1Virgílio
Correia começou a sua História do Mato Grosso dizendo que ali não era
nem mato, nem grosso (Correia Filho, 1969). Mas se o nome mente na
geografia, diz a verdade na história. Porque o mato grosso é o nome do
desconhecido. É a imagem da dificuldade de atravessamento que se
projectou para todo o interior da América, reunindo numa única expressão
a força da natureza e os perigos que ela encerrava. O mato grosso é a
projecção simbólica de uma barreira. É por isso muito interessante que
este nome se tenha mantido. Porque ao longo de todo o processo de
efectiva construção territorial que se opera no Mato Grosso, a ideia
básica que lhe está subjacente é, precisamente, a da barreira. Era a
barreira virtual, antes de ser alcançado, e uma vez ocupado desenhou-se
como barreira politica.
2Como
convinha à consolidação dos discursos de posse, as narrativas fazem
remontar a génese da conquista do Mato Grosso aos primeiros avanços dos
bandeirantes ainda no século XVII (Sá, 1775). Mas a verdade é que a
ocupação se deu, de facto, apenas no século XVIII e numa conjuntura
especial para a Coroa Portuguesa no que diz respeito a certificação
internacional dos seus domínios na América. A invocação da “antiguidade”
do conhecimento e conquista daquela região pelos portugueses é ali,
mais do que em qualquer outra área do Brasil, um claro argumento
retórico que, de resto, a própria manutenção do topónimo Mato Grosso,
confirma.
3Embora
tenha sido alcançado a partir dos caminhos internos, o espaço do Mato
Grosso construiu-se, mentalmente, de fora para dentro, a partir da
fronteira. É ela quem o define. É ela quem o informa. O Mato Grosso não
foi verdadeiramente conquistado, ou descoberto, foi desenhado. E não só
se desenhou ao mesmo tempo que a fronteira mas desenhou-se, em si, como
fronteira. Não se trata de um mero jogo de palavras. O que queremos
dizer é que aquela região só passou a existir para Portugal no momento
em que Portugal pensou a fronteira, ou foi obrigado a pensar a fronteira
de maneira diferente da que até então vigorava. Este aspecto é
fundamental e é também um dos dados da argumentação que trago para esta
discussão, defendendo a particularidade da construção espacial do Mato
Grosso e a sua dimensão metodológica de projecto, pois a constituição
daquele espaço fez-se no sentido da sua projecção para o futuro e
fez-se, sobretudo, a partir dos pressupostos construtivos do desenho.
4Ao
contrário do espaço potencial do desconhecido, que remontava ao passado,
o problema que se colocou para o Mato Grosso foi a materialização do
território. A capitania foi deliberadamente criada para ser o ante-mural
do Brasil. O espaço do Brasil e o espaço da capitania são por isso
indissociáveis. O Mato Grosso desenhou-se como fecho do Brasil e neste
sentido (re)desenhou o Brasil. Mas este novo desenho implicou também uma
outra leitura do próprio território.
5Ao
longo do processo de formação territorial do Brasil o elemento
unificador por excelência foi a costa. Mas, desde a divisão em
capitanias hereditárias e das próprias vicissitudes da colonização que o
processo implicou numa proliferação de centros que se pode dizer que em
determinadas alturas assumiram uma dimensão quase arquipelágica. A
efectiva interiorização e sobretudo a circunstância do enorme apelo
migratório da descoberta das minas criou os mecanismos de convergência
que (re)potencializaram a unidade territorial implícita.
6Durante
o século XVIII assiste-se a criação sucessiva de novas capitanias que
revelam o processo de adequação e ajustamento da unidade territorial
retomada. Um dos aspectos mais significativos deste processo é a própria
dinâmica de conhecimento interno que ele engendra, na medida em que
cada nova capitania precisava pensar-se na sua relação com as outras.
7Creio,
e suponho que será um consenso, que uma das tarefas mais urgentes que
nos cabe fazer é questionar as configurações espaciais que as capitanias
projectaram para si próprias e os métodos de conhecimento, intervenção e
representação de que fizeram uso para reivindicar os seus limites, quer
internamente entre as capitanias, quer na sua relação com a metrópole. O
papel desempenhado pela cartografia neste contexto é fundamental.
8No
caso do Mato Grosso a cartografia desempenhou um papel, diríamos quase
ontológico. Não apenas porque foi o instrumento de fixação da imagem
daquele lugar, mas porque foi o elemento básico da sua própria
constituição. A questão que me propus para esta mesa redonda e que trago
para a discussão é perguntar até que ponto a cartografia do Mato Grosso
no final do século XVIII pode ser lida como agente e reflexo de uma
nova consciência do território. Ou mais propriamente, em que medida a
construção da fronteira ocidental do Brasil pode ser entendida como
síntese desta nova consciência no universo português.
9A
construção da imagem cartográfica do Mato Grosso foi naturalmente um
processo cumulativo. A uma primeira geração de cartas, que são quase
apontamentos, sucedeu-se uma segunda, e depois uma terceira, que são ao
mesmo tempo cada vez mais elaboradas e sintéticas. Os marcos
cronológicos destas fases correspondem aos sucessivos governos da
capitania e culminam no excepcional conjunto de mapas recolhido e
produzido durante o governo de Luís de Albuquerque de Mello Pereira e
Cáceres e continuado no de seu irmão João de Albuquerque que contaram
para tal com a acção dos engenheiros da comissão de demarcação de
limites.
10Importa
ter em conta que mesmo quando não dispunham de técnicos, os
governadores reivindicaram para si próprios a recolha pessoal das
coordenadas geográficas ou a competência da direcção dos trabalhos
cartográficos. O que os coloca numa posição especial posto que assumiam
que a sua leitura do espaço era informada pelos mesmos pressupostos
teóricos dos técnicos, o que é relevante, como veremos.
11Um
dos eixos de suporte da cartografia do Mato Grosso é precisamente o
conjunto de mapas representando as viagens dos governadores. Inauguram a
série os mapas que representam a viagem de D. António Rolim de Moura
que, segundo o seu próprio relato, mediu pessoalmente as coordenadas dos
vários pontos por onde passou desde Santos até Cuiabá. Os dados obtidos
acabaram por dar origem a dois mapas: um relativo ao caminho de Santos à
Vila Bela, outro referente ao caminho entre Cuiabá e Vila Bela (mapas 1
e 2).
Mapa 1
Mapa 2
12O
desdobramento em dois mapas é, já de si, interessante, pois podemos
lê-los como a parte acrescentada e a sua ligação ao todo. Também a
descrição metodológica da execução que se revela nas legendas e que
indica que há partes calculadas e descritas “por observações ajustadas
de quem fez a viagem”, e outras desenhadas “por informações solicita e
miudamente tomadas de muitas pessoas práticas do mesmo continente”. Mas o
mais significativo destes mapas é a própria apresentação do espaço pelo
caminho. O caminho constitui o território dominado, à volta do qual
persistem as identificações do “sertão dos bororós” ou o “reino do
gentio caypo”. A descrição do caminho revela-o como meio de penetrar
nesta área ainda não totalmente dominada, como conhecimento em si do
percurso no espaço, mas também como meio de integração deste espaço à
rede urbana, note-se, pois são as vilas os pontos de partida e chegada
dos caminhos. Em termos gráficos, não se faz a linha externa do desenho
do território, mas as suas linhas do meio, os seus eixos.
13Neste
aspecto, e apesar dos erros evidentes, um dos exemplares mais
interessantes da cartografia do Mato Grosso é um mapa, sem autoria nem
data assinaladas, que faz parte do acervo da Casa da Ínsua e em cuja
legenda se indicam, com cores diferentes: a “derrota”, ou seja, o
percurso da viagem, de Santos, São Paulo, Itu até Vila Boa de Goiás e
desta até Natividade; os caminhos de Vila Boa até o Cuiabá e desta até
Mato Grosso (Vila Bela), por terra e por canoa; mostra-se ainda o
percurso dos rios desde Araritaguaba até Cuiabá indicando que se trata
da comunicação desta vila com Santos, São Paulo e Rio de Janeiro;
aponta-se o caminho que fez João de Souza Azevedo até ao Pará pelo
Tapajós e a sua volta para o Mato Grosso pelo Guaporé; também se marcam
os caminhos eventualmente possíveis de se fazerem de Cuiabá ao Pará pelo
rio Arinos; assim como se indica o Tocantins como a ligação entre o
Pará e a gente da Natividade. Trata-se de um verdadeiro inventário das
principais conexões do Mato Grosso com o Norte, o centro e o sul do
Brasil. Mas, mais importante que isso, trata-se de um relatório visual
do próprio processo histórico do estabelecimento destas conexões a
partir das sucessivas viagens de exploração (mapa 3).
Mapa 3
14A
viagem de Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres veio também
confirmar tal quadro. Mesmo antes da partida do Rio de Janeiro o
governador teve a preocupação de recolher as informações mais
actualizadas e detalhadas sobre o longo caminho que iria percorrer até a
sua capitania. Entre os vários mapas a que Luís de Albuquerque
provavelmente teve acesso deveria constar a carta da capitania do Rio de
Janeiro feita pelo engenheiro Salvador Franco da Mota pois este o
acompanhou na sua viagem para o Mato Grosso (Araujo, 2001) (mapa 4). Foi
inclusive encomendado um mapa mostrando a região entre Vila Boa de
Goiás e Cuiabá, o qual foi especialmente realizado para a sua viagem
(mapa 5).
15Há
duas versões da carta da viagem de Luís de Albuquerque (mapas 6 e 7). Ao
compararmos estes desenhos com os relativos à viagem de Rolim de Moura
as diferenças são evidentes. Aqui já não se tratava de mostrar um
caminho que pretendia configurar um território, mas de apresentar um
território constituído no qual se indicavam um, ou mais caminhos. A
própria representação dos eventuais vazios de conhecimento - e de poder
sobre o território - que se mantinham, como o “certão do gentio cayapo”,
eram apresentados inseridos num conjunto muito mais sólido de
referências geográficas que os limitavam entre áreas de soberania
garantida e não ao contrário, como era nos mapas de Rolim de Moura.
16Mas
o mais significativo nestes mapas é que a “manifestação” da viagem de
Luís de Albuquerque até a capitania “mais ocidental da América
Portuguesa” exigiu, de certo modo, não apenas a indicação do seu próprio
eixo mas a “descrição” dos espaços das cinco capitanias por onde o
governador passou “com as suas relativas estençoens e lemites, igualm.te
(...) a fronteira do Estado do Brazil com os dominios de Castela(…)”.
Esta indicação da própria legenda do mapa pode ser lida em dois
sentidos. Por um lado, é a ideia do todo, do Estado do Brasil, que dá
forma a capitania do Mato Grosso. Por outro lado, o todo define-se pelas
suas partes, ou seja, cada uma das capitanias que se pretende
apresentar com os seus respectivos limites. Sabemos que os limites entre
as capitanias e mesmo entre as partes internas de cada capitania foram
fonte dos mais variados conflitos durante a segunda metade do século
XVIII. Volto a referir que esta dinâmica é crucial para entender o
processo de constituição do todo pelas suas partes. Mas enquanto em
Minas ou São Paulo as disputas fazem-se entre as respectivas fronteiras
internas (pretendendo todos ampliar as suas áreas de arrecadação) no
caso do Mato Grosso, a Fronteira per se, sublima de certo modo os limites internos.
17A
ideia do todo da América Portuguesa é a base operativa e mental de toda a
cartografia produzida no Mato Grosso durante a administração de Luís de
Albuquerque. Mesmo quando se desenha só a capitania esta lê-se como
parte do desenho do Brasil. O primeiro exemplar desta nova série, já
agora de efectivos “mapas do território” foi a carta realizada, em 1778,
intitulada Mapa de Todo o vasto Continente do Brazil, ou America
Portugueza com as fronteiras respectivamte constituidas pelos Dominios
Espanhoes adjacentes (...) (mapa 8).
Mapa 8
18Luís
de Albuquerque clama que construiu praticamente sozinho este mapa. O
governador perdeu sucessivamente os engenheiros que tinha de serviço no
Mato Grosso, tendo morrido, em 1774, Salvador Franco da Mota e, em 1777,
Domingos Sambucetti. Segundo os seus relatos, o governador fez questão
de compilar todos os dados disponíveis na capitania e, fazendo uso das
medições entretanto efectuadas na região, quer por si próprio, quer
pelos engenheiros, assim como de outras cartas existentes na secretaria
do governo, montou este mapa tendo encomendado apenas a sua “cópia”
(desenho) a um “curioso do país”. Este curioso era Francisco Xavier de
Oliveira, um velho desenhador que vivia em Cuiabá desde os tempos de
Rolim de Moura e que Luís de Albuquerque tinha levado para Vila Bela e
que é certamente o autor da bela cartela que acompanha o mapa.
19Nas
notas, que também foram emolduradas pelos desenhos de Francisco Xavier,
Luís de Albuquerque explica o processo utilizado na confecção do que
ele próprio identifica como “monumento geográfico”. Na primeira diz que
“pela falta de suficientes cartas e notícias se não compreenderam neste
mapa os três governos da Ilha de Santa Catarina, Rio Grande de São Pedro
e da Colonia do Sacramento, Subalternos da Capitania Geral do Rio de
Janeiro os quais também pertencem ao Real Dominio de S. Magestade e
jazem desde a latitude em branco athe a desembocadura e Margem
Septentrional do Grande Rio da Prata e assim mesmo se não descreveu o
sertão das capitanias da Bahia e Pernambuco pela sobredita falta de
cartas”. Na segunda nota acrescenta-se que “a direcção pontuada de
encarnado desde a capital do Rio de Janeiro ate Vila Bella da Santissima
Trindade capital do Mato Grosso faz ver a dilatada estensão e
diferentes rumos da viagem que o referido G.or. e Cap.am G.ral executou
no anno de 1772 indo tomar posse daquele governo e desde Vila Bela ao
longo dos rios Guapore e Mamore, da Madeira e das Amazonas athe o Para
no anno de em branco qdo se recolhia a Portugal”.
20Ambas
estas observações são significativas. A primeira por deixar claro que
embora faltassem algumas informações sobre certas partes do território é
sobre a ideia do seu todo que se apresenta o mapa. Vale notar a
preocupação em descrever a extensão dos domínios do rei até a embocadura
do rio da Prata, assumindo, implicitamente, o direito à Colónia do
Sacramento, que tinha sido tomada pelos espanhóis em 1777.
21Quanto
à segunda nota, ela é importante na medida em que Luís de Albuquerque,
para reforçar a credibilidade do documento que produziu, procurava
mostrar o seu conhecimento concreto dos territórios que havia desenhado.
Para tal apresentava os caminhos que havia percorrido, adiantando,
inclusive, um percurso que tencionava fazer, mas que ainda não tinha
feito, que era a volta pelo rio das Amazonas até ao Pará. Este aspecto é
especialmente interessante porque reafirma o discurso da experiência,
como o método mais abalizado para comprovar o conhecimento. Mas é também
significativo que parte desta experiência possa ter sido assumida avant la lettre.
Luís de Albuquerque podia afirmar que conhecia concretamente pelo menos
até a metade do caminho do Pará, pois o tinha percorrido até as
cachoeiras do rio Madeira. Dali até Belém, o seu conhecimento era
“teórico”. Mas não era menos concreto.
22Na
verdade, o governador detinha efectivamente o saber “geográfico” e
espacial de todo o “vasto continente do Brasil” tal como o apresentava.
Mas este saber, que foi, a vários níveis, partilhado pela sua geração de
governantes do Brasil, era um saber novo. Pois era um saber que se
fazia não apenas da concretude da experiência mas também da leitura
racionalizada e sistematizada do espaço.
23Insistindo
no tema da fronteira, Luís de Albuquerque mandou fazer, depois desse,
uma série de outros mapas que mostravam a capitania do Mato Grosso e as
suas adjacentes, ou que ampliavam a área da linha de fronteira proposta
pelo governador. Aumentando sucessivamente a escala de desenho procurava
mostrar com maior detalhe as áreas problemáticas. Pode-se aliás ler a
sequência das cartas do todo para a linha ou da linha para todo,
denunciando o processo de apreensão efectiva da escala, no seu sentido
mais amplo (mapas 9, 10 e 11).
24Estes
mapas, realizados entre 1778 e 1779, foram a base do que foi enviado
para a corte, em 1780, (mapa 12) juntamente com o documento intitulado
“Ideia Geral”, onde Luís de Albuquerque defendia a “sua” fronteira. Não
cabe apresentar aqui este excepcional documento. Importa no entanto
chamar a atenção para o cerne da argumentação de Luís de Albuquerque que
clamava que não bastava usar os rios como linha divisória, mas que se
devia garantir a exclusividade da navegação nestes rios. Para tal fundou
inclusive vilas do outro lado dos rios Guaporé e Paraguai (Araujo,
2001).
25Albuquerque
reivindicava como dado essencial da operatividade da própria fronteira
que ela pudesse funcionar como um caminho, como o último caminho, como a
ronda interna da América. Podemos naturalmente reinvocar a ideia da
ilha Brasil que supostamente esteve na base da própria discussão do
tratado de Madrid e que se poderia ler como um dado de continuidade da
visão territorial do Brasil. Mas a consciência geográfica desta nova
geração acrescenta uma importante novidade, pois projecta esta ideia da
conectibilidade não só a partir de uma leitura politica, mas também
económica e sobretudo conceptual. Os rios da fronteira eram
reivindicados como a marca do domínio político e como o caminho das
mercadorias, como a contra-costa, o litoral interior. Mas eram também a
expressão do domínio conceptual do território. Eles constituíram o
desenho que se fez com os elementos da própria natureza, representam a
vitória da razão contra o mato grosso.
26Neste
sentido é significativo lembrar a verdadeira obsessão demonstrada por
Luís de Albuquerque pelo que ele identifica em mais de uma carta como o
“istmo” entre os rios Alegre e Aguapei, por onde sonhava poder ligar as
bacias do Amazonas e do Prata permitindo a circum-navegação do Brasil
(mapa 13). A legenda carta diz que este “istmo” é “talvez o mais
memorável do seu género”. Considerando, naturalmente, que Luís de
Albuquerque sabia que um istmo é uma parte entre dois mares é muito
interessante o uso desta expressiva metáfora para referir a esta ligação
apenas sonhada entre dois pequenos rios que são lidos como braços das
águas grandes do Amazonas e do Prata.
Mapa 13
27Depois
da chegada dos engenheiros e matemáticos, em 1782, os mapas passaram a
ser o seu maior encargo no Mato Grosso assumindo eles o conjunto dos
levantamentos e desenhos. No entanto, Luís de Albuquerque continuava a
afirmar a sua participação pessoal nos trabalhos cartográficos e, em
especial, o seu empenho em inspeccionar directamente aquelas tarefas.
28Em
1789 determinou que os membros da comissão demarcadora fizessem o “mapa
geografico de quase toda esta peninsula da America Meridional” (Araujo,
2001). Que será, provavelmente, o mapa recentemente descoberto por Neil
Safier em Londres, que aproveito para agradecer o envio que me fez da
imagem (mapa 14). Na legenda volta-se a referir que se trata das terras
de Sua Majestade naquela “parte do mundo debaixo do nome de Brasil” que
se apresenta “separada das da coroa de Espanha por uma linha limítrofe
(...) e subdividida nos seus governos e capitanias generais”. O
todo do Brasil, constituído pelas suas partes internas, surge no mapa
claramente destacado do conjunto maior da América Meridional. A ênfase
gráfica das cores é tal que aquela parte do mundo debaixo do nome de
Brasil, parece quase recortar-se do resto do desenho. Poder-se-ia ver um
continente dentro do continente e é especialmente interessante ver a
simetria que a linha interna aponta, repetindo, de certo modo, as curvas
do perfil continental. O que não deixa de ser significativo, pois a
reivindicação da coroa portuguesa, reinvocando a partilha implícita em
Tordesilhas, é pela “sua” metade da América. Note-se ainda que a linha
azul, que a legenda identifica como a fronteira, sobrepõe-se às linhas
de outras cores da constituição das capitanias, deixando claro o todo e
as partes que o informam.
Mapa 14
29A
par destes grandes mapas, que representam a síntese da leitura do
território, as cartas hidrográficas constituíram a maior parte dos
trabalhos realizados pelos técnicos da comissão demarcadora. Os desenhos
dos rios do Mato Grosso são um dos conjuntos mais elucidativos, e
bonitos, do que significou a apreensão da terra pela água, que marca,
desde o início, a expansão portuguesa. Os trajectos dos rios, e a rede
de conexões por eles proporcionadas, que no fundo foram a base dos
primeiros “mapas de caminho”, passaram a ser os objectos de uma leitura
do espaço cada vez mais aprofundada. Através dos seus percursos
efectuou-se uma espécie de corte do território lendo-o a partir das suas
veias internas. Há um constante aprimorar das capacidades de
hierarquização da informação geográfica que, tomando as vias fluviais
como eixo das composições, fez surgir, literalmente, nas margens dos
rios, todo o espaço que se descortinava para além delas.
30Em
1788-89 Francisco José de Lacerda e Almeida coordenou a expedição e
realizou o Mapa do leito dos rios Taquari, Coxim, Camapoam, Varanda de
Camapoam, Pardo, Paraná, Tieté e caminho de terra desde a freguesia de
Nossa Senhora da Mãe dos Homens de Araritaguaba athe a cidade de São
Paulo (mapa 15). Trata-se, como é evidente, do percurso inaugural da
capitania realizado em sentido contrário indo do Mato Grosso para o
povoado de onde partiram os primeiros bandeirantes que desbravaram
aquela região. Elegi este mapa, preciso e conciso, como fecho simbólico
de um ciclo na cartografia do Mato Grosso, como o espelho dos mapas da
viagem de Rolim de Moura. Os governadores e engenheiros tinham refeito,
na terra e no papel, todos os caminhos da região. Tinham, finalmente,
construído, em termos concretos e mentais, o seu território.
31Retomamos
a questão que tínhamos posto no início. Parece-nos que o processo de
construção cartográfica do Mato Grosso pode efectivamente ser lido como
reflexo de uma nova consciência do território. Consciência esta que se
revela na percepção moderna do conjunto de relações que este território
engendra e que por isso dota o próprio território per se de
valor. A precocidade desta percepção foi, sem dúvida, um factor
fundamental para a garantia da unidade territorial brasileira. É
possível intuir que este conhecimento foi, em vários aspectos,
partilhado por esta geração que vivenciou o “mato” e que se viu obrigada
a descortiná-lo. Mas é também provável que estes homens tenham tido
necessidade de difundir a sua visão na metrópole que, em várias
circunstâncias, parecia ainda não ver o todo. De igual modo, é também
possível intuir que este todo anteriormente visto na própria colónia foi
o resultado de um enorme conjunto de operações paralelas e simultâneas
em que cada uma das suas partes se ia configurando na relação e
contiguidade que estabelecia com as outras. As disputas pelos limites
internos das capitanias são a evidência da superação da vivência
arquipelágica do espaço do Brasil. As eventuais ilhas remanescentes
passaram a ser a dos territórios indígenas cujos “sertões de bárbaros”
vão sendo suprimidos ou aparecem como que cercados por outros elementos
nos sucessivos mapas que se produzem.
32Para
tal processo, a confecção e leitura operativa da cartografia pesou como
elemento basilar. Isto é, o conhecimento que vários dos governadores e
engenheiros desta geração clamavam foi efectivamente adquirido por eles
próprios. O que os fez poder dizer que viam e conheciam o espaço ainda
quando não o tivessem percorrido, mas precisamente porque o tinham
desenhado. Em boa verdade, foi a cartografia, lida literalmente como a
escrita do espaço, um dos elementos que os dotou de um novo território.