1Em sua monumental Nouvelle Géographie Universelle
(1876-1894), Élisée Reclus (1830-1905) tenta, como geógrafo ocidental,
pela primeira vez, “provincianizar” a Europa no âmbito de uma dinâmica
global. Aplicando suas idéias anarquistas à sua geografia, ele
representa o princípio da unidade da espécie humana, declarando que
todos os homens devem viver na Terra como “irmãos” e recusando a
“superioridade” de uma cultura sobre as demais. Todavia, seu
posicionamento acerca do estabelecimento de trabalhadores europeus no
norte da África, que ele encarava com alguma simpatia, tem sido
considerado por alguns geógrafos franceses como algo ambíguo. Alguns
intelectuais, ao contrário, afirmam que muito desta visão é coerente com
o pensamento anarquista e socialista da época, que considerava a
emigração dos trabalhadores como uma forma de divulgar “idéias sociais”
além-mar ― desencorajando, assim, a dominação política ou militar. As
novas pesquisas sobre Reclus são amplamente baseadas na exploração dos
dezenove volumes da Nouvelle Géographie Universelle que, às vezes, tem sido considerada menos interessante que seus outros trabalhos ― como L’Homme et la Terre que, atualmente, tem mostrado sua originalidade e seu papel no redimensionamento da Europa no pensamento geográfico.
2Para
evitar os perigos do anacronismo, é importante analisar o que Reclus
disse no âmbito do contexto político e cultural de seu tempo. Quais
foram as representações em torno da Europa, da Alteridade e do
Colonialismo engendradas por um geógrafo muito influente e que, ao mesmo
tempo, foi um dos fundadores do movimento anarquista internacional?
Quais insights ele pode oferecer para os estudos contemporâneos
sobre o colonialismo e pós-colonialismo? Tentaremos esclarecer tais
questões destacando dois casos emblemáticos: o domínio britânico sobre a
Índia e a ocupação francesa da Argélia tais como apresentados na Nouvelle Géographie Universelle.
3Iniciaremos
analisando a literatura existente quer sobre Reclus, quer sobre a
relação entre a ciência européia e o colonialismo. Assim, consideraremos
as representações de Reclus acerca do Império Britânico e, em seguida,
do Império Francês. Finalmente, sintetizaremos sua construção em torno
de uma nova crítica dos poderes coloniais ― incluindo as minorias. Nossa
fonte primária é a Nouvelle Géographie Universelle, articulada a textos escritos para jornais políticos e à correspondência de Reclus.
4Após a redescoberta de Reclus por acadêmicos francófonos e anglófonos durante os anos 1970 e 1980 (DUNBAR, 1978; Antipode, 1979; Hérodote,
1981), surgiu um debate entre alguns geógrafos franceses. Eles
questionaram a simpatia manifestada, algumas vezes, por Reclus e seu
grupo, a respeito do povoamento de terras como o Magreb por
trabalhadores europeus ― uma visão que, aparentemente, se chocava com
sua ideologia política, já que Reclus era exilado da Comuna de Paris e,
junto com Mikhail Bakunin, foi um dos fundadores do movimento anarquista
internacional no âmbito da Associação Internacional dos Trabalhadores.
- * Hérodote é a revista de geografia e de geopolítica fundada por Yves Lacoste em janeiro de 1976. Pub (...)
5Alguns
autores também têm levantado a hipótese de que Reclus era um
“colonialista” (GIBLIN, 1981; NICOLAÏ, 1986; BAUDOIN & GREEN, 2004).
Em particular, o grupo da revista Hérodote *
considerou suas posições “ambíguas” (GIBLIN, 1981:58) e, algumas vezes,
inconsistente com seu pensamento anarquista, argumentando que,
aparentemente, ele se mostrava menos crítico diante do colonialismo
francês na Argélia do que em relação ao colonialismo britânico na Índia,
por exemplo. Contudo, tais geógrafos analisaram apenas uma pequena
parte do corpus documental reclusiano. Mais recentemente, após as
conferências internacionais ocorridas em Lyon, Montpellier e Milão em
2005 por conta do centenário da morte de Reclus, outros pesquisadores
(BORD et al., 2009; PELLETIER, 2009; SCHMIDT DI FRIEDBERG, 2007)
iniciaram um trabalho sistemático ao redor de sua monumental produção
geográfica ― trinta mil páginas, sendo dezessete mil pertencentes à Nouvelle Géographie Universelle
― e de sua correspondência profissional ― mais de duas mil cartas
publicadas e não-publicadas. Assim como alguns trabalhos clássicos da
geografia francesa (por exemplo, BERDOULAY, 1981:70), esta nova
investigação destaca os aspectos anti-coloniais da geografia reclusiana
na expectativa de relativizar a definição de conceitos como Europa,
Leste e Oeste; eles se apresentam como muito originais, sobretudo se os
compararmos ao restante da ciência européia naquele período (DEPREST,
2005, 2012; FERRETTI, 2010; FERRETTI, MALBURET & PELLETIER, 2011;
GUARRASI, 2007; PELLETIER, 2007). As novas pesquisas revelam a intensa
ligação entre a geografia reclusiana e o pensamento anarquista de então,
guardando semelhança com alguns clássicos estudos anglófonos, que
dialogavam com o anarquista Reclus, com o geógrafo Reclus ou com ambos
sem apontar maiores contradições entre os dois (CLARK & MARTIN,
2004; DUNBAR, 1978; FLEMING, 1988).
6Novos
estudos sobre Reclus noticiam um debate mais amplo na literatura
francófona acerca das aberturas e dos limites das análises
pós-coloniais, associadas a proeminentes teóricos do campo dos estudos
subalternos (subaltern studies) e da crítica
pós-colonial (por exemplo, BHABHA, 1994; CHAKRABARTY, 2000; MBEMBE,
2000; SPIVAK, 1999) que têm desfrutado de enorme sucesso em,
provavelmente, cada domínio das ciências humanas ― particularmente entre
geógrafos, historiadores, filósofos, antropólogos e sociólogos. Na
França, acadêmicos como Jean-Loup Amselle e Jean-François Bayart têm
criticado os estudos pós-coloniais, considerando-os anglocêntricos e,
algumas vezes, muito generalistas ou essencialistas no emprego de
categorias como “pensamento europeu” ou “ciência francesa” (AMSELLE,
2011; BAYART, 2010). Especialmente, Bayart defende a tradição
intelectual francesa em relação à negligência diante do problema
pós-colonial, explicando que muitos autores franceses contribuíram para
questões anti-coloniais e referentes à descolonização muito antes da
“virada pós-colonial” (BAYART, 2010:19-20). Se estes dois trabalhos
contém, indubitavelmente, alguns elementos interessantes para o debate,
eles estão claramente marcados por algum nacionalismo francês, que
também negligencia a complexidade e a riqueza dos ambientes intelectuais
pós-coloniais ― caracterizados, eles mesmos, pela pluralidade.
7Por
outro lado, outros franceses ou intelectuais francófonos como Nicolas
Bancel e Catherine Coquery-Vidrovitch pregam “a marginalização da
história colonial e a quase-ausência da história pós-colonial na França
até muito recentemente; esta é uma perda muito séria para a compreensão
da crise vivida pela França atualmente” (COQUERY-VIDROVITCH, 2011:47).
Entretanto, artigos e livros inspirados pelo pensamento pós-colonial
floresceram na França nos últimos anos, ampliando a “biblioteca
pós-colonial” francófona (COHEN, 2007).
8De
fato, os debates políticos sobre a memória e o significado da
experiência colonial na França têm sido muito intenso nos últimos anos,
ocupando-se, notadamente, do problema das heranças coloniais nos
subúrbios franceses. Bancel define as recentes tendências que
redescobriram alguns traços pretensamente “positivos” do colonialismo
francês como um “turbilhão colonial” (BANCEL, 2011), destacando autores
como Daniel Lefeuvre, Max Gallo e Pascal Bruckner. Atualmente, uma das
questões que ocupa os autores inspirados pelo movimento pós-colonial é
desafiar algo como uma “linha intelectual neoconservadora” (BANCEL &
BLANCARD, 2007:46).
9Baseada
em textos e arquivos originais, a mais recente pesquisa sobre a
história da Geografia francesa está, geralmente, atenta a estes debates,
buscando dialogar com os espaços pós-coloniais e tendo cuidado em
distinguir a natureza diversa dos atores humanos e de problemas teóricos
em diferentes épocas e lugares (SINGARAVÉLOU, 2009; Journal of Historical Geography,
2011). Além disso, em seu mais recente trabalho acerca da história das
ciências francesas no período colonial, Pierre Singaravélou sublinha a
importância da interlocução com a “produção do conhecimento em situação
colonial”, reconhecendo diferentes lugares, épocas e situações coloniais
para identificar as feições de conformismo ou heterodoxia de cada
autor. “A história destes lugares de produção nos permite situar e
contextualizar o conhecimento geográfico colonial” (SINGARAVÉLOU,
2011:240).
10Não
temos espaço para sintetizar todos estes ricos debates mas, como
hipótese de trabalho, podemos assumir (tal como fizemos em FERRETTI,
2011b) que a chave da distinção reclusiana entre conquista e colonização retoma,
aproximadamente, à atual diferenciação entre colônias de povoamento e
colônias de exploração, confundindo alguns autores mais familiarizados
com a linguagem dos movimentos francófonos anti-coloniais da segunda
metade do século XX. De fato, Reclus usa a palavra colonização apenas
no sentido das migrações ultramar dos trabalhadores europeus,
expressando alguma simpatia por esse fenômeno como se pertencesse às
idéias socialistas a serem exportadas para outros continentes. Em
contraste, ele nega a legitimidade do vocábulo “colônias” quando
aplicado a casos como a Índia britânica ou a Afrique Occidentale Française.
- 1 Bibliothèque Nationale de France, Nouvelles Acquisitions Françaises (daqui em diante, BNF, NAF), 16 (...)
- 2 BNF, NAF, 16798, f. 77, Lettre d’É. Reclus à P. Pelet, 21 juin1884.
- 3 BNF, NAF, 16798, f. 80, Lettre d’É. Reclus à P. Pelet, 7 décembre 1884.
11Citado
frequentemente por pesquisadores reclusianos, o caso da Argélia
Francesa merece ser esclarecido a partir de sua origem, e podemos
fazê-lo através do corpus das cartas inéditas de Reclus para o
cartógrafo francês Paul Pelet. Aqui, Reclus cedo expressa sua reflexão
radicalizada sobre a colonização e sobre o princípio da conquista,
desenvolvidas durante suas viagens iniciais à Argélia onde uma de suas
filhas, Magali, residia com sua família. Em 1884, após sua experiência
inicial com a situação argelina, ele renuncia à Société Protectrice des Indigènes,
considerando-a muito paternalista e afirmando que “o que denominamos de
proteção significa, às vezes, assistir ao trabalho da opressão” 1.
Por esta razão, ele diz: “Voltei para a Argélia horrorizado com a
conquista (...) Quero, em absoluto, retirar meu nome da lista de pessoas
que aceitam o princípio da conquista” 2.
Reprovando o comportamento de alguns amigos progressistas que
permaneceram na associação, faz uma clara declaração anti-colonial: “Eu
aprovaria este comportamento se os nativistas permitissem aos nativos
todos os seus direitos, incluindo o de rejeitar-nos” 3.
12Se o texto da Nouvelle Géographie Universelle
― publicado pela grande editora parisiense Hachette nos anos em que
Reclus esteve exilado na Suíça ― é mais prudente que suas
correspondências inéditas, encontramos muitas passagens em que ele,
algumas vezes implicitamente, condena os crimes coloniais. Além disso,
comparado a outros escritos científicos e geográficos da época, podemos
apontar alguns dos principais aspectos de sua originalidade científica.
Por exemplo: se o ponto de partida da Nouvelle Géographie Universelle
é a Europa, o que implica em alguma suspeita de eurocentrismo (conceito
desconhecido no momento, todavia), é interessante comparar sua
definição do Velho Continente com aquela dada pelo francófono geógrafo
dinamarquês Conrad Malte-Brun que, em seu Précis de Géographie Universelle, escreve o seguinte:
“[A Europa é] a casa da
humanidade e a legisladora do Universo. Ela está em todas as partes do
mundo; um continente inteiro é povoado apenas por nossas colônias;
barbaridades, desertos, sol e fogo não mais protegerão a África de
nossos ativos empreendimentos. A Oceania parece clamar por nossos
saberes e por nossas leis; a gigantesca massa asiática está quase que
completamente atravessada por nossas conquistas. Logo a Índia Britânica e
a Rússia Asiática tocarão uma a outra e o imenso, porém frágil, Império
Chinês, não resistirá à nossa influência mesmo se escapar de nossos
exércitos” (MALTE-BRUN, 1845:2).
13Em
total contraste, Reclus começa seu trabalho com argumentos muito
diferentes, descrevendo a Europa como “A menor tribo, o menor grupo de
homens em estado natural, clamando para ser o verdadeiro centro do
universo imaginando serem, eles mesmos, a mais perfeita representação da
espécie humana” (RECLUS, 1876:5). Ele explica que escolheu a Europa
como ponto de partida “baseado não em algum prejulgamento, [mas porque] o
continente europeu é o único cuja superfície já está cientificamente
coberta e explorada, o único cujo mapa está quase completo” (RECLUS,
1876:6).
14A
distância entre tal posição e o chauvinismo europeu dominante é
confirmada pelas resenhas que, em 1875, a imprensa anarquista dedica às
primeiras partes da grande enciclopédia reclusiana contendo suas
definições sobre a Europa e o mundo mediterrâneo. Situado na Suíça, o Bulletin de la Fédération Jurassienne, importante periódico comunista-anarquista dos Internacionalistas, sustenta que a Nouvelle Géographie Universelle é o trabalho que melhor exprimiu
“nosso sentimento de
internacionalismo e de cosmopolitismo que, em séculos passados, era
conhecido apenas pelas inteligências mais elevadas mas que, agora, era
dominante entre o proletariado dos dois mundos, fortalecidos pelos
estudos desta Geografia tão bem-intencionada. [Este é] um livro de
divulgação científica que trará enorme contribuição à educação popular.
Todas as associações operárias que possuírem uma biblioteca deverão
impor a si mesmas o pequeno sacrifício de despender cinquenta centavos
semanais para obtê-lo” (Bulletin de la Fédération Jurassienne, 13 de Junho de 1875:4).
- * Vale lembrar que Marcel Dubois (1856-1916) foi o primeiro ocupante da recém-criada cadeira de Geogr (...)
15Se considerarmos uma fonte que não pertence à imprensa anarquista, podemos citar o geógrafo conservador Marcel Dubois * que, em 1892, admitiu que “na Nouvelle Géographie Universelle de Élisée Reclus pode-se encontrar a melhor crítica ao chauvinismo europeu” (DUBOIS, 1891:133).
16Na época de Reclus, o Império Britânico
era o paradigma da dominação européia. A Grã-Bretanha era,
simultaneamente, o berço da Revolução Industrial e um país cujas
pequenas dimensões geográficas encontravam-se em evidente contraste com a
enorme extensão de seu Império.
17Reclus
conhecia muito bem o mundo britânico e apreciava intensamente o
florescimento da ciência, da tecnologia e da indústria, algo que
aprendeu a observar durante suas frequentes viagens a Londres. Todavia,
escrevendo no periódico socialista La Société Nouvelle, destacou, sem nenhuma ambiguidade, os equívocos do Império Britânico:
“Sabemos qual foi o destino da Irlanda, assim como foi a conquista da
Índia e o extermínio de australianos e maoris e, atualmente, o massacre
dos matabelés; conhecemos os reformatórios e os cortiços de Whitechapel”
(RECLUS, 1894:438). Entretanto, no dizer de Reclus, este gênero de
dominação colonial trazia consigo os germes de sua futura derrota, pois
os povos colonizados estavam aprendendo as ciências, as tecnologias e o
pensamento crítico que permitiriam expulsar os invasores: “A civilização
européia chegou a negar os seus pressupostos. Queria o poder e a
dominação, mas construiu a igualdade por meio de suas próprias
conquistas (RECLUS, 1894:438).
18Aqui,
a palavra “igualdade” significa, principalmente, igualdade social.
Naquela época, uma elaboração científica da teoria das diferenças
culturais ainda não existia. Porém, Reclus sempre esteve atento para o
que chamava “a boa vontade dos povos”. No caso da Índia, tal princípio
foi explicado em L'Homme et la Terre quando, a respeito da
hipótese da independência do povo indiano, afirmou: “é importante que
sua imaginação já esteja atenta ao sonho de uma ‘Índia para hindus’”
(RECLUS, 1908:52).
19É
muito raro encontrar declarações como esta em outros trabalhos
científicos europeus de então. Em nossos dias, porém, os estudos
subalternos concordam com o papel jogado pelo Império Britânico
no estímulo indireto ao desenvolvimento de uma classe trabalhadora
local na Índia. Se Dipesh Chakrabarty também criticou o marxismo como um
ponto de vista europeu (CHAKRABARTY, 1989), precisamos considerar ― tal
como explicaremos a seguir ― que o anarquismo é, no plano teórico, mais
flexível que o marxismo, posto que não emprega o mesmo método
dialético.
20Além
do mais, apoiado tanto por seu trabalho científico quanto por seu
ativismo anti-racista (ALAVOINE, 2007), o discurso reclusiano sobre as
diferenças é amplamente baseado no conceito de miscigenação [mélange]
e, aparentemente, muito similar ao princípio do “hibridismo” que,
conforme Stuart Hall, é bastante utilizado nos estudos pós-coloniais
(HALL, 1996:259; ver também GILROY, 1993). O caminho de Reclus para que
as “diferenças globais fizessem sentido” (KEARNS, 2005) também aparece
em sua crítica aos atlas e mapas-múndi de então, onde ele antecipa
alguns temas de autores como Arno Peters ou Brian Harley. Segundo
Reclus, “mapas são mais falsos quanto maior for a porção da superfície
terrestre representada; eles sempre iludem o leitor sobre a dimensão
relativa de terras diferentes” (RECLUS, 1895:3-4).
21A atitude radical expressa em La Société Nouvelle está presente em muitas páginas da Nouvelle Géographie Universelle. Por exemplo:
“Desafortunadamente, em muitos
países os ingleses eram capazes somente de destruir, de consumir. Na
Tasmânia, eles exterminaram os indígenas até o último homem. No
continente australiano, algumas tribos nativas ainda escaparam deles
como grupos de cangurus. Porém, este tipo de jogo humano está ameaçado
de ser rapidamente extinto. Na Oceania, quantas ilhas foram despovoadas
por eles e, em suas colônias americanas, agora Estados Unidos, quantas
nações indígenas eles massacraram odiosamente ― isto para não mencionar
aquelas que eles assassinaram através do álcool e dos vícios europeus!
(RECLUS, 1879:359).
Fig.1: Superfície comparada do Hindustão e da Inglaterra
Fonte : RECLUS, 1883:21
22Na Nouvelle Géographie Universelle,
o choque entre as dimensões do país-mãe e as colônias é enfatizado com o
emprego de mapas que hoje chamamos de “temáticos”. Geralmente, eles se
referem ao pequeno tamanho da Europa em comparação ao resto do globo por
ela dominado. No caso britânico, a distinção entre colônias e conquistas
está presente de forma muito clara. “Entre as possessões britânicas,
alguns países como Canadá, Austrália e Nova Zelândia possuem uma
existência verdadeiramente independente e desenvolvem-se por si mesmos
com mais liberdade (...) Não é o caso da Índia: aqui, os ingleses não
estão em casa, porque eles apenas a ocuparam com alguns milhares de
dominadores” (RECLUS, 1894:434).
23Reclus
sublinha muitas vezes que esta distinção conceitual é substancial. Se o
número de colonos europeus na Índia é demograficamente inconsistente,
já que possuem apenas soldados e administradores, não podemos chamar tal
país de colônia européia. “Com frequência, as pessoas denominam a Índia
de ‘colônia britânica’ (...), mencionando-a como exemplo extraordinário
de ‘atitude colonializadora’ dos anglo-saxãos. Todavia, a península
cisgangética é o exemplo oposto” (RECLUS, 1883:629). Ele relata que
havia mais fazendeiros brancos em Guadalupe do que em toda a Índia, e
conclui argumentando que os colonos brancos daquela península
consideravam-se a si mesmos como uma casta especial. Eles “não
aceitariam que alguns de seus compatriotas comprometessem o prestígio de
sua autoridade fazendo trabalhos manuais. A Índia é uma terra de
conquista, e não uma colônia” (RECLUS, 1883:629).
24Ademais,
é preciso considerar que, nos ambientes anarquista e socialista de
então, a noção de colônia pôde ser concebida independente de um estado
ou de um aparato burocrático. Alguns grupos anarquistas tentaram fundar o
que eles chamavam de “colônias sociais” em países tropicais. É o caso
da Comuna Cecília, erguida no Brasil na última década do século XIX por
um grupo de anarquistas italianos inspirados nas idéias de Reclus
(ROSSI, 1993). Durante sua juventude, a fim de abrigar companheiros
exilados pelo II Império, o próprio Reclus imaginou construir algo como
uma colônia em Serra Nevada de Santa Marta, na Colômbia (RECLUS, 1861),
seguindo a “utopia tropical” que, durante todo o século XIX,
inspirara-se nas viagens de Humboldt (SAFIER, 2011). Nos anos seguintes,
porém, ele tornou-se mais cético sobre tais possibilidades: em 1900,
criticou a “moda” das colônias anarquistas, apontando que seus
frequentes insucessos demonstravam a necessidade de agir na sociedade a
fim de transformá-la. “Deviam os anarquistas criarem sua Icária fora do
mundo burguês? Eu não penso assim e nem desejo isto” (RECLUS, 1900b:1). A
idéia de colônias sociais tem notórios links com o
saint-simonismo, que influenciou o jovem Reclus. Contudo, mais tarde ele
tornou-se um incisivo crítico dos saint-simonianos, caracterizando-os
como “homens poderosos no mundo da indústria” (RECLUS, 1885: 531) que
empreenderam projetos como o Canal de Suez não mais por seus ideais, mas
“em proveito de especuladores e financistas” (RECLUS, 1905: 323). Em
geral, porém, é importante observar que, no século XIX, não era surpresa
ouvir palavras como “colônias” ou “colonização” empregadas em acepções
distintas das de nossos dias, e que uma certa defesa delas não era, a priori, uma contradição com os ideais anarquistas e socialistas daquela época.
25A
respeito da visão reclusiana sobre história e historicismo, recentemente
Vincenzo Guarrasi tentou analisá-la inspirado no livro Provincializing Europe,
de Chakrabarty (CHAKRABARTY, 2000). Como este último, Reclus destacou
as contradições da Europa, que produziu a Declaração Universal dos
Direitos do Homem e do Cidadão (1789) mas, sistematicamente, contradisse
tal documento com sua própria atuação nos países colonizados. Se
Reclus, que considerava a si próprio um homem inspirado pelo Iluminismo,
foi influenciado pela tradição historicista criticada por Chakrabarty,
contudo Guarrasi reconhece seu esforço “titânico” em compartilhar
valores universais e, ainda assim, entender e relativizar diferenças
culturais. De acordo com Guarrasi, a missão de Reclus foi “não deixar a
história empurrá-lo para o canto. Compartilhando uma tradição
intelectual e, ao mesmo tempo, contestando práticas políticas por ela
inspiradas, foi um esforço titânico pelo qual ele devotou sua vida”
(GUARRASI, 2007:94).
26A
noção reclusiana de humanidade é universal, algo que não está distante
dos argumentos desenvolvidos por estudiosos que abordam a Revolução
Haitiana (JAMES, 1938; BUCK-MORSS, 2009), para quem a Declaração
Universal foi um documento muito mais radical em seu potencial
libertador do que as ações de seus autores europeus. Buck-Morss declara
que a abolição da escravidão e a independência nacional no Haiti não
foram dadas pela I República Francesa, mas, sim, tomadas pelos próprios
escravos haitianos, “revelando a lógica da liberdade nas colônias (...);
somente tal lógica legitimou sua revolução em termos universais ― com
os quais os franceses viam a si mesmos” (BUCK-MORSS, 2009:39-40).
- * A esse respeito, vide o clássico texto O pivô geográfico da história, de John Halford Mackinder, re (...)
27Enfim,
Reclus lida com a rivalidade entre o marítimo Império Britânico e o
terrestre Império Russo na Ásia lançando mão de argumentos que parecem
antecipar a “geopolítica” do célebre geógrafo britânico Halford
Mackinder. De fato, ele percebia estes poderes coloniais como poderes
globais que abarcavam o globo mas, a despeito de suas naturezas
diferentes, logo se encontravam nas montanhas de Hindu Kush. Segundo
Reclus, “o mundo oceânico inglês, estendido sobre toda a circunferência
do planeta, constrasta com o mundo continental russo, que cobre metade
da Europa e metade da Ásia” (RECLUS, 1889:713). Suas previsões na Nouvelle Géographie Universelle
eram mais favoráveis à Rússia por uma razão geográfica: o Império Russo
tinha uma verdadeira força demográfica e territorial na Ásia, enquanto o
Império Britânico, disse ele profeticamente, estava destinado a deixar
sua base de apoio na península indiana. “Em seu Império, o poder
britânico não tem uma base de apoio natural: o crescimento normal da
população hindu os conduzirá, por si próprios, à emancipação da tutela
estrangeira” (RECLUS, 1879:885). Não é surpreendente que a teoria do heartland de Mackinder *
tenha sido parcialmente antecipada por Reclus, uma vez que sabemos das
ligações diretas entre Mackinder e geógrafos anarquistas como Reclus e
Kropotkin que, a despeito de suas visões políticas opostas, trocaram
correspondências (KEARNS, 2004, 2009; FERRETTI, 2011a).
28No
que concerne ao domínio geopolítico, Gerry Kearns destaca as diferenças
entre Mackinder e Reclus no tocante aos princípios do colonialismo
afirmando que Reclus “rejeitou a força tão veementemente tanto quanto
Mackinder abraçou-a, pois, para Reclus, isto rebaixava o agressor e
degradava as vítimas produzindo, por sua vez, mais violência. Enquanto
Mackinder apresentou uma visão do mundo dividido entre povos civilizados
e povos bárbaros, argumentando que os britânicos eram excepcionais,
Reclus enfatizou o entrelaçamento dos povos (...) Para ele, a
diversidade cultural trouxe mais criatividade humana que a pureza
racial” (KEARNS, 2009:187).
29Após a derrota na guerra contra a Prússia em 1870-1871, quando Reclus estava exilado na Suíça redigindo a Nouvelle Géographie Universelle,
os debates na França sobre o usufruto da expansão colonial eram
acalorados. Nas décadas anteriores, a França havia perdido territórios
substanciais no Canadá, Louisiana e Índia e, em 1877, quando Reclus
publicou o segundo volume da obra em questão ― dedicado à França ―, a
maior parte do Império Francês era representado pela Argélia. As
possessões do Senegal, Camboja e algumas ilhas no Pacífico e no Mar do
Caribe não tinham muita relevância do ponto de vista político-econômico.
Reclus estava claramente alinhado aos céticos, que reclamavam da
“indiferença e da hostilidade do povo francês diante da colonização”
(BERDOULAY, 1981:47).
30De fato, em sua avaliação as colônias francesas eram um fenômeno residual:
“Tanto para a população quanto
para o comércio, a totalidade das dominações estrangeiras contribuiu
muito pouco para o crescimento da nação. (...) Colônias custam muito
caro para as metrópoles, e suas populações, mantidas em condição de
grande dependência, não podem colaborar para o desenvolvimento do
fortalecimento francês. Assim, o poder da França não pode ser medido
pela extensão das terras nas quais ela fincou sua bandeira” (RECLUS,
1877:913).
31A
respeito da Argélia, estudos recentes realizados por Florence Deprest
afirmam que a idéia de explorar as possibilidades agrícolas no Norte da
África por colonos europeus não era incoerente nem com o pensamento
socialista ― numa época em que conceitos como anti-colonialismo ou teoria do imperialismo
eram desconhecidos ―, nem com a noção reclusiana de unidade histórica e
cultural da Bacia Mediterrânea (DEPREST, 2005, 2012). Aliás, no décimo
primeiro volume da Nouvelle Géographie Universelle, dedicado ao
Magreb, Reclus cita com frequência episódios de crimes coloniais
ocorridos entre 1830 e a época em que vivia. Por exemplo, o massacre de
uma tribo inteira aprisionada e sufocada em uma caverna onde, “de acordo
com o testemunho de alguns sobreviventes, havia 1150 pessoas” (RECLUS,
1866: 502). Ele observava contínuos abusos promovidos por colonizadores e
administradores: “muitas injustiças ainda estão sendo cometidas; os
vencedores sempre abusam de sua força contra o povo mais fraco” (RECLUS,
1866: 630). Também condenava leis coloniais que permitiam a requisição
das propriedades dos nativos, considerando-as “cruéis, bárbaras e
inúteis” (RECLUS, 1866: 603).
32Em
suma, há amplas evidências reveladoras do anacronismo de alguns
acadêmicos que afirmam que a geografia reclusiana contradizia seu
anarquismo. De acordo com Deprest, um aspecto típico da originalidade de
Reclus é a representação do nativo enquanto um indivíduo autônomo, com
seu próprio direito à emancipação.
“Explicando como o regime
colonial suplantou suas vozes, ele afirmava que povos nativos, árabes e
berberes eram capazes de adquirir consciência política ― o que
significava que devíamos reconhecer que eles precisavam ter seus
direitos políticos não em um vago futuro, mas naquele instante, além de
percebermos que eles estavam sendo privados de seus direitos. Tais
declarações abriram uma brecha nos princípios da dominação colonial, o
que poderia acarretar o colapso de todo o edifício colonial” (DEPREST,
2012:120).
- 4 BNF, NAF, 16798, f.74, Lettre d’É.Reclus à P.Pelet, 28 mai 1884.
- 5 BNF, NAF, 16798, f.77, Lettre d’É.Reclus à P.Pelet, 28 mai 1884.
33Em
algumas das cartas de Reclus endereçadas a Paul Pelet, encontramos sua
admiração por povos argelinos como os kabilas, chamados por ele de admiráveis cidadãos.
“Estou completamente maravilhado pela mitologia kabila. Eu ficaria
muito feliz de voltar aqui e estudar esses admiráveis cidadãos” 4.
Ele também ficou tocado por seus hábitos comunitários, que lhe fizeram
recordar a democracia franca que admirava na pólis grega. Reclus
concebia a assembléia aldeã dos kabila (djemâa) como um
resquício de uma antiga tradição de liberdade oriunda da invasão
arábica. “Espero que os kabila possam civilizar seus civilizadores” 5.
34Em
suas correspondências, geralmente ele faz referência a um círculo de
amigos locais ― nomeadamente, os anarquistas franceses colonos na
Argélia ― que gostavam de difundir idéias sociais entre a população
local e se opunham a soldados, missionários e “protetores”.
- 6 BNF, NAF, 16798, f. 77, Lettre d’É. Reclus à P. Pelet, 21 juin1884.
“Fiquei chocado com o julgamento unânime da Société Protectrice.
Todo mundo a acusa de fazer o oposto do que diz; todo mundo enxerga
nela a mão do Império; todo mundo a culpa de escolher os piores
opressores como agentes locais. Todos eles têm três principais inimigos:
o soldado, o padre e o ‘protetor’! Meu Deus! Eu não estava em boa
companhia!” 6.
Fig. 2: Uma das cartas inéditas de Reclus para Paul Pelet
Fonte : BNF, NAF, 16798, f.65.
- 7 Centro Internacional de Pesquisas sobre Anarquismo (Centre international de recherches sur l’Anarch (...)
35A
partir de um outro conjunto de cartas inéditas que Reclus enviou ao
anarquista genebrino Jacques Gross, podemos inferir que ele participou
pessoalmente das tentativas de construir um movimento anarquista local
na Argélia. “Quando deixei os argelinos ano passado, haviam dois ou três
anarquistas. Agora, existem mais de cinquenta; a recente conferência
[que eles organizaram] contou com quase quinhentas pessoas” 7. Em uma de suas dedicatórias a Jules Perrier, outro communard francês exilado na Suíça, encontramos a expressão “volte para a Argélia, a terra dos espadachins [sabreurs]” (VUILLEUMER, 1972:13). A palavra sabreurs
também pode ser traduzida como “assassinos” ― em uma clara referência
aos militares franceses situados no Norte da África responsáveis pela
sangrenta repressão à Comuna de Paris.
36Assim,
em colônias estabelecidas como a da Argélia Reclus traça uma radical
distinção entre trabalhadores europeus e exploradores europeus (patrões,
administradores, missionários, soldados etc.). É importante esclarecer
que, do ponto de vista anarquista, o problema social era sempre visto
como mais importante (ou não menos importante) que o colonial. De acordo
com os anarquistas, um proletário argelino (ou de qualquer outro país)
tinha, primeiramente, que lutar contra seu patrão. Ser francês, berbere
ou árabe não era o problema principal. Alguns anos depois, em um artigo
onde ilustra o caráter internacional da repressão, Reclus destacaria a
necessidade de solidariedade entre proletários de diferentes países
mencionando o massacre dos communards parisienses, executados
por regimentos previamente estabelecidos na Argélia. Em Paris, “eles
varreram subúrbios com suas artilharias tal como haviam destroçado os
pobres brodji dos árabes. A França pagará o mesmo preço por
Tonkin e Formosa. As recorrências históricas trarão punição pelas
maldades cometidas” (RECLUS, 1911:339).
37Entretanto,
os anarquistas da época também estavam atentos às lutas de libertação
nacional, quer fossem na Europa ou nas colônias (ANDERSON, 2007).
Conforme a perspectiva filosófica reclusiana inspirada em Pierre-Joseph
Proudhon, a principal oposição era entre autoridade e liberdade. Como
procedera em relação à Índia, Reclus concluiu seu discurso sobre a
Argélia ressaltando o princípio da boa vontade dos povos. Um dia, os
argelinos “se sentirão eles mesmos argelinos e não franceses e,
necessariamente, oporão à metrópole um ideal de emancipação ou de uma
federação livre” (RECLUS, 1905:427).
38A
respeito da África Sub-Saariana, é importante dizer que Reclus foi um
dos primeiros autores a frisar a existência de uma original “civilização
africana”, que teve papel na formação do Antigo Egito e, logo, na
fundação da civilização mediterrânea. Aqui, é preciso esclarecer que ele
nega a existência de várias civilizações digladiando-se umas contra as
outras, pois postulava uma única civilização humana, com diferentes
características para cada povo ou região. Em sua visão, “o orgulho
racial, do qual os historiadores não suspeitaram o suficiente, havia
gerado e difundido muito preconceito, reivindicando que os africanos não
tinham parte na obra geral da civilização [...] Ao contrário, a
história de nosso progresso nos conduz, necessariamente, em direção à
Bacia do Nilo, à terra africana” (RECLUS, 1885:32). Por outro lado,
Reclus cita ironicamente a civilização européia (escrevendo a palavra
entre aspas), condenando os prejuízos causados na África pelos
traficantes brancos de escravos: “Foi a influência da civilização
européia que piorou gravemente a condição do escravo africano” (RECLUS,
1885:41).
39Nos anos em que Reclus escreveu os volumes da Nouvelle Géographie Universelle
dedicados à África, os impérios europeus tinham, consoante o Congresso
de Berlim de 1885, apenas começado a retalhar o vasto continente, onde
ocuparam, efetivamente, pouco mais do que as regiões costeiras. Ele nota
que “postos comerciais franceses não são numerosos” na Costa do Marfim,
por exemplo (RECLUS, 1887:416). A respeito da Costa Negreira, embora
quatro nações européias estivessem disputando entre si por influência
regional, “no lado norte, na hinterlândia, suas propriedades ainda não
tinham fronteiras delimitadas. Eram poucos os viajantes europeus que
visitavam estes países” (RECLUS, 1887:462). Esta situação também diz
respeito a um dos mais antigos portos marítimos dominado pela Europa:
Senegal. “As possessões francesas de Senegâmbia ainda não têm outra
cidade digna deste nome senão a capital” (RECLUS, 1887:248). As
declarações reclusianas são confirmadas por historiadores contemporâneos
como Jacques Frémeaux. Segundo ele, na zona conhecida à época como
Sudão (correspondendo hoje ao Sahel), a administração francesa
controlava um território militarmente limitado a “uma estreita faixa de
terra de cada lado da estrada construída” (FRÉMEAUX, 1993:43).
40Tratando das colônias francesas na África Ocidental, Reclus promove novamente uma distinção entre colônia e conquista indicando que, no Senegal
“este grupo de franceses não
pode mesmo ser considerado como uma redução das sociedades européias,
porque ele não é composto por todos os elementos orgânicos de uma nação,
mas apenas por comerciantes e funcionários. Apesar do Senegal ser a
mais antiga das ‘colônias’ francesas, é a mais impropriamente chamada de
colônia (RECLUS, 1887:230).
41Como
muitos autores têm apontado, a Terceira República Francesa aplicou à
África Ocidental o princípio da assim chamada valorização de seus
recursos, o que supunha investir na construção de ferrovia e
infraestrutura modernas (CONKLIN 1997; PUYO 2001; SURUN 2011). Reclus
não se opõe a priori a este princípio; ele é mais
favorável a este projeto do que à ferrovia Transsaariana. O que ele
contesta é o princípio segundo o qual os benefícios destas obras sejam
reservados aos conquistadores.
42Por
outro lado, ele encontra na África Ocidental o exemplo do que considera
uma verdadeira colônia: o Estado da Libéria, a pátria dos escravos
libertos ― no momento em que autores europeus eram céticos sobre a
capacidade de auto-governo dos povos negros.
“Não é um evento capital que a
constituição de uma sociedade composta inteiramente por filhos de
escravos ou de libertos tenha tomado por domínio um território onde os
traficantes de escravos vinham formar seus grupos de prisioneiros? A
despeito do que é dito, a Libéria está longe de ser um Estado mais
frágil ou menos organizado do que as ‘colônias’ européias que a
circundam. Ademais, sua vantagem reside em ser uma verdadeira colônia”
(RECLUS, 1887:369).
43Ele
destaca a importância política desta experiência que, atualmente,
poderia ser comparada, ironicamente, à “descolonização” em relação às
grandes revoluções européias de 1848: “o grande ano das revoluções na
Europa e na Ásia marcam o nascimento, em solo africano, da nova
República Negra” (RECLUS 1887:370).
44Em
seus trabalhos geográficos, Reclus dedica espaço considerável aos povos
nativos, às suas histórias, culturas e etnicidade, compartilhando tal
interesse com seu irmão etnógrafo Elie Reclus (1827-1904), um dos
principais colaboradores da Nouvelle Géographie Universelle.
Irmão mais velho, ele também foi um dos primeiros autores a criticar as
fontes com as quais, à época, os cientistas baseavam seu conhecimento
nos assim chamados “selvagens”. No início de seu livro Les Primitifs, ele
anotou: “Não hesitamos em afirmar que em muitas tribos denominadas
selvagens, a média individual não é nem moralmente, nem intelectualmente
inferior aos indivíduos dos nossos denominados estados civilizados
(...) Aquelas tribos estavam sendo descritas apenas por seus invasores,
que poderiam, pelo menos, compreendê-los” (ELIE RECLUS, 1885: XIII-XVI).
45Naquele
tempo, boa parte destes povos morava na zona tropical. De acordo com
Pierre Singaravélou, geógrafos europeus viam nos trópicos “a perfeita
expressão de suas análises esquemáticas baseadas na influência do meio
sobre o homem” (SINGARAVÉLOU, 2009:49). Enquanto os irmãos Reclus não
eram exceções a este olhar, o enfoque deles residia nas diferentes
estratégias de adaptação desenvolvida por cada povo. Este discurso foi
muito útil para suas políticas igualitárias porque, em sua visão, a
relativização das condições materiais tornou possível apreciar a
inteligência e a habilidade dos povos em relação ao ambiente, sem
nenhuma razão que justificasse falar em ‘superioridade’ ou
‘inferioridade’ de uma cultura. Naturalmente, Elisée Reclus é irônico a
respeito de certos chavões ao redor dos habitantes dos trópicos. No
volume da Nouvelle Géographie Universelle
dedicado à África Ocidental, ele argumenta que “o povo krous contradiz
fortemente a idéia preconceituosa de que o homem das terras tropicais é
incuravelmente preguiçoso; eles trabalham com energia e perseverança e
são muito vigorosos” (RECLUS, 1887:387).
46Reclus
também argumenta acerca dos arranjos políticos de diferentes tribos e
grupos étnicos nos trópicos. Ele analisa a organização tribal da região
Bambouk empregando uma terminologia que remete aos debates políticos
contemporâneos na Europa. “A região Bambouk é a parte da bacia do
Senegal onde as aldeias, quase todas habitadas pelos Pagan Mandingos,
preservam melhor sua independência republicana e sua organização
federativa” (RECLUS, 1887:264). A idéia de “republicanismo” aparece
muitas vezes neste volume da Nouvelle Géographie Universelle,
tal como quando o autor refere-se às “comunidades republicanas”
(RECLUS, 1887:469) dos Minas na Costa Negreira. Isso revela que a visão
reclusiana não admitia os povos africanos como objetos, mas enquanto
cidadãos com os mesmos direitos dos europeus. No ambiente colonialista
francês de então, era raro e difícil ouvir alguém chamar os nativos de republicanos pois,
em francês, a expressão implica em plenos direitos de cidadania e total
compromisso com a história e a tradição da nação após a Revolução de
1789. Reclus também está interessado nas diferenças de classe no
interior das sociedades africanas. Observando Ashanti (estado de Gana),
ele nota que “a separação e os privilégios classistas de povos poderosos
são mais importantes e respeitadas aqui do que em todos os outros
países” (RECLUS, 1887:430).
47Por
fim, Reclus, que passara boa parte de sua juventude defendendo os
abolicionistas durante a Guerra de Secessão Americana (ALAVOINE-MULLER,
2007), exalta a dignidade do povo negro, que resistiu o máximo possível à
escravidão do outro lado do Atlântico. Os denominados Minas “foram os
que lutaram com mais frequência para recuperar sua liberdade e, no
interior do Brasil, constituíram a mais próspera e a mais bem protegida
comunidade de fugitivos” (RECLUS, 1887:470).
48Em 1889, ao terminar de compilar a Nouvelle Géographie Universelle, Reclus
iniciou outras séries de trabalhos notáveis sobre a questão colonial
como um todo, começando com resenhas publicadas no periódico Humanité Nouvelle (novo nome da antiga Société Nouvelle). Resenhando Jours de Guinée de Pierre d’Espagnat, Reclus declarou-se indignado com a sociedade colonial e desejou viver em um país onde
“as atrocidades contra os povos
negros não fizessem parte das boas maneiras. Tais páginas ensinam-nos
bastante sobre a ‘civilização’ que nossos compatriotas trouxeram ao
continente africano. Elas descrevem pequenos prisioneiros de sete ou
oito anos de idade, cujos pais tiveram a garganta cortada, trazidos para
aldeias negreiras para serem vendidos a algum rei negro de um pequeno
país ou a algum mercador europeu, que completará sua educação com seu
porrete” (RECLUS, 1899a).
49Em sua resenha de La colonia Eritrea,
do italiano Meldi, Reclus é irônico ao relatar o grotesco esforço
colonial da Itália sob Francesco Crispi. “Nós não precisamos dizer que,
de acordo com o autor, cheio de fé patriótica, os italianos têm todos os
direitos nesta empreitada, tanto contra os nativos como contra seus
concorrentes europeus” (RECLUS, 1900a).
50Um
livro sobre as colônias francesas na Indochina é uma oportunidade para
divulgar que a escravidão existe mesmo sob direta administração
francesa. Reclus irrita-se com os
“homens de negócio e
especuladores famintos por ouro que vivem no país para explorar
completamente os vinte milhões de annameses e tonkineses (...) Sob a
administração do republicano radical Doumier, o comércio de escravos
annameses foi instituído em benefício de alguns aproveitadores
recomendados por banqueiros parisienses. Para comprar um homem, basta
fazê-lo assinar um papel em francês” (RECLUS, 1899c).
51Portanto,
exportar a civilização francesa significa tornar alguém escravo por
meio da assinatura de papéis ― na linguagem da Declaração de 1789!
52Todavia, o livro que mais irritou Reclus foi uma obra declaradamente racista: Psychologie de la colonisation française,
de Léopold de Saussure. “Os fanáticos do império colonial podem
encontrar inúmeros exemplos das falhas cometidas na ‘educação de nossos
irmãos inferiores’” (RECLUS, 1899b:247). Aqui, o tom irônico dá lugar à
denúncia contra todos os europeus que partem rumo ao estrangeiro e
sentem-se infinitamente superior aos nativos. Para Reclus, não é nenhuma
surpresa que a mesquinha instrução européia recebida aguce o espírito
de rebelião local:
“Como poderia ser diferente?
Esse ódio do escravo que se revolta contra nós é correto e prova, pelo
menos, que ainda há esperança de emancipação. É natural que hindus,
egípcios, kaffirs e irlandeses odeiem os ingleses; é natural que os
árabes execrem os europeus. Isso é justiça!” (RECLUS, 1899b:247).
53Em seu último trabalho, L’Homme et la Terre (1905-1908),
Reclus transfere esse gênero de análise para o contexto dos impérios
coloniais. Em uma passagem a respeito da colonização africana,
encontramos uma precoce ocorrência do termo “imperialismo”, bem como um
claro repúdio às teses da direta influência climática sobre o
comportamento dos indivíduos:
“Concernente aos crimes
cometidos em muitas circunstâncias pelos exércitos coloniais, que
despertaram o sentimento universal de indignação, alguns teorizaram que a
influência do sol tropical pode ser a causa de uma doença especial
chamada ‘sudanite’, que afeta, especialmente, os oficiais superiores,
fazendo com que eles comentam crimes sem nenhuma razão aparente. A
invenção desta doença por oficiais superiores, que possui a grande
vantagem de fazer com que eles não sejam culpados pelos tribunais
militares, assemelha-se à brilhante idéia criada para justificar o roubo
de lojas quando cometido por ricas damas que, absolutamente, não
precisam do que roubaram. Trata-se de um simples caso de cleptomania,
referente à medicina e não aos tribunais. Contudo, sobre os oficiais
deixarem uma imensa dominação colonial, suas loucuras criminais podem
ser facilmente explicadas sem o ‘sudanite’: é puro poder, exercido sobre
pessoas consideradas algo menos que gente e sem o risco de semelhante
julgamento. Este poder logo se tornará um estilo romano de imperialismo
ou simples perversidade (RECLUS, 1908: 206-208)
54Tanto na Nouvelle Géographie Universelle quanto em L’Homme et la Terre,
Reclus não abre exceções para o menor dos poderes imperiais. No que
tange à América, ele escreve que em cada canto deste continente, dos
Vikings no século XI aos Conquistadores no século XVI, “o massacre
começou com a chegada do povo branco” (RECLUS, 1890:13). A Holanda é
definida simplesmente como a “parasita de Java” (RECLUS, 1879:336) O
reino da Bélgica é severamente censurado por seus crimes no Congo,
caracterizados como parte do comércio geral europeu:
“entre todos os crimes cometidos
na África pelos brancos, os praticados no ‘Estado Independente do
Congo’ talvez sejam os piores. São os mais recentes e os mais
organizados cientificamente. Porém, quem são ingleses, alemães e
franceses para, com mãos suficientemente limpas, protestarem sem
suspeita de parcialidade?” (RECLUS, 1905:447).
55Nos anos 80, alguns autores (ver Hérodote, 1981) afirmaram que, entre os escritos geográficos de Reclus, o mais radical e “interessante” seria o último, L’Homme et la Terre, com a Nouvelle Géographie Universelle sendo considerado um trabalho mais convencional. Agora, novas pesquisas ao redor deste gigantesco corpus têm mostrado que, embora a Nouvelle Géographie Universelle nunca
tenha sido planejada para ser um instrumento de propaganda, ela ocupa
um lugar importante na construção de um discurso crítico sobre Europa,
Alteridade e Colonialismo.
56Primeiramente, esta obra foi um bestseller em
seu tempo: aproximadamente vinte mil cópias da primeira edição foram
impressas e traduzidas para todas as principais línguas européias. Por
esta razão, podemos inferir que ela jogou um papel não-desprezível na
formação da opinião pública progressista, tanto mais se considerarmos a
fama de Reclus como anarquista e sobrevivente da Comuna de Paris.
57Em segundo lugar, a Nouvelle Géographie Universelle contribuiu
para a diminuição da primazia da Europa nos trabalhos geográficos
(menos de um terço dela é dedicada à Europa), além de ter ensaiado
representar todos os povos do globo de acordo com os princípios da
unidade humana e fraternidade (RECLUS, 1876:IV). Ao fazê-lo, ele
encorajou leitores a situarem a si mesmos em uma posição relativa para a
compreensão do Outro, sem julgamentos de superioridade ou
inferioridade. Ele declarava que a progressiva globalização ― palavra
que não existia à época, mas cujo conceito já estava claro ― faria com
que a Europa e a Alteridade se aproximassem cada vez mais tanto do ponto
de vista material quanto cultural. No dizer de intelectuais
pós-coloniais contemporâneos, “Todo lugar é constitutivo do Aqui e
vice-versa; não há mais Dentro e Fora” (BANCEL et al., 2010:21). Segundo
Reclus, o mundo é um globo “cujo centro está em todo lugar e a
circunferência em lugar nenhum” (RECLUS, 1876:7).
58Em
terceiro, as condenações reclusianas sobre os crimes coloniais são
fortes e frequentes em sua obra geográfica. Elas antecipam a crítica ao
colonialismo e ao imperialismo que o movimento socialista europeu
adotaria nas primeiras décadas do século XX e que, ainda hoje,
permanecem um problema aberto. Além disso, seu trabalho pode ser uma
estimulante contribuição para os atuais estudos subalternos e
pós-coloniais, especialmente em sua dimensão geográfica. De fato,
autores pós-coloniais, começando pelo trabalho pioneiro de Edward Said
(SAID, 1978), construíram ferramentas intelectuais frequentemente
citadas em recentes livros de história do pensamento geográfico. Sua
coerência para com as questões pós-modernas e a pluralidade de visões
possibilitadas por um “pós” que significa “não apenas ‘depois’, mas
‘indo além’” (STUART HALL, 1996:53) faz do pensamento colonial algo
muito atraente para a pesquisa geográfica. Atualmente, ela está
envolvida com típicas noções pós-coloniais, tais como marginalização ou alteridade
(SPIVAK, 1985). Reclus é um exemplo de uma via diferente de lidar com a
Alteridade. De qualquer modo, ele pertence à tradição européia e era um
produto de seu tempo. Porém, sempre tentou entender o ponto de vista de
todos os povos, localizando a si próprio como um deles ao invés de
julgá-los; assim, desenvolveu um discurso científico que se apresentou
como muito heterodoxo para o seu tempo. Sua atenção às diferenças
culturais está sempre articulada à sua análise da dominação. Tal como
Gerry Kearns argumentou: “A subjugação abusou do povo subjugado (…)
Sinais tidos pelos orientalistas como marcas de decadência eram, para
Reclus, evidências de má administração” (KEARNS, 2009:187).
59Como dissemos, Reclus estava desconfortável com Hegel, cuja Fenomenologia
agora é considerada um “texto fundador do poderio colonial europeu”
(GIDWANI, 2008:2583). Não foi por acaso que, no século seguinte, Frantz
Fanon conseguiu lidar com o “momento subalterno” da dialética hegeliana
apenas quando inverteu criativamente seu legado por meio de uma
“fidelidade insurrecionária” (GIDWANI, 2008:2585). Reclus, Kropotkin e
outros anarquistas da época criticaram tanto a dialética hegeliana
quanto a marxista como um método igualmente metafísico, mesmo se
aplicado ao materialismo (KROPOTKIN, 1908). Suas principais referências
filosóficas eram a Encyclopédie, a Naturphilosophie e a
dialética “binária” ou “serial” de Proudhon (PELLETIER, 2009) que
também inspiraram, junto com Bakunin, suas perspectivas federalistas.
Segundo Kropotkin, o anarquismo dialogou com as ciências sociais
aplicando um método preferencialmente empírico e pragmático, que nos
remete à fenomenologia contemporânea e às abordagens sistêmicas.
Conforme Claude Raffestin, este método faz da geografia reclusiana algo
muito engajado com a complexidade e com as diferenças: “Reclus nunca se
fechou dentro de uma teoria rígida onde a Geografia seria ‘isto e não
aquilo’; em sua vontade de mostrar e de explicar, ele preferiu dizer
‘isto e aquilo’ (RAFFESTIN, 2008:165). Encontramos afirmação semelhante
na clássica biografia redigida por Max Nettlau, que comparou o método
geográfico da Nouvelle Géographie Universelle e as abordagens
anarquistas anti-dogmática e anti-metafísica recuperando as
epistemologias críticas de Karl Popper e Paul Feyerabend. De acordo com
Nettlau, “apenas um anarquista poderia terminar esta obra onde milhões
de particularidades aparecem em uma ordem harmônica, porque ele tinha o
espírito amplo e flexível o suficiente para conferir, a cada problema,
seu lugar ― sem forçá-lo a adentrar em um sistema teórico pré-concebido”
(NETTLAU, 1930:30).
60Além disso, nas noções reclusianas de migração e miscigenação
como os mais importantes fatores de impulsão da história mundial,
encontramos a antecipação da idéia contemporânea de um complexo sistema
mundial ― algo bastante próximo das afirmações de Eric Wolf em sua obra
clássica sobre povos sem história, quando sublinha a natureza
interconectada da história humana e argumenta que “a busca por um mundo
de pureza é ilusória” (WOLF, 1982:17).
61Inevitavelmente,
decerto que Reclus compartilhava os limites de um pensador europeu do
século XIX, e seus prognósticos sobre o progresso social e a
“fraternidade universal” são certamente muito otimistas se considerarmos
a história do século XX. Porém, este gênero de universalismo não é a
afirmação de uma assimilação necessária ou de um processo evolutivo
fixo, mas, antes, uma declaração de sua esperança na expansão mundial
dos princípios de “cooperação” e “livre federação”. Encontramos
declarações do mesmo gênero “universalístico” no atual debate
pós-colonial, notadamente quando Achille Mbembe ― com uma linguagem que
nos parece muito próxima da de Reclus ― assevera que “o pensamento
pós-colonial sublinha a humanidade-em-formação, a humanidade que
emergirá quando as figuras coloniais da barbaridade e das diferenças
raciais tiverem sido eliminadas pelo advento de uma comunidade fraternal
universal” (MBEMBE, 2008). Assim, universalismos críticos são
possíveis, e podemos compreendê-los melhor no momento em que pensadores
críticos como Reclus ainda puderem dar sua contribuição aos estudos
pós-coloniais e subalternos.
62Finalmente, podemos sustentar que Elisée Reclus, seu irmão Elie e alguns outros colaboradores da Nouvelle Géographie Universelle
― como os geógrafos anarquistas russos Kropotkin e Mechnikov (FERRETTI,
2011a) ― demonstraram a existência de pensadores heterodoxos na ciência
européia do século XIX que não estavam alinhados aos discursos
colonialista e racista dominantes. Evitando o anacronismo, é importante
estudar suas obras para preservar e considerar criticamente os traços de
uma outra perspectiva européia de ver o mundo.