1Este
artigo busca compreender as tensões entre os princípios e motivações
que orientam as ações e práticas em torno do ativismo juvenil, bem como a
condição juvenil no qual essas ações e práticas se realizam e se
reproduzem. Refere-se, assim, ao jovem que vivencia a sua condição
popular, periférica, proletária; o jovem que é ativista, onde sua
condição é, em sua grande maioria, objeto de sua ação. O que orienta a
investigação é a problemática concernente às mediações em que o ativismo
juvenil se insere: mediações da política e do poder.
2O
estudo em andamento privilegia as ações, eventos e mobilizações
correspondentes ao ativismo juvenil (e ao campo de articulações
sociopolíticas no qual este se inscreve) na Zona Oeste da cidade do Rio
de Janeiro, correspondente à Área de Planejamento 5, regiões
administrativas de Realengo (XXXIII RA), Bangu (XVII RA), Campo Grande
(XVIII RA) e Santa Cruz (XIX RA), mais especificamente os bairros de
Bangu e Senador Camará, com destaque para Vila Aliança ̶ conjunto
habitacional, que junto com o bairro de Senador Camará configura o que
se tem definido como Complexo de Camará.
Privilegiam-se, também, aproximações com a realidade da Baixada
Fluminense, no que se refere à trajetória das investigações e vivências
do observador, o que permite comparações e análises.
3Neste
trabalho as ações, práticas, mobilizações e eventos do ativismo juvenil
em Vila Aliança e Senador Camará serão referenciados, pontualmente,
como forma de balizamento para a construção possível de uma Geografia da
Ação e da Condição Juvenil. È dada ênfase ao território, em sua
correspondência como os conceitos de rede e lugar, cujo exercício se
pauta pelo aprendizado destes como categorias analíticas, mas também como categorias normativas, que se fazem presentes no léxico que acompanha as falas e discursos nos eventos, ações e mobilizações destes ativismos.
4A
organização do presente trabalho é composta de três seções, além das
considerações finais. A primeira seção diz respeito à relação entre
juventude e movimentos sociais, que, de forma breve, explicita as
perspectivas de compreensão sobre a emergência da temática juvenil no
presente, seus lastros históricos e possibilidades enunciadas a partir
da visibilidade do jovem como sujeito. Na segunda, o território, assim
como sua correspondência com os conceitos de lugar e rede, são postos em
tela, no que se referem: ao debate teórico-conceitual em que essas
categorias estão inscritas; à correspondência entre território e poder,
assim como às formas de apropriações, subjetivações e representações do
sujeito. Na última seção, enseja-se refinar a compreensão do território
como prática discursiva inserida no campo ético-político do ativismo
juvenil.
5O
jovem em questão é aquele que milita no ativismo cultural, no movimento
estudantil (secundarista e universitário), nas questões concernentes
aos direitos humanos, à cidade, às periferias urbanas, ao poder, à
violência, nas temáticas relativas ao gênero e ao étnico. Esse jovem se
faz representar a partir de formatos sociopolíticos que traduzem
identidades e resistências – os coletivos, as ocupações – assumindo
feições comportamentais, narrativas, políticas e ideológicas. O jovem em
questão igualmente experimenta a sua condição, a condição proletária,
as condições de existência e o futuro em questão.
6Jean Tible, em entrevista concedida à revista Caros Amigos (maio
de 2016, edição especial), informa aspectos relevantes para a
compreensão da emergência juvenil por via dos novos ativismos. Afirma
que tal emergência tem “a ver com a nova geração que é inclusive global”
(NABUCO; PRIMI; FIDELIS 2016, p. 26), observa que seus entrevistadores
talvez “tenham vivenciado uma nova quebra anterior”, que correspondeu “a
criação do PT, o Lula, o MST, a CUT, o Movimento Negro, o Movimento
Feminista. Mas é interessante observar como todos eles são interpelados
pela nova geração”. Pauta, assim, a temática dos novos ativismos em suas
correspondências com as configurações, redes, políticas e
representações em escala global, mas também balizadas pelo geracional,
que se desdobra na memória e nos marcos da história recente. Identifica momentos de quebras
ao se referenciar aos anos 1980 e às manifestações e mobilizações no
presente. Conduz a ideia de continuidade, ainda que com momentos de
descontinuidade, períodos de refluxos e saturações, momentos em que o
novo é forjado. O que se reforça ao referenciar-se aos anos 1970, 1960,
período no qual se observa que determinados debates já se ocorriam
(Ibid., p. 27).
7As
formulações presentes na entrevista concedida por Jean Tidle vão ao
encontro das perspectivas analíticas que embasam esse estudo. A
juventude compreendida como expressão do urgente e do possível tem
pautado a agenda do ativismo social e das articulações civis em torno da
implantação de políticas publicas nos últimos anos. O que, por sua vez,
se constitui por marcos histórico que vão dar sentido às rupturas e
irrupções.
8Os
levantes de 1968 constituem o ponto de inflexão, onde “a juventude
socializada durante a segunda-guerra mundial estava começando a
questionar os padrões culturais herdados do passado” (CARDOSO, 2014, p.
11). Configura-se, assim, em desgaste e saturação, anunciando a crise. O
que se expressa na efervescência dos idos dos anos 1960, mais
especificamente nos levantes políticos de 1968. Levantes de caráter
mundial (BADIOU, 2012; HARVEY, 2013;).
9
Os levantes de 1968 pontuaram a crítica ao Estado, à burocracia, ao
dogmatismo, ao poder exercido nas escolas, nas fábricas, nas
instituições psiquiátricas. Criticas que já se formulavam no imediato
pós-Guerra, mas que desembocaram com toda carga de significados nestes
Maios de 1968. No que tange à correspondência (direta) entre os levantes
de 1968 e a juventude, a inflexão reside no fato de que “a década de
1960 jogaria por terra boa parte da aposta normativa das teorias sobre
‘o problema das gerações’”. O que colocou em questão a capacidade das
velhas gerações de “transferirem a herança cultural às novas, ou de
garantirem a elastrajetórias padronizadas e sempre ascendentes”
(CARDOSO, 2014 p. 13).
10A
inflexão põe em pauta considerações referente à reprodução das
“relações de produção”, conforme observa Lefebvre (1977, p. 225). Também
põe em pauta questões concernentes à “mecânica do poder”, que passa a
ser analisada “a partir das lutas cotidianas e realizadas com aqueles que tinham que se debater nas malhas mais fina da rede de poder” (FOUCAULT, 2005, p. 6).
- 1 O primeiro Maio de 1968, para Badiou, foi “uma rebelião, uma revolta da juventude universitária e s (...)
11A
compreensão em tela indica que os eventos de 1968 ou, para darmos mais
abrangência, ocorridos entre os idos dos anos 1960 e início dos anos
1970, vão impactar os anos subsequentes, caracterizando o que Badiou
(2012) define como o quarto Maio, em relação e distinção aos outros três maios definidos pelo autor.1
Gostaria de sustentar que nenhum
desses três componentes [três maios] é mais importante do que o outro,
porque houve um quarto Maio de 1968, que foi essencial e ainda determina
o futuro. Esse Maio de 1968 é o menos inteligível, porque se manifestou
ao longo do tempo, e não naquele instante. Ele foi o que se seguiu ao
lindo mês de maio, gerando anos políticos intensos. Dificilmente
perceptível, se nos ativermos estritamente às circunstâncias iniciais,
ele domina a sequência que vai de 1968 a 1978, depois é reprimido e
absorvido pela vitória da união da esquerda e pelos tristes “anos
Mitterrand”. Fala-se dele como “década de 1968”, e não como “Maio de
1968” (BADIOU, 2012, p. 33).
12O quarto Maio
traduz, assim, “a convicção de que, a partir dos anos 1960, assistimos
ao fim da velha concepção política”. Traduz, também, “a busca um tanto
cega, durante toda a década de 1970-1980, de outra concepção de
política” (Ibid. p.33). A ideia-chave aqui é que o quarto maio expressa o processo que desemboca no presente, onde:
A velha concepção com que se
tentava romper repousa sobre a ideia dominante (em todas as espécies de
militantes), e nesse sentido uniformemente aceita no campo
‘revolucionário’, de que existe um agente histórico que traz a
possibilidade de emancipação. Esse agente histórico é chamado de classe
operária, proletário e, algumas vezes povo. Sua composição e sua
extensão são discutidas, mas sua existência é aceita. Essa convicção
partilhada de que existe um agente ‘objetivo’, inserido na realidade
social, que traz a possibilidade de emancipação é talvez a maior
diferença entre aquela época e a atual. Entre as duas: os sinistros anos
1980 (ibid.).
13Tal
desembocadura indica a crise como o que atribuí sentido de
continuidade. Crise estrutural, conforme indica Antunes (2009), Lefebvre
(2009) e Mészáros (2012). De Lefebvre extraímos o seu sentido, a partir
do entendimento de que a crise estrutural:
“
[...] abala a arquitetura da sociedade. Ela alcança as
‘superestruturas’ (os ‘valores’, ou seja, a própria ética e a estética
‘referenciadas’ na terminologia aqui empregada). Ela tende a
desestruturação e á reestruturação do modo de produção, acompanhando-se
do desenvolvimento de novas forças sociais e políticas. Ela suscita
então as situações graves e as mudanças políticas. A crise estrutural
vai em direção ao estado crítico, estado em que as contradições
exacerbam-se, mas neutralizam-se momentaneamente“ (Ibid., p. 148).
14É
possível afirmar que a juventude como tema, questão e campo enunciativo
de sujeitos e políticas é um tema que emerge na crise. O que já é posto
como próprio da condição juvenil, como expressão da questão geracional:
os dilemas diante do futuro e da vida; os dilemas diante da sociedade e
do mundo. Crise que expressa a condição desigual em se vivenciar a
moratória que lhe é intrínseca: “espécie de ‘crédito’ que a sociedade,
através de sua rede de instituições, oferece a alguns jovens”; “crédito
social, de caráter formativo que garante, por hipótese, a reprodução da
sociedade.” (PEREGRINO 2011. p. 281). Por sua vez, a possibilidade de
pensar a moratória como objeto da ação política posta pela própria
juventude é algo que se experimenta nas irrupções de 1968. Como também a
juventude e a própria moratória como objeto das políticas e ações em e
escala global emerge nos sombrios anos 1980, como exposto por Badiou (2012).
15Há
de observar que em 1985, “foi decretado o Ano da Juventude pelas Nações
Unidas” (NOVAES, 2012, p. 10). Anuncia, aqui, o dado conjuntural.
Vivia-se “o aprofundamento dos processos de globalização dos mercados,
de desterritorialização dos processos produtivos e de flexibilização das
relações de trabalho”. No Brasil e em vários países da América Latina,
“tais processos também foram acompanhados pelo esgotamento do modelo de
modernização conservadora dos anos de 1980 e pela crise da dívida
externa” (Ibid.).
16Dessa
forma, a correspondência entre juventude e crise localiza o sentido
histórico do problema geracional, que se refere aos significados
atribuídos à juventude, que por sua vez comporta vínculos com os
processos globais incidentes sobre a sua própria condição.
O jovem como tema, problema e narrativa se constitui através de feixes
históricos que comportam as mudanças e reestruturações experimentadas a
partir dos anos 1970. Experimenta a acumulação flexível (HARVEY, 1996)
e, em sua derivação, suas formas espoliativas (HARVEY, 2005).
Experimenta, por fim, na escala da cidade e do urbano, a fragmentação do
tecido sociopolítico-espacial, como indica Souza (2000; 1997).
17A
ideia-chave aqui é que a correspondência entre juventude, território e
movimentos sociais emerge a partir dessa incidência global sobre a vida e
o vivido.
18O
território é apreendido na perspectiva desse estudo como categoria
explicativa de processos e dinâmicas correspondentes às ações, políticas
e ativismos em torno da juventude. O território, também nessa
perspectiva, permite decompor aspectos significativos da vida e o vivido
nas favelas, conjuntos habitacionais, loteamentos populares. É possível
afirmar que o território é assim como o lugar e a rede, categorias
explicativas de uma geografia da condição e do ativismo juvenil.
19Essa
geografia nos permite apreender as correspondências entre espaço e
política, espaço e cultura, espaço e economia. O espaço, assim, assume a
sua primazia como conceito e categoria na geografia, conforme sugere
Santos (1997). Por sua vez, toma-se aqui como referência, o espaço no
sentido atribuído por Lefebvre (2008; 1977). O espaço que é produto e ao
mesmo tempo incide sobre a reprodução das relações sociais de produção,
onde todo o espaço se torna lugar da reprodução.
Essa reprodução se realiza
através de um esquema relativo à sociedade existente, cujo caráter
essencial é ser conjunta - disjunta, dissociada, mantendo uma unidade, a
do poder, na fragmentação. Esse espaço hegemônico - fraturado não é
somente o espaço global do planejamento ou o espaço parcelar do
arquiteto e dos promotores imobiliários, é também o espaço das obras de
arte, por exemplo, o do mobiliário e do design. É o estetismo que
unifica os fragmentos funcionais de um espaço deslocado realizando,
assim, seu caráter homogêneo e fraturado.
[...] É o espaço onde a conexão
coercitiva se efetua por meio de um sistema de acesso às partes
deslocadas: o espaço, ao mesmo tempo uniforme e duramente constrangedor
das periferias e dos subúrbios; onde os cortiços, as favelas, as cidades
de urgência completam os subúrbios residenciais onde as normas reinam,
prescrevendo as utilizações do tempo, enquanto se devota ao espaço toda
espécie de discursos,interpretações, ideologias e valores “culturais”,
artísticos, etc. (LEFEBVRE, 2008, p. 49)
20O
espaço, nesses termos, incide sobre os poderes, as normas, as
representações, as simulações, os discursos, as ideologias; incide sobre
as separações, as segregações, as ausências; sobre o cotidiano, o
tempo, a mobilidade, os usos. O espaço é entendido também, na
compreensão de Rogério Haesbaert (2014):
O espaço geográfico, na verdade,
partindo de uma posição relacional, envolve, como queira Milton Santos,
tanto o universo dos objetos quanto dos sujeitos e suas ações, tanto a
dimensão dos elementos (aparentemente) fixos quanto móveis, tanto a
dimensão material quanto a dimensão imaterial. Na expressão de Henri
Lefebvre, “o conceito de espaço denota e conota todos os espaços
possíveis, abstratos ou ‘reais’, mentais e sociais. Entre outros, ele
contém estes dois aspectos: o espaço de representação – a representação
do espaço” (1986: 345; tradução livre). Nesse sentido, todo espaço
geográfico é também ação, movimento e representação simbólica (2104, p.
37)
21A
compreensão que se desenvolve para esse estudo situa o território em
seus nexos com o espaço, com a produção do espaço em suas imbricações. O
território – assim como a rede, o lugar, para ficarmos nesse conjunto
de categorias – permite apreender aspectos, nuanças, tensões presentes
nas dinâmicas de produção do espaço. Configura, assim, no que se refere
ao tratamento específico dessas categorias nessa investigação, algo
muito próximo do que Haesbaert (2014) delineia como uma constelação de conceitos. Não
se pretende aqui traçar a trajetória desses conceitos em relação à
história do pensamento geográfico, mas de explicitar o entendimento de
que o tratamento diante do território, nas bases em que se constitui
essa pesquisa, conduz as correspondências entre lugar e território, rede
e território.
22Faz-se
necessário situar, previamente, a compreensão sobre os nexos entre
ativismo juvenil, cotidiano e poder. Refere-se, assim, numa primeira
aproximação, aos nexos globais que incidem sobre o ativismo juvenil no
que tange às relações de poder. Nesse sentido o poder assume a sua
primazia como componente analítico, e que se expressa em sua tensão na
política, na ação em sua correspondência com o cotidiano.
A verticalidade do poder se coloca por via do acirramento das relações
de poder no espectro do que WACQUANT define como “Estado-penitência”, em
substituição do Estado-previdência. (2011). Isso se reproduz na
dimensão do cotidiano, com suas especificidades
e capilaridades, nos “pequenos enfrentamentos”, nas “microlutas”, nas
“pequenas relações de poder”, como nos informa Michel Foucault (2015, p.
226).
23Nesse
sentido a verticalidade do poder articula escalas e feições
reticulares. Revela, assim, redes de poder. A rede assume aqui seu lugar
analítico, pelo fato de ser conforme indica Santos (1997, p. 222),
“global e local, uma e múltipla, estável e dinâmica”, o que também é
indicado por Dias (2005, p. 23). A rede comporta, assim, a
instantaneidade e a simultaneidade.A rede em sua correspondência como o
território, delineia o que Haesbaert(2004, p. 301) define como
território-rede, onde de “alguma forma, territorializar-se, hoje, a ação
de controlar fluxos, de estabelecer e comandar redes”. As redes “jamais
são completamente desmaterializadas”, de uma forma ou de outra, estão
sempre “desenhando materialmente territórios”.
24A
rede, assim como sua correspondência com o território, interessa a esta
pesquisa no que diz respeito ao rebatimento das escalas globais no
urbano-metropolitano em suas expressões periféricas. Remete, assim, à
vida da cidade, mas também à vida de bairro (MARTINS,
2008; SEABRA, 2004). É nas relações, nexos e tensões que se configuram
historicamente entre o bairro e a cidade, o bairro e a metrópole que
situamos a realização em suas contradições da ação social e do ativismo
juvenil, muito embora essas ações estejam intrinsecamente ligadas aos
processos em escala global, que por isso, remetem a uma historicidade. A
escala do bairro, das centralidades locais, em seus vínculos com a
dinâmica metropolitana é onde se privilegia não apenas a rede em sua
correspondência como território, mas o lugar, também em sua
correspondência com o território, e este como expressão do poder.
25Aqui se situam as redes do narcotráfico, a partir do que Sousa (2000; 1997) define como fragmentação do tecido sociopolítico-espacial. A
fragmentação simboliza, assim, “um processo de solapamento da cidadania
que, conquanto incorpore também uma dimensão de ‘luta de classes', não
admite ser reduzido a ela" (1997, p. 256). Essa fragmentação se
constitui por dois processos:
[...] enquanto as favelas vão
“se fechando” sob o impacto do narcotráfico, os condomínios exclusivos
(ou fechados) representam o ápice da auto-segregação. Uns citadinos,
tradicionalmente privados do exercício da cidadania, são agora cada vez
mais submetidos à tirania do tráfico; outros, escapistas, buscam
proteção em 'cidadelas' como condomínios e shopping centers. Entre os
territórios diretos do tráfico e as cidadelas da auto-segregação restam
os espaços que, por sua superfície e número de habitantes, formam a
maior parte da cidade, as “áreas neutras”, onde a população está
particularmente exposta à violência da “guerra civil molecular" (Ibid.,
p. 257).
26Algumas
considerações, ainda que preliminares, fazem-se necessárias e se
referem ao hiato temporal que a citação acima comporta em relação ao
presente. É possível afirmar, sem medo de erro que as “áreas neutras”
não são tão neutras mais. É possível afirmar, que cada vez mais se
enseja uma sociabilidade constituída pelas “dobras do legal-extralegal”,
que configuram as relações de poder, e pelas “bordas do
formal-informal” que configuram os circuitos da economia (TELLES, 2010).
As incidências das relações de poder sobre o espaço cada vez mais
impõem a compreensão de dinâmicas de poder a partir da fluidez na
distinção entre o legal e o extralegal. Fluidez que extrapola a escala
do lugar e do vivido e se revela em suas conexões globais. Fluidez que
se constituí na correspondência com o tradicional, o hábito, o cotidiano
nos bairros, favelas e conjuntos habitacionais.
27Em
Vila Aliança, na área de maior de maior controle territorial do
narcotráfico observa-se as barreiras nas vias públicas, como forma de
controlar o acesso. Também podemos observar os jovens recrutados pelo
tráfico, nas motocicletas e com seus AR 15. Por fim, observa-se que os
muros são grafitados com imagens e mensagens bíblicas. Tais grafites, de
qualidade profissional, foram financiados pelo narcotráfico, já que os
narcotraficantes são, em sua maioria, evangélicos. Em outro bairro,
também na zona oeste do Rio de Janeiro, identifica-se a mesma pratica,
porém sob o comando da milícia local. Tais exemplos informam a conexão
entre os poderes em sua dimensão extralegal com as expressões da vida
civil-comunitária nessas periferias – são poderes que de certa forma
configuram pactos territoriais e, nem por isso menos déspota.
- 2 Martins, José de Souza. Memória, Eletropaulo (Departamento Histórico), julho/dezembro, 1993. São P (...)
28Ao
buscarmos apreender o poder nessa escala, a relação lugar-território,
apresenta-se como ferramenta analítica. Referencia-se aqui a definição
em Carlos (1996), onde o “lugar se produz na articulação contraditória entre o mundial que se anuncia e a especificidade histórica do particular”. O lugar se apresentaria, assim, “como ponto de articulação entre a mundialidade em constituição e o local enquanto especificidade, enquanto momento” (Ibid.,
p. 15-16). Atribui-se,assim uma dimensão representativa à história
particular. O sujeito, dessa forma, constitui-se como expressão da
própria história local. Vale, aqui, remetermos a Martins2 (Apud. Carlos 1996p. 25-26), no qual para este
a história local é a história da
particularidade embora se determine pelos componentes universais da
história. Isto é, embora na escala local raramente sejam visíveis as
formas e conteúdos dos grandes processos históricos, ele ganha sentido
por meio deles quase sempre ocultos e invisíveis [...] é no âmbito do
local que a história é vivida e é onde, pois, tem sentido.
29
O lugar apreendido nessas referências informa aspectos expressivos
para a investigação em andamento. O sentido histórico e de mediação
atribuído ao lugar possibilita compreender os processos que configuraram
essas mediações. Processos correspondentes às relações de poder, que se
traduzem nas formas de dominação no território em sua escala próxima da
vida cotidiana. Traduzem-se também na noção de tradição de distinção e
diferenciação. Os estabelecidos e os outsiders
na abordagem de Elias e Scotson (2000); as distinções presentes nas
badaladas dos sinos durante o cortejo fúnebre (MARTINS, 2008, p.
102-118). Ambos os exemplos remetem ao urbano na cidade sob o
capitalismo concorrencial, ao subúrbio que precede, e cria as bases
territoriais, para o processo de metropolização. Tais distinções e
diferenciações se fazem presente hoje, de forma mais fragmentada e
submetidas a poderes mais complexos. Vai-se ao encontro com leituras
críticas à noção de lugar sob enfoque nostálgico, marcado por elementos
de dualidades, como exemplo os não-lugares
em Augé (2008). Aspecto observado por Souza (2013, p. 111-134), que
atualiza o debate, sinalizando a compreensão sobre a correspondência
entre escala e lugar.
30
Ao conceber as conexões entre lugar e território, privilegiando como
escala de análise as periferias urbanas (através dos loteamentos,
conjuntos habitacionais, favelas, mas também através dos contextos
sócio-espaciais em que formas se localizam e se articulam, articulando
fragmentos da cidade), pontuamos a perspectiva de compreensão dá o
sentido do pertencimento – comum nas falas dos militantes e ativistas –
com as expressões
do poder e do que este carrega como constrangimento. Porém o
território, nessa mesma escala, expressa a tensão entre dominação e
apropriação. Aspecto levantado por Haesbaert (2004) ao fazer referências
às formulações contidas em Lefebvre (1986). A dominação se refere à
técnica, ao poder; a apropriação ao uso, onde de acordo com Lefebvre:
O uso reaparece em acentuado
conflito com a troca no espaço, pois ele implica “apropriação” e não
“propriedade”. Ora, a própria apropriação implica tempo e tempos, um
ritmo ou ritmos, símbolos e uma prática. Tanto mais o espaço é
funcionalizado, tanto mais ele é dominado pelos “agentes” que o
manipulam tornado-ounifuncional, menos ele se presta à apropriação. Por
quê? Porque ele se coloca dentro do tempo vivido, aquele dos usuários,
tempo diverso e complexo. (LEFEBVRE, 1986 [La Production de l’ Espace], p.411-412, destaque do autor, apud HAESBAERT, op. cit. p. 95).
31É
na tensão inerente a esses componentes que o território se apresenta,
não apenas como categoria analítica, mas também como expressão da
prática, da ação, das narrativas e representações presentes no ativismo
juvenil. O território é termo da moda não isento de problemas,
incompletudes...
32Vainer (2013, pp. 35-36) indica que os anos 1990 foram a década que se configurou a “ruralização da luta social”,
Se no processo de democratização
dos anos 1980 os movimentos operários e urbanos pareciam traduzir
politicamente as contradições da modernização acelerada no qual havia
passado nossa sociedade nos trinta anos anteriores, o período que se
abriu nos anos 1990 apontou para uma espécie de “ruralização da luta
social”. O Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o
Movimento de Atingidos por Barragens (MAB) e a resistência de populações
tradicionais à destruição de seus meios e modos de vida ocuparam o
proscênio da arena política.
33É possível afirmar que os anos 2010, são os anos da juvenilização
da luta social: o que o autor supracitado indica. É claro que
assertivas como essas correm o risco da generalização, mas estão
corretas por indicarem o que baliza esses períodos, que se distingue,
embora também haja vínculos, links entre si, nem sempre visíveis.
Identificar esses vínculos é um exercício que, muito embora não
constitua o escopo da pesquisa, informa aproximações necessárias. É
nessa perspectiva que o território é compreendido nesse estudo além do
seu caráter analítico. A pergunta necessária: por que o território se faz
tão presente nas falas sobre a juventude e o ativismo juvenil? Não se
trata de afirmar o território como a novidade do momento. Nas falas e
textos sobre os movimentos rurais, o território se fazia presente, com
outros sentidos (uma sociabilidade marcada pelo vínculo com a terra e o
território; os assentamentos rurais como expressão da territorialização
do movimento rural), mas se fazia presente (FERNANDES, 1999).
34É
possível informar que o território concebido como categoria analítica
nos permite apreender o território como narrativa. Entendendo que “o
discurso é efeito de sentidos entre locutores” (ORLANDI, 2012. p. 20), o
que se busca aqui é apontar, de forma sucinta, componentes que nos
permita compreender os significados atribuídos ao território nessas
narrativas.
35É
necessário observar que o território reconhecido como termo usado nas
narrativas sobre e dos ativismos juvenis constitui-se como uma feição
distinta da que lhe atribuída como categoria analítica. Para tal
entendimento busca-se compreender a natureza das distinções que se
opera. Haesbaert (2014, p. 31) esclarece:
Ainda que reconheçamos três
modalidades de categorias ou conceitos – analíticas, da prática e
normativas, estamos cientes também da sua indissociabilidade. Enquanto
uma categoria analítica é, um instrumento no processo de investigação do
pesquisador – ou um conceito no seu sentido mais difundido, a categoria
da prática é um “conceito” – ou noção – do senso comum, utilizado nas
práticas cotidianas do discurso ordinário, e a categoria normativa tem
como objetivo primeiro indicar um caminho, tem um caráter mais
propositivo do que analítico, como nos conceitos de região e território
utilizados pelo Estado enquanto agente planejador.
36Dessa
forma, o território como termo e expressão cunhada pelos mediadores,
militantes, ativistas, parece se constituir como uma categoria
normativa, que se faz presente nas praticas vivenciadas por esses
ativismos. É perceptível que esta assertiva não caracteriza uma cisão
entre essas categorias, como observa Haesbaert, “o pesquisador ou o
intelectual não pode prescindir do conhecimento de suas categorias de
análise enquanto utilizadas (e recriadas) também nas ações do sendo
comum...” (Ibid.). É expressiva a presença de estudantes universitários,
professores e pesquisadores militantes nas ações, projetos, atos e
eventos que compõem as práticas do ativismo. O que
distingue não é o oficio do militante (considerando que não é pelo
ofício que eles militam, mas pela identidade e condição que se fazem
representar na militância), mas sim o lugar estratégico que a narrativa
comporta.
37A
análise aqui pauta-se pela decomposição do discurso. Dos enunciados que
revelam e encobrem as estratégias, enquadramentos presentes nas falas
globais sobre a juventude: as “comunidades epistêmicas internacionais”,
da qual nos fala Furiati (2010); estratégias, enquadramentos e capturas
que são apreendidos na pesquisa através da análise sobre a emergência,
deslocamento e reelaboração do campo discursivo que expressa a dinâmica
política da questão social, do sujeito, dos movimentos e ações sociais
nos últimos quarenta anos. Termos como autonomia, empoderamento, coletivo, base, território, rede, gênero, raça, classe,
etc, compõem o léxico e seus significados, nas ações e estratégias dos
movimentos e ativismos sociais neste período. Alguns perdem sua
proeminência e primazia, enquanto outros emergem. Existe ainda aqueles
que ganham novos significados, que remetem a conjunturas e momentos.
38As
inquietações que motivam a investigação sinalizam para a hipótese de
que os léxicos que compõem o campo discursivo (BOURDIEU, 1998) no qual o
ativismo juvenil se inscreve constitui-se num cenário de deslocamentos,
ambivalência e capturas. Capturas que se constituem como derivação da
captura da subjetividade, como nos informa Alves (2011) e que se
expressa na derivação do político, das formas de representação e de
enunciação do sujeito.
39O
trato analítico, assim, indica que é pela compreensão desse campo que
identificamos umas das facetas da captura, no que se refere à vinculação
desse campo com as esferas globais e estruturantes do fazer política. O
que importa reter no momento é o desdobramento das formas cotidianas
desse fazer política. Trata-se do que é basilar neste estudo: a captura
expressa como tensão nas mediações que compõe a ação.
40O
território como expressão que referência as noções de autonomia,
identidade e pertencimento, pautadas pelos recortes do étnico, do
gênero, da cultura e do próprio território (a favela e a periferia
reconhecidas como lugar da fala), se constituí nesse campo de tensão, no
qual a captura é experimentada, mas também há o que escapa, o que
resiste.
41A
correspondência (seus limites e tensões) entre a condição juvenil e o
possível delineia o campo de mediações que a ação ativista pressupõe.
Ação que se realiza a partir do localizar-se no mundo como componente
necessário para a reprodução dos movimentos de resistência. Ação esta
que, ao expressar e tornar visível as urgências destes jovens conduz a
perspectiva da afirmação das identidades destes num contexto marcado por
ausências, pela segregação e subordinação. Trata-se, assim, da
possibilidade do encontro em tempos de desencontro. Nesse sentido é que o
território, como categoria normativa se expressa. O território como
narrativa é a expressão do possível.
42Pensar
as possibilidades é pensar o possível “mediado pela consciência social
crítica, pelo conhecimento crítico – pela crítica que revê continuamente
certezas e verdades, suas condições, suas limitações, seus bloqueios,
sobretudo os bloqueios do que crêem isentos de limites de compreensão”
(MARTINS 2003, p. 12). O possível, nestes termos, pressupõe escolhas,
caminhos a percorrer. Conforme informa Henri Lefebvre (1979, p. 41), não
“existe atividade sem projeto; ato sem programa, práxis política sem exploração do possível e do futuro”.