1David
Harvey é normalmente visto como um teórico das questões urbanas do
mundo contemporâneo, um estudioso das transformações gerais na estrutura
urbana, um autor voltado à tematização da dimensão espacial das
relações capitalistas e intérprete das novas relações geopolíticas
internacionais. Para cada uma dessas linhas de reflexão poderiam ser
destacadas obras fundamentais de Harvey que tiveram impactos no mundo
acadêmico, como A Justiça Social e a Cidade, A Condição Pós-moderna, Novo Imperialismo ou História do Neoliberalismo. Entretanto, a obra principal de David Harvey, Os Limites do Capital,
contém não apenas o embrião de cada uma dessas abordagens como poderia
ser tomada ainda como uma das mais importantes obras de análise sobre o
sistema de crédito. Teórico da geografia, David Harvey raramente é
enxergado como um intelectual das questões econômicas mais complicadas e
obscuras. Contudo, há em vários capítulos dessa obra fundamental uma
análise cuidadosa e profunda da relação entre o sistema monetário e o
sistema de crédito na economia capitalista. Poderíamos destacar ainda
que no cerne da teoria espacial de David Harvey encontra-se uma teoria
do capital financeiro que torna sua obra importante não apenas para a
compreensão dos mecanismos geográficos de expansão capitalista como
também para entender as minúcias de uma sociedade que levou a
financeirização ao extremo.
- 1 Num artigo em que registra sua “dívida com The Limits of Capital”, Jameson discute a relação estab (...)
- 2 “Assim, como observa Harvey, o crédito parece harmonizar e resolver as contradições do capitalismo (...)
2Poucos
autores notaram essa dimensão na obra de Harvey, pois quase sempre sua
abordagem do sistema financeiro é vista como mero prolegômeno à teoria
da urbanização. Mas é preciso notar que temos aí grandes contribuições
ao estudo da relação entre moeda e crédito, entre dinheiro e capital
financeiro e principalmente à análise da ficcionalização da riqueza.
Isso foi observado por Fredric Jameson de modo muito pioneiro, ainda
quando Os Limites do Capital era uma obra reduzida a poucos nichos de leitura da nova esquerda norte-americana.1
No Brasil, Leda Maria Paulani utilizou essa obra de David Harvey para
tratar do capital fictício, reconhecendo aí contribuições na compreensão
de como o sistema de crédito parece ser chamado para harmonizar
problemas do capitalismo, mas na verdade acaba complexificando e
ampliando suas contradições.2
3É
exatamente com o intuito de trazer parte dessa discussão para o primeiro
plano que apresentamos a seguir as principais contribuições levantadas
por David Harvey sobre o sistema de crédito. Nosso foco será a obra
principal citada – Os Limites do Capital –, publicada
originalmente em 1982, mas faremos uso, quando necessário, de outras
referências que possam demonstrar a importância dessas reflexões ao
longo de sua produção teórica. Mais do que reproduzir os argumentos
principais da leitura do geógrafo, nossa intenção é desenvolver suas
principais teses e ressaltar suas contribuições originais, destacar os
autores e obras com quem dialogou e apresentar os desdobramentos de
algumas de suas teses para a compreensão de nossa situação no
capitalismo contemporâneo. Nesse processo, como ficará claro, nosso
trato com as formulações de Harvey passa por um crivo crítico, já que
muitas de suas idéias precisam ser problematizadas.
4A
teoria do valor de Marx é também uma teoria do dinheiro. O fato de que
as mercadorias precisem se espelhar numa forma simples e comum a todas
elas (a forma geral de valor) produz necessariamente a condição do
equivalente geral que representa todas as mercadorias e por cada uma
delas pode ser trocada (a forma dinheiro). O produto que funciona como o
equivalente geral pode ser confrontado com todas as demais mercadorias
como dinheiro porque antes foi confrontado como uma mercadoria.
Portanto, dinheiro é mercadoria. Mas é uma mercadoria especial,
que passa não apenas a se confrontar com outras mercadorias mas também a
mediá-las, transformando-se em elemento central e aglutinador do mundo
das mercadorias.
5Como mercadoria, o dinheiro possui um determinado quantum de trabalho cristalizado em sua forma social. Dinheiro é, antes de qualquer outra coisa, a mercadoria capaz de servir como medida do valor
– ao espelhar outra mercadoria, não reflete a natureza material desse
produto, sua particularidade ou sua utilidade, mas simplesmente sua
forma socialmente condicionada de trabalho despendido, isto é, sua
generalidade enquanto resultado do trabalho abstrato. Dinheiro é a
“forma necessária de manifestação da medida imanente do valor das
mercadorias: o tempo de trabalho” (Marx, 1985a: 87).
6Há
uma complicação nessa primeira função do dinheiro. Embora seja a
manifestação do valor, o dinheiro perfaz essa função apenas através de
sua natureza particular, com sua expressão material direta. Como a forma
geral de valor precisa ser o desdobramento de uma forma simples
equivalente, portanto, uma mercadoria como qualquer outra, é apenas
através de sua natureza corpórea que se exprime o valor de troca de
outras mercadorias. Como o dinheiro é essa forma fisicamente metafísica
em que a “existência funcional absorve, por assim dizer, a sua
existência material” (Marx, 1985: 110), ao manifestar o valor das demais
mercadorias, o dinheiro o faz empiricamente somente por meio dos
padrões de preço. Embora seja a encarnação social do trabalho abstrato,
esse quantum de trabalho é representado sob a forma de uma
determinada quantidade de dinheiro, de uma determinada quantidade dessa
mercadoria particular. Com a moeda metálica, isto é, o ouro ou a prata
como as mercadorias que funcionam mais apropriadamente como dinheiro,
como equivalente geral, a manifestação desse padrão de preço ocorre
através de uma determinada quantidade física desses metais. Assim,
funcional e materialmente, o dinheiro possui imediatamente duas funções:
a de medida dos valores e de padrão dos preços. Duas faces da mesma
natureza contraditória do dinheiro: sua face abstrata e sua face
concreta, sua determinação funcional e sua determinação física, sua forma e a matéria que lhe exprime.
7Uma
série de questões complicadoras poderia ser apontada aqui, entre elas o
fato de que já no princípio da reflexão de Marx sobre as categorias
básicas do capitalismo (mercadoria e dinheiro) surge a diferença entre
valor e preço, algo que só pode ser definido do ponto de vista da
concorrência. A relação entre produção e a circulação de cada mercadoria
(ou entre oferta e demanda), assim como a relação entre produção e
circulação do dinheiro (oferta monetária e velocidade de circulação do
dinheiro) ou, no fundo, a relação entre o conjunto das mercadorias e o
conjunto do dinheiro, implica em variações na proporção física do
dinheiro que acaba por impedir a identidade imediata entre o valor de
uma mercadoria e o seu preço.
- 3 Conforme indicamos em artigo anterior (Botelho, 2014b), a edição brasileira de Os Limites de Capit (...)
Como equivalente universal, o dinheiro funciona como medida de valores e fornece um padrão de preço contra
o qual o valor de todas as outras mercadorias pode ser avaliado. Mas a
realização desses preços depende de um processo de troca e, portanto,
envolve valores de troca. A intervenção da troca converte uma relação
necessária entre proporções de valor em uma “relação de troca mais ou
menos acidental entre uma simples mercadoria e outra, a mercadoria
monetária”. Os preços de mercado desviam-se dos valores como resultado
disso. 'Isso não é um defeito', insiste Marx, porque “as irregularidades
sem lei” da produção e da troca de mercadorias, as perpétuas oscilações
entre a demanda e a oferta, podem não possibilitar o equilíbrio exceto
ao permitir que os preços flutuem em torno dos valores (EI: 242; EM:
244-247; EB: 324).3
- 4 Ainda que isso não possa ser interpretado como uma teoria da verdade ou do reflexo, isto é, como a (...)
8Isso
só demonstra que a categorias de Marx precisam ser encaradas como
categorias em movimento e não tomadas analiticamente em si mesmas, pois
elas só fazem sentido ao fim da exposição lógica, quando todas suas
determinações estão postas e, assim, sua complexidade teórica se
aproxima da complexidade real.4
Isso nos permite superar a aparência socialmente necessária intrínseca a
esta sociedade em que os indivíduos surgem imediatamente como se fossem
entidades dotadas de autonomia e de vontade, soberanos em seus próprios
atos, socializando-se apenas secundariamente através dos objetos e do
mercado. Porque a apreende como a aparência necessária dessa sociedade e não como mera falsidade, a lógica de exposição de O Capital
segue essa aparência, partindo do indivíduo isolado portador da
capacidade de trabalho e de sua produção particular. Apenas com a
circulação e os mecanismos de concorrência é que se torna possível
compreender exatamente a forma desse individuo atomizado.
- 5 “As mercadorias não têm um valor individual, mas apenas um preço individual. Os próprios preços, p (...)
9Portanto, a cisão inicial entre valor e preço só existe de um ponto de vista analítico, pois as mercadorias individualmente possuem apenas preço; sua existência como valor depende de sua realização através do processo de venda, quando o trabalho abstrato presente potencialmente
em sua forma for capaz de representar realmente uma parcela da massa
global de valor (apropriada por um capital em particular).
Individualmente, isoladamente e sem realização, uma mercadoria não é
capaz de representar valor algum. Toda mercadoria, para sermos
rigorosos, é imediatamente representada em preço, sua manifestação
empírica em dinheiro. Apenas através da realização no mercado é que esse
preço representa a apropriação de uma parcela da “força conjunta de
trabalho da sociedade” (Marx), apenas dessa maneira pode demonstrar que
corresponde a “tempo de trabalho socialmente necessário”. 5
- 6 Em Harvey essa difícil relação o leva a diferenciar, para explicar as contradições entre valor e p (...)
10É
importante destacar isso porque seus desdobramentos são complexos,
causam uma série de incompreensões e os problemas daí decorrentes são
cada vez mais atuais. Mercadorias produzidas em condições de
produtividade baixa e com custos elevados segundo o padrão dominante
acabam por cair fora do mercado, não são vendidas ou, se o são, acabam
por não conseguir pagar seus próprios custos. Essas mercadorias
mobilizam dinheiro, massa monetária em sua circulação, espelham-se em
dinheiro, têm preço, mas são incapazes de acrescentar
mais-valor à massa global de riqueza capitalista. O mesmo se pode dizer
de mercadorias produzidas em condições de automação total ou quase
total. Como são mercadorias provenientes inteiramente de meios de
produção, produzidas por capital constante, por trabalho morto, não
representam nenhum acréscimo de valor ao sistema, embora reproduzam o
valor presente nos meios que lhe criaram (amortização dos custos). Essas
mercadorias têm preço, podem ser comercializadas, podem retornar da
circulação sob a forma de um quantum monetário, mas são
inteiramente desprovidas de valor. Portanto, ainda que do ponto de vista
do produtor individual elas apareçam como lucrativas, não representam
nenhum acréscimo à massa global de valor, não são capazes de manter a
reprodução ampliada do capital. É importante verificar, de imediato,
essa relação entre preço e valor pois suas implicações são amplas,
provenientes dessa diferença aparentemente banal e pouco importante
entre medida de valor e padrão de preços.6
11Além da função de medida do valor, o dinheiro realiza também a função de meio de circulação.
Isto é, o dinheiro pode ser verdadeiramente o nexo mediador entre todas
as mercadorias. Como é equivalente a qualquer mercadoria, um
determinado produto pode se metamorfosear em dinheiro e, através deste,
transformar-se em qualquer outro produto. Marx analisou em especial essa
função aparentemente simples do dinheiro, principalmente o transtorno
que provoca em toda a lógica social: de mero mediador entre mercadorias
equivalentes segundo o tempo de trabalho nelas contido, o dinheiro
torna-se o princípio e o fim de toda a dinâmica social, fazendo da
finalidade social a sua própria multiplicação. Mas há elementos nessa
reflexão explorados de modo substancial por David Harvey que demonstram
já as implicações espaciais dessa função do dinheiro: como mediador no
mundo das mercadorias, o dinheiro separa temporal e espacialmente o
processo de venda do processo de compra, na medida em que, consoante com
sua primeira função, um indivíduo pode portar o dinheiro como medida do
valor e, portanto, só lançá-lo de volta ao mercado assim que achar
aquilo que lhe agrada no mundo das mercadorias. Ora, isso cria
potencialidades novas: ao invés de estocar mercadorias que possam
estragar, posso vendê-las imediatamente e guardar apenas o dinheiro como
a síntese da riqueza produzida. Mas também complicações absurdamente
problemáticas: posso reter dinheiro e outro vendedor não consegue vender
suas mercadorias, implicando em prejuízos em sua produção,
transformando sua produção em tempo de trabalho inutilmente despendido.
- 7 Comentamos essa condição para a crise e seu desdobramento real na apresentação que fizemos sobre a (...)
12A
separação entre o momento de compra e venda, realizado pelo dinheiro,
cria as condições para a crise. Mas é preciso ressaltar, contudo, que
não é o dinheiro responsável pelas crises – embora ele seja seu vetor. A
crise é apenas o desdobramento inevitável, através da tensão estendida
entre mercadoria e dinheiro, das contradições internas da própria
mercadoria (valor de uso e valor, forma e matéria). “Na crise, a
antítese entre a mercadoria e sua figura de valor, o dinheiro, é elevada
a uma contradição absoluta” (Marx, 1985a: 116). Dinheiro acumulado de
um lado e mercadorias paradas de outro são a manifestação empiricamente
dramática da contradição entre a forma abstrata e antissocial do valor e
a natureza sensível do mundo material.7
13Aqui
fica patente outro uso que pode ser dado ao dinheiro enquanto tal,
proveniente de sua função como medida de valor: o entesouramento. Se o
dinheiro fica retido em uma determinada esfera apenas como medida de
valor, esperando um momento propício para seu uso ou mesmo com a
irracionalidade da acumulação monetária direta, então o seu caráter de
síntese abstrata da riqueza social entre em contradição com sua função
de mediador das riquezas concretas. A contradição leva ao paroxismo:
acumula-se riqueza em forma monetária sem que se possa desfrutar
propriamente dessa riqueza. Marx tem várias passagens ironizando a
figura do entesourador, recorrendo a consagradas personagens literárias
para dar conta desse abjeto indivíduo que “abraça com seriedade o
evangelho da abstenção” (Marx, 1985a: 113).
- 8 Sobre isso ver o último livro de Robert Kurz (2014), principalmente os capítulos 4 e 5. Essa passa (...)
14Sua
ironia, entretanto, resvala em uma interpretação histórica que pode ser
criticada. Embora sem dúvida a figura de “vender muito e comprar pouco”
(Marx, 1985a: 113) seja comum a diversas sociedades antes da formação
da sociedade capitalista, não parece que seja correta sua interpretação
de que em sociedades passadas o “dinheiro valia como figura alienada de
todas as coisas” (1985a: 112). A não ser que se compreenda o papel das
relações religiosas nessa figuração, pois a historiografia recente tem
demonstrado o papel sacrificial do dinheiro em sociedades em que o
mercado enquanto tal não existia – dinheiro desprovido, portanto, de
qualquer identidade conceitual com a “medida de valor moderna”.8
Nessa linha interpretativa, Marx acredita que o entesourador é apenas
uma forma inicial e irracional que dá passagem ao capitalista enquanto
tal, que acumula dinheiro não pela sua retenção, mas pelo seu constante
investimento.
15Nessa
forma avara fica nítido como o dinheiro, uma mercadoria autonomizada
posta ao lado das demais mercadorias, assume um gigantesco poder,
medindo “o grau de sua força de atração sobre todos os elementos da
riqueza material” (Marx, 1985a: 113). Contudo, isso ainda não é a
expressão máxima do poder assumido pelo dinheiro. O próprio capitalista é
a expressão mais desenvolvida desse poder, na medida em que a força
social concentrada não fica parada em suas mãos, mas mobiliza diversas
mercadorias (máquinas, matéria-prima, força de trabalho) e com isso
produz mercadorias com um valor ainda maior do que o inicialmente
investido em forma monetária (mais valor). Essa capacidade de
multiplicar o dinheiro através de sua metamorfose em várias mercadorias
se deve à força de mobilizar uma mercadoria especial (força de trabalho)
capaz de gerar mais valor do que o valor que efetivamente custa. O
princípio e o fim da sociedade são ditados pelo dinheiro, mas não sob a
forma imediata de transmutar-se em mercadorias equivalentes, e sim com a
capacidade de multiplicar-se – a forma dinâmica de acumulação ampliada.
16Através
da cisão entre o momento de venda e momento de compra, fica evidente a
capacidade que o dinheiro passa a ter de fragmentar a realidade
burguesa. Trocar mercadorias por dinheiro se torna algo distinto de
trocar dinheiro por mercadorias. Compra e venda se tornam diferentes.
Isso cria também a condição para separar e afastar, temporal e
espacialmente, o momento de comprar do momento de pagar!
17Um
indivíduo pode adquirir mercadorias sem transferir imediatamente
dinheiro para aquele que as vende, seja porque o valor dessas
mercadorias é alto, seja porque o consumo delas será demorado e se
estenderá por longos períodos, ou mesmo porque será através do consumo
dessas mercadorias que o comprador poderá obter o dinheiro necessário
para pagá-las. Assim, o vendedor adianta as mercadorias, tornando-se
credor; o comprador firma um compromisso de pagamento, torna-se devedor.
O dinheiro não paga imediatamente a mercadoria – pode fazê-lo
parcialmente através de diversos pequenos pagamentos ou então somente
depois de determinado prazo acertado. Com o acordo assumido pelo
pagamento, o comprador se compromete a transferir futuramente dinheiro
para seu parceiro no negócio, ao vendedor, que tem a garantia de receber
futuramente pelas mercadorias que já alienou. O dinheiro, nesse caso,
não serve como meio de circulação, pois na verdade as mercadorias já
circularam, mudaram de proprietário. O dinheiro converte-se em meio de pagamento. Pagamento de um compromisso firmado, uma dívida assumida, retribuição por um adiantamento de mercadorias.
18O
mesmo pode ocorrer num sentido inverso: dinheiro pode ser adiantado ao
vendedor de mercadorias sem que sua contrapartida seja encaminhada. Um
produtor de determinada mercadoria pode precisar de recursos adiantados
para colocar seus meios de produção para funcionar (remunerar
funcionários, comprar matéria-prima, pagar a conta de luz). Assim,
dirige-se a um emprestador que lhe fornece de modo adiantado os recursos
monetários que vai precisar. Ao fim de um determinado tempo, o acordo
firmado pode ser fechado com a entrega das mercadorias, sua circulação
efetiva ou, o que é mais comum, com a devolução dos recursos adiantados
acrescidos de uma quantia a mais de dinheiro. Temos aqui a origem dos juros
– a forma de remuneração de capital emprestado, isto é, de adiantamento
de dinheiro. No caso específico, os juros, o dinheiro pago pelo uso do
dinheiro de outrem, não passa da dedução do lucro obtido através da
utilização de meios de produção para produzir mercadorias. A opção para o
pagamento do recurso adiantado pode ser a entrega das mercadorias assim
que produzidas ou a devolução de dinheiro acrescido de juros – de
qualquer maneira, as próprias mercadorias produzidas podem ser a
garantia de que o emprestador retomará seu dinheiro adiantado.
- 9 “Moeda de crédito têm a sua origem em letras de câmbio e notas de crédito contratadas privadamente (...)
19Esse
exemplo demonstra muito claramente como o dinheiro, originado do mundo
das mercadorias, distancia-se dessas e passa a dominá-las, criando um
complexo de formas que ultrapassam a mera função de representação de
valor. Essa complexidade é tal que do próprio sistema erigido pelo
dinheiro surge um novo sistema – o de crédito. Surge o sistema de
adiantamento, empréstimo, remuneração e compensação de créditos e
débitos. Isso porque se as mercadorias ainda não produzidas podem se
tornar a garantia de um emprestador, então os documentos firmados no
empréstimo inicial podem se tornar o certificado da propriedade futura
dessas mercadorias, assim como um contrato firmado para pagamento futuro
de mercadorias já adiantadas pode se tornar uma letra de câmbio. A
partir dessas formas simplórias de moeda de crédito, surgem
novas complexidades na relação entre mercadoria e dinheiro, pois um mero
documento (certificado ou letra de câmbio) pode circular ao lado das
demais mercadorias e ao lado do dinheiro,9 servindo esse mero papel como medida de valor, meio de circulação, meio de pagamento ou dinheiro mundial.
20Esta
última função do dinheiro foi pouca desenvolvida por Marx mas já
adiantada em suas várias reflexões sobre a complexidade do sistema
monetário: o dinheiro supera as fronteiras nacionais e pode ser
utilizado tanto como meio geral de pagamento, como meio universal de
compra e materialização geral da riqueza – operando aí na compensação de
saldos internacionais, compra de produtos diferentes no mercado de
outras nações e ainda para a transferência de riqueza sob forma de
empréstimos, subsídios, financiamento de guerras etc.
21É
essa complexidade assumida pelo dinheiro -- de uma mera mercadoria
fixada entre outras até a plenitude de representante universal da
riqueza -- que define a própria mudança qualitativa em sua forma. De
meio de pagamento, o dinheiro se converte em dinheiro de crédito; como
dinheiro de crédito, suas funções se ampliam para além do mero
adiantamento de mercadorias ou de certificado de dívidas,
transformando-se em letras para compensação, título de renda etc.
O dinheiro de crédito se origina
diretamente da função do dinheiro como meio de pagamento, já que são
colocados em circulação os próprios certificados de dívidas por
mercadorias vendidas, para transferir os respectivos créditos. Por outro
lado, ao estender-se o sistema de crédito, estende-se a função do
dinheiro como meio de pagamento. Enquanto tal, recebe forma própria da
existência, na qual ocupa a esfera das grandes transações comerciais,
enquanto as moedas de ouro e prata ficam confinadas à esfera do varejo.
Com certo nível e volume de
produção de mercadorias, a função do dinheiro como meio de pagamento
ultrapassa a esfera da circulação de mercadorias. Ele torna-se a
mercadoria geral dos contratos (Marx, 1985a: 117).
- 10 “... dado que num país é o ouro, e em outro é a prata que desempenha essa função, no mercado mundi (...)
22Ao
especificar a diferença entre medida de valor e padrão dos preços,
supomos o dinheiro na forma da moeda metálica, isto é, até o momento
tratamos o equivalente geral como a mercadoria ouro ou prata. No
desenvolvimento histórico do mercado, esses materiais foram os mais
adequados ao papel formal que deveriam cumprir – são mercadorias de
fácil utilização, de grande valor (uma pequena fração de cada um exige
um longo tempo de trabalho), de fácil divisão e fracionamento, assim
como grande durabilidade. Suas formas físicas correspondiam, assim, às
exigências funcionais da forma dinheiro. Ao chegar ao ápice das funções
do dinheiro, Marx também opera o conceito de dinheiro mundial através
das moedas metálicas, pois elas podiam ser diretamente aceitas em
transações internacionais, bastando as nações derretê-las e colocar o
selo com o nome que lhes convir.10
23O
salto do sistema monetário para o sistema de crédito é, em linhas
gerais, a superação da forma material da moeda por uma forma puramente
fiduciária – a moeda de crédito. Contudo, mesmo na forma de moeda de
crédito, ou seja, notas promissórias, letras de câmbio, certificado de
dívidas etc., o dinheiro representa uma determinada quantidade de
mercadoria que lhe sustenta enquanto medida de valor, sejam elas
mercadorias adiantadas ou prometidas, seja a mercadoria-dinheiro (ouro,
prata) emprestada ou a ser reembolsada.
24Evidente
que, como promessa de pagamento, recebimento, adiantamento ou
compromisso de fornecimento de mercadorias, as moedas de crédito podem,
de uma hora para outra, virar mero papel sem valor algum, pois o
compromisso estabelecido previamente pode ser rompido ou nunca vir a ser
cumprido. Isso cria dificuldades que não apenas repercutem as
contradições já existentes entre valor de uso e valor, mercadoria e
dinheiro, como adicionam complexidades novas como essa tensão entre
dinheiro e dinheiro de crédito. Como um “sistema nervoso central” (EI:
270; EM: 274; EB: 358), o sistema de crédito sintetiza e amplifica todas
as contradições do capitalismo.
25Uma
das formas de amenizar essas tensões é a criação das instituições
bancárias, cuja função precípua é converter moeda de crédito aceita
apenas por um grupo seleto de indivíduos -- que confiam no vendedor ou
comprador particular envolvido na negociação ainda não totalmente
encerrada (adiantamento de mercadoria ou pagamento antecipado) – por
moeda de crédito com um grau de confiança muito mais largo. Essa
confiança surge porque a instituição bancária deve conter, a princípio,
os recursos necessários para saldar os compromissos assumidos por
outros, ou porque sua abrangência é muito maior, portanto seus
documentos podem ser aceitos por indivíduos sem necessidade de nenhuma
confiança pessoal nos envolvidos em determinada negociação.
- 11 A tradução brasileira comete aqui grave erro invertendo o sentido de toda a reflexão de Harvey sob (...)
Quando os bancos emitem seus
próprios certificados (notes) ou permitem cheques baseados nestes, eles
substituem com a sua própria garantia a de inumeráveis capitalistas
individuais. Quando o sistema de troca é relativamente simples, o
conhecimento pessoal e a confiança dos capitalistas individuais pode
garantir a qualidade das dívidas contraídas, mas em um sistema complexo
de mercado isto não pode formar um fundamento adequado para o sistema de
crédito. O banco trata de institucionalizar o que anteriormente era um
assunto de confiança e credibilidade pessoal entre os capitalistas
individuais. A maioria das letras de câmbio que se originam de
capitalistas individuais será livremente convertida em dinheiro
bancário. Mas se o banco tem de manter a qualidade de sua própria moeda,
deve conservar o direito de recusar aquelas letras que considere
arriscadas ou sem valor. O banco monitora a credibilidade dos
capitalistas individuais e atua como intermediário destes (EI: 247; EM:
252; EB: 330).11
26Ora,
mas esse método de amenizar as possibilidades de uma moeda de crédito
não ter lastro material (em mercadorias) ou monetário (dinheiro)
oferecido pelo sistema bancário cria novas complexidades. Ao reunir uma
série de moedas, títulos, certificados e promessas de pagamentos, o
banco concentra uma grande quantidade de moeda que se desvinculou de sua
“base material”, ou seja, seus fundamentos na mercadoria (seja a
mercadoria enquanto tal ou a mercadoria-dinheiro). Para evitar uma
ampliação desmesurada desses papéis, o banco precisa ter uma certa
quantidade de moeda sonante em seus cofres, para garantir as conversões
da moeda creditícia em mercadoria-dinheiro. Contudo, não é possível para
o banco estabelecer uma relação direta entre o volume de crédito
fornecido e os depósitos correntes, pois a moeda de crédito, em sua
própria forma, é a síntese monetária de uma futura produção ou
compensação. Portanto, não é possível, pela própria natureza do crédito,
que toda sua face nominal seja diretamente expressão de moeda efetiva.
Isso seria um contrassenso que tornaria o próprio dinheiro de crédito
dispensável. Assim como ocorre com o depósito comum nos bancos
comerciais, em que a soma total dos depósitos nunca está imediatamente
disponível para ser sacada, o mesmo ocorre em relação à correspondência
das moedas de crédito fornecidas pelos bancos e o dinheiro disponível
para quitá-las.
Cada banco deve manter uma
reserva de ouro para este propósito. Sob condições normais, a reserva de
ouro somente precisa ser uma pequena proporção de valor total das
mercadorias em circulação, o suficiente para balancear as contas entre
os bancos. Entretanto, quando está sob dúvida o valor das mercadorias no
mercado, a necessidade de uma reserva adequada de mercadoria-dinheiro
se torna urgente – do contrário, o banco pode falir. Por outro lado,
transportar ouro e armazená-lo é complicado, arriscado e ineficiente.
Outro caminho tem de ser encontrado para fazer com que as diversas
moedas bancárias possam ser livremente convertidas umas nas outras (EI:
247; EM: 252; EB: 331).
27O
problema é ainda mais grave porque os bancos são instituições
capitalistas como qualquer outra – com a diferença de que a mercadoria
que negociam é exatamente essa mercadoria especial, dinheiro. Isto é, o
capital bancário é aquele que negocia o dinheiro como uma mercadoria,
enquanto o resto da sociedade precisa da mercadoria enquanto dinheiro
para fazer suas compras, contratos, consumo etc. Isso exige uma atuação
dinâmica do banco no mercado, pois ele precisa competir com outras
instituições concorrentes que negociam a mesma mercadoria. As
implicações da concorrência inerente ao sistema bancário acabam por
ampliar as tensões presentes nessa relação inicialmente já problemática
entre mercadoria e dinheiro, só que agora na forma da contradição entre
dinheiro enquanto mercadoria (dinheiro como meio) e dinheiro enquanto
dinheiro (dinheiro como fim). Através da oferta de meios de
financiamento e de taxas de juros mais ou menos competitivas, os bancos
podem ampliar a desproporção entre o lastro material e as moedas de
créditos, ofertando mais volume de crédito para compensar as reduções
nas taxas de juros frente à concorrência. Através das diversas formas de
financiamento da produção, do consumo e mesmo de financiamento da
administração pública, amplia-se o fosso entre crédito e depósitos.
Diante de dificuldades, um banco pode solicitar recursos de um
concorrente para saldar seus próprios compromissos, mas mesmo que isso
implique na alienação dos seus rendimentos (juros) para quem lhe
socorre, o intervalo entre os depósitos materiais e o crédito gerado
continua sendo significativo. Essa solução de um banco socorrer a outro é
temporária, pois recursos são apenas transferidos (no caso de o
empréstimo ocorrer em moeda metálica) ou então o volume de crédito é
ampliado ainda mais na operação (no caso de o empréstimo ocorrer por
meio da emissão de crédito de um banco para outro). Isso cria tensões
crescentes, pois as divergências entre crédito e dinheiro apenas se
ampliam, tornando essas dificuldades epidêmicas. Para isso surge o banco
central.
28No
início, as funções de um banco central foram realizadas por alguma
instituição bancária privada ou por um conjunto delas (EI: 248; EM:
252-253; EB: 331), mas ainda assim eram obrigações limitadas frente
àquelas que assumiram no século XX os bancos centrais estatais. Mas
desde o início uma de suas primeiras exigências fundamentais, sem
dúvida, foi a garantia da qualidade do dinheiro corrente. No caso em que
o dinheiro ainda era a moeda metálica, comprovar sua pureza na
quantidade estipulada de ouro ou prata; no caso das moedas de crédito em
circulação, assegurar que os bancos que as emitem possam ter algum tipo
de depósito absoluto final para recorrer caso sua confiabilidade esteja
em xeque. Assim, a função de um banco central é ampliar e aprofundar
ainda mais o grau de confiança das diversas formas de dinheiro em
circulação, principalmente assegurar que, dada a distância inevitável
estabelecida entre moeda de crédito e seus fundamentos materiais, esse
intervalo possa ser administrado regularmente através das compensações
da riqueza geral existente na sociedade e parcialmente depositada nos
bancos particulares.
Um banco central de algum tipo
pode resolver este problema. Ele fornece os meios para os bancos
equilibrarem suas contas entre si sem ter que remeter ouro de um lado a
outro. Para fazer isso, o banco central deve possuir dinheiro de alta
qualidade que pode garantir a segurança das transações entre os bancos. O
dinheiro dos bancos individuais é livremente conversível em moeda do
banco central somente quando o banco central está satisfeito com a
qualidade ou a solidez do dinheiro do banco individual. O banco central
forma o próximo nível na hierarquia das instituições monetárias. A
partir desse posto de comando, o banco central procura garantir a
solvência e a qualidade da moeda dos bancos privados. (EI: 247; EM: 252;
EB: 331).
- 12 “O resultado, porém, é que ‘o banco central é o eixo do sistema de crédito’ e ‘a reserva de metal, (...)
- 13 Daqui poderia surgir uma importante discussão sobre a lógica empregada por Marx para expor e criti (...)
29O
problema é que, como se pode imaginar a partir dessa reflexão, o banco
central é apenas um entre outros bancos, embora seja uma “instituição de
ordem superior” (EI: 248; EM: 254; EB: 333). Apesar de ter passado a
desempenhar algumas funções exclusivas – definição da taxa dos juros dos
títulos de dívida emitidos pelos governos, lastro e emissão das moedas
nacionais etc. – seu mecanismo de funcionamento é o mesmo que os demais,
consistindo basicamente em operar com a capacidade do dinheiro em
funcionar como meio de pagamento e medida de valor.12
Um dos principais modos do banco central realizar essa garantia em
última instância do sistema de crédito é através da obrigação de que os
bancos particulares entreguem uma fração de seus depósitos em moeda. Ou
seja, a transferência compulsória de parte dos depósitos em dinheiro
para o banco central lhe permite operar com recursos para saldar
possíveis lapsos criados entre a oferta de crédito realizada por uma
instituição particular e suas obrigações. No fundo, trata-se de garantir
que o dinheiro de crédito que brota do processo mesmo de circulação das
mercadorias e do dinheiro seja o espelho, em algum momento, de uma
riqueza real existente, ou seja, uma mercadoria que tem a função de
servir como dinheiro. O que temos aqui é a contradição estabelecida
entre, de um lado, a economia capitalista ser uma economia real em que
riqueza é mobilizada sob a forma de mercadoria e uma economia monetária
em que a riqueza é espelhada não apenas no dinheiro enquanto tal (a
moeda metálica que é uma mercadoria) mas em diversas formas de dinheiro
de crédito.13
Embora tenhamos grosseiramente
simplificado a estrutura e, certamente, abstraído as complexidades das
circunstâncias históricas, o caráter hierárquico de instituições
monetárias pode ser claramente estabelecido como o corolário necessário
para a existência de moedas de crédito. A necessidade para tal ordem
hierárquica pode ser rastreada até a subjacente contradição entre o
dinheiro como medida de valor e dinheiro como um meio de circulação.
Embora a moeda de crédito apareça soberbamente adaptada para funcionar
como meio quase sem atrito de circulação, sua capacidade de representar
os valores "reais" das mercadorias está perpetuamente sob suspeita. A
noção de alguma medida absoluta de valor pode parecer redundante em
qualquer nível particular da hierarquia, mas o problema da qualidade do
dinheiro permanece – e o que é essa qualidade se não uma garantia de que
a quantia nominal da moeda de crédito, de fato, representa os valores
reais das mercadorias? (EI: 249; EM: 254; EB: 333).
- 14 “... a maioria dos bancos centrais é separada dos outros bancos através da garantia de certos priv (...)
30Nem
sempre, contudo, o próprio banco central consegue realizar o controle e
regular a oferta de crédito produzida pelas instituições particulares
com o depósito existente de dinheiro. No caso de explosão de uma crise
nos mercados de crédito, contágio que leva à cobrança generalizada ou à
venda indiscriminada de moeda de crédito e absoluta falta de confiança, é
perfeitamente normal – e catastrófico – que o volume de crédito
produzido pelas diversas formas de moeda, compromissos, letras e
certificados emitidos pelos bancos seja incompatível com o dinheiro
disponível em ouro ou prata. Ocorre aqui o “salto brusco do sistema de
crédito para o sistema monetário [que] acrescenta o susto teórico ao
pânico prático: e os agentes da circulação estremecem perante o mistério
impenetrável” (Marx, 1985a: 116). É absolutamente necessária a
desvalorização dos preços constantes nas moedas emitidas
indiscriminadamente, forçando assim um ajuste entre a massa monetária
creditícia e a massa de moeda metálica. Como guardião da moeda metálica,
o banco central pode agir seletivamente optando por aquelas
instituições que são as mais “responsáveis” e foram afetadas pela
avalanche provocada por aquelas mais frágeis e “irresponsáveis”, que
emitiram crédito pouco confiável.14
Entretanto, mesmo que as responsabilidades sejam apuradas e opções
sejam feitas na hora de mobilizar os recursos de emergência, quase
sempre uma parte do dinheiro público arrecadado dos impostos acaba sendo
desviada para que o sistema de crédito não desmonte sobre suas próprias
bases. Recai sobre o banco central o peso de se comprometer com
instituições financeiras sob a justificativa de que o estrago seria
ainda maior caso implodissem. No fundo, o banco central é um banco como
qualquer outro, mas ao invés de recorrer aos depósitos de outra
instituição para cobrir o buraco aberto entre crédito e dinheiro, ele
recorre à sociedade como um todo.
31Como
dito acima, toda essa discussão ainda é feita nos marcos de uma
situação histórica em que o dinheiro é imediatamente metal, portanto, o
dinheiro é uma mercadoria dotada de valor, funcionando como medida de
valor devido ao fato de ser a síntese de um tempo de trabalho
socialmente necessário para a sua produção. Assim, a tensão entre moeda
de crédito e dinheiro, ou moeda metálica, é evidente: de um lado temos
apenas uma representação da riqueza mercantil, moeda aceita nas
transações diárias apenas na medida em que será futuramente convertida
em mercadoria ou em dinheiro; de outro temos a mercadoria propriamente
dita, fundamento daquele crédito gerado. Isso significa que, em
determinadas condições históricas – mais precisamente: até um determinado nível de desenvolvimento capitalista,
os depósitos que formam a base que sustenta a economia de crédito
desenvolvida com o desprendimento das moedas creditícias é a moeda
metálica. São as moedas de ouro que ainda seguram a linha que impede o
crédito de flutuar folgadamente. Como equivalente universal da riqueza e
medida de valor, o ouro pode servir como o anteparo final de toda essa
emissão desenfreada de moedas que se encaixam no intervalo entre a
entrega de mercadorias e o pagamento ou o empréstimo de dinheiro e sua
restituição. Como meio de pagamento e dinheiro mundial, o ouro é o
fundamento último da economia desdobrada sobre a contradição entre valor
e valor de uso, mercadoria e dinheiro.
32O
problema é que o ouro só foi utilizado como moeda corrente durante
determinada etapa da história capitalista. Uma série de exigências e
limitações históricas fizeram com que o ouro aos poucos fosse
simplesmente deixado depositado nos bancos – e os bancos centrais
começaram a concentrar os estoques de ouro devido às funções de
garantidores últimos da qualidade da moeda. Ao invés da circulação
direta de ouro, papel-moeda passou a circular representando uma
determinada quantidade desse metal. O papel-moeda, assim, representava
uma determinada quantidade de riqueza real fora de seu corpo material –
enquanto o ouro ainda era, ao mesmo tempo, a riqueza monetária e
material básica.
33Como
toda moeda que representa a perspectiva futura de pagamento ou de
entrega material de mercadorias, o papel-moeda nada mais é do que uma
convenção baseada na confiança de sua possibilidade de resgate, a
conversão em ouro. Com o tempo, contudo, assim como ocorreu com o ouro
que devido a determinadas circunstâncias deixou de ser nominalmente
idêntico à sua quantidade real, um banco central pode emitir papel-moeda
para além da correspondência direta com os depósitos em ouro em seu
poder. A massa monetária disponibilizada pode ser maior -- para
incentivar o crédito, ampliar o poder de consumo ou afetar de alguma
maneira o processo econômico – do que a sua base real em ouro. Isso
significa que o próprio dinheiro deixa de ser totalmente conversível em
ouro: assim como ocorre no dia-a-dia de uma instituição bancária comum
que emite moedas de crédito para garantir uma negociação ainda por
realizar, o forno central do sistema monetário, o banco central, pode
emitir papel-moeda de acordo com as necessidades ditadas em determinado
momento. Em ocasião de grandes turbulências financeiras, com o próprio
colapso do mercado em curso, com a quebra progressiva das instituições
bancárias, um banco central pode inclusive desincumbir-se da obrigação
de fornecer depósitos metálicos para os bancos em dificuldades e
simplesmente lançar papel-moeda para apagar o incêndio financeiro. Ou
seja, frente ao risco de esgotamento das bases reais da riqueza
monetária devido aos rombos acentuados no mercado de crédito, um banco
central pode romper a conversibilidade total da moeda e lançar
indiscriminadamente papel-moeda simplesmente como uma moeda de crédito
qualquer no mercado. A diferença consiste, nesse caso, que diferente de
um dinheiro de crédito comum emitido por um banco qualquer, o
papel-moeda emitido pelo Estado é amplamente aceito em suas fronteiras.
Mas, mesmo isso, isso pode não conseguir seu intento, já que o risco
dessa emissão desenfreada é exatamente a perda de poder de compra do
papel-moeda, sua desvalorização e a pouca confiança que produz.
34Na
verdade, isso não apenas se tornou uma estratégia recorrente em momentos
de dificuldade, como desde 1971 a economia mundial como um todo já não
tem mais as bases reais de um dinheiro que seja ao mesmo tempo
mercadoria. Antes realizada isolada e temporariamente em momentos de
dificuldade financeira ou conflagração – por exemplo, entre as duas
guerras mundiais --, a desvinculação das moedas correntes do ouro se
tornou uma realidade cotidiana assim que os EUA romperam unilateralmente
com esse lastro. Dado que desde os acordos de Bretton Woods o dólar era
a moeda hegemônica e o fundamento das demais moedas nacionais, o fim do
lastro metálico do dólar significou o fim do lastro de todas as moedas e
desde então a determinação da qualidade dessas moedas se tornou um
problema mundial. O fim do dinheiro-mercadoria como referência
significou o rompimento da representação da riqueza de sua base
propriamente dita e uma instabilidade permanente no sistema monetário
mundial.
Quando a maior parte das
reservas mundiais de ouro estavam trancados no Fort Knox e os Estados
Unidos tinham uma posição dominante em termos de balança de pagamentos e
comércio mundial, o padrão dólar fixado no Bretton Woods Agreement de
1944 pode prevalecer e o dólar tornou-se, com efeito, o equivalente
universal. Mas a deterioração da balança de pagamentos e a concorrência
cada vez mais feroz da Alemanha Ocidental e Japão fizeram para os
Estados Unidos, internacionalmente, o que a concorrência dos bancos do
centro-oeste e do extremo-oeste fez para JP Morgan. A subsequente
desvalorização do dólar em 1971 assinalou o colapso do Bretton Woods
Agreement e a busca de uma nova ordem monetária internacional começou.
Uma série de expedientes paliativos foram criados e tentativas de
estabelecer algum tipo de papel-moeda de qualidade superior
supranacional – como os direitos especiais de saque do Fundo Monetário
Internacional ("papel-ouro") -- foram feitas. Mas, como De Brunhoff
aponta, essas tentativas foram fundadas sobre a proposição falaciosa de
que uma forma de moeda de crédito poderia funcionar como a medida final
do valor. Desde então nenhuma maneira foi encontrada para garantir a
qualidade das moedas nacionais, exceto amarrá-las à produção de alguma
mercadoria específica (EI: 249; EM: 253; EB: 332-333).
35Aqui,
uma série de questões poderiam ser desenvolvidas, como, por exemplo, o
fato de que através da emissão de papel-moeda sem conversão proporcional
ou mesmo sem conversão alguma o Estado pode ampliar a oferta disponível
de crédito conforme seus interesses. Isso significa que o Estado é a
instituição que mais facilmente pode simular a riqueza em forma
monetária, pode criar riqueza monetária sem base real. O Estado é um dos
principais responsáveis pela ficcionalização do capital.
As instituições financeiras, através das moedas de crédito podem também
ampliar, inflar e reduzir a riqueza monetária simulando dinheiro
através dos sucedâneos das moedas de crédito que são aceitas
regularmente no mercado. Na verdade, a própria moeda de crédito enquanto
tal, através da função do dinheiro como meio de pagamento, é o
fundamento e a origem do capital fictício. A partir da
possibilidade contida nos certificados, letras de câmbio, títulos e
compromissos de pagamento, uma riqueza futura pode ser experimentada já
no presente como se existisse de fato, quando na verdade o que existe é
apenas a sua promessa futura.
- 15 Aqui há um pequeno deslize conceitual da parte de Harvey: não sendo o resultado de trabalho materi (...)
A potencialidade para o
"capital fictício" encontra-se no interior da própria forma dinheiro e
está particularmente associada ao surgimento da moeda de crédito.
Considere o caso de um produtor que recebe crédito em troca da garantia
de uma mercadoria não vendida. O dinheiro equivalente à mercadoria é
adquirido antes de uma venda real. Esse dinheiro pode então ser
utilizado para comprar novos meios de produção e força de trabalho. O
credor, no entanto, tem um pedaço de papel cujo valor é apoiado por uma
mercadoria não vendida. Esta peça de papel pode ser caracterizada como valor fictício.
O crédito comercial de qualquer tipo cria esses valores fictícios. Se
os pedaços de papel (principalmente letras de câmbio) começam a circular
como moeda de crédito, então é valor fictício que está
circulando. Assim, abre-se a diferença entre moedas de crédito (que
sempre têm um componente fictício, imaginário) e dinheiros 'reais'
diretamente vinculados a uma mercadoria monetária. Se esse dinheiro de
crédito é emprestado como capital, ele então torna-se capital fictício (EI: 267; EM: 271; EB: 353-354).15
36Não
queremos nos estender por demais nesse ponto, bastante complexo e
talvez uma das maiores contribuições de David Harvey à crítica do
capitalismo – particularmente a relação que estabelece entre capital
fictício, renda da terra e ambiente construído das cidades. Queremos
apenas ressaltar que, na base mesma do dinheiro creditício, está dada a
possibilidade da ficcionalização do capital e todos os desdobramentos
daí decorrentes – incluindo a capitalização, isto é, a
acumulação de riqueza sem expediente produtivo algum, simplesmente pela
acumulação monetária realizada no mercado de crédito.
37O
ponto essencial é que o manejo do tempo realizado pela função meio de
pagamento, contido na forma do dinheiro, cria todas as formas possíveis
de capital fictício, o que inclui o mercado futuro de moeda, o mercado
secundário de títulos imobiliários, as diversas formas de derivativos e
até mesmo o endividamento público – quando o Estado emite títulos de
dívida pública prometendo um pagamento posterior calçado na arrecadação
futura de impostos, o que faz é exatamente a queima, no presente, de uma
riqueza que só será angariada por tributação de uma produção futura. A
complexidade dessas questões é tamanha que não podemos desdobrar nos
limites desta reflexão, portanto, vamos nos concentrar em alguns
aspectos interpretativos do caráter do dinheiro, da moeda de crédito e
dos lastros materiais da moeda presentes na obra de Harvey.
38Até aqui acompanhamos, em linhas gerais, o desenvolvimento lógico da teoria do dinheiro e do crédito tal como exposta em O Capital de Marx e apresentada por Harvey em Os Limites do Capital.
Evitamos fazer comentários críticos sobre essa apresentação porque, em
primeiro lugar, é uma das melhores interpretações disponíveis na
“marxologia” para essas questões. A exposição de Harvey está acima da
média do que é o costume no marxismo. Segundo, porque evitamos assim
perturbar o desdobramento categorial com alguma discussão lógica ou
metodológica. Evidentemente, Harvey não expõe o processo de
desenvolvimento que vai da mercadoria ao dinheiro e do dinheiro ao
crédito de modo direto e sem comentários históricos ou interpretativos,
mas evitamos até o momento considerações externas ao objeto para não
interferir na lógica contraditória inerente à teoria do dinheiro.
39Dito
isso, uma das primeiras observações a ser feita sobre o tratamento
teórico que Harvey imprime ao dinheiro e ao crédito na obra de Marx é
uma certa leitura histórica ortodoxa questionável que enxerga a economia
monetária como uma característica não exclusiva do capitalismo. Segundo
Harvey,
Marx constrói sua teoria do
dinheiro a partir de uma investigação da produção e da troca de
mercadorias, sem qualquer referência à circulação do capital. Ele toma
esse caminho porque uma economia monetária é comum a vários modos de
produção diferentes e não específica do capitalismo (EI: 251; EM: 256;
EB: 335).
40Há
aqui duas confusões que nos parecem importantes. A primeira é o fato de
que a derivação lógica do dinheiro partir da mercadoria e do valor,
abstraindo qualquer referência à circulação do capital, não implica numa
ignorância completa da circulação enquanto tal. Ou seja, é evidente que
a intenção marxiana é expor as contradições internas da mercadoria que
desembocam necessariamente no dinheiro – portanto, na
contradição externa entre dinheiro e mercadoria. Que isso seja feito, a
principio, com uma indiferença frente à circulação de capital é
imediatamente remediado, pois o segundo capítulo de O Capital, “O processo de troca”, já nos traz a interversão
entre circulação simples e circulação capitalista como pressuposto
necessário da própria forma generalizada da troca de mercadorias por
dinheiro, ou seja, de uma economia monetária. A observação que fizemos
sobre o trabalho socialmente necessário pode ser repetida aqui: embora o
dinheiro seja derivado da forma simples da mercadoria não significa que
o conjunto das mercadorias, a forma social, não esteja pressuposta nessa análise.
- 16 Segundo a interpretação rigorosa de Ruy Fausto, a seção I de O Capital aborda a circulação simples (...)
- 17 Ou seja, é a aparência necessária mas não o modo essencial como esse sistema funciona, pois essa a (...)
41A
outra observação, mais importante ainda, mas também de ordem lógica, é a
interpretação ortodoxa de que a circulação simples de mercadorias,
plano lógico por meio do qual Marx desenvolve toda a primeira seção de O Capital, seria um estágio histórico anterior à própria produção capitalista e base por meio do qual ela seria desenvolvida.16
O equívoco aqui é gigantesco e não é exclusivo de Harvey e envolve essa
categoria “circulação simples” que tem, em Marx, uma função de difícil
determinação, pois embora seja um recurso lógico (heurístico) para
apresentar as conexões internas das formas de sociabilidade burguesa, é
também uma evidência real na medida em que a concepção de uma circulação
de mercadorias onde todos interagem como proprietários autônomos e com
poderes idênticos, trocando objetos com valores equivalentes, é a aparência socialmente necessária dessa sociedade.17
42Ora, não existe nenhuma economia monetária a não ser a economia capitalista,
pois somente nessa formação social todos os objetos se transformaram em
mercadoria e, assim, podem ser trocados, podem circular num processo
global e ininterrupto. A própria ideia de circulação é estranha a
qualquer realidade pré ou não-capitalista, pois até os primórdios da
modernidade as relações mercantis estiveram presentes apenas
parcialmente e embebidas em relações culturais e religiosas cujo sentido
e objetivo era diverso da moderna troca de mercadorias. Mesmo no livro
II de O Capital, que Harvey cita em nota para comprovar essa
afirmação sobre a anterioridade das relações monetárias, é possível
verificar a visão marxiana de que economia monetária inexiste até o
desenrolar capitalista. Ao tratar exatamente da reprodução simples, Marx
mostra como, embora o uso de dinheiro preceda a produção capitalista,
apenas sob estas condições ocorre efetivamente uma circulação total das mercadorias e do dinheiro:
Na medida em que se desenvolve o
sistema de trabalho assalariado, todo produto se transforma em
mercadoria e, por conseguinte, tem de percorrer em sua totalidade – com
algumas exceções importantes – a transformação em dinheiro como uma fase
de seu movimento. A massa do dinheiro circulante tem de ser suficiente
para converter em prata as mercadorias, e a maior parte dessa massa é
fornecida em forma de salários, de dinheiro que, adiantado pelos
capitalistas industriais como forma-dinheiro do capital variável no
pagamento da força de trabalho, funciona – em sua maior parte – nas mãos
dos trabalhadores como meio de circulação (meio de compra). Isto está
em oposição total à economia natural, tal como predomina sobre a base de
todo sistema de dependência (inclusive servidão) e mais ainda sobre as
comunidades mais ou menos primitivas, existam ou não nestas relações de
dependência ou de escravatura (Marx, 1985b: 348-349).
- 18 “Mas também o sistema escravagista – à medida que é a forma dominante do trabalho produtivo na agr (...)
43Continua
Marx a demonstrar que mesmo entre os atenienses (presumido povo
comercial) e os romanos da Antiguidade, a forma básica da produção, o
escravismo, tinha sua fonte não em um mercado de força de trabalho, mas
na economia natural da pilhagem e subordinação.18
44A ideia de uma economia monetária que preceda o capitalismo é, portanto, uma interpretação enviesada da lógica de O Capital
e, principalmente, uma leitura histórica equivocada. E isso não é
apenas um pequeno deslize histórico, pois a implicação disso é a
aceitação de uma necessidade de manutenção de alguma forma de economia
monetária para além do capitalismo. Uma posição crítica seria enxergar
que o dinheiro enquanto tal não é produto histórico anterior ao
capitalismo, mas é o resultado da lógica da mercadoria levada ao extremo
da autonomização – sendo o capital fictício sua forma mais
desenvolvida, como mostra o próprio Harvey. Dito isso, nenhuma transição
pós-capitalista poderia fazer uso dessa forma ingenuamente, tomando-a
como neutra, pois isso seria incorrer numa reprodução inconsciente das
bases sociais que tornam possível a própria sociedade capitalista – o
fracasso do socialismo real teria muito a nos ensinar nesse sentido.
45As
repercussões mais avançadas – e problemáticas – dessa interpretação
talvez apareçam em recentes posicionamentos de Harvey frente à crise
financeira, quando salienta a necessidade dos grupos de esquerda de
fazer algum tipo de luta dentro do sistema financeiro, para torná-lo mais democrático e socializado.
(...) o capitalismo está
mudando, e suas formas de organização mudam algumas possibilidades. Uma
das coisas que a esquerda precisa começar a pensar é como ela pode fazer
essa luta de classes contra o sistema financeiro. Você pode fazer uma
luta contra os bônus bancários, mas será que você pode lutar contra o
sistema financeiro e transformá-lo, para que ele se torne mais
socializado e mais democrático? É uma questão enorme, porque, se este
for um instrumento de poder pra classe capitalista, é aí que você tem
que ir, pra tentar confrontar o poder do capital. Essas transformações
ocorreram em todos os tipos de área (Harvey, 2012: 23).
- 19 Diferente de Brunhoff, contudo, Rosdolsky nunca parte para uma interpretação propriamente dita da (...)
46Como
dito, essa linha de avaliação do papel do dinheiro e do crédito no
capitalismo não é exclusiva de Harvey, sendo comum à ortodoxia marxista.
É possível até mesmo identificar algumas das influências diretas nessa
sua visão. Ao longo de Os Limites do Capital, principalmente
nos capítulos em que trata do dinheiro e do crédito (capítulos 9 e 10),
Harvey utiliza abundantemente a obra da teórica marxista estruturalista
Suzanne de Brunhoff. Logo no início do capítulo 9 (“Dinheiro, crédito e
finanças”), Harvey destaca a importância dessa autora francesa em sua
análise do dinheiro em Marx, indicando ainda a importância de Roman
Rosdolsky.19
- 20 O livro de Brunhoff foi alvo de um debate entre Leda Maria Paulani (1994) e Maria de Lourdes Rolle (...)
47No
Brasil, Suzanne de Brunhoff é conhecida mais pela publicação de algumas
obras sobre o sistema de crédito, particularmente um livro de grande
repercussão intitulada A moeda em Marx, publicada na década de 1970.20
Embora com algumas importantes questões levantadas em torno da relação
entre sistema monetário e sistema de crédito, Brunhoff comete alguns
deslizes históricos e teóricos graves. O primeiro deles, e fonte das
dificuldades presentes na obra de Harvey, é ver o capitalismo como um
caso particular das leis gerais da circulação monetária. Existe aqui,
portanto, uma concepção do capitalismo como espécie do gênero economia
monetária: “Marx relaciona o crédito com o modo de produção capitalista e
o distingue da noção geral de moeda, válida para toda a produção
mercantil” (Brunhoff, 1978: 17-18). Estamos às voltas com a visão de uma
circulação simples como estágio anterior à economia capitalista
propriamente dita – esta corresponderia a uma condição nova, devido à
transformação do dinheiro em capital, criando novas atribuições e
problemas às “leis gerais da circulação monetária” (1978: 15).
- 21 Como se sabe, segundo Althusser, Marx fundou uma ciência nova, a “ciência da história das ‘formaçõ (...)
48O
problema metodológico principal no texto de Brunhoff é tomar a teoria
de Marx como uma teoria geral da sociedade, seguindo à risca a visão de
Althusser.21 A
partir dessa teoria geral e da forma geral de socialização encarada por
Marx, seria possível compreender as particularidades da sociedade
capitalista. O que Brunhoff faz, assim, é transtornar a teoria crítica
do capitalismo desenvolvida por Marx e transformá-la numa interpretação
positivada da história da humanidade, universalizando, com isso, formas
sociais que são exclusivas à sociedade moderna. Brunhoff faz um
estruturalismo grosseiro que naturaliza as relações de troca, transforma
a teoria da moeda, no primeiro livro de O Capital, na “versão
primitiva do sistema monetário” (1978: 81) e acaba por fixar quase
antropologicamente o trabalho abstrato como modelo geral de
sociabilidade, medido pela moeda.
49Ao
comentar a crítica de Rosa Luxemburgo a Marx, Brunhoff argumenta que há
em sua abordagem um erro em querer transformar a produção de ouro numa
seção particular da economia e, deste modo, numa espécie de mercadoria
como as outras (meios de produção, bens de consumo). Isso retiraria da
moeda o seu caráter opositivo às demais mercadorias, ainda que nessa
visão estivesse correta a idéia de um
meio de circulação independente
do capitalismo e muito mais antigo que este. A moeda seria assim
incorporada nos esquemas de reprodução capitalista, de uma maneira mais
adequada ao seu próprio conceito, como encarnação específica do
‘trabalho social in abstracto’ em qualquer produção mercantil (Brunhoff, 1978: 66).
- 22 Para Brunhoff o tipo de abstração desenvolvido por Marx no início de O Capital é puramente lógica, (...)
- 23 “Não há na teoria marxista, por exemplo, algo como o trabalho abstrato por fora das múltipas ativi (...)
50O que temos aqui, obviamente, é o tratamento da teoria do dinheiro dos primeiros capítulos de O Capital
como algo externo ao próprio capital – e não a partir de uma
anterioridade lógica fundante. Isso significa que também o trabalho
abstrato se torna algo universal. Nisso se perde a compreensão do
caráter verdadeiramente original e socialmente destrutivo da produção em
condições capitalistas, o fato de as relações sociais se converterem na
atividade abstrata de puro dispêndio de tempo de trabalho. A abstração
que caracteriza o trabalho abstrato não é enxergada como uma “abstração
real”, realizada cotidianamente por trás das costas dos indivíduos, mas
apenas como uma abstração mental, idealizada, que confere a
possibilidade de igualdade dos produtos dessa atividade no mercado.22
David Harvey não está isento dessa visão simplificada da abstração
promovida pelo trabalho, portanto, os desdobramentos mais avançados de
sua teoria podem levar a caminhos tortuosos.23
51No
fundo, o que temos aqui é uma teoria que interpreta o capitalismo como
uma forma entre outras de economia monetária que se serviu do dinheiro
como esse instrumento facilitador e poderoso de se apropriar da riqueza
alheia. O problema, assim, não é a forma do equivalente geral enquanto
tal, a forma mercadoria ou mesmo a forma abstrata do trabalho, mas o
fato de que o trabalho individual acaba sendo indevidamente representado
e apropriado por outrem através do dinheiro que circula sob a forma de
capital.
- 24 “O dinheiro representa, afinal, o valor de troca par excellence e, assim, se opõe a todas as outra (...)
52David Harvey já deixava claro, em sua obra principal, o papel especial e poderoso que o dinheiro possui na sociedade burguesa.24
Em artigos mais recentes, contudo, essa sua interpretação que desaprova
o dinheiro pelas suas diversas funções, para além de meio de
circulação, acabam por ter resultados reformistas evidentes.
Temos de encontrar uma economia
política alternativa ao modo como funciona o capitalismo. E temos alguns
princípios. Por isso as contradições são interessantes. Examina-se cada
uma delas, por exemplo, a contradição entre valor de uso e valor de
troca e se diz – “o mundo alternativo é mundo no qual se fornecem
valores de uso”. Assim podemos nos concentrar nos valores de uso e
tentar reduzir o papel dos valores de troca.
Ou, na questão monetária – claro
que precisamos de dinheiro para que as mercadorias circulem. Mas o
problema do dinheiro é que pessoas privadas podem apropriar-se dele. O
dinheiro torna-se uma modalidade de poder pessoal e, em seguida, um
desejo-fetiche. As pessoas mobilizam a vida na procura por esse
dinheiro, até quem não sabe que o faz. Então, temos de mudar o sistema
monetário – ou se taxam todas as mais-valias que as pessoas comecem a
obter ou criamos um sistema monetário no qual a moeda se dissolve e não
pode ser entesourada, como o sistema de milhagem aérea (Harvey, 2013).
53No
fundo, a moeda corresponde à melhor maneira de distribuição da riqueza, o
melhor modo de fazer a riqueza circular e dar acesso a todos que
contribuem para a produção, ao fruto de seu trabalho – o único problema é
seu monopólio privado. A incompreensão de que a circulação simples e a
igualdade geral aparente do capitalismo são invertidas cotidianamente
pelas suas próprias categorias leva à aceitação dos ideologemas que
brotam dessa esfera superficial e fenomênica. Pensar numa “economia
política alternativa” ao capitalismo é o resultado de uma apreensão
histórica geral da teoria do dinheiro e da moeda, independente da
crítica radical do capitalismo.
- 25 “É pois bem digno dos utopistas pequeno-burgueses querer a mercadoria sem querer o dinheiro, o cap (...)
54Ora,
por meio dessa “economia política alternativa”, a única maneira de
pensar em mudança social através da mercadoria e do dinheiro é continuar
tentando de alguma maneira evitar que essas formas cheguem às suas
últimas consequências lógicas – e que são inevitáveis. Como disse várias
vezes Marx, é típico do reformismo pequeno-burguês querer a mercadoria
mas não o dinheiro, querer o trabalho mas não o capital, sem entender
como necessariamente uma forma está contida na outra.25 Ou seja,
como é impossível suprimir as
complicações e contradições derivadas da existência do dinheiro ao lado
das mercadorias particulares por meio da modificação da forma do
dinheiro (muito embora as dificuldades pertencentes a uma forma inferior
possam ser evitadas por uma forma superior), é igualmente impossível
suprimir o próprio dinheiro enquanto o valor de troca permanecer a forma
social dos produtos. É preciso compreender isso claramente para não se
colocar tarefas impossíveis e para conhecer os limites no interior dos
quais as reformas monetárias e as transformações da circulação podem
fornecer uma nova configuração para as relações de produção e as
relações sociais sobre elas fundadas (2011: 95).
- 26 Ver quanto a isso nosso artigo que trata da visão de Harvey sobre as relações de trabalho e o peso (...)
55E
o que parece mais pequeno-burguês do que uma proposta de transformar o
sistema monetário num sistema parecido com o de “milhagens aéreas”? Em
sua última obra, David Harvey reconhece exatamente essas inquietações,
mas na falta de algum propósito mais radical, insiste em algum tipo de
circulação monetária capaz de impedir a apropriação privada e acúmulo da
riqueza social. Como havíamos constatado antes sobre outro tema em sua
obra recente,26
Harvey precisa se apoiar em medidas keynesianas para tornar palpáveis
essas ideias. Na verdade, ele resgata mais precisamente a leitura
keynesiana da proposta de cédulas de circulação de Silvio Gesell.
Keynes, em seu influente Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda
(1936), por exemplo, citava o “estranho e indevidamente esquecido
profeta Silvio Gesell”, que há muito tempo propôs a criação de uma
espécie de paradinheiro que se oxidaria se não fosse utilizado. A
desigualdade fundamental entre mercadorias (valores de uso), que se
desgastam ou envelhecem, e uma forma dinheiro (valor de troca,) que não o
faz, deve ser corrigida (Harvey, 2014: 49).
- 27 A proposta de Silvio Gesell era de que todo meio de circulação sofresse uma desvalorização automát (...)
56Ou
seja, Harvey retoma a contradição “entre o dinheiro como medida de
valor e o dinheiro como meio de circulação” (EI: 292; EM: 295: EB: 383),
exposta de modo cuidadoso em sua obra principal, mas, ao invés de
pensar numa superação conjunta dessas funções – o que significa a
superação da própria forma do dinheiro e da mercadoria --, propõe algum
tipo de medida reformista imediata pautada no controle do dinheiro e de
seu desdobramento creditício.27
O que ocorre é que a própria crítica radical da forma mercadoria, do
dinheiro, do capital e do trabalho é relegada às grandes alturas de uma
reflexão teórica e acaba banida para um futuro distante inalcançável.
Como já apontado por Marx em sua crítica de um discípulo de Proudhon, é
evidente que “o mal da sociedade burguesa não pode ser remediado por
meio de ‘transformações’ dos bancos ou da fundação de um ‘sistema
monetário’ racional” (2011: 85).
57Isso
é ainda mais óbvio quando se analisa a abordagem de Harvey sobre o
problema da falta de um lastro material para o sistema monetário. Para
ele, a contradição presente na forma dinheiro era “mais fácil de
entender quando o sistema da política monetária tinha uma clara base
metálica” (2011: 97). Para ele, o capitalismo de Bretton Woods
“funcionou bem, enquanto os EUA se abstiveram do uso de seu poder de
imprimir dólares para atender apenas a seus interesses” (2011: 35), mas o
fim do padrão dólar-ouro significou uma vertiginosa ampliação das
instabilidades, pois, “o capitalismo mundial simplesmente não pode
funcionar sem algum tipo de moeda de reserva estável – e esta é a
dificuldade que o sistema monetário internacional tem enfrentado desde o
início da década de 1970” (EI: 249; EM: 254; EB: 333). Esta é,
novamente, uma interpretação que ele obtém apoiando-se teoricamente em
Suzanne de Brunhoff, uma defensora do fundamento metálico das moedas.
- 28 Em uma nota de Os Limites do Capital, Harvey faz uma longa citação do economista Jürg Niehans, ent (...)
58Sem
dúvida, a moeda metálica garantia um nível de estabilidade maior ao
conjunto do sistema monetário e mantinha sob certos limites o sistema de
crédito – o que não significa que dava estabilidade ao capitalismo. O
problema é que não há como retornar a um padrão de dinheiro-mercadoria,
pois temos hoje os problemas básicos de financiamento de toda a
estrutura burguesa – endividada até a alma, seja na esfera pública ou
privada, incapaz de ser convertida em qualquer mercadoria disponível.
Além disso, o patamar de produção alcançado pela sociedade burguesa é
tal que impede qualquer espelhamento material de sua riqueza abstrata. O
capitalismo se tornou tão produtivo e rico – a superacumulação deixou
de ser cíclica e se tornou crônica – que qualquer base material seria
limitada demais para conter a riqueza em forma monetária. Isso significa
também que o capitalismo já não funciona mais segundo seus fundamentos
lógicos, os seus próprios termos, portanto, precisa ser superado, não
reformado. David Harvey, como enxerga o problema de uma perspectiva
temporária, cíclica, ainda pode confiar na possibilidade de um sistema
alternativo ou na proposta de reforma do sistema monetário visando
reprimir a especulação.28
59Numa
época de desconfiança generalizada em relação ao sistema financeiro, de
censura superficial aos bancos e à especulação, as propostas de Silvio
Gesell ressuscitadas por Harvey podem parecer oportuna, mas elas revelam
a limitação dos horizontes da critica social contemporânea, pois mesmo
grandes autores com relevantes obras podem reduzir a crítica do
capitalismo a um problema monetário.