... E o Brasil ficou sendo o que é liricamente.
E o Brasil ficou tendo a forma de uma harpa geograficamente.
E o Brasil é este poema menino que acontece na vida da gente...
Cassiano Ricardo
1Este
artigo é produto de um trabalho maior, apresentado na Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a
conclusão do curso de graduação em geografia. Com o título A Gesta Bandeirante – O Regionalismo Paulista na Obra de Cassiano Ricardo, o trabalho consistiu num estudo sobre a formação do sentimento regional produzido no universo da literatura paulista.
2A
partir de alguns elementos culturais reconhecidos como típicos de
determinadas regiões brasileiras, São Paulo, de certa forma, sempre
ocupou uma situação diferente, já que aparentemente nunca teve, junto à
sociedade, uma consistência identitária muito visível. Contudo, a
própria inexistência de indícios do jeito de ser do paulista
apresentou-se como um importante fator para estarmos nos questionando
sobre a existência ou não, ainda que eclipsado, de um discurso
regionalista em São Paulo.
3O
regionalismo, por sua vez, é um tema recorrente nas investigações
realizadas nas áreas de ciências sociais e humanas, como tentativa de
entendimento dos diversos constructos
imaginários acerca da elaboração de uma identidade nacional. Nesse
sentido poderiamos elencar aqui os trabalhos de Rosa Maria Godoy
Silveira, Regionalismo Nordestino – Existência e Consciência da Desigualdade Regional (1984); Mônica Pimenta Velloso, O Mito da Originalidade Brasileira, a Trajetória Intelectual de Cassiano Ricardo dos 20 ao Estado-Novo (1983); Maria Arminda do Nascimento Arruda, Mitologia da Mineiridade (1990); e Ruben George Oliven, A Fabricação do Gaúcho (1984) e A Parte e o Todo – A Diversidade Cultural no Brasil-Nação (1992).
4Em
diferentes momentos da história, intelectuais dedicaram-se à tarefa de
pensar o Brasil, reviver a descoberta e descobrir novamente os elementos
definidores da nação. O eterno retorno
de Marlise Meyer (1980). Na busca para definir alteridades, a
identidade pelo espaço e a criação de um discurso de essência local
tiveram sucessivas elaborações. Os discursos sobre a construção de
identidades locais-nacionais encontraram, na literatura, um riquíssimo
campo para esse tipo de manifestação.
5Durante
o Romantismo, por um desejo maior de exprimir o sentimento de
nacionalidade, apareceram muitas visões sobre as diferentes faces da
realidade brasileira. Esta expressão tendia
acompanhar a variedade dos ambientes como a cidade, o litoral, o campo e
o sertão. Não se tratava de regionalismo, era puro sentimento local. O
localismo se apresentou como um estudo dos diferentes ambientes
brasileiros, ainda que permanecesse como principal propósito a nação.
Entre nomes como Bernardo Guimarães, Visconde de Taunay, Franklin
Távora, podemos destacar os requintados ambientes descritos por José de
Alencar, tais como o litoral em Contrabandistas e Ermitão da Glória; a cidade em Pata da Gazela e Sonhos de Ouro; a roça em O Tronco de Ipê e Til; e o sertão em O Sertanejo (LINHARES,1987).
6A
geração romântica era formada por intelectuais e políticos ligados ao
Imperador. Os românticos, por acreditarem na necessidade de um projeto
nacional, desenvolveram entre outras atividades a de construir a
história da nação. Berço deste ideário, o Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (IHGB), criado em 1838, desempenhou importante
papel como agregador das elites políticas e intelectuais. O Instituto, a
partir da incorporação dos intelectuais da época, contribuiu para a
construção dos mitos e do imaginário da nacionalidade (SCHWARCZ, 1989).
7Na
escrita da história, o movimento romântico valorizou o singular de cada
cultura, as diversas facetas que compunham a peculiaridade de ser
brasileiro. Na realidade, demarcou o momento logo após a Independência,
que despertava nos habitantes a necessidade de conhecer e preservar as
coisas do Brasil em detrimento das universais. Era tempo de criar tipos
autenticamente da terra e consagrar um conjunto de valores nacionais
(FERRARA, 1978).
8Em
1880, a estética realista-naturalista, representada por uma geração
seduzida pelos métodos científicos europeus, passou a ver o Brasil com
uma visão muito mais objetiva que a geração passada. A transposição dos
métodos científicos europeus possibilitou a objetivação da realidade
brasileira tanto no romance urbano quanto na ficção ligada ao sertanismo
dos chamados pré-modernistas (OLIVEIRA, 1990).
9No
começo do século XX, alguns escritores, como Valdomiro Silveira e
Simões Lopes Neto, imprimiram em seus textos preciosos contornos físicos
e sociais que de certo modo, como coloca Alfredo Bosi, acrescentaram na
literatura algo herdado do naturalismo, na medida em que esses autores
mostraram, a partir de pesquisas sobre a linguagem e o folclore do
interior, o meio rural com certa fidelidade. O fato “de terem pensado a terra e o homem do interior já era um sintoma de que nem tudo tinha virado 'belle époque’’ no Brasil de 1900” (BOSI, 1969:12).
10O
local é o rural, o personagem é o sertanejo e o sertão volta a ser
identificado como fonte da nacionalidade, assim como o fora em Franklin
Távora, no Romantismo. Revelar a parte desconhecida do Brasil e
apresentar uma nova maneira de interpretar os problemas nacionais era o
sentido de Os Sertões
de Euclides da Cunha. Através de uma vivência real em Canudos, o autor
aproximou o texto literário da realidade e da ciência. Em contraposição
ao morador do litoral, o sertanejo agora tem a chave para definir a
nacionalidade (SOUZA, 1997).
11A
valorização do interior e das peculiaridades locais foram objetivos dos
pré-modernistas, a única diferença está no lugar de referência.
Valdomiro Silveira (1873-1941), por exemplo, descreveu o caipira de São
Paulo; João Simões Lopes Neto (1865-1916), retratou o interior do Rio
Grande do Sul; Hugo de Carvalho Ramos (1895-1921), descreveu a vida dos
tropeiros goianos e por último Monteiro Lobato (1882-1948) tratou principalmente
das “Cidades Mortas” do Vale do Paraíba (LEITE, 1983). Neste momento,
como quer Mônica Pimenta Velloso, o Brasil ainda é retratado como um caleidoscópio de realidades, onde cada parte tinha seu próprio sentido (VELLOSO, 1983).
12O
processo de valorização daquilo que seria mais autenticamente
brasileiro e a tendência de exaltar as virtudes do caráter nacional
através do resgate das figuras do índio, do caipira e do sertanejo
continuaria se refletindo no século XX. A preocupação com a definição do
que era ser brasileiro intensificaria a associação literatura / Estado
Nacional, tema que encontraria no movimento Modernista um meio bastante
fértil. O movimento que significou uma ruptura com a estética e a
linguagem do fim do século XIX, representou para o Brasil tanto uma
atualização dos movimentos culturais e artísticos que aconteciam na
Europa quanto uma valorização do que o país tinha de mais autêntico,
reinventando de outro modo a praxis do nacionalismo (BOSI, 1974).
13Neste
momento, o sentimento localista ganharia outros aspectos; deixaria de
aparecer somente como elemento de estudos e retratos de lugares, para
surgir como um elaborado discurso de pertencimento a determinados
espaços. A partir de então, o nacionalismo tomaria novo sentido, agora
em função das manisfestações regionalistas.
14O
regionalismo tem no Estado, entendido como aparelho político que
governa a sociedade, sua instituição central, o que torna a dimensão
política seu elemento definidor. Por isso, mesmo que a causa regional
seja econômica na sua natureza, seu objetivo é político, uma vez que ela
se torna regionalizada por intermédio de uma reivindicação frente a uma
instituição estatal, invariavelmente visando uma mudança no tratamento
das questões territoriais (MARKUNSEN, 1981).
15Assim,
essas porções do espaço terrestre transformam-se em entidades
territoriais, forças políticas, atores ou heróis da história. “Temos
assim um fenômeno que é essencialmente político em sua definição e que
se caracteriza também por desigualdades sociais, mas que se articula
mobilizando sentimentos coletivos e veiculando identidades e ideologias
associadas a memórias sociais”
(OLIVEN, 1991:18). Nessa perspectiva, o regionalismo pode ser entendido
como um campo de lutas propriamente simbólicas, no qual grupos com
diferentes posições e interesses se enfrentam para a definição ou
conservação de uma legítima divisão do mundo social. (BOURDIEU, 1982)
16Gilberto Freyre caminhou nesse sentido, quando no Manifesto Regionalista,
lançado no Recife de 1926, apresentou temas que mais tarde comporiam as
páginas redigidas por outros intelectuais brasileiros. A defesa da
região como unidade de organização nacional e da conservação dos valores
locais teria, a partir de então, expressão nos textos da literatura
nacional escritos em diferentes regiões do Brasil.
17A
exemplo do regionalismo de Gilberto Freyre, os temas relacionados à
conquista do território e manutenção da integridade territorial tiveram
um importante papel na elaboração de discursos que priorizaram a
consolidação da identidade nacional.
18Diversas
vezes revisitado, o tema da terra conquistada alcançou um papel de
destaque no universo do pensamento social brasileiro. Na expressão de
Lúcia Lippi de Oliveira: “O
sucesso das interpretações que falam da singularidade brasileira em
termos de espaço é maior e mais durável do que a da retomada dos eventos
históricos. A conquista e a ocupação de terras oferecem uma genealogia
retomada na construção da brasilidade” (OLIVEIRA, 1999:47).
19A
historiografia sobre a expansão territorial, em muitos casos, buscou
relacionar o processo de ocupação das terras com uma certa singularidade
do ser brasileiro. A nação que remonta aos primórdios da ocupação
colonial se encontraria como tal desde a primeira marcha em direção ao
interior. Ao escreverem a história do Brasil, seus idealizadores
destacaram a dimensão territorial em detrimento de uma temporal; na
ausência de um passado histórico mais remoto, acabaram construindo
representações do espaço, fazendo do território base para um projeto
nacional (MORAES, 1991; OLIVEIRA, 1999).
20Constructo
ideológico de pequenos grupos, a nação precisa ser aceita por um
coletivo maior (OLIVEIRA, 1990). Comunidade imaginada, limitada e
soberana, para Benedict Anderson, a nação pode ser entendida, como
comunidade que se imagina a partir de discursos nacionalistas,
historicamente consolidados e aceitos por um coletivo que se reúne num
território soberanamente governado e delimitado por fronteiras
(ANDERSON, 1989).
21Na
historiografia brasileira, a conquista territorial aparece como tema
central para a construção da idéia de nação (VELLOSO, 1990; OLIVEIRA,
1991). O consenso e os sentimentos que determinam o Brasil como
comunidade, reconhecida como tal, dá-se frente ao território. E essa
idéia de nação concebida a partir do território está fortemente ligada
aos discursos localistas-regionalistas, posto que, de algum modo, em
todas as regiões que conformam esse país, sempre houve algum tipo de
construção do território nacional.
22Um
dos maiores exemplos dessa construção imagético-discursiva está na obra
de Cassiano Ricardo. O poeta modernista, com participação ativa na vida
cultural de São Paulo, publicou em 1928 Martim Cererê – o Brasil dos Meninos, dos Poetas e dos Heróis,
livro que buscou construir uma mitologia nacional vinculada à exaltação
do índio brasileiro. A poesia de Cassiano Ricardo conta a história e o
percurso de uma nova raça, produto da miscigenação de brancos, índios e
negros. O mameluco reapareceria mais tarde nos ensaios históricos: O Brasil no Original (1936) e Marcha para Oeste (1940). Martim Cererê
desenvolveu-se quase que totalmente através das ações de um personagem
que, devendo no princípio representar os nascidos em São Paulo de
Piratininga, durante o Estado-Novo foi transformado numa espécie de
herói nacional.
23Com relação à estética, Martim Cererê,
pode ser classificado como quase épico, já que seu autor explorou o
passado dos primeiros povoadores de São Paulo, buscando caracterizá-lo
como portador de uma garra quase que fantasiosa, à moda dos grandes
heróis da história universal. A mitologia clássica persiste na fase
nacionalista do modernismo, quando as referências a determinados
personagens como Orfeu, Pégaso, Midas e Édipo são muito freqüentes. Em
Cassiano Ricardo, Borba Gato e Raposo Tavares aparecem associados a
Ulisses de Homero.
24Em muitos compêndios de história da literatura brasileira Martim Cererê,
por apresentar ao mesmo tempo, elementos dos gêneros épico, dramático e
lírico, é considerado como obra eclética, embora os elementos da
epopéia sejam considerados os mais importantes (BRAYNER,1979). Por isso o
autor apresentou um livro de poesias dotado de um sentido histórico,
uma espécie de gesta que narra as façanhas de um guerreiro.
25Ao
estruturar um livro de poesias com forte tendência histórica,
acompanhada com doses de mitologia, Cassiano Ricardo, a moda das gestas,
desenvolveu o enredo quase que totalmente a partir das ações de um
herói. E este, por sua vez, foi meticulosamente construído para reunir
condições de representar características como força, coragem e
capacidade de trabalho. Pois somente assim o autor poderia atribuir a
esse herói, um bandeirante paulista, como num passe de mágica, a
construção do território nacional.
26O
estilo adotado por Cassiano Ricardo envolve, no que diz respeito às
interpretações acerca da sociedade brasileira, questões muitos
relevantes. A organização temática do livro demostra que os objetivos do
autor foram além das análises sugeridas em compêndios de literatura
brasileira. Num trabalho crítico sobre o autor, Mônica Pimenta Velloso
aponta que, no processo de elaboração, Cassiano Ricardo acabou
escrevendo a história brasileira baseada em argumentações geográficas
(VELLOSO, 1990). Talvez por esse motivo, Cassiano Ricardo tenha
permitido ao principal personagem do livro ter uma especial percepção do
território colonial brasileiro, característica demonstrada através do
recurso de fazer o Martim Cererê circular livremente por todo o tempo e espaço do livro.
27No
movimento de ir e vir, ao herói caberia o papel de representar o grupo e
o espírito bandeirante, presentes no processo de expansão das
fronteiras. São Paulo, ponto de partida e de chegada, lugar de onde os
paulistas saíram para conquistar o sertão e semear o jeito de viver no
planalto de Piratininga, seria caracterizado nas décadas de 20 e 30 como
uma das matrizes para definir a nação.
28Cassiano
Ricardo, muito baseado numa historiografia formada por trabalhos de
Oliveira Vianna, Oliveira Martins, Afonso Taunay, Alfredo Ellis Junior,
Paulo Prado, Alcântara Machado, Basílio Magalhães, entre outros, buscou
transformar um personagem histórico em herói nacional. No interior deste
grupo, o autor pode até ser responsabilizado como importante divulgador
da imagem civilizadora e expansionista envolvida no bandeirantismo.
Como afirma Carlos Davidoff, existe um traço comum em todos os discursos
que objetivaram a glorificação da figura do herói paulista: “Herói
civilizador, que antecipa e realiza, através de suas ações práticas, a
'alma da nação brasileira' e que constrói e prenuncia o Estado Nacional,
através do devassamento dos sertões e da incorporação de imensas
regiões de domínio brasileiro” (1982:85). Contudo, foi Cassiano Ricardo que, a partir de textos, divulgados em livros, revistas e jornais, transformou Martim Cererê em forte candidato a representante dos paulistas.
29Na
companhia de tantos outros intelectuais, Cassiano Ricardo também esteve
a par das questões sugeridas pelas agendas do meio político e literário
daquele período. O momento era o de conhecer o país, tempo no qual os
homens públicos e letrados, amparados pelo pensamento de Comte, Darwin,
Spencer e Taine, pensavam solucionar os problemas nacionais.
30
O Brasil desse contexto também assistiu a chegada das idéias de alguns
autores da geografia européia, como Camille Vallaux, Pierre
Deffontaines, Jean Brunhes e De Martonne, além de Ratzel e Vidal de La
Blache. E apesar do contato com esses autores ter acontecido muitas
vezes de maneira indireta, através da leitura de livros, como a Geografia Humana: Política e Econômica de Delgado de Carvalho e La Terre et l’Evolution Humaine de
Lucien Febvre, resultou numa ampla incorporação de conceitos tanto da
geografia alemã quanto da Escola Geográfica Francesa (MORAES, 1991;
MACHADO, 1995).
31No caso dos livros de Cassiano Ricardo, principalmente dos ensaios O Brasil no Original e Marcha para Oeste,
a influência recebida através de alguns divulgadores dessas correntes
foi bastante significativa, já que as idéias geográficas acabaram
orientando o desenvolvimento do trabalho. O autor procurou abordar
questões ligadas à brasilidade, baseando-se em argumentos e conceitos
geográficos tais como fronteira, território, habitat, gênero de vida e região.
32Em Marcha para Oeste,
Cassiano Ricardo fez referência a um dos livros de Edgar Roquette
Pinto, fato que parece esclarecer algumas questões relativas às escolhas
e caminhos por ele trilhados. O autor de Seixos Rolados,
dono de um discurso cheio de indignação, pertencia ao grupo de
intelectuais que defendia a necessidade imediata de conhecer e explorar
as temáticas nacionais. Um trecho retirado desse livro explicita essa
idéia:
“o
Brasil não é um terreno baldio, campo sem dono aguardando energias
estranhas. Habita-o um povo que, para vencer suas difficuldades
historicas, apenas precisa que lhe digam palavras tonicas, capazes de
lhe infundir a convicção do valor proprio. Patriotismo gera-se pelo
exemplo e a palavra propaga o exemplo. (...) em geographia humana ha
sempre lugar para quem queira trabalhar; e o Brasil é assumpto virgem.
Para serví-lo, antes de mais nada, é preciso conhecê-lo” (ROQUETTE PINTO, 1927:48-49).
33Depois
de apresentar o livro como uma espécie de chamamento para um certo modo
de militância intelectual, onde o principal objeto do conhecimento
deveria estar no próprio país, Roquette Pinto esclareceu que o caminho
para interpretá-lo viria dos olhares da geografia:
“Terra
de tão forte ascendente sobre os homens, deve ter influido de um modo
proprio sobre o povo que a habita; qual foi essa influência?” ou ainda, “povo ‘laborioso e manso’, tal como pintou Rio Branco, deve ter transformado esse torrão americano; qual foi a transformação?” (Id., Ibid.:50).
34Na mesma direção, o artigo Determinismo na História
de Joaquim Pimenta, publicado na Revista Novíssima em 1924, também fez
referência às relações de interdependência entre homem e meio, ao
apontar, em seu texto, tanto a existência de determinações físicas às
ações humanas quanto de reações humanas às pressões da natureza:
“O
poder de reação, de combatividade de um povo, assenta em um lastro de
energias hereditarias e adquiridas que condensam e estratificam os
elementos de resistência physica, moral e intellectual das suas
unidades. É uma resultante de forças Kosmicas, vitaes e sociais que
actuam com o mesmo rigor determinista sobre os indivíduos e os
differentes espécimes de sociedade, dando-lhes uma estrutura específica,
uma 'facies' própria”.
35E mais adiante:
“Entre este [o meio] e
o grupo social há uma troca de energias, um phenomeno de symbiose de
acção e de reação reciprocas, em virtude dos quais a vida individual e
colletiva se conserva e se renova” (PIMENTA,1924:11-12).
36Podemos
dizer que Joaquim Pimenta, escrevendo no mesmo contexto
científico-cultural de Roquette Pinto também, buscou orientar-se na
realização de uma “sciencia moderna”, que tinha na “estreita solidariedade da terra e do homem” a base para o desenvolvimento da sociedade brasileira (Id., Ibid.:11)
37O
trabalho de Cassiano Ricardo pode ser inserido nessa mesma linha de
estudos brasileiros, primeiro pela escolha do tema, o processo de
expansão territorial, e segundo pelo olhar. O autor considerou o
movimento bandeirante como resultado de diferentes fatores, físicos e
humanos.
38Para Cassiano Ricardo, o movimento bandeirante seria resultado da localização de São Paulo: “a
sede, o nascedouro social e histórico do fenômeno é o planalto. No
planalto está situado o seu foco originário e original (...) Só do
planalto partiram, pois, as levas que deram à bandeira o caráter de um
‘fenomeno constante e especial’” (CASSIANO RICARDO, 1940:37), mas também seria uma opção feita por aqueles que coordenaram o movimento: “Nada
nos deu tamanha riqueza de ‘geografia em função política’ como a marcha
bandeirante, irradiada do altiplano. Por obra sua, todos os acidentes
hidrográficos e orográficos tomaram sentido humano inconfundível na
aliança do brasileiro com a terra” (Id.,
Ibid.:51). Porque se por um lado a natureza foi vista como a
responsável pela marcha para oeste, por outro, foi considerada como
dominada por seus conquistadores (Id., Ibid.:53). Cassiano Ricardo
escreveu sobre uma interdependência entre homem e a natureza:
“É
o homem que amarra a distância com os rios, com o sangue brasileiro da
bandeira, com as entradas de penetração, com o espírito que vigia a
terra, com os laços invisíveis e ternos da solidariedade nacional (...)
trata-se de uma geografia que o homem dominou com a história”.
39Completando essa idéia ele acrescentou ainda:
“Alguns
deterministas ferozes verão na bandeira apenas o ‘empurrão do planalto’
(a geografia que nos deu a bandeira) mas não acreditarão nela como
sendo a mais bela vitória do homem sobre a geografia ( a geografia que a
bandeira nos deu)” (Id., Ibid.:53).
40Ao
escrever um ensaio com orientação histórica, Cassiano Ricardo
estabeleceu que a compreensão do modo como se deu o processo de
povoamento esteve relacionado com o aparecimento de novos grupos
sociais, que por ele foram classificados segundo critérios relativos à
localização geográfica, mobilidade interna e externa e composição
étnica. Então, à questão espacial, definidora de dois grandes grupos, o
do litoral – São Vicente e Olinda – e o do planalto – Santo André da
Borda do Campo e São Paulo de Piratininga –, o autor somou o elemento
étnico, ao esclarecer que os do sertão haviam herdado do indígena
características nômades e os homens do litoral recebido do negro
elementos para estabelecerem uma vida sedentária. Cassiano Ricardo
elegeu a natureza do território e da gente que o habitava como
responsáveis pela mobilidade que espalhou o espírito do lugar por todo o
espaço nacional, criando uma identidade.
41A
idéia que o meio foi um dos elementos impulsionadores da conquista
territorial está presente em seus textos, principalmente quando procurou
demonstrar a singularidade do lugar onde surgiu o bandeirantismo. Na
sua interpretação, o habitat teria alterado inclusive a herança genética dos mestiços, fazendo “aparecer uma raça característica que jamais se havia revelado”. O meio formado por terrenos férteis, de “bons e delicados ares e mui sadios”,
seria o responsável pelo surgimento de uma gente diferente, mais
especificamente, a chave para a compreensão de como havia se dado o
surgimento de características tão especiais (CASSIANO RICARDO, 1940:41).
42De
todos os fatores físicos, o rio Tietê, com a peculiaridade de nascer na
Serra do Mar e correr para o interior, acabou sendo transformado no
maior exemplo utilizado pelo autor, quando sugere a hipótese de o rio
ter orientado, numa espécie de missão histórica, os bandeirantes em
direção ao sertão. Na leitura de um trecho do poema Sem-Fim, podemos perceber a clara intenção de divulgar a idéia que aponta São Paulo como o habitat intransferível para o aparecimento do bandeirante,
“(...) chapelão pra dez anos de sol e de chuva;
E o Tietê, que nascera correndo pra dentro
da terra e de costas voltadas pro mar
conduzindo pirógas morenas
com homens de bronze formando bolotas de músculos
no peito e nos braços,
pra onde vão não sabemos
é uma voz que nos chama
e é esta voz que dirá nosso fim.
E os Gigantes partindo pro mato um por um; vocês rézem por mim!”
(CASSIANO RICARDO, 1928:99-100).
43A
partir do exemplo citado, podemos concluir que ao utilizar a geografia
como ponto de partida, o autor insistiu na fórmula homem-meio, onde as
questões humanas foram associadas ao caráter ambiental dos lugares. Numa
perspectiva que naturaliza a história e a realidade social do Brasil.
Aqui, remetendo-se aos trabalhos de Mônica Velloso e Luis Lopes Diniz
Filho, podemos dizer que, para Cassiano Ricardo, o bandeirante herdou da
natureza original o destino expansionista (VELLOSO, 1990; DINIZ FILHO,
1993).
44As
bandeiras para Cassiano Ricardo foram constituídas com base numa
organização preexistente em São Paulo, com uma estrutura interna
resultante da reprodução de outra que já se encontrava nas famílias
paulistas, “verdadeiros clãs” na opinião do autor, que a marcha bandeirante acabou reeditando em outros lugares.
“É
como aquele ‘marco zero’ que no centro da cidade atual, é o símbolo
evocativo das distâncias amarradas a um só ponto de irradiação e de
referência, o altiplano era a base única e necessária a que se prendiam
os agrupamentos humanos, mesmo depois de destacados e internados nos
mistérios ou na luta da mineração pouco importava saber se voltariam, ou
não, ao ponto de partida. A vida do altiplano tinha ido com êles. O
sangue para a plantação das cidades não poderia separar-se jamais de sua
procedência” (CASSIANO RICARDO, 1940:311).
45Para
o autor, o processo de povoamento da colônia pode ser entendido a
partir da relação entre a formação das fronteiras e da identidade
nacional. Esta idéia fica clara quando ele expõe a dinâmica das
bandeiras. Cada bandeira saída de São Paulo de Piratininga teria levado,
entre os utensílios da carga material, uma espécie de roupagem
simbólica. O modo de vida do planalto, foi assim de certa maneira
transposto para os lugares conquistados. Esse modus vivendi, reproduzido pelos novos territórios funcionaria como um posto avançado, marco fronteiriço da colônia.
46Por
fim, Cassiano Ricardo defende que, ao instalarem novos núcleos de
povoamento, os bandeirantes cumpriram o papel de difusores do estilo
específico de viver no planalto. Os bandeirantes, nesse caso, fizeram-se
responsáveis pela realização da etapa fundamental do processo de
construção nacional, onde São Paulo, ganharia status de matriz da unidade e da identidade nacional.
47Após
ter concluído a descrição sobre o expansão física do território
brasileiro, Cassiano Ricardo fez pequena referência às questões
jurídicas envolvidas no processo, no caso o Tratado de Madri e
utilização do uti possidetis
pelo direto internacional. Nesse momento, num processo de associação
entre representação gráfica e patriótica, o mapa foi transformado em
objeto de culto cívico. Ao relacionar nacionalismo e território, nosso
autor parece retomar Porque me ufano de meu país de Afonso Celso, onde a extensão territorial do país foi utilizada como fator determinante de sua história grandiosa.
- 1 Representação patriótica é uma concepção tomada de empréstimo de Marcelo Escolar: "La representació (...)
48Quando
conferiu um sentimento de patriotismo à representação gráfica do
Brasil, Cassiano Ricardo chegou a extrapolar o sentido jurídico para
exprimir a própria idéia de nação, onde a fronteira passou a significar
além de marco, o ponto exato até onde teria chegado o espírito
bandeirante. O sentimento simbólico e pátrio aguçado por ele através do
culto às dimensões territoriais do Brasil, juntamente com a cultura, a
língua e a história nacionais contribuíram para a construção de uma
representação patriótica para o país.1
49Na história territorial brasileira escrita por Cassiano Ricardo, o movimento bandeirante foi analisado como um “fenômeno violentamente espacial”,
onde homem e meio agiram de maneira simbiótica. Para o autor somente os
Estados dotados de grandes espaços teriam um futuro próspero: “Feliz
o Estado que possui tais espaços de futuro, pois poderá ter, assim,
dentro de suas fronteiras, uma política de expansão no sentido de
colonizar e prosperar em paz: ele cresce para dentro”
(CASSIANO RICARDO, 1940:53-54). A importância dessa citação está no
fato de revelar que, através do valor atribuído ao espaço nacional, o
autor acabou demostrando o papel decisivo dos bandeirantes. Porque se a
prosperidade estava relacionada aos fato de possuir fundos territoriais,
o Brasil que os possuía teria uma dívida eterna para com herdeiros
daqueles que permitiriam nessa situação. “Este
apego à liberdade física de ir e vir, esta nossa riqueza de
individualismo credor de riqueza e de beleza explicam-se pela sensação
de espaço que o Brasil nos dá e que é parte integrante de nossa alegria
de viver. Em resumo: filha de uma imposição geográfica, deu-nos a
bandeira uma geografia em réplica admirável. O Brasil vem a ser, pois a
creatura geográfica da Bandeira” (Id., Ibid.:56).
50Escrita
a história, caberia, então, no contexto em que foi produzida a obra de
Cassiano Ricardo, o reconhecimento nacional aos paulistas enquanto
heróis nacionais. Restaria divulgar São Paulo como núcleo original,
lugar de onde pela primeira vez foram vistas as portas do sertão, ponto
de partida da conquista territorial e berço dos mais perfeitos guardiões
das fronteiras nacionais. E à geografia caberia emprestar seus mais
conhecidos argumentos para justificar toda essa história.
51Entre
as matrizes regionais elaboradas no campo das idéias e apresentadas
como peças fundamentais para o entendimento do processo de construção da
identidade nacional, a gesta bandeirante
criada por Cassiano Ricardo pode ser considerada como exemplar.
Forjada, num país de poucas tradições, com o objetivo de criar um
passado que fosse capaz de agregar todos os paulistas entorno de ideais
de uma pequena burguesia de agricultores e exportadores de café.
Cassiano Ricardo tinha como intuito fazer da história dos primeiros
povoadores do planalto de Piratininga, a história de todos os
brasileiros, paulistas ou não.
52Em
verso ou em prosa, a história do Brasil deveria ser aquela da conquista
do sertão a partir do Planalto, por dentro do Tietê, com a gesta dessa
harpa geográfica, que colocava sobre os ombros dos bravos bandeirantes a
construção do país. Nesse caso o país seria São Paulo, seria o café,
seria o mito bandeirante.
53A
obra de Cassiano Ricardo, então, remete a uma dada leitura feita com os
elementos já anteriormente expostos. A partir de cada história
local-regional, tendo como pressuposto a construção do território,
passaria a existir uma uniformização histórica – a região é a origem da
nação, a região é a nação.
54A
imposição proposta pela obra de Cassiano Ricardo se dá até no plano
estético. A obra violenta dos bandeirantes, a ação etnocida da invasão
territorial, deve ser vista como pura poesia. Os índios que foram mortos
ou aprisionados pela ação bandeirante são tratados como irmãos de seus
assassinos, como se esse fosse um país construído sem o derramamento de
uma só gota de sangue. Uma história tão idílica quanto edênica. Na
história do Brasil, escrita por Cassiano Ricardo, não existe espaço para
assuntos que por ventura possam macular a imagem do paulista. Os
principais capítulos devem ser enaltecedores de um personagem e de um
grande tema, respectivamente do bandeirante e da nossa herança material –
o território conquistado. O Brasil de Cassiano Ricardo é um paraíso.
Cassiano Ricardo e o mito da Bandeira no Estado Novo
“A
Bandeira é um operador semântico adequado, porque já faz parte da
memória social do brasileiro como fenômeno fabuloso. O que o autor
[Cassiano Ricardo] precisa fazer nesse sentido é apenas reforçar esse
caráter de fábula, de grandioso, reconstruindo o modelo ideal que
convence, não pelo raciocínio crítico, mas sim através do apelo ao
caráter de excepcionalidade, a imagens, e a um símbolo já interiorizado.
Nesse sentido a narrativa associa o bandeirante a “héroi”, “gigante de
botas de sete léguas”, etc.
Bandeira é um operador semântico adequado
ainda num outro sentido: remete à mobilidade espacial. Mobilidade
espacial é útil, não apenas nos seus próprios termos de deslocamento no
espaço (...) mas também por ser uma categoria facilmente manipulável
para conotar processos de mudança ao nível da organização social.
Ao
mesmo tempo, a Bandeira é um fenômeno ligado, no tempo, ao passado, e,
no espaço, ao interior; é, portanto, útil para expressar a idéia de que a
mudança que se opera deve ser uma volta ao passado e ao interior: Além
disso, tendo definido a Bandeira como fenômeno sui generis, tipicamente
brasileiro (por oposição a qualquer movimento de expansão que se dê ou
se tenha dado em qualquer outro país do mundo), se exclui, por
ilegítimo, qualquer outro modelo de organização, de ações ou idéias, o
que seria “imitação”, “deturpação”, “desvio”. É assim que liberalismo,
facismo e comunismo são excluídos como soluções plausíveis em termos de
organização social”.
ESTERCI, Neide (1972). O Mito da Democracia no País dos Bandeiras (Análise simbólica dos discursos sobre imigração e colonização no Estado Novo). Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro, Departamento de Antropologia, Museu Nacional-UFRJ, pp. 69-70.