- 1 Publicação original: STEIN, Stanley. The Brazilian Cotton Manufacture: Textile Enterprise in an Und (...)
1
Em seu estudo pioneiro sobre a indústria têxtil no Brasil, publicado
originalmente em 1957, o brasilianista Stanley Stein argumentou que,
durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o setor de fiação e
tecelagem de algodão havia ingressado “num período de grande prosperidade que ofuscou a ‘era de ouro’ das primeiras décadas do século XX” (STEIN, 1979, p.165 [1957]). 1
2
Segundo ele, o contexto da guerra fomentou uma demanda mundial por
tecidos de algodão, tendo em vista que os principais países fornecedores
do produto no mercado de exportação estavam priorizando outros ramos
industriais, principalmente o bélico. Dessa forma, os “empresários
têxteis brasileiros foram surpreendidos com a oportunidade de abastecer a
América Latina, a Europa e o Oriente Próximo”, porém “com praticamente as mesmas instalações, equipamentos e técnicas empresariais dos anos críticos da década de trinta” (STEIN, 1979, p.167 [1957]).
3As
indústrias têxteis brasileiras também foram bastante beneficiadas com o
chamado “esforço de guerra”, conciliando um forte incremento na produção
de tecidos com a supressão de diversos direitos trabalhistas,
recentemente promulgados na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Este bom momento gerou um rápido retorno financeiro aos empresários, já
que o setor têxtil havia sido incluído no conjunto de outras indústrias
consideradas de “interesse nacional” durante a guerra. Essa conjuntura
favorável para o setor têxtil chegou a ser abordada em um memorando da
Embaixada Americana, datado de 1944: “É evidente que a Lei de Mobilização [esforço de guerra]
dá à indústria têxtil controle autocrático sobre a sua força de
trabalho e que essa indústria recorre a esse controle para responder à
pressão que podia vir de baixo para cima (...)” (COSTA, 1994. p.94).
4O Brasil já havia assumido cotas de exportação de tecidos distribuídas pela United Relief and Rehabilitation Administration
(UNRRA), uma representação das Nações Unidas para assistência e
reabilitação mundial diante da escassez de abastecimento gerada pela
guerra, e também cotas pelo Conselho Francês de Aprovisionamento (CFA).
Diante deste cenário desafiador, mas com perspectivas promissoras, foram
desenvolvidas uma série de ações de planejamento no âmbito do então
Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, sobretudo a partir da
criação da Comissão Executiva Têxtil (CETex), órgão responsável por
orientar e dirigir essa mobilização de empresas de tecidos no país
(Brasil, Decreto-Lei no 6.688, 13/07/1944).
5Por
meio de um relatório publicado em 1946, que utilizaremos como base para o
presente artigo, a CETex apresentou dados bastante interessantes sobre a
situação da industrial têxtil brasileira no imediato pós-guerra. Ao
todo, foram recenseadas 420 fábricas de fios, tecidos e artefatos de
algodão, distribuídas em dezessete estados, mais o Distrito Federal
(que, na época, era a atual cidade do Rio de Janeiro). As maiores
concentrações estavam localizadas nos estados de São Paulo (com 223
fábricas), Minas Gerais (60), Rio de Janeiro (24), Pernambuco (17) e no
Distrito Federal (15). Para além da evidente concentração industrial
têxtil entre estados vizinhos na atual região Sudeste do país, convém
ressaltar que também havia um número significativo de fábricas,
relativamente próximas, entre Pernambuco, Alagoas (9) e Paraíba (5),
algumas delas pertencentes à mesma companhia. Aliás, o mesmo também
ocorria entre fábricas do Rio de Janeiro e Distrito Federal (CETEX,
1946, pp.103-104).
6Vale
ressaltar que, neste momento, a indústria têxtil de algodão era a que
mais empregava operários no país e as maiores unidades fabris (em número
de trabalhadores) estavam localizadas, respectivamente, nos estados da
Paraíba (oito mil somente na fábrica Rio Tinto, da Companhia de Tecidos
Paulista); Pernambuco (dez mil na fábrica Paulista, da mesma companhia, e
cinco mil no Cotonifício Bezerra de Mello, em Recife); São Paulo (sete
mil na Companhia Nacional de Estamparia e 5 mil na Indústrias
Votorantim, ambas em Sorocaba); e o Distrito Federal (5 mil
trabalhadores na Companhia América Fabril). Neste último caso, foi
contabilizado o total de operários das quatro unidades da empresa
localizadas na cidade do Rio de Janeiro: Cruzeiro, Bonfim, Mavilis e
Carioca (CETEX, 1946, p.116 e 325).
7Em
relação ao estado do Rio de Janeiro, cuja capital era Niterói, esse
relatório indicou, em página posterior, 25 fábricas de tecidos, ao invés
das 24, sob a ponderação de que foram realizados e utilizados mais de
um “inquérito industrial”, por isso as “divergências que se observam” (CETEX,
1946, p.354). De qualquer forma, foi verificado que as dez maiores
fábricas têxteis fluminenses empregavam entre 1.001 e duas mil pessoas,
ou seja, 40% do total. Se considerarmos as unidades fabris com mais de
quinhentos trabalhadores, esse percentual subiria para 56%, totalizando
catorze fábricas. (CETEX, 1946, p.117).
8Dentre
as 18.505 pessoas empregadas na indústria têxtil fluminense,
distribuídas em treze municípios, cerca de quatro mil eram menores de
idade (22%). Do restante, homens e mulheres adultos correspondiam
igualmente à faixa de sete mil trabalhadores (39% cada), inclusive
destoando do panorama nacional, que apresentava um quadro de 44% de
mulheres trabalhadoras têxteis, 36% de homens e 20% menores (CETEX,
1946, p.115).
9Ao
indicar dados específicos de cada uma das 25 fábricas têxteis de algodão
no estado do Rio de Janeiro, o relatório permite vislumbrar as
principais cidades polo do setor: Petrópolis (com seis unidades fabris),
Magé (quatro), Valença (três), Niterói e Paracambi (duas cada), Nova
Friburgo, Campos, Três Rios, Cordeiro, Vassouras, Miracema, Barra do
Piraí e São João de Meriti (uma cada).
10No
entanto, é preciso ir além da quantidade de fábricas por município para
dimensionar adequadamente esses polos. Considerando somente as unidades
fabris de maior porte, entendidas no presente artigo como aquelas que
mantinham mais de mil pessoas empregadas, o município de Magé tomaria a
dianteira (com quatro fábricas), depois Petrópolis (com duas), seguida
de Niterói, Paracambi, Nova Friburgo e Campos (uma cada), totalizando
dez fábricas. Já em número de operários, os principais polos são os
municípios de Magé (com 5.052 trabalhadores), Petrópolis (4.532),
Niterói (2.594), Paracambi (1.550), Valença (1.414), Nova Friburgo
(1.206) e Campos (1.086).
TABELA 01. Fábricas Têxteis de Algodão no Estado do Rio de Janeiro (1946)
(1)
A Cometa foi contabilizada com duas unidades fabris, porém
centralizando o total de operários. Talvez este seja o motivo da
divergência contida na publicação, entre 24 ou 25 fábricas.
(2) Não foi indicada a quantidade de operários da fábrica José Nora (CETEX, 1946, pp.322-323).
11Interessante
observar que, nos anos de 1948 e 49, muitos desses polos têxteis
protagonizaram um intenso ciclo de greves de trabalhadores, sobretudo
nas fábricas dos municípios de Magé, Niterói, Nova Friburgo e
Petrópolis. O movimento reivindicava o cumprimento imediato do reajuste
salarial de 40%, estabelecido pelo Tribunal Regional do Trabalho do Rio
de Janeiro (TRT-RJ) em dissídio coletivo no ano anterior, e o fim da
chamada Lei de Assiduidade Integral, que condicionava o aumento de
salário do trabalhador à ausência de faltas e/ou atrasos do trabalhador.
Ao todo, treze fábricas fluminenses foram mobilizadas e, como pano de
fundo desses conflitos, estava justamente o processo de mobilização das
indústrias têxteis a partir do contexto da Segunda Guerra Mundial
(AMARAL, 2016, pp.162-163; e RIBEIRO, 2015, pp.128-129).
12Portanto,
visando compreender mais detidamente os (des)caminhos da indústria
fluminense de tecidos de algodão no contexto pós-guerra, com ênfase nas
relações capital-trabalho, propomos um estudo sobre as quatro fábricas
têxteis do município de Magé, que estavam entre as dez maiores unidades
fabris do setor no estado, todas com mais de mil trabalhadores. Nosso
principal objetivo será analisar e distinguir as ações empresariais para
além do espaço fabril, aspecto privilegiado sobre o setor têxtil nos
estudos acadêmicos que foram desenvolvidos após a obra seminal de
Stanley Stein, como veremos a seguir.
13Enquanto
alguns industriais investiram parte do capital financeiro adquirido
durante a guerra na reforma de suas unidades fabris, na introdução de
novos equipamentos, maquinário e processos industriais; outros buscaram
somente aproveitar a efêmera proeminência do Brasil no mercado mundial
de tecidos para auferir lucros com as exportações, descuidando do
reaparelhamento de suas fábricas.
14Ao
fim da guerra, passado o período de “grande prosperidade”, o quadro
geral da indústria têxtil no Brasil já havia se alterado drasticamente,
com os tradicionais fornecedores de tecidos se organizando para retomar
seus mercados e os produtos brasileiros com dificuldades de enfrentar a
concorrência desses países. Por outro lado, ao relegar o consumo interno
em prol dos lucros no exterior, os industriais acabaram provocando a
escassez e o encarecimento dos tecidos no mercado brasileiro, o que
inclusive motivou o governo a suspender as exportações, a contragosto
dos empresários têxteis.
Os representantes da indústria
protestaram contra estas medidas, responsabilizando-as pela perda dos
mercados externos. (...) Tanto falaram em “bancarrota”, em “crise” e em
“superprodução”, caso o governo não liberasse e amparasse as
exportações, que acabaram despertando verdadeiro clamor público.
Elevou-se no pós-guerra um ressonante coro de críticas contra os
empresários que insistiam em dizer que só as exportações, subvencionadas
pelo governo, poderiam dar vazão aos excedentes de produção. (...)
Dizia-se que não tinham razão nenhuma para reclamar, pois a íntima
convivência indústria-governo só lhes trouxera vantagens, sob a forma de
tarifas e subsídios (...). A opinião pública, indignada, exigia agora
que a indústria têxtil cumprisse com os compromissos decorrentes de seus
privilégios. Chegara, finalmente, a hora de acertar as contas. (...) A
análise das origens e da natureza da insatisfação popular contra os
empresários têxteis no pós-guerra coloca em evidência algumas das
deficiências da próspera e centenária indústria de tecidos do Brasil.
(...) Durante a guerra, as fábricas de tecidos proporcionaram generosos
dividendos aos seus diretores e acionistas. Aos consumidores, tocara a
outra face desta prosperidade: a escassez e a carestia (STEIN, 1979,
p.168 [1957]).
15Por
ironia, o mesmo discurso patriótico e nacionalista que impulsionou os
trabalhadores ao “esforço de guerra” foi utilizado por eles para
criticar os industriais têxteis, acusados de não se sujeitarem ao
“sacrifício” e às “concessões”, como seus empregados, estando mais
preocupados em enriquecer exportando tecidos caros do que fabricar
produtos populares para os brasileiros, seus compatriotas. “A guerra
contribuíra, ainda que indiretamente, para que os trabalhadores
brasileiros adquirissem nova consciência de sua importância na economia
nacional” (STEIN, 1979, p.178 [1957]).
16As
décadas posteriores à guerra, portanto, foram marcadas por fortes
tensões entre o empresariado têxtil e seus trabalhadores organizados,
englobando debates sobre produção, faturamento, investimentos,
desenvolvimento nacional, relações de trabalho, aplicação da legislação
trabalhista e luta por “novos direitos”. Sobre as relações
capital-trabalho, particularmente, os padrões tradicionais de
administração de empresas utilizados com sucesso pela indústria têxtil
de algodão desde o início do século XX– cuja tônica era o paternalismo –
tornavam-se alvo de críticas no contexto pós Segunda Guerra Mundial
(STEIN, 1979, p.187 [1957]).
17Por
sinal, os principais trabalhos sobre indústria têxtil no Brasil
publicados desde o clássico de Stein buscaram refletir, em grande
medida, sobre essas tensões. Destacamos aqui as obras do sociólogo
Juarez Brandão Lopes, lançada em 1967, e do antropólogo José Sérgio
Leite Lopes, em 1988, ambas como resultado de pesquisas de campo
realizadas na década anterior às publicações.
18Brandão
Lopes produziu uma pesquisa pioneira sobre o operariado fabril, a
partir de um estudo de caso sobre as relações industriais em duas
comunidades da Zona da Mata Mineira que continham fábricas têxteis.
Embora fuja aos interesses deste artigo uma abordagem mais detalhada
deste importante trabalho, faz-se necessário observar que o autor tinha
como importante referência as considerações do próprio Stein, que ao
final do seu livro enfatizou a necessidade da “modernização dos métodos de administração”, tida como “o maior desafio que se colocava para os empresários têxteis brasileiros”
em meados do século XX (STEIN, 1979, p.184 [1957]). Ressaltamos que
Brandão Lopes utilizou em seu estudo como referência a obra de Stein em
inglês.
19Dessa forma, o sociólogo buscava compreender o ajustamento do trabalhador a essa “nova” indústria, que seria marcada pela “quebra do padrão patrimonialista de relações de trabalho”, revelando importantes processos de mudança, e por isso considerada como “a trava mestra da ordem tradicional no Brasil” (LOPES, 1967, p.1).
20Embora
essa pesquisa tenha se tornado um clássico, fundamental para os estudos
sobre trabalhadores no Brasil, seu legado acadêmico, vinculado a uma
série de estudos sociológicos das décadas de 1950 e 60, acabou
inculcando visões depreciativas em relação ao mundo rural, inspirados
pela noção de modernização. Assim, consolidou-se no imaginário acadêmico
uma divisão estrutural que caracterizou o rural como sinônimo de atraso
e o urbano como progresso. A despeito de eventuais críticas, destacamos
a relevante contribuição desse autor para a sociologia, sobretudo por
seu pioneirismo ao investir em “estudos de caso”, tendo esta noção
modernizadora sido reforçada mais pelos estudos inspirados em Brandão
Lopes do que propriamente nos trabalhos do autor (Lopes, 1987).
21Posteriormente,
a antropologia social do trabalho passou a apresentar relevantes
estudos sobre têxteis. A principal referência nessa área, sem dúvida, é a
obra de José Sérgio Leite Lopes, autor de diversos trabalhos sobre o
tema. Um deles, em especial, se tornou um clássico, no estudo sobre os
operários da Companhia de Tecidos Paulista, localizada nos arredores de
Recife. Realizando dezenas de entrevistas com trabalhadores têxteis, o
antropólogo desenvolveu o conceito de uma forma de dominação fabril
bastante peculiar, denominada como “padrão fábrica com vila operária” e
definida enquanto resultado de uma configuração específica da relação
entre a força de trabalho industrial e o patronato, que se constitui em “uma
situação onde a própria fábrica é proprietária das casas em que moram
seus operários e é promotora da vida social extra-fabril da localidade” (LOPES, 1988, p.17).
- 2 Tecido Memória (2008). Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=MRsQU4Pt-QI>.
22
No entanto, embora a literatura frequentemente sugerisse que uma
“fraca” militância política estaria associada ao controle patronal
exercido sobre as formas de moradia dos trabalhadores, a pesquisa de
Leite Lopes demonstrou como “as contradições e os conflitos são inseparáveis da própria apresentação analítica da dominação”,
onde a visão de grandeza da “cidade das chaminés” – representada pelo
poder da fábrica de tecidos – dialogava com uma forte visão crítica
sobre ela – representada pela “grandeza” do movimento operário local
(LOPES, 1988, p.22 e 591). Mais recentemente, ao retomar contato com
seus entrevistados da década de 1970, o autor participou da coprodução
do documentário “Tecido Memória”, ao lado de Rosilene Alvim e Celso Brandão. 2
23Em
certa medida, podemos afirmar que o trabalho de Leite Lopes foi um dos
pioneiros em analisar trabalhadores têxteis no Brasil como sujeitos e
atores sociais conscientes, capazes de influir decisivamente no processo
histórico. As análises de Stein e Brandão Lopes, este em menor grau,
estiveram preocupadas principalmente com as questões dos industriais e
de suas unidades fabris.
24Portanto,
é a partir do “padrão fábrica com vila operária”, conceito construído
por José Sérgio Leite Lopes, que o presente artigo pretende analisar as
fábricas têxteis de Magé. Elas foram instaladas no município durante o
século XIX, em grande medida por conta do considerável potencial
hidráulico da região, cortada por diversos rios oriundos da Serra dos
Órgãos. Ao todo, foram fundadas quatro unidades têxteis: Fábrica
Nacional de Santo Aleixo (1848), Fábrica de Tecidos Pau Grande (1878), Companhia de Fiação e Tecidos Andorinhas (1890) e Companhia de Fiação e Tecidos Mageense (1891).
25Os
nomes destacados serão utilizados neste estudo para se referir às
respectivas unidades fabris, pois eles acabaram se popularizando a
despeito das alterações de propriedade e do nome oficial de cada uma
dessas empresas ao longo do tempo. Nesse ínterim, cabem algumas
observações sobre a fábrica Pau Grande: embora tenha sido construída em
1878, seu registro na Junta Comercial só ocorreu no ano seguinte, com a
firma Santos, Peixoto & Cia. Em 1885, é que ela passou a ser gerida
pela sociedade anônima Companhia de Fiação e Tecidos Pau Grande.
Posteriormente, com a aquisição da fábrica Cruzeiro, na cidade do Rio de
Janeiro, essa sociedade foi transformada, no ano de 1892, em Companhia
América Fabril. A empresa adquiriu maior projeção no país no cenário
econômico pós Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e se tornou, entre as
décadas de 1920 e 30, a mais importante empresa brasileira do ramo
têxtil (WEID, 1986, p.59 e 133).
- 3 Há referências de que a fábrica Santo Aleixo, já em meados do século XIX, provia alojamentos para o (...)
26
Em Magé, a Companhia América Fabril foi pioneira no projeto “fábrica
com vila operária”, posto em prática a partir da última década do século
XIX, enquanto que os investimentos das fábricas Andorinhas e Santo
Aleixo ainda eram escassos nesse sentido, só ocorrendo de forma mais
efetiva após a década de 1930. 3
27Na
realidade, as fábricas Pau Grande, Andorinhas e Santo Aleixo, em dado
momento, construíram vilas para seus empregados. A exceção seria a
fábrica Mageense, localizada no centro da cidade, que chegou construir
casas para trabalhadores, porém sem as características de um bairro
operário. Também cabe assinalar a existência das vilas das fábricas
Estrela e Meio da Serra. Esta, também do ramo têxtil e batizada com o
nome de Cometa, localizava-se bem na divisa com o município de
Petrópolis, sendo inclusive motivo de disputas fiscais entre Magé e a
cidade serrana; ao passo que aquela se dedica à produção de pólvora e
estava situada na Raiz da Serra, em Magé, sendo administrada à época
pelo Ministério da Guerra e atualmente pelo Exército Brasileiro (EB).
Apesar dessas duas fábricas não configurarem como objeto de análise
neste trabalho, julgamos interessante a citação, devido ao padrão
semelhante às demais.
28Essa
combinação de fábrica com vila operária é bastante recorrente na
bibliografia sobre industrialização e memória da classe trabalhadora, em
diferentes campos de análise nas ciências sociais. Inclusive, diversos
trabalhos citam as vilas operárias construídas pelas fábricas de tecidos
em Magé.
- 4 A fábrica Esther, da citação, é a fábrica Santo Aleixo, que foi rebatizada pela Companhia Bezerra d (...)
Os estabelecimentos têxteis
com moradias para trabalhadores foram uma característica do
desenvolvimento industrial no interior do Estado do Rio de Janeiro.
Exemplos são a ‘Fábrica Esther’ e a ‘Fábrica Andorinhas’, em Santo
Aleixo, e o ‘Cotonifício Levy Gasparian’, estabelecido em Três Rios. A
‘Fábrica de Tecidos e Fiação Pau Grande’, fundada em Magé em 1878, gerou
um importante núcleo fabril – Pau Grande, que nos anos de 1950 e 1960
tornou-se famosa como o local onde Mané Garrincha nasceu e começou sua
carreira. A ‘Companhia América Fabril’ foi proprietária de várias
fábricas no Estado do Rio de Janeiro, todas fornecendo casas para seus
operários. Além de Pau Grande, contava com outras fábricas com moradias
(GUNN, 2005, p.29). 4
29
Vale ressaltar que, desde a década de 1940, o próprio governo brasileiro
começou a intensificar investimentos na construção de vilas operárias
circunvizinhas às fábricas das empresas estatais. Há exemplos no próprio
estado do Rio de Janeiro, como a construção da Fábrica Nacional de
Motores (FNM), na localidade de Xerém, em Duque de Caxias, na Baixada
Fluminense. Construída durante o Estado Novo e impulsionada pelo
contexto da Segunda Guerra Mundial, a fábrica se notabilizou por sua
localização isolada, pela construção de vilas operárias, bem como por
seu investimento na autossuficiência de uma “Cidade dos Motores”, que
produziria seus próprios alimentos e teria seu comércio particular. Da
mesma forma, esta indústria “de ponta” mantinha relações de trabalho
bastante marcadas pelo exercício da subordinação com “características militares, paternalistas e de controle social”, com enorme ingerência na vida do trabalhador fora da fábrica (RAMALHO, 1989, p.18).
30Outro
exemplo foi a construção da Usina Presidente Vargas, pela Companhia
Siderúrgica Nacional (CSN), na localidade de Santo Antônio da Volta
Redonda, no Vale do Paraíba, que logo tornou-se um ícone do
desenvolvimento econômico brasileiro no pós-guerra. Afastada dos grandes
centros urbanos, Volta Redonda foi emancipada do município de Barra
Mansa e se transformou na cidade símbolo do trabalhismo, a “Cidade do
Aço”. Na realidade, o município resumia-se a própria fábrica. Seu
complexo fabril foi considerado um modelo de cidade industrial para o
país, habitada igualmente por “operários modelo”, que formavam a “grande família siderúrgica”, na simbologia de um novo trabalhador para um novo país (SILVA, 2011, pp.90-91).
Pela mística e pelas condições
que cercaram a constituição da CSN, a construção da usina e da cidade,
pode-se dizer, sem temer cair em exagero, que Volta Redonda foi para os
anos de 1940 o que a construção de Brasília representaria na segunda
metade dos anos de 1950 (MOREL, 2001, p.51).
31A
principal referência em muitas dessas pesquisas, conforme já apontamos, é
a obra de José Sérgio Leite Lopes. Entretanto, convém registrar que há
debates conceituais que distinguem o “padrão fábrica com vila operária”
de uma “company town” (Paz, 2011). A própria CSN, por exemplo, já foi
analisada sob as duas perspectivas (Correia, 2001). Nesse sentido,
reforçamos a necessidade de se aprofundar essas discussões, a fim de
evitar inadequações no uso dos conceitos. Em relação ao “padrão fábrica
com vila operária”, especificamente, não podemos lançar mão desse
conceito sem uma análise densa, verificando possíveis aproximações com o
respectivo objeto de pesquisa, bem como sua viabilidade metodológica.
No presente artigo, a proposta é analisar caso a caso as fábricas
instaladas no município, buscando indicar – ainda que preliminarmente –
similaridades e peculiaridades ao padrão estudado por Leite Lopes.
32Nesse ínterim, compreendemos os bairros industriais de Magé como um “caso particular do possível, no universo do padrão fábrica com vila operária” (LOPES,
1988, p.20). Por isso, faz-se necessário mapear tanto suas
particularidades em relação a outros municípios, quanto as distinções
entre as diversas vilas operárias do município. Com base em diversas
pesquisas publicadas sobre estes empreendimentos, buscaremos pontuar
aspectos que julgamos esclarecedores às questões levantadas na pesquisa.
33De
fato, a vila operária em Pau Grande apresentava certas peculiaridades,
principalmente pelo fato de ser um bairro mais afastado do restante do
distrito onde estava localizada, existindo inclusive uma cerca ao redor
do bairro e um pórtico com guardas da empresa em sua entrada. Nesse
sentido, Pau Grande chegou a ser considerada uma “cidade quase que independente do município” (SANTOS, 1957, p.170). De fato, o bairro destoava do restante de Inhomirim (6odistrito
de Magé), que possuía extensas terras oriundas das antigas fazendas do
período imperial, todas já decadentes. A malha ferroviária da Estrada de
Ferro Leopoldina também cortava o distrito, o que contribuiu
decisivamente para a ocupação dessa região durante a “febre de
loteamentos”, intensificada a partir da década de 1950. Atualmente, o
bairro de Piabetá (localizado nas proximidades da antiga estação de trem
“Entroncamento”) é considerado o segundo maior núcleo urbano de Magé e o
principal centro comercial no município.
34
Os militantes comunistas, por exemplo, comparavam o bairro operário aos
espaços prisionais típicos de regimes autoritários. O vereador e
dirigente sindical Astério dos Santos chegou a declarar, em outubro de
1959, durante o IV Congresso Fluminense de Municípios, que o bairro de
Pau Grande seria um “Campo de Concentração” (CMM, livro de atas 21, fls.1v-2).
35Anos antes, em 1953, o jornal Imprensa Popular identificava o bairro como um “feudo encravado na raiz da serra de Magé”, explorando trabalhadores na fábrica e na lavoura (IMPRENSA POPULAR,
04/03/1953, p.6). Além disso, o mesmo periódico, ao fazer a cobertura
de uma eleição no sindicato dos têxteis local, informava que os
trabalhadores votariam separadamente, de acordo com as seções existentes
na fábrica, entre elas a seção da “Lavoura” (IMPRENSA POPULAR, 21/07/1954, p.2). Em outro jornal, a “seção da Lavoura” foi chamada de “escritório da Lavoura” (O GLOBO, 13/01/1958, p.3).
36Durante
a década de 1960, a própria Companhia América Fabril, em anúncio
publicado na imprensa carioca, valorizava a estrutura em torno de suas
quatro fábricas de tecidos distribuídas nos estados do Rio de Janeiro e
da Guanabara (à época Brasília já era Distrito Federal). Na peça
publicitária, acompanhada por uma fotografia da vila operária em Pau
Grande, a empresa enfatizava que, embora as fábricas formassem um
“município”, elas “não tinham prefeitura”, numa clara referência a
autossuficiência da empresa: “Somos uma cidade. Escola, igreja, ruas
pavimentadas, casas, jardins, hospital, farmácia, dentista e campo de
futebol. Até lavoura e pecuária” (O GLOBO. 06/11/1964. p.3).
37De
qualquer forma, reiteramos que convém certa precaução ao investir no
termo “comunidade fechada”, pois ele denota aspectos semelhantes à de
uma “instituição total”, o que não é o caso. Aliás, estudos específicos
sobre esta mesma fábrica já apontaram que a vida social cotidiana desses
trabalhadores têxteis revela diversas formas de resistência, inclusive
no próprio espaço fabril.
Até mesmo dentro da fábrica, uma
certa indisciplina e uma "cultura de oficina" podem desenvolver-se,
parecendo quase indispensáveis para a boa gestão da produção. Além
disso, graças à exploração autônoma de recursos oferecidos pela empresa -
como a concessão de roçados operários ou de terrenos para cultivo, o
uso das matas ao redor para fins materiais (lenha) ou para lazer (caça,
especialmente de pássaros) -, esses operários, geralmente de origem
camponesa, beneficiavam-se de condições de vida mais favoráveis do que
poderíamos presumir, tendo em vista apenas os seus empregos industriais.
Outras estruturas ainda estavam à sua disposição, como assistência
médica, associações religiosas, grupos folclóricos, casa (...) e o clube
de futebol (MARESCA, 1992, p.121).
38
No que se refere a essas estruturas à disposição dos operários de Magé,
convém pontuar que a fábrica Pau Grande permaneceu, desde o século XIX
até a década de 1970, administrada pela Companhia América Fabril,
enquanto as demais fábricas de tecidos do município passaram por
diversos proprietários, o que implicou em variadas formas de
investimento dessas indústrias na vida social extrafabril.
- 5 A crise desta fábrica foi abordada em minha dissertação de mestrado (Ribeiro, 2009, pp.178-181).
39A fábrica Mageense, que estava localizada na sede do município (1o distrito),
pertencia durante a guerra à Companhia Industrial Santo Amaro e estava
inteiramente inserida ao centro urbano. Muito embora encontremos
investimentos dessa empresa no ambiente extrafabril, sua atuação nos
parece pouco significativa, sobre este aspecto, em comparação com as
demais fábricas analisadas, principalmente após ter enfrentado uma grave
crise, em 1952, quando encerrou suas atividades e provocou a venda da
massa falida da companhia no ano de 1956. 5
40Ao
reiniciar suas atividades, tendo como nova proprietária a Fábrica
Itatiaia de Tecidos S/A, a direção da fábrica buscou promover “imediata e completa recuperação das casas de moradia dos operários” e colaborar “materialmente na urbanização das terras onde se encontra localizada” (SANTOS, 1957, p.172).
41Interessante
observar que, durante aquela crise, outras fábricas têxteis do
município conseguiram incorporar boa parte dos operários desempregados. “Certa ocasião, a Fábrica Itatiaia [Companhia Santo Amaro] parou de funcionar e as duas fábricas de Santo Aleixo mantiveram mais de 50% dos funcionários daquela fábrica”, recordou um antigo operário (Rocha, 1999).
42 As fábricas localizadas em Santo Aleixo (2o distrito)
eram a Andorinhas, pertencente à empresa Fábricas Unidas de Tecidos,
Rendas e Bordados S/A desde 1935; e a Santo Aleixo, incorporada à
Companhia de Fiação e Tecelagem Bezerra de Mello em 1941. A partir
dessas novas administrações, o pequeno distrito de Santo Aleixo foi
submetido gradativamente a uma nova dinâmica social, que resultou na
emergência de uma cultura fabril bastante específica, a partir da
centralidade do trabalho industrial têxtil e dos seus reflexos para além
dos muros da fábrica, abarcando as experiências cotidianas desses
trabalhadores (MELLO, 2008, p.40).
43
Neste contexto, os nomes dos empresários que estavam à frente desses
respectivos estabelecimentos industriais – Hermann Mattheis e Othon
Lynch Bezerra de Mello – marcaram profundamente a memória da localidade,
sendo recorrentemente lembrados como benfeitores de “uma nova fábrica e também um novo Santo Aleixo” (SANTOS, 1957, p.162).
44Cabe
ressaltar que essas duas fábricas faziam parte de grandes e importantes
conglomerados industriais no período pós Segunda Guerra. Além da
Andorinhas, a empresa Fábricas Unidas de Tecidos, Rendas e Bordados S/A
mantinha unidades fabris no Rio de Janeiro e na cidade fluminense de
Valença. Já a Companhia de Fiação e Tecelagem Bezerra de Mello, além da
Santo Aleixo, mantinha fábricas nos estados de Pernambuco, Alagoas e
Minas Gerais, bem como chegou a adquirir, na década de 1950, a fábrica
da Companhia Têxtil Brasil Industrial, na cidade fluminense de Paracambi
(Keller, 1997).
45Dotados
de larga visão industrial, bastante inspirada nos modelos de cidades
operárias americanas e europeias, os novos proprietários das fábricas no
distrito de Santo Aleixo desenvolveram projetos voltados não apenas
para suas empresas como também para a localidade circunvizinha:
expandiram e aperfeiçoaram a geração hidroelétrica, para que assim
atendessem com energia e água os habitantes, construíram vilas operárias
para os trabalhadores, escolas, igrejas, ruas, praças, centros médicos,
creches, cinemas, além de patrocinar grupos carnavalescos e clubes de
futebol.
- 6 O interior é aqui entendido como “categoria genérica que se refere aos mais diversos lugares de ori (...)
46Estas
transformações, indubitavelmente, impactaram a vida dos trabalhadores,
sobretudo no que se refere a uma nova concepção de lar operário. A
despeito das intenções patronais de “civilizar” e “modernizar” o
cotidiano extrafabril dos trabalhadores, observamos que este conjunto de
ações empreendidas pelas fábricas configurou como uma espécie de linha
de colonização ou “frente avançada de povoamento” (OLIVEIRA, 1992, p.2),
não apenas investindo na imobilização da força de trabalho, mas também
como um símbolo dessas fábricas, servindo tanto como a materialização do
seu discurso paternalista, quanto um dos principais elementos de
sedução para recrutar novos trabalhadores (oferta de uma casa para
morar). Grosso modo, buscava-se reforçar aspectos da “vida urbana” para
as vilas operárias, como se as fábricas estivessem levando a “cidade”
para o “interior”. 6
(...) Em 1935, a fábrica
[Andorinhas] possuía 70 casas para residências dos operários, sendo, na
sua maioria, cobertas de zinco, não assoalhadas, sem instalações
higiênicas e ainda, em grande parte, construídas de taboas e paus a
pique. Essas casas, que não correspondiam às necessidades dos operários,
foram demolidas e substituídas por moradias confortáveis, com todos os
requisitos modernos, forradas, assoalhadas e com instalações de luz
elétrica. Possui hoje a fábrica 200 casas, além das que se acham em
construção e projeto. Graças ao desenvolvimento da empresa, como também
da localidade em geral, a ‘Andorinhas’ possui os seguintes
estabelecimentos, os quais não existiam em 1935: açougue, farmácia,
alfaiataria, casas para hóspedes [pequeno hotel], restaurante,
consultório médico, cinema, duas escolas, sendo uma mantida pela
fábrica, estando já em projeto a construção de uma creche e um novo
edifício para escola dotado de melhores acomodações com possibilidades
para o ensino profissional, de acordo com a lei em vigor (O GLOBO, 09/09/1942, p.6).
47
48Além
disso, cabe realçar outros aspectos bastante relevantes sobre as vilas
operárias no distrito de Santo Aleixo. Primeiramente, a existência de
duas empresas de médio a grande porte, com forte concentração operária,
de ramo industrial idêntico e que foram instaladas muito próximas, num
mesmo lugarejo e afastadas dos centros urbanos. Na realidade, as
fábricas Andorinhas e Santo Aleixo estavam localizadas apenas dois
quilômetros uma da outra.
49Aspecto
também importante foi que a chegada dessas “novas administrações” nas
fábricas coincidiu com o período da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Inevitavelmente, este contexto implicou de forma decisiva na
(re)formação da classe trabalhadora local e na consolidação de uma
cultura fabril. Durante a guerra, o distrito vivenciou inúmeras
transformações, por meio de vínculos “densos” e de “longo alcance”, mas
que estavam diretamente ligadas às fábricas e seus trabalhadores, como a
fundação do sindicato têxtil local, em 1941, de sua escola sindical
dois anos depois, e a própria promulgação da Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT), em 1942; a difusão de uma forte política social por
parte das fábricas (com a construção de vilas operárias, entre outras
ações), além dos diversos incentivos fiscais obtidos por essas empresas
no chamado “esforço de guerra”, quando inclusive alguns direitos
previstos na CLT chegaram a ser suspensos; além do fim do Estado Novo
(1937-1945), seguido da forte atuação dos recém-criados partidos
políticos, justamente no momento em que parte significativa dos
trabalhadores brasileiros tornava-se eleitor.
50
Em meio a um forte discurso patriótico e nacionalista, típico deste
período de conflito mundial, associado a um governo autoritário que
apresentava uma legislação trabalhista como
“dádiva”, mas que, logo
em seguida, suprimiu parte dela em prol do esforço brasileiro para a
guerra, os tecelões do distrito de Santo Aleixo passaram a ser tratados
como verdadeiros “soldados da produção”, sob o lema “trabalhar nas fábricas e lutar nas trincheiras” (O GLOBO, 09/09/1942, p.6).
(...) Santo Aleixo foi um dos
distritos do Brasil que mais trabalharam pelo nosso esforço de guerra em
prol da FEB. Os teares trepidavam dia e noite, o seu ruído varava as
madrugadas. Nós nos matávamos nas horas extraordinárias para que os
nossos pracinhas pudessem partir logo. Queríamos que eles fossem ajudar
os nossos aliados no esmagamento, o mais rapidamente possível, da besta
nazista (TRIBUNA POPULAR, 13/04/1946, p.8).
51Inclusive,
grande parte desse discurso mobilizador foi também reforçada pela
militância do Partido Comunista do Brasil (PCB), que buscava atuar na
associação que deu origem ao sindicato local, estrategicamente
localizado na área fronteiriça entre as fábricas Andorinhas e Santo
Aleixo, no bairro do Centro. Porém, inseridos em um contexto de forte
enquadramento promovido pelo Estado Novo, a recém-criada entidade
sindical têxtil, nas palavras do operário comunista José Rodrigues, teve
que eleger como primeiro presidente “um homem de confiança da fábrica”, tendo em vista que ele assumiria o cargo “num período de ditadura” (Rodrigues, 2006).
- 7 Esses laços corporativos entre trabalhadores, empresa e Estado foram abordados por Elina Pessanha e (...)
52Dessa
forma, ao adotar uma poderosa estratégia de dominação dentro e fora do
local de trabalho, as políticas de gestão dessas indústrias têxteis em
Santo Aleixo, buscaram corroborar os laços corporativos entre os
trabalhadores, as empresas e, por extensão, o Estado, levando-se em
conta a existência de um regime autoritário no país desde 1937, o Estado
Novo. 7
53Por
outro lado, muito embora a presença concreta dessas duas fábricas em
diversos setores da vida do operariado, reforçada pela proximidade
geográfica entre elas, poderia induzir uma análise dessas duas vilas
operárias de forma contígua, faz-se necessário pontuar que existiam
particularidades em cada complexo fabril.
54No
que tange às vilas operárias, por exemplo, ao passo que o grupo Bezerra
de Mello investiu basicamente em “casas de família”, a Fábrica
Andorinhas, dos Mattheis, chegou a construir moradias específicas para
operários solteiros, que ficou conhecida popularmente como “quartinhos”.
Este aspecto implicava, obviamente, em estratégias específicas de
contratação de mão de obra adotada por cada uma dessas empresas,
sobretudo no período de maior oferta de empregos, no pós-guerra.
55Além
disso, podemos observar que as especificidades de cada complexo fabril
refletiram decisivamente na construção de múltiplas identidades entre os
trabalhadores do distrito. Para além de uma identidade social em comum,
como se as duas comunidades fabris (trabalhadores e patrões) formassem
uma “Grande Família”, havia uma forte rivalidade entre os trabalhadores
das duas fábricas, estendendo-se aos clubes de futebol e agremiações
carnavalescas mantidas por elas. Eram os “de cima”, da fábrica
Andorinhas, e os “de baixo”, da fábrica Santo Aleixo. Ao mesmo tempo,
observamos outro laço de identidade constituído na localidade, surgido a
partir da demanda comum dos trabalhadores por direitos sociais e
políticos diante das arbitrariedades das fábricas e, por consequência,
do Estado, configurando uma rivalidade entre operários e patrões, por
vezes simbolizada pelo sindicato, por algumas lideranças políticas ou
por agremiações partidárias no pós-1945, o que lhe garantiu
posteriormente o apelido de “Moscouzinho” (RIBEIRO, 2016, pp.157-159).
56Vale
ainda ressaltar que as estratégias dos empresários têxteis, por
diversas vezes, se associavam à política social da Igreja Católica,
sobretudo por meio dos Círculos Operários, bem como se conjugavam com a
atuação político partidária de lideranças do Partido Social Democrático
(PSD). Tudo isso, sem dúvida, contribuiu para legitimar a visão do mito
fundador de uma época áurea, que teria sido desencadeada a partir das
administrações Mattheis e Bezerra de Mello, ao passo que também
diferenciava bastante essas duas vilas operárias à que existia em Pau
Grande, onde praticamente a fábrica exercia o “governo local de fato”,
semelhante ao caso de Paulista/PE (LOPES, 1988, p.192), muito embora em
nenhum dos casos analisados em Magé verificou-se o cenário de
isolamento, monopólio territorial e emancipação político-administrativa
(com a criação de um novo município).
57Neste
breve panorama, procuramos mapear algumas características da relação
entre fábrica e operariado no município de Magé, bem como certas
especificidades de cada complexo fabril. Tendo como enfoque o “padrão
fábrica com vila operária”, verificamos que essas empresas apresentavam
diferentes modalidades de dominação social no município, contribuindo
para reforçar diferenciações internas nesse grupo de trabalhadores. Por
outro lado, embora as fábricas exercessem uma forte subordinação para
além da esfera da produção, suas políticas sociais tornaram-se um
símbolo de segurança, tranquilidade e aconchego no imaginário dos
tecelões mageenses, até porque veio ao encontro a uma preocupação
bastante cara à insegurança estrutural vivida pela classe trabalhadora, a
moradia. Esse aspecto foi evidenciado tanto nas falas dos operários em
diversos estudos sobre os têxteis no município, quanto em pesquisas que
abordam outras regiões e categorias profissionais.
(...) A possibilidade de morar
nas vilas aparece em boa parte dos depoimentos dos trabalhadores e
funcionários como algo extremamente positivo, associado a outras
‘vantagens’ oferecidas pela fábrica para manter sob seu controle um
grupo de trabalhadores essencial para seu funcionamento. A carência de
tudo na vida dos trabalhadores, a necessidade do emprego, o bem-estar da
família, pareciam argumentos mais fortes do que a evidente limitação
imposta aos moradores das vilas (RAMALHO, 1989, pp.101-102).
58 O
mais curioso é que, na historiografia sobre a indústria têxtil de
algodão no Brasil, os termos “idade de ouro” normalmente são atribuídos
ao contexto pós Primeira Guerra Mundial e à própria Segunda Guerra, o
tal período de “grande prosperidade” apontado por Stein. Por vezes, a
própria manutenção de ações paternalistas nessas fábricas a partir da
década de 1950 são motivos de críticas ou indicações para um “fracasso”
empresarial, do ponto vista do capital. Entretanto, nos estudos recentes
dedicados aos trabalhadores têxteis, o termo “época de ouro” ou
equivalente é constantemente atribuído ao contexto democrático de 1945 à
64, a partir de memórias operárias que conectam – de forma positiva –
tanto os projetos paternalistas das fábricas, quanto a efervescência
política sindical e partidária que reforçava a agência dos
trabalhadores. Por sinal, é no período da ditadura militar que a
indústria têxtil de algodão, tão importante nas principais greves das
décadas de 1950 e 60, ingressa em um lamentável processo de
desindustrialização, cujo debate não será possível aprofundar aqui.
- 8 Projeto de Pós-Doutorado “Deu pano pra manga”: Experiências de trabalhadores em fábricas de tecidos (...)
59
A partir desses apontamentos iniciais, esperamos aprofundar o diálogo
entre pesquisadora(e)s – dos diversos campos das Ciências Sociais –
dedicados ao tema do trabalho têxtil no estado do Rio de Janeiro e
também no país. Atualmente, desenvolvemos um projeto de pesquisa em
estágio de pós-doutoramento na Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro (UFRRJ), com financiamento da Fundação Carlos Chagas Filho de
Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), que busca
justamente mapear estudos sobre fábricas e trabalhadores têxteis no
Brasil, visando traçar um panorama mais abrangente da produção
historiográfica sobre esse ramo industrial, permitindo pensar a
categoria mais a nível “nacional”, a partir do fomento de canais de
diálogo entre autora(e)s. 8
60
Portanto, esta abordagem específica sobre as indústrias têxteis
fluminenses se apresenta como um ponto de partida para futuras parcerias
em pesquisa, eventos, publicações e projetos coletivos.