de
engenheiro-geógrafo, propondo soluções que pudessem nortear ações do
Estado.
- 1 Esta é data que marca também a criação do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, do qual viria (...)
11Ao
deixar a CGGSP em 1892, Theodoro Sampaio se dedicou à administração
pública do estado e ao planejamento urbano da capital, São Paulo,
especialmente a partir da organização dos serviços públicos relacionados
ao saneamento básico. No cenário de grande efervescência política,
Theodoro não apenas encontrou um ambiente onde pôde exercer as suas
competências técnicas, como também aprimorou seus saberes científicos.
Ainda em São Paulo, participou ativamente da criação do IHGSP em 1894,1 isso já na Primeira República.
12Em
Salvador, para onde foi transferido em 1904, Theodoro Sampaio atuou no
planejamento da rede de saneamento básico da cidade, em projetos de
captação de água para o abastecimento urbano e também na ampliação do
porto para atender a demanda de exportação de cacau, fumo e algodão
(Santos, 2010).
- 2 O original se encontra no Arquivo Histórico Theodoro Sampaio, no Instituto Geográfico e Histórico d (...)
13Tomado
pelos ideais do alvorecer da República, de forte inspiração
positivista, um dos principais objetivos de Theodoro Sampaio era tornar a
Bahia um dos centros decisórios no Brasil, isto é, moderno e
“civilizado”, transformado a partir da ciência. Expressão disto é seu
relatório para o projeto de saneamento de Salvador e a compilação do Relatório dos Estudos e projectos para uma cidade nova: a cidade luz
(Sampaio, 1919) onde estão presentes reflexões sobre a criação de uma
cidade planejada nas proximidades Salvador. Tratava-se de “Pituba – cidade da luz”, concebida
segundo ideais arrojados de estética, higiene e funcionalidade urbanas,
características da Modernidade. A ilustração abaixo traz a planta da
cidade planejada que iria se tornar o bairro da Pituba na década de 60
do século XX.2
Figura 3: Planta da Cidade Nova da Pituba desenhada por Theodoro Sampaio em 1919
Fonte: Santos, 2010: 296
14Theodoro
Sampaio tornou-se personagem central na vida política, cultural e
intelectual da Bahia, especialmente por sua atuação como um dos sócios
mais atuantes do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB) –
também conhecido como Casa da Bahia, devido à sua importância no cenário
intelectual do estado, especialmente entre as décadas de 1890 e 1940. O
engenheiro ingressou no IGHB em 1899, tendo sido seu orador oficial do
Instituto por oito anos, de 1913 e 1921, e presidente entre 1922 e 1927.
Da presidência do IGHB Theodoro Sampaio seguiu para a carreira
política, na condição de deputado federal.
15Com
base nessa breve trajetória, percebe-se que o engenheiro teve papel
central na consolidação de instituições de caráter geográfico em São
Paulo e na Bahia, dois importantes estados brasileiros. A relevância de
sua participação pode ser também aquilatada pelo convite recebido dos
fundadores da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB) para integrar a
agremiação, nos anos imediatos à criação dos primeiros cursos
superiores de Geografia no Brasil (Sousa, 2015).
16Vale,
ainda, refletir sobre as influências ideológicas que pesavam sobre a
prática urbanística e os projetos de valorização do interior avalizados
por Theodoro Sampaio, que manifestavam o imaginário modernizador da
época. Assim como ideais de planejamento urbano e de cidade baseados em
Haussmann, no século XIX, e em Le Corbusier, já no início do século XX,
estavam presentes em Theodoro Sampaio também concepções de civilização e
organização social inspiradas em ensaístas brasileiros da geração de
1870 que adaptavam ao país ideias europeias. Nesse sentido, podemos
destacar a influência de Silvio Romero, com seus “tipos humanos”
associados a determinadas regiões, segundo o modelo da geografia social
de Frédéric Le Play (Cardoso, 2013; Machado, 1995).
17Como
ressalta Antonio Candido (1999), Romero era um personagem
contraditório, com algumas ideias centrais amplamente difundidas e
controversas. Dentre as principais contribuições de Romero, podemos
destacar as análises sobre os problemas sociais brasileiros através do
par raça e meio, das tipificações e classificações
entre grupos étnicos como superiores e inferiores e do entendimento do
sertão como lugar do atraso e da cidade como modernidade.
18As
ideias de Romero estavam afinadas com as propostas de branqueamento da
população, para que o Brasil pudesse alcançar “padrões de civilização”
como os dos países europeus. Estas ideias influenciaram em parte
Theodoro Sampaio, que considerava os índios selvagens e que via na raça
brasileira do “porvir” a chave para a transformação do Brasil (Souza e
Santana, 2003).
19As
contribuições de Romero e outros pensadores sociais brasileiros, a
despeito de algumas contradições, recobriam perspectivas e formas de
fazer ciência no Brasil do final do século XIX. Uma ciência, que,
calcada no positivismo, se acreditava neutra e alimentava a crença no
progresso em si mesmo, sem outro questionamento que não a eficiência dos
caminhos escolhidos para a superação do atraso do país.
20Nesse
panorama intelectual e político movia-se Theodoro Sampaio. Entendemos
que sua produção intelectual e técnica expressava exemplarmente as
preocupações de seu tempo, sendo inestimáveis para o desenvolvimento das
ideias e das práticas da geografia no Brasil. Detemos-nos, na
sequência, às contribuições dadas por Theodoro ao 5º Congresso
Brasileiro de Geografia.
21Antes
de adentrar especificamente nos trabalhos apresentados por Theodoro
Sampaio ao Congresso realizado em Salvador, ressaltamos a importância a
deste evento. Conforme Luciene Cardoso (2013), o 5º Congresso Brasileiro
de Geografia foi o mais importante dos oito certames geográficos
realizados no Brasil entre 1909 e 1926, com 1057 adesões. Participaram
do congresso pessoas de diversos estados, sendo a da Bahia a maior
procedência, seguida do Rio de Janeiro, Pernambuco e São Paulo. Do
exterior houve a discreta adesão de participantes do Uruguai, Paraguai,
Argentina e Portugal (uma adesão de cada país).
22O
congresso foi realizado em um interregno de cinco dias, durante os quais
foram apresentadas 111 memórias, 104 mapas, além de organizada uma
exposição com fotografias de campo e de estudiosos da Geografia, fato
digno de nota quando se recorda a escassa possibilidade de divulgação em
veículos nacionais tanto dos registros fotográficos de campo quanto dos
vultos retratados, e, ainda desconhecidos do grande público. Outro tema
de destaque no evento foram as monografias regionais sobre localidades
baianas e de outros estados, que ocuparam boa parte dos Anais publicados
(Cardoso, 2013). Theodoro Sampaio não apresentou em público nenhuma
monografia desse tipo, mas escreveu seis memórias distintas para o 5º
Congresso, em um total de 107 páginas, cujos aspectos principais são
elencados e apresentados na sequência.
23Em A planta geral da cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos, o
engenheiro baiano descreve seu primeiro trabalho cartográfico para o
município, no qual levantou em primeira mão a planta geral da cidade em
escala 1:5.000. Nesta memória, critica as duas outras plantas realizadas
anteriormente para a cidade de Salvador: a de Weyll, que não contava
com dados hipsométricos, e a elaborada pelo engenheiro Morales de los
Ríos, que abarcava apenas o centro da cidade e o porto.
24O
autor descreve o relevo e os aspectos físicos da cidade – os principais
pontos elevados e as depressões –, descreve ainda a drenagem natural e a
geologia. Em seguida, prossegue com uma descrição das edificações e
arruamentos – com o tipo de material utilizado, a arquitetura dos
prédios e o número de edificações. Indica ainda que a cidade não possuía
um planejamento para a abertura das ruas, o que tornava mister sua
realização, para qual a planta geral apresentada indicava um caminho.
Finaliza esta memória discorrendo sobre as estimativas da população
soteropolitana. Percebemos nesta memória a influência dos trabalhos
técnicos realizados em São Paulo e sua concepção de modernidade para a
cidade em uma perspectiva higienista.
- 3 A Baía de Todos os Santos destaca-se por ser a maior reentrância da costa brasileira ((1.233 km2) e (...)
25A segunda memória apresentada por Theodoro Sampaio intitula-se A carta hidrográfica da Baía de Todos os Santos e de seus arredores. O
autor discorre sobre seu trabalho de aperfeiçoamento e correção de
trabalhos anteriormente desenvolvidos sobre esta importante baía,3
em especial o organizado pelo almirante Mouchez em 1869. Segundo
Sampaio, a confecção desta última carta apoiava-se em dados mais
confiáveis, mesmo apresentando ainda algumas inacurácias devido a
diversidade de elementos compulsados para sua elaboração tendo sido
modestamente qualificada por seu autor como um esboço (Sampaio, 1916b: 102).
26Mais
uma vez, Theodoro Sampaio revela-se preciosista com relação às
pesquisas que desenvolve e descreve todas as etapas de realização da
carta, desde a projeção cartográfica utilizada, as escalas até os pontos
utilizados na triangulação e seus resultados. Para não restar dúvidas
quanto a isso, compila quadros com o detalhamento das informações. O
engenheiro descreve as formas de relevo, as altitudes dos pontos onde
coleta os dados e marcos da paisagem, o que permite ao leitor saber
exatamente em quais locais ele realizou o trabalho. Há descrições
minuciosas da paisagem, desde formações rochosas a igrejas que se
localizassem nas suas proximidades.
27Na memória Movimentos sísmicos na Bahia de Todos os Santos
Theodoro Sampaio cria uma hipótese para as profundas modificações “no
relevo e contorno de suas costas” (Sampaio, 1916c: 355). Em prol de sua
hipótese, argumenta que as “quebras” e mudanças de direção do relevo
“refletem, sem duvida alguma, geologicamente as perturbações
experimentadas na crosta terrestre, afetando o próprio embasamento
continental” (Sampaio, 1916c: 356), fato comprovado pela existência de
dobras sinclinais extensas.
28O
geógrafo baiano – agora podemos também chamá-lo assim – fará uma
descrição pormenorizada das linhas de fratura, dos deslocamentos das
camadas e dos períodos geológicos de ocorrência destes eventos, além da
descrição de um abalo sísmico notado em Saubara, por um engenheiro
conhecido seu que lhe descreveu detalhes do acontecimento e lhe mostrou
as cartas por ele recebidas do frei do Convento de Vila de S. Francisco,
atestando que o abalo também foi sentido nas imediações do convento.
29O
sismo, segundo relatos, chegou a afetar as localidades de Santo Amaro e a
Nossa Senhora das Candêas, onde uma casa foi destruída. Theodoro
Sampaio recupera então uma série de relatos onde são descritos e datados
outros terremotos na Bahia de Todos os Santos, desde o século XVII,
para sustentar sua argumentação inicial e ressaltar a ausência de
estudos científicos sobre tais eventos. Ressaltamos, ainda, que além de
um esforço de compilação história dos abalos sísmicos e da descrição
minuciosa da geologia da baía, ele ainda busca dar explicações
científicas sobre as origens dos fenômenos.
30A quarta memória, intitulada Do estudo e cadastro da força hidráulica dos rios brasileiros e da nacionalização de suas águas,
diferentemente das três anteriores, está centrada em uma discussão
política sobre a necessidade de nacionalização das águas brasileiras,
com fins de assegurar o progresso da agricultura e da indústria. Esta
memória é subdividida em três partes: na primeira, o autor justifica a
importância do estudo e o contextualiza no cenário de industrialização
brasileiro e mundial. No desenvolvimento da argumentação, Theodoro
Sampaio afirma que as nações mais desenvolvidas, alcunhadas por ele de
“nações fortes”, são aquelas que têm crescente industrialização. Deixa
clara sua visão nacionalista quando afirma:
Se há um povo que firmemente crê
no seu futuro é, por certo, o brasileiro a quem não falta a intuição do
seu destino, nem a consciência da sua missão no mundo, pela extensão,
riqueza e magnificência da terra que lhe coube em sorte. Possuímos no
reino mineral e no vegetal, com aplicação às indústrias, as mais
abundantes reservas. Só em ferro o que já se conhece nas jazidas das
nossas montanhas nos garante predomínio quando chegar a nossa vez.
(Sampaio, 1916d: 396)
31Theodoro
Sampaio exalta a qualidade dos minérios conhecidos no Brasil e garante
que, a despeito da vantagem momentânea do carvão na produção industrial,
os rios e a produção hidroelétrica têm como fazer frente e superar a
produção energética advinda do carvão levando o Brasil a uma posição
central na produção industrial mundial. Para Sampaio é seria mister o
estudo dos rios brasileiros, para que se tenha noção de sua centralidade
estratégica para o desenvolvimento da nação. Em seu texto, o autor
lamenta que os estudos sobre a rede fluvial brasileira tenham tido um
ápice quando se buscava fazer a integração nacional pela via fluvial, e
que com o advento da ferrovia os estudos sobre a rede hidrográfica
brasileira “ficaram esquecidos como vias impraticáveis ou de alcance
duvidoso” (Sampaio, 1916d: 398).
32Na
segunda parte da memória, buscando reforçar a sua argumentação, o autor
passa a descrever o potencial hidráulico dos rios brasileiros por ele
considerados mais importantes para o desenvolvimento do Brasil,
evidenciando o potencial de movimentação industrial que podem gerar
através de sua potência energética. Evidencia, por exemplo, que, em São
Paulo, no Rio de Janeiro e em Minas Gerais, estados com maior
adensamento populacional e dotados do gérmen da indústria, os rios têm
grande força hidráulica.
33Na
parte final desta memória, que encerra suas contribuições registradas no
primeiro volume dos Anais do 5º Congresso, o renomado intelectual
baiano retoma as suas reflexões sobre a importância de se organizar o
cadastro da rede fluvial do Brasil e reflete sobre a importância de uma
legislação que abranja os rios brasileiros tanto em esfera nacional
quanto estadual, que regulamente a concessão de uso das águas. Em sua
opinião, as águas devem permanecer sempre sob o domínio do Estado,
podendo ter a sua exploração concedida, desde que regulamentada em lei.
Nas últimas páginas o autor expõe uma série de quadros com a designação
dos rios e dados sobre extensão, vazas das águas e força hidráulica
estimada.
34No
segundo volume dos Anais do 5º Congresso Brasileiro de Geografia,
Theodoro Sampaio apresenta duas memórias voltadas para as questões
indígenas, que tanto lhe chamavam a atenção. A primeira dessas memórias,
alcunhada de Inscrições lapidares indígenas no Vale do Paraguaçu, o autor discorre sobre os desenhos rupestres encontrados nesta área do interior baiano.
35Diferentemente
das visões correntes sobre o assunto, que subestimavam ou
superestimavam o valor das inscrições para a compreensão das sociedades
indígenas, Theodoro Sampaio opta por um caminho intermediário, pois
pensava que as gravuras tinham um significado para as tribos, mas que
não continham em si nenhum fato histórico importante. De certo modo,
podemos dizer que ele encaixava o tema no conjunto dos fatos
fisiográficos que lhe interessavam, mais propriamente morfológicos.
36Na
primeira parte desta memória, por exemplo, o autor descreve a sua
jornada de campo evidenciando os locais visitados de forma muito
detalhada, descrevendo pormenorizadamente a geologia e geomorfologia das
formações encontradas no seu percurso. Esta memória é repleta de
desenhos do autor para ilustrar tanto as formações encontradas quanto as
inscrições nas paredes encontradas por ele e de relatos históricos das
tribos indígenas a quem atribui a confecção das inscrições.
37Já a
segunda parte é repleta de descrições minuciosas das gravuras
encontradas em campo: tamanho, cores, e forma em que foram feitos os
desenhos e possíveis significados que as inscrições têm para as tribos
que as fizeram. Na última parte constam reflexões gerais sobre a
importância do estudo detalhado e aprofundado das inscrições lapidares e
demais estudos arqueológicos para a compreensão do “homem americano”
(Sampaio, 1918a: 30).
38Na última memória, Denominações geográficas indígenas em torno da Baía de Todos os Santos,
Theodoro Sampaio discorre sobre a pertinência dos nomes indígenas dados
às diversas localidades litorâneas nas proximidades da Baía de Todos os
Santos, além de evidenciar a importância do tupi na geografia local.
Para tanto, busca explicar os nomes de origem Tupinambá de muitas
localidades, como a enseada de São Tomé de Paripe e Periperi. Neste
caso, o significado revela as atividades desenvolvidas pelos índios
nestas áreas (como em Paripe, “cercado do peixe”) ou as características
naturais das localidades (como em Periperi, “junco multiplicado”,
vegetação original de planícies alagadas). Metodologicamente, Theodoro
Sampaio promove uma busca detalhada de suas hipóteses em documentos
antigos, que remontam ao século XVI.
- 4 Theodoro Sampaio, em todos os seus textos, dá destaque à equipe que o acompanhava em suas viagens, (...)
39A
partir da leitura das memórias elaboradas por Theodoro Sampaio para o
5º Congresso Brasileiro de Geografia podemos notar que ele fazia um
grande esforço crítico com relação aos estudos que o precederam, sem, no
entanto, desconsiderar os avanços realizados por seus antecessores.
Inúmeras e extensas viagens de pesquisa foram realizados pelo engenheiro
e a equipe de trabalho que o acompanhava em suas incursões.4
40Finalmente,
cabe ressaltar uma dimensão contraditória da trajetória de Theodoro
Sampaio. Mesmo em seus escritos de natureza mais política e social, fica
evidente que ele, apesar de negro, vivia em um mundo cultural branco
(Souza e Santana, 2003), sendo influenciado pelas teorias correntes
sobre nação e raça, especialmente as formuladas por Silvio Romero e
Manuel Bonfim (no tocante às consequências da colonização).
41Na
próxima seção buscaremos enfatizar como a ciência, e em especial os
estudos geográficos do início do século passado, atuaram na criação de
representações espaciais sobre o território e a população que perduram
até hoje, ainda que com força reduzida.
42A
produção do conhecimento no final do século XIX e início do século XX
transcorreu em um contexto político fervilhante e em rápida
transformação. Estava disseminada a crença de que a ciência detinha um
papel redentor, capaz de efetuar mudanças significativas na sociedade.
Neste período, surgem trabalhos que enfatizam as diferenças entre o
Brasil e a Europa e incentivavam posturas nacionalistas, dada a ênfase
nas potencialidades do território brasileiro e de seu povo como fatores
essenciais à transformação do país. É neste contexto que o pensamento
social pautado na explicação geográfica do Brasil ganha força através de
diversas matizes (Machado, 1995). Alguns desses pensadores se tornam
conhecidos por um público mais amplo e têm suas ideias difundidas na
camada letrada da população, como é o caso de Euclides da Cunha.
- 5 Nas palavras de Euclides da Cunha: “Hércules-Quasímodo. O sertanejo forte, mas desgracioso, desengo (...)
43Diversos autores ressaltam a importância de Os Sertões
de Euclides da Cunha na constituição da identidade nacional brasileira
(Ortiz, 1994; Arruda, 2000; Albuquerque Jr., 2001; Lima, 2013), pois o
sertanejo, constituído na ambiguidade entre o “homem forte” e “homem
fraco”,5 torna-se
um referencial original para a criação de discursos sobre a
originalidade do brasileiro, que encontraria aí a sua origem.
44É
preciso ressaltar que a obra de Euclides da Cunha é fundamental também
para a construção do discurso institutinte do Nordeste e, deste modo, é
impossível dissociar o discurso que gesta a região (notadamente o
Nordeste brasileiro) do discurso sobre o nacional, pois o discurso
originário da região se valida no seu confronto com o outro, neste caso o nacional (Albuquerque Jr., 2001).
45Diferentemente
de Euclides da Cunha, Theodoro Sampaio não consegue alcançar parcelas
mais amplas da população, mas seus trabalhos também se inserem em uma
ótica tanto de valorização da Bahia frente ao novo centro político em
consolidação no Brasil (Santos, 2010) quanto de fomentar o avanço da
sociedade brasileira para fazer frente aos países “mais civilizados”
(Sampaio, 1916d).
46A valorização do nacional por Theodoro Sampaio fica nítida em Do estudo e cadastro da força hidráulica dos rios brasileiros e da nacionalização de suas águas,
a memória em que Theodoro defende a realização de um amplo estudo da
rede hidrográfica por razões estratégicas, para que em tempo oportuno o
incentivo a indústria fizesse crescer a economia brasileira. Já em 1916
ele preconizava o potencial de geração de energia da bacia do Paraná e
do São Francisco. Destacamos que nestas duas bacias foram construídas,
posteriormente, diversas usinas hidrelétricas brasileiras.
47Como
um homem de seu tempo, Theodoro Sampaio também foi influenciado pelas
idéias de Silvio Romero, ainda que com menos entusiasmo, devido ao fato
de ser negro. As influências das ideias de Romero são perceptíveis nas
suas memórias apresentadas ao 5º Congresso Brasileiro de Geografia,
especialmente no tocante a hierarquia entre civilizações e raças. Na
memória Denominações geográficas indígenas em torno da Baía de Todos os Santos,
ao constatar a forte marca da toponímia indígena, ele conclui: “O
aspecto primitivo das coisas aqui mudou muito pouco” (Sampaio, 1918b:
154). De modo análogo, em Inscrições lapidares indígenas no Vale do Paraguaçu, avalia as tribos indígenas de forma marcadamente hierárquica:
[o] índio Maracá, que a
tradição nos dá como valente, prazenteiro, bom músico, sabendo
trabalhar a nefrita, as ametistas e cristais de que fabricavam peças de
belíssimo ornato, a seu modo, não era tão bronco como o Aymoré ou Botocudo, na escala a mais baixa da espécie humana. (Sampaio, 1918a: 21)
48Souza
e Santana (2003) afirmam a influência do determinismo sobre Theodoro
Sampaio a partir de outros textos, mas deixam claro que, apesar desta
influência, ele não esteve à parte dos movimentos sociais que lutavam
pelo fim da escravidão, haja vista que tinha irmãos submetidos ao jugo
da escravidão, a quem comprou a alforria. Os autores relatam ainda que o
próprio Theodoro quase foi impedido de participar da Comissão
Hidráulica do Império, por ser negro.
- 6 Muitos estudos foram feitos no intuito de superar a abordagem fisiográfica sobre o sertão: Almeida (...)
49Dentre
o corpo teórico de idéias do início do século XX, optamos por nos
debruçarmos de forma mais aprofundada sobre o par “sertão”/“cidade”
proposto por Sílvio Romero e destrinchado por Euclides da Cunha, para
quem o atraso sertanejo não estaria relacionado apenas a questões
raciais, mas também à opção feita pelas elites de relegar o sertão ao
abandono. Cria, então, uma abordagem que se tornará clássica na
compreensão do sertão nas ciências sociais: uma visão de progresso e
civilização relacionada ao litoral e às cidades, em contraponto à visão
de atraso e descaso, relacionada ao sertão.6
50Refletindo
sobre o tema, Antonio Carlos Robert Moraes (2011) considera que o
sertão, por vezes, é um “outro geográfico”, visão que reafirma o
discurso da pobreza, miséria e atraso, por vezes incorporada
inalteradamente por pessoas como parte de sua identidade sertaneja (Vaz,
2016), mas que também é questionado e ressignificado por agentes
sociais que buscam criar e consolidar representações alternativas sobre o
sertão tanto no cenário regional quanto nacional.
51O sertão assume ainda múltiplas espacialidades, pois não demarcaria um lócus específico,
podendo estar relacionado a realidades geográficas diversas (Arruda,
2000). Segundo este autor, o termo foi utilizado como justificativa para
inúmeros projetos de
(re)ocupação dos territórios interiores do país. Articulou-se com vários
desejos de construção da identidade nacional, foi usada como recurso
ordenador da memória e da história de algumas cidades. (Arruda, 1999:
124)
52Ao discorrer sobre Os Sertões,
não se pode deixar de mencionar a amizade nutrida entre Euclides da
Cunha e Theodoro Sampaio, a ponto de ter-lhe enviado seu trabalho em
confecção para a apreciação, segundo informa Gilberto Freyre (2002). O
autor de Casa Grande e Senzala ressalta que Theodoro
Sampaio não foi apenas um colaborador, “mas um orientador no estudo de
campo de geografia e de história colonial do Nordeste” (Freyre, 2002:
32).
- 7 Frisamos que Theodoro Sampaio não teve a ambição de pesquisa de Bernardino de Souza, posto que este (...)
53É importante ressaltar, no entanto, que, apesar da sua forte influência para a realização de Os Sertões,
Theodoro Sampaio não foi a única referência de Euclides da Cunha. De
fato, Euclides, por sua atuação como jornalista, tinha teses mais
ousadas e um alcance de público maior que Theodoro, além da própria
liberdade de escrita que têm os jornalistas em gêneros textuais como a
crônica. Theodoro estava mais envolvido no campo científico propriamente
dito, dando ênfase maior à produção de trabalhos técnicos com alcance
mais restrito.7 Era, pois, a devoção à ciência e a crença em seu caráter redentor que legitimava os discursos de ambos.
54Freyre
afirma que o próprio Theodoro Sampaio chega a fazer menção de sua ajuda
a Euclides da Cunha em artigo publicado na Revista do IGHB:
Levou-me [Euclides] algumas
notas que eu lhe ofereci sobre as terras do sertão que eu viajara antes
dele em 1878. Pediu-me cópia de um meu mapa ainda inédito na parte
referente a Canudos e vale superior do Vaza-Barris, trecho do sertão
ainda muito desconhecido e eu lhe forneci. (Bahia, 1919 apud Freyre, 2002: 35)
55Além
disto, Freyre ressalta que Euclides da Cunha chegou a ler seus
manuscritos para Theodoro Sampaio e supõe, que devido ao caráter
determinista de suas idéias, “poupou, talvez, ao mestre de geografia a
leitura das páginas mais acres de pessimismo sobre os povos híbridos”
(Freyre, 2002: 35). Assim como Theodoro Sampaio, Euclides da Cunha
também tem uma formação muito ampla e multifacetada, menos demarcada por
campos científicos específicos.
56Assim,
apesar da sua grande importância como intelectual e cientista, Theodoro
Sampaio, quando comparado a Euclides da Cunha torna-se quase um
desconhecido. Mas temos por certo que suas idéias influenciaram na obra
do autor de Os Sertões, com quem mantinha um relacionamento próximo (Freyre, 2002).
57Sobre
a idéias de sertão de Euclides da Cunha é importante destacar seu poder
de fixação no imaginário social. Neste sentido, é notável que
representações em um dado contexto histórico tenham perdurado com tanta
força e longevidade. Acreditamos que isso se deva ao apelo cientificista
de tais ideias, associado à eloquência com que foram professadas. Dessa
maneira, não podemos deixar de considerar que Euclides da Cunha, bem
como seu avalista científico, Theodoro Sampaio, são, em alguma medida,
figuras importantes na criação e consolidação de representações sobre o
Brasil, a Bahia, o Nordeste e o sertão.
58Theodoro
Sampaio foi uma personalidade destacada no desenvolvimento dos estudos
geográficos na Bahia e no Brasil. Além de exercer suas atividades
profissionais enquanto técnico, fez grande esforço de articulação entre o
campo teórico e o empírico, recorrendo a extensos trabalhos de campo e
obtido reconhecimento perante o público, como Euclides da Cunha, Sampaio
desempenhou papel relevante junto a este, ao ajudá-lo na realização de
sua maior obra, Os Sertões, contribuição seminal para a criação de representações sobre o Brasil e o sertão, que, se perpetuam.
59Como
já ressaltamos, os pensadores do século XIX estão no centro da criação
da perspectiva dualista na compreensão do Brasil. Nísia Trindade Lima
(2013) nos lembra que tal dualidade não se refere apenas a distinções
materiais e simbólicas do território brasileiro, mas também de suas
populações, vistas numa oposição binária: de um lado os sertanejos
(símbolos do atraso) e de outro os residentes do litoral (próximos da
face moderna na nação). Caberia a estes últimos levar a civilização para
o interior do país e eliminar os obstáculos que impediam o progresso.
Teriam, portanto, as expedições civilizatórias ou “viagens” a missão de
articular e interligar esses dois Brasis a partir de sua incorporação à
lógica do litoral, integrando-o tanto política quanto economicamente.
Fica patente, na análise da autora sobre essas expedições
civilizatórias, que os principais intelectuais brasileiros da época
pretendiam resolver o problema brasileiro através da conquista
modernizadora do sertão, que era visto dentro de uma perspectiva
patológica.
60Assim,
é importante reconhecer o esforço feito por diversos acadêmicos para
que essa representação do sertão cristalizada historicamente, e que
reverbera até hoje, seja transformada, haja vista que ela,
invariavelmente, mostra apenas os olhares de fora sobre o sertão, sem
valorizar as experiências dos sertanejos (Almeida, 1998; 2003). Mas é
preciso admitir, também, que simultaneamente à necessidade de novos
olhares sobre o sertão, não podemos deixar de reconhecê-lo como
categoria essencial para a análise do Brasil, na perspectiva em que foi
lapidado historicamente. O que devemos tentar, então, é compreender o
sertão em suas múltiplas possibilidades de aparição (Sartre, 2005),
levando em conta a complexidade das diferentes formas do seu aparecer.
Neste sentido, abrem-se diversas possibilidades de pesquisa em história
do pensamento geográfico e nas áreas afins que a complementam. A
presente investigação, sobre o multifacetado Theodoro Sampaio, buscou
percorrer este caminho.