Resumindo, o que encontrará o
leitor nessas páginas? Um projeto ou “o” projeto de sociedade? Não e
sim! Primeiramente, não. O livro busca, antes de tudo, apresentar,
renovando um pouco, um caminho, um projeto dialético: o pensamento
dialético. Porém, ele tenta igualmente trazer alguns elementos de um
projeto prático (concernente, então, à sociedade). Ele parte de uma
espécie de axioma ou de um postulado, que muitos recusam de início: os
“modelos”, o “capitalismo” e o “socialismo”, caem sob o esgotamento e a
obsolescência. Lentamente, porém certeiramente. (LEFEBVRE, 1986, p. 14)
1Nestes
cinzentos dias que marcam a virada da primeira para a segunda metade do
ano de 2017, a economia e a política rendem polêmicas e angústias mundo
afora. Ensaiando um exercício de análise de conjuntura, as cinzas se
colocam desde as peripécias xenófobas e neo-imperialistas do executivo
estadunidense ocupado pelo megaempresário Donald Trump (incluindo o
“impedimento” de cidadãos de nove países da África e Ásia – do eixo do
assim chamado “Oriente Médio” – de ingressarem em solo pátrio
estadunidense, bem como as conhecidos e perigosos reclames de
“liberdade” e “democracia” para as “ditaduras comunistas” da América
Latina, por parte das mesmas forças políticas) até as desventuras
fluminenses (do estado do Rio de Janeiro) de um atraso um pouco mais
estendido dos salários dos servidores públicos estaduais, dos quase
“naturalizados” dois meses para três meses sem a pecúnia básica. Nada de
muito novo sob o império da passividade moderna, lembrando famoso dito
situacionista de fins da década de 1960, este que completa cinquenta
anos com um invejável shape pós-adolescente. O eterno presente se realiza pela coagulação do espaço-tempo.
- 1 “Exdiplomático buscado por el FBI: ‘EE.UU. compra a un amigo y vende a un aliado de un día para ot (...)
- 2 “EUA buscam criar na América Latina situação militar igual à do Oriente Médio”, 13 abr. 2017. Cf. (...)
2Em
abril de 2017, a agência russa de notícias Sputnik divulgou depoimento
do “especialista em relações internacionais” e “ex-diplomata
venezuelano”1
Ghazi Nassereddine, que os Estados Unidos estariam “preparando o
terreno na América Latina” de modo a construir uma “intervenção a longo
prazo”, criando “uma situação muito semelhante à do Oriente Médio”.2
Para o estudioso/especialista/ex-diplomata consultado por agências
russas de imprensa, seria necessário fazer uma avaliação, “a nível
mundial”, do fluxo do “pensamento salafista-wahhabita”, atribuindo a
essas tendências ultraconservadoras do islamismo a fonte primordial da
organização futura de grupos terroristas. A partir de uma suspeita do
possível fluxo de tais grupos pela América Latina, Nassereddine
pontifica que “os governos da região, sejam de esquerda ou de direita”,
não possuiriam “maturidade política e governabilidade necessária para
prevenir essa situação”, reiterando a extrema vulnerabilidade desse
território a essas esferas de ação. A espreita de perspectivas mais
“sofisticadas” e “avançadas” de imperialismo para além da assim chamada
“dominação econômica” via ajuste fiscal e outras peripécias neoliberais
pós-neodesenvolvimentistas abre um perigoso flanco para uma guerra
aberta, essa “política por outros meios” em terras latino-americanas.
- 3 FUSER, Igor. “A política externa do nada”, 22 jun. 2017. Cf. http://outraspalavras.net/brasil/a-po (...)
3Do
solo especificamente brasileiro, Igor Fuser destaca o “nada” da atual
política externa brasileira, praticada, desde maio de 2016, pelo
ex-ministro das Relações Exteriores, o Senador paulista José Serra, e
pelo atual, o também Senador e também paulista Aloysio Nunes.3
Como uma contraposição à política externa “ativa e altiva” do período
2003-2016 (com todas as suas nuances, ênfases e crises momentâneas), a
atual “política externa” brasileira atual resumiria-se a um “alinhamento
incondicional aos Estados Unidos em todos os temas, fóruns e instâncias
do sistema internacional”, uma “adesão irrestrita à globalização
neoliberal” e, por último, um “envolvimento ostensivo na campanha
internacional para depor o presidente venezuelano Nicolás Maduro”, em
uma tentativa de esmagamento da “Revolução Bolivariana” e de entrega do
poder central à “direita local”, também aliada dos Estados Unidos.
Lembrando a “doutrina” martelada pelo parlamentar cearense/baiano Juracy
Magalhães, logo que assumira o posto de Embaixador do Brasil em
Washington após a quartelada de 1964 (“o que é bom para os Estados
Unidos é bom para o Brasil”), Fuser destaca as medidas de alinhamento
automático do governo golpista de então aos interesses estadunidenses:
rompimento de relações com Cuba, envio de tropas brasileiras à República
Dominicana no golpe de Estado naquele país em 1965 e a proposta
(posteriormente não realizada) de envio de tropas tupiniquins ao Vietnã.
As peripécias dos representantes atuais do “governo golpista” trazido à
luz em 2016 não deixam por menos: desde o esvaziamento tático e estratégico
da presença brasileira na Unasul, Celac e Brics até a “pressa” no
selamento (fracassado, sobretudo devido à vitória eleitoral de Donald
Trump na presidência dos EUA) do Acordo Transpacífico de Comércio e
Investimentos (o “famoso” TPP). Finalizando, ao ironizar a “viralatice”
dos “neoliberais tupiniquins” que se arrogam em “ser mais realistas que o
rei”, Fuser denuncia o “entreguismo” de blocos de exploração
petrolífera a preços módicos a empresas estrangeiras, as negociações da
cessão do centro de lançamento de foguetes de Alcântara, no Maranhão, às
“Forças Armadas dos Estados Unidos” e a “irresponsável” participação
ativa do governo brasileiro na desestabilização do atual governo
venezuelano, a exemplo do ocorrido no momento imediato pós-golpe militar
(e empresarial) no Chile, em 1973. Se a história não se repete como
tragédia, mas como farsa, tal assertiva hegeliana/marxiana proferida em
meados do século 19 para nomear o golpe de “18 Brumário de Luís
Bonaparte” segue com uma atualidade terrivelmente desconcertante.
- 4 LEBLON, Saul. “Bye, bye, Brasil”, 27 jun. 2017. Cf. http://www.cartamaior.com.br/?/Editorial/Bye-b (...)
4Ainda
quanto ao Brasil, o editor Saul Leblon comenta o “exílio” de elementos
da alta “elite” nacional de solo pátrio: especificamente, sócios
privilegiados da banca rentista, controladores de fundos de
investimentos e banqueiros envolvidos em maior ou menor grau com o
“centro” da gestão da política econômica brasileira.4
Tais personagens, especificamente Pérsio Arida (“o ex-menino prodígio
do Plano Real” e ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social [BNDES] na era de Itamar Franco [1993-1995]) e André
Lara Resende (igualmente ex-presidente do BNDES, já em meados da era FHC
[1998]), exemplificam o “êxodo” mapeado por Leblon, verificável na
quantidade de Declarações de Saída Definitiva do Brasil, em dados da
Receita Federal: de 8.510, em 2011, para 20.469, em 2016. A leitura do
editor, ardoroso defensor do “destravamento” de um “novo ciclo de
investimento no país”, caminha no sentido de denunciar uma situação
social na qual a garantia da “remuneração da riqueza privada”, que “tem
na dívida pública a sua contrapartida de miséria”, seria o resultado
mais palpável da sublevação do “mercado”, da “mídia” e da “escória
política” na derrubada do governo de Dilma Rousseff, há cerca de um ano.
Desse modo, “nem o Estado investe em infraestrutura” e “nem os gestores
privados querem correr o risco”, garantindo um futuro “esfarelado” nas
“remessas imediatistas das grandes corporações”. O embotamento do
tempo-espaço revela justamente os limites dessa modalidade crítica de
acumulação: o choro lamentoso para uma “elite” que “abdicou” de
“responsabilidades e valores compartilhados” é o que clama pela “nação”
em lugar de um “ajuntamento demográfico” puro e simples. O
“nacionalismo”, em um mundo que progressivamente varre as “economias
nacionais” diante da crise, aparece como um amargo holograma de tempos
“gloriosos” varridos para um futuro de novas associações possíveis em um
novo “pacto” nacional para o desenvolvimento. No caso do Brasil, um
novo “ciclo de desenvolvimento” aproveitar-se-ia das “potencialidades”
pouco exploradas de seus recursos naturais e humanos. Nesses tristes
dias que correm, um outro lamento lacrimoso tem feito parte da
constatação da tragédia desprovida de futuro: “o velho ainda não morreu e
o novo ainda não nasceu”, diria as emulações gramscianas.
5David
Harvey, em “17 contradições e o fim do capitalismo” (2016), distingue
três “categorias” de contradições próprias a este vigente modo de
produção (segundo a obra de Marx e Engels) ou o “sistema de metabolismo
social” e seus “sistemas de mediações” (segundo leitura de Ricardo
Antunes, baseando-se em obra de Istvan Mészáros): as “contradições
fundamentais”, as “contradições mutáveis” e as “contradições perigosas”.
Uma das “contradições perigosas” mais expressivas apontadas pelo
geógrafo britânico consiste justamente no “crescimento exponencial
infinito”. Como é possível esse “infinito”? Quais as suas consequências
sociais e políticas? Que lógicas comandam essa realidade?
6Em
uma afirmação surpreendentemente simples, Harvey revela uma realidade:
“a maioria das pessoas não entende a matemática dos juros compostos”, e
sequer “o fenômeno do crescimento exponencial (ou composto)”, bem como
“o perigo potencial que ele representa” (2016, p. 207). Se, em um
passado mais “glorioso” das primeiras “revoluções industriais”, os
“ciclos de inovação” correspondentes foram suficientes para garantir o
crescimento ilimitado do “consumo real per capita”,
os ciclos posteriores à década de 1960, embora tenham efetivado
pequenas “revoluções” no campo da cultura do consumo espetacular ao
nível individual e social (os gadgets
em geral), não foram capazes de atender a esses anseios globais. Desse
modo, até mesmo a medida subjetiva de riqueza se transforma inclusive ao
nível do senso comum, nível esse que torna simplesmente incomensurável
qualquer medida em relação às bolhas cifradas de “riquezas” que circulam
nas altas esferas da economia fictícia. De fato, as casas dos “bilhões”
e “trilhões” são pouco apreensíveis em escalas que mal ultrapassam os
“milhares”. E Harvey, mais adiante, menciona a metafísica cifra “ótima”
de 3% de crescimento composto ao ano, limite que separa as economias
“saudáveis” daquelas “letárgicas” ou “depressivas”. É a “taxa de retorno
positiva sobre o capital” (2016, p. 213), considerando criticamente as
leituras visivelmente biologicizadas no campo analítico mais raso, e
mesmo aquelas de caráter mais “científico”, ressuscitando um
neopositivismo não muito distante do clássico positivismo de fins do
século 19.
7Mas
os juros compostos (considerando, também, que os juros simples não
afastam muito o problema, apenas o atenuam um pouco...) trazem situações
bizarras. Desde a “matemática social” malthusiana e a sua contestação
parcial pela realidade materialmente histórico-geográfica (sobretudo
pela chamada “transição demográfica”, onde a população mais idosa supera
a população mais jovem) até as tentativas de emulação do padrão de
“crescimento” e “desenvolvimento econômico” estadunidense (século 20) e
chinês (século 21), de que modo “o capital pode continuar a se acumular e
se expandir perpetuamente a taxas compostas” (HARVEY, 2016, p. 216)?
Não seria a forma-dinheiro a permitir essa acumulação sem limites? E não
seria justamente esse dinheiro tornado ficção a cumprir esse papel?
Dinheiro esse calibrável pelos mecanismos bélico-produtivos da
maquinaria de dólar comandada pelos Estados Unidos em par com a China e
as “economias dinâmicas” do mundo pseudo-produtivo, bem como pelo
achatamento universal do “poder de compra” via esmagamento dos salários,
desemprego em massa e a cada vez mais banalizada descartabilidade
humana universal, sem contar ainda a popularização dos créditos e
microcréditos a permitirem o azeite de uma máquina falida e o
comprometimento perpétuo do futuro individual e coletivo.
8Se
as novas marés de “desenvolvimento econômico” hoje parecem uma mentira
tão mal contada quanto confessadamente revelada em benefício da
sobrevivência ampliada, esse campo lógico e social, pautado pela cisão
universal e o automovimento do dinheiro em sua forma mais abstrata, traz
o seu alcance e o seu limite. O fluxo de uma política alienada atrelada
a uma economia terrorista, no escopo de uma sociabilidade pautada pela
vida ao fio da navalha, no limiar constante entre a vida e a morte, é o
substrato necessário dessa ordem social profundamente tautológica.
- 5 CASADO, Luis. “A Economia Política e o grande salto atrás”, 22 jun. 2017. Cf. http://outraspalavra (...)
9Encerrando
nossa “análise de conjuntura”, a tautologia dessa sociedade é manifesta
por Luis Casado, refletindo a respeito do “grande salto atrás” da
“Economia Política”.5 Casado não traz boas notícias aos simpatizantes da pouco simpática Economia Política: uma figura como o “Chicago-boy”
Milton Friedman já afirmava, nos píncaros de sua homilia monetarista,
que a grande “novidade” daquela ciência (e da prática) era justamente o
veterano e clássico “Adam Smith”. A exemplo do que Henri Lefebvre, em
clássico texto onde o filósofo/sociólogo francês construía a sua
“crítica da economia política do espaço” (2008 [1973]), Casado, apoiando
em citações de Bernard Maris (jornalista/economista francês morto no
massacre do Charlie Hebdo, em janeiro de 2015), expõe o caráter
desiludido dos “primeiros economistas” (mais especificamente,
Jean-Baptiste Say e Adam Smith) quanto a essa “ciência econômica, a
ciência do mal”, ou “a ciência sinistra”: a Economia Política. Além
disso, o economista (que, na visão de Casado/Maris, “não passa de um
vigarista, um charlatão que esconde em seu palavrório, geralmente
complicado, o objetivo imposto por seus senhores, que é manter os homens
na servidão”) é o ser que, personificando “o canto gregoriano da
submissão do homem”, fez Marx e John Maynard Keynes tentarem, sem
sucesso, “libertar o homem da economia”. Adiante, a exposição de Casado
quanto à presença dos vilipêndios “atuais” dessa economia vodu (truques
da dupla contabilidade, os monopólios, o tráfico de influência, o
conflito de interesses, o engano, a fraude, o golpe, o roubo, a
arbitrariedade, a pilhagem, a exploração, a dissimulação, a informação
privilegiada, os privilégios, a incúria, a prevaricação, as propinas, a
usura, o abuso do poder, a conspiração etc.) já nos primórdios da
“transição” do Feudalismo ao Capitalismo, na “Baixa Idade Média”
eurasiática, completa o ciclo descurado de um farsesco eterno retorno.
Seja como for, se essa economia (enquanto prática ou lógica social e enquanto ciência) parece monstruosa e incontrolável, não seria justamente ela uma base fundamental para o desvendamento das contradições próprias do mundo moderno?
10Entre
coágulos e fluxos acelerados, surge um importante retrato de nossos
dias. O geógrafo Diego Ruiz, em “La reforma métrica” (2017), traz uma
interessante análise a propósito da perspectiva das medidas e, mais
particularmente, do Sistema Métrico Decimal e do Tempo Universal
Coordenado, na construção de uma moderna “sócio-lógica” no espaço urbano
latino-americano. Seu “recorte espaço-temporal”, localizado no Rio de
Janeiro e na Cidade do México de fins do século 19 e da primeira metade
do século 20, traz uma contribuição ímpar para o desvendamento da
imissão dessas lógicas ao campo social.
11Questionando-se
a propósito das formas e conteúdos implicados a essas “medidas”
padronizadas, como fundamento teórico-prático da normatização dos
produtos e da produção, afirma o autor, trazendo elementos do “direito à
preguiça” preconizado por Paul Lafargue:
A
distribuição da riqueza e dos meios de produção deve conter uma proposta
a respeito dos sistemas de medição. Aquela proposta não pode ser gerada
a partir do que eu chamo de nossa compreensão fragmentada da medição e
as medidas. A fragmentação à qual me refiro inicia-se no momento de
dividir o espaço com o tempo. Já separado o tempo, a medição se divide
em “pesar” e “medir”. Aquela operação mental, que dota de certas
características a um objeto x com a finalidade de compará-lo com um outro y, ocorre para o tempo, a longitude, o peso, o nível de álcool do sangue ad infinitum.
Falta uma explicação que quebre com a segmentação de nosso entendimento
sobre a medição e essa explicação poderia formular-se a partir da
Geografia. Será porque a mudança da qual quero falar no “medir” e no
“pesar” coincidiram com uma mudança na medição do tempo? (RUIZ, 2017, p. 2)
12Adiante,
ao trazer os “elementos cotidianos” dessa metrificação, a associação
entre essa realidade e o campo analítico da chamada “ritmanálise”,
conforme proposição desenvolvida mais ou menos tardiamente na obra de
Henri Lefebvre, o autor expõe a perspectiva da “cidade semáforo”.
Em termos gerais, tal “proposta conceitual” refere-se à “sincronização
dos tempos das pessoas em relação a um tempo legal único que determina e
regula um espectro que vai desde os segundos até os anos” (2017, p.
11). A sincronização desses tempos, “responsável por temporalidades
hierárquicas”. Amiúde, trata-se de uma “cidade-plano cartesiano”, uma
eterna “cidade-projeto”, compostas por uma “verticalização
falocrática”... Uma cidade (um espaço-tempo) na qual outros sistemas de
medição seguem convivendo com os banais
metros, gramas e horas e onde tal reles banalidade é constantemente
assaltada em sua pretensão universal. Como medir o corpo? Como medir o
vivido? Como medir o espaço?
13No momento atual, mostra-se sobremaneira evidente o quanto as estratégias
do espaço se põem a serviço da realização de uma economia crítica,
expondo os limites e as fronteiras da valorização do valor, em suas
múltiplas escalas.
14Para
tanto, há que se colocar o expoente de uma composição no campo da
política, não se restringindo apenas à ideia de uma crítica à política pública em
si, o que consideramos insuficiente ao tratamento do problema que
expomos neste artigo. Uma crítica desse quilate, dependendo de seu viés
político ou ideológico, poderia servir muito mais ao aperfeiçoamento do
Estado e de sua lógica da equivalência, ou de seu assentimento ao
funcionamento da maquinaria social urbana, do que propriamente a uma
crítica que se pretenda, de fato, radical.
15Assim, voltemo-nos ao que Lefebvre nos ensina a respeito.
16A proposição lefebvreana sobre as táticas e estratégias aparece em variados momentos de sua obra, sobretudo no segundo volume da Crítica da vida quotidiana II ([1961] 1980), no quarto volume da coleção Estado (1978), em O manifesto diferencialista (1970) e, mais sistematicamente, em O retorno da dialética
(1986). Em relação à primeira obra citada, tratando especificamente da
vida cotidiana enquanto um nível da prática social, e a sua crítica
enquanto uma possibilidade concreta do conhecimento e desvelamento dessa
mesma vida quotidiana, o autor afirma que:
- 6 Vale a pena continuar essa passagem. “Retomamos aqui, ainda, em uma outra perspectiva, enunciados (...)
O
estudo crítico da vida cotidiana desvelará a tática e a estratégia dos
grupos parciais (as mulheres, os jovens, os intelectuais etc.) na
sociedade global. Ela saberá revelá-los, através das ambiguidades, o
quanto elas se revelam e se significam, o quanto elas se revelam e se
dissimulam, mas ainda assim se expressam. O estudo da cotidianidade
apreenderá as relações dos agrupamentos que os tornam opacos em seus
contatos, ou que os fazem acessíveis uns aos outros, a despeito dos
mal-entendidos, das manobras táticas, dos disfarces, das aberturas e
aventuras estratégicas. [...] Quanto aos momentos nos quais predomina a
estratégia, são justamente esses os grandes momentos históricos, as
efervescências. A estratégia confere o sentido
dos grupos e de sua vida. O “sentido”, direção, orientação, expressão e
objetivo, não tem nada de uma tranquila entidade especulativa, a ser
filosoficamente desobstruída por um especialista, o filósofo. O sentido é
o drama. É a estratégia – referente ao grupo – que o constitui. Ela o
cria. O nível da cotidianidade enquanto “realidade” seria, portanto,
aquele da tática,
intermediário entre o nível onde não há mais o ato, onde a realidade
estagna e se espessa, onde domina o trivial – e o referente à decisão,
ao drama, à história, à estratégia e à revolução. (LEFEBVRE, 1980
[1961], pp. 138-139)6
17E este seria o sentido, então, das táticas e estratégias
ao nível do vivido entre diversos agrupamentos sociais, tomando os
períodos dominados pelas estratégias como os grandes momentos
históricos, pelo menos por parte desses chamados “grupos parciais”. No
entanto, predominando a tática, temos em mãos somente o espessamento da
vida tornada “realidade” e toda a sorte de ambiguidades decorrentes da
imissão dessa vida chamada “real”. A cotidianidade seria, assim, o reino
das táticas.
Quanto à estratégia, poderíamos lê-la enquanto uma tomada efetiva do
tempo da história, superando a banal linearidade do tempo pseudocíclico?
18Quanto à obra Estado, o autor trata especificamente das estratégias que se levam adiante a partir do viés estatista, afirmando que “o conceito de estratégia e a prática correspondente tomam uma importância capital”, colocando, logo a seguir, que “toda estratégia implica uma lógica”,
aplicada a uma situação, “a recursos, a objetivos e alvos, à lógica
geral (logística)”. Vale a pena seguir um pouco mais o raciocínio do
autor a respeito:
A
teoria das estratégias modifica sem abolir a análise clássica da ação
como tríade: “determinismos-riscos-vontades”. É verdade que ela coloca
em primeiro plano o cálculo, referente aos recursos e às possibilidades:
o cálculo não suprime nem as decisões e nem as chances. A parte cega da
ação histórica (os homens fazendo sua história sem saber ao certo o que
fazem, sem saber onde suas ações os levam, segundo Marx) tende a
diminuir. O que não quer dizer que ela desapareceu. De qualquer forma,
os interesses particulares, tanto no socialismo de Estado quanto no
capitalismo de Estado, se subordinam à coesão do conjunto político e à
coerência ofensiva ou defensiva da estratégia. As separações desvanecem
entre o econômico, o social, o político, e também entre o legislativo, o
executivo e o político. Caem as separações, substituídas pela lógica do
poder separado (gerando pelo alto, a sociedade) e, no entanto, perpassado a sociedade inteira, portanto onipresente. O que Hegel, primeiro, concebeu. (LEFEBVRE, 1978, p. 24)
19Quanto
à coerência e à coesão do conjunto político e da ação defensiva ou
ofensiva do Estado, conforme apontado pelo autor, bem que poderíamos
tomar, ainda, a lógica implicada às táticas e estratégias operadas a
partir da ação estatista. Em O manifesto diferencialista, o autor ressalta a complexidade de uma forma social que não se desdobra em apenas uma lógica, e sim em várias lógicas,
ou seja, “vários procedimentos para impor uma consciência”, a saber:
“uma lógica do repetível (combinatório), uma lógica do espaço, uma
lógica das trocas e da coisa, uma lógica das significações etc.”.
Considerando a pluralidade dessas lógicas, Lefebvre coloca, ainda, que
tal pluralidade “proíbe a coerência que elas desejam estabelecer”, sendo
“essas múltiplas sócio-lógicas e ideo-lógicas” impeditivas à
“constituição de um sistema fechado, ainda que haja ininterruptamente
tentações (sobre o plano ideo-lógico) e tentativas (sobre o plano
sócio-lógico) de fechamento e conclusão”. Avante no raciocínio do autor:
A racionalidade limitada se
limita inevitavelmente às táticas. O fetichismo da coerência e o da
eficácia dissimulam essa redução. E, no entanto, há estratégias. Teriam
elas seus lugares de formulação e de aplicação fora do pensamento que se
diz teórico? Certamente. Onde? Entre os políticos? Talvez, mas
sobretudo entre os militares. Quando aos técnicos e tecnocratas, eles só
podem ter um primeiro objetivo, o de tornar capazes de uma estratégia,
ou seja, de se erigir em grupo, casta ou classe. (LEFEBVRE, 1970, p.
100-101)
20Quanto
ao trabalho, no interior da lógica estatista e de sua afirmação rumo à
interposição da equivalência como seu fundamento, bem que o expediente
militar à tática e estratégia conduziria, para muito além de uma banal e metáfora gratuita, a uma lógica imanente à forma e ao conteúdo da equivalência: a guerra.
E não poderia ser tomado como um simples adereço pitoresco ou
folclórico determinadas políticas e/ou falas de representantes políticos
e/ou agentes econômicos mais ou menos farsescos ou ridículos: trata-se,
efetivamente, de uma guerra, um conjunto de batalhas táticas,
de modo a renovar os territórios e lugares e a colocá-los,
efetivamente, na exposição universal das mercadorias e fundos de
investimentos.
21Desse modo, todo o território, toda a sociedade e todo o espaço tornam-se, enfim, estratégia! Espacialidade,
portanto, suprimindo a temporalidade, impondo uma sócio-lógica, uma
ideo-lógica, conforme os termos apontados em Lefebvre.
E isso não é tudo. Ainda no pensamento lefebvreano a respeito dessa
lógica se interpondo à forma social, invadida pelos ritmos e ditames da
maquinaria mundializada de valorização do valor, fiquemos com um
expressivo texto, publicado já na segunda metade da década de 1980,
quando formas mais aprofundadas de estratégias do espaço se punham à
mesa do aludido planejamento urbano e suas congêneres políticas
públicas. Vejamos.
22Em O retorno da dialética,
o qual o autor propunha ser “um livro-ação, um guia no labirinto do
mundial”, onde “cada ‘artigo’ almeja oferecer uma entrada em um conjunto
a compor seus fragmentos, em uma perspectiva e uma concepção que não
concluem, que não se completam”, (LEFEBVRE, 1986, p. 11) destaca-se o
tratamento a “doze palavras-chave para o mundo moderno”, onde o Estado
é justamente a primeira palavra a ser contemplada. Destilando o sentido
lógico e histórico da afirmação do Estado moderno, Lefebvre afirma, por
exemplo, que “o Estado-nação perfeito realizaria a identidade
perfeita”, ou seja, a partir da “redução das diferenças, homogeneidade
dos elementos, localização e fracionamentos controlados”. Continuando,
afirma que “cada estratégia comporta uma lógica”, facilitando “a tarefa
dos cientistas da computação”, mas que não contribuiria “com a tão
desejada coesão da sociedade” (1986, p. 28).
23E
já que ingressamos nessa seara, seguindo o raciocínio do autor e
relacionando suas concepções ao teor dos acontecimentos conjunturais
elencados no início deste texto, partamos, enfim, rumo às suas
considerações a respeito do(a) lógico(a) e do(a) lógico-matemático.
Em primeiro lugar, considera-se o ingresso do(a) lógico(a) na prática
social, não “pela única ação potente do pensamento”, mas a partir de
extrema violência, cuja relação com o(a) lógico(a) se põe a partir de
“toda ação levada de modo coerente, não somente a partir do individual e
de tais indivíduos que dirigem tal ou tal operação”. Assinalando que
“há luta constante entre a(o) lógica(o) e a dialética”, (ibid.: 60) cabe
refletir sobre as considerações do autor a respeito da negatividade:
À imensa positividade regida pela lógica nos diversos domínios (poderíamos dizer: no reino ou no império do lógico) se opõe uma negatividade,
não menos formidável. O que caracteriza a modernidade: inverso e
reverso. Aqui, não se trata de uma oposição abstrata e paradigmática,
produtora de significações e de sentido, mas de um conflito prático, em
profundidade: de um trabalho de destruição e de autodestruição, imanente
ao “real”. Se é verdade que o que insistimos nomear ingenuamente de
“crise” não se circunscreve mais ao econômico, ou a esta e àquela
ideologia, essa palavra designa um vasto processo que estremece a
cultura, depois o político, o econômico, o Estado e, em seguida a totalidade
(constituindo essa totalidade pela via da negação, e de modo algum,
como acreditaram os hegelianos e muitos outros, pela via do afirmativo e
do positivo). (LEFEBVRE, 1986, p. 64)
24Contudo, a lógica se destacaria da filosofia, ingressando no saber e na prática.
De que modo? Afirmando o reclame pela lógica “em todos os lados”, o
autor incorre na abordagem das matemáticas e sua intrínseca relação à
lógica. Partindo da tautologia A=A, tomada clara e inteligível, porém
vazia, redundante, poder-se-ia tomar a vastidão da tautologia operada a
partir do zero e do um, onde
inúmeras combinações (sequências, somas etc.) conduzem ao domínio das
matemáticas, “ciência da quantidade”. A partir das “propriedades” dos
números (par, ímpar, números primos etc.) e as suas infinitas
possibilidades (equações “indecidíveis”, a sua qualidade de infinitude
etc.), parece que a rigorosa lógica formal teria recaído, pela sua
própria natureza, em certos paradoxos, cuja demonstração, “da prova pela dedução”, preparariam a desforra da dialética. Mas, persistindo na forma...
Caso
famoso: conta-se que Gauss, ainda criança, com oito ou nove anos, foi
conduzido pelos seus pais à escola de sua aldeia. O mestre de escola,
para verificar o nível intelectual e de instrução do novo aluno,
perguntou-lhe: “Um e um, isso dá...?” “Dá um”, respondeu a criança;
obstinadamente. O professor, conforme se conta, o reenviou para sua
casa, como débil mental. Os pais retornaram e disseram: “Mas ele já faz
cálculos muitos sábios...” O professor refez a questão. Mesma resposta. A
criança apenas adicionou: “Um mais um, isso dá dois”. – Ele libertou da tautologia a noção de operação, ato mental produtivo, que ajunta algo (a menor diferença) ao dado. O mais difere do e, o qual implica a simples repetição ao idêntico. O ato mental pode também remover e subtrair, cortar (segmentar, fazer um corte), fazer deslizar, ou rodar etc. A noção de operador
está liberada de uma prática: a operação, ato mental cumprido desde os
tempos mais remotos. Ela se generaliza recentemente; as linguagens das
máquinas definem as operações lógicas, antes de definir as operações próprias. A teoria das formas permite elucidar o conceito de operador, sem esgotá-lo, no entanto. A forma “pura”, a identidade, A é A, vazia, tem, entretanto, uma capacidade produtiva (e não somente reprodutiva). (1986, pp. 68-69)
25O operador, assim, contendo uma potência produtiva,
para além da mera tautologia da reprodução, demonstraria a operação do
pensamento: em primeiro lugar, “o rigor lógico, o mesmo, o silogismo, a
demonstração”; em segundo lugar, “na prática”, a identidade engendrando
outras formas, “inteligíveis”, não sem alguns resíduos, tais como “a
equivalência, a simultaneidade, a reciprocidade”; e, finalmente, em
terceiro lugar, engendrado a “ilusão filosófica concernente ao Ser
idêntico (que é o que é), a Substância, a Verdade, o Absoluto”. E todas
essas formas, para Lefebvre, ingressariam na prática, confeririam as operações e operadores.
E tudo é tornado simultâneo. E toda a maquinaria se põe, efetivamente, a
funcionar, e a gerar, captar e reciclar valor, seguindo a linguagem
exata e rigorosamente lógica dos documentos oficiais quanto aos “rumos” e
“estratégias” futuras para a sobrevivência econômica de um mundo
conflagrado em uma economia moribunda.
26E toda a violência, decorrente desses atos mentais, lógicos, acontece na prática, apesar de sua não-ocorrência nas matemáticas, onde simplesmente opera o operador tout court, sem muitas mediações.
Desse modo, um ato mental põe e simultaneiza
essa sequência indefinida de números gerados uns após os outros; nascem
assim as noções capitais de conjunto, de infinito demonstrável, de transfinito. A potência da forma, tornada operacional, gerou ou engendrou (não somente produziu) alguma coisa de nova. O repetitivo e a diferença têm uma capacidade criadora.
Dessa maneira, dissipa-se uma segunda ilusão dos filósofos, surgida
após a primeira. “O Ser é”, essa evidência não somente nada explica, mas
consagra o sensível, o fenomenal e o movente ao nada. Admite-se, então,
que a matemática é do pensamento; que não se deve pensá-las, mas aceitá-las enquanto pensamento já ali, não somente real, mas absoluto. Então: “Dum deus calculat fit mundus” (Leibniz). (LEFEBVRE, 1986, p. 69)
- 7 Podemos inclusive lembrar uma importante alusão de Karl Marx à figura do Estado, em seu diálogo co (...)
27Quando Deus calculava, fez o mundo... Ou quando a maquinaria se punha a efetivamente funcionar, pela via da lógica, teria refeito o mundo? Como poderia essa lógica se tornar tão absoluta e se constituir, de fato, em um operador, aprofundando a figura da operação?
O debate sobre as formas contemporâneas de alienação poderia incorporar
esse modo de conceber a realidade: o Estado, em um período onde as
formas mais críticas se reafirmam, se põem na espacialidade de um mundo
onde sua tautologia relativa (um e um) produz a quantificação necessária
(um mais um), de modo a restituir a lógica da equivalência. E a partir
da equalização (violenta) dos desiguais, unificando as diferenças na
lógica formal operada pela via estatista.7 O econômico, assim, se vê em sua almejada realização, tornada plena.
28No
entanto, Lefebvre aponta os limites da coerência e coesão próprias da
lógica, em sua interface às matemáticas, sobretudo no tocante às
contradições: afirma que, enquanto a lógica teria a sua força, conforme
discutimos até aqui, a dialética teria a sua “contra-força”. De que
modo? O autor alude a uma possível dialetização das matemáticas, na qual
a possibilidade de pensá-las admitiria a simples unidade do ponto (um
“nada” e, ao mesmo tempo, um “alguma coisa”, cuja sequência opera um ato
mental, instaurando e dimensionando o espaço: “o mensurável e o
medidor”), a alusão à linha e ao corte (repondo a questão do “contínuo e
do descontínuo”), ao transfinito
(números ao mesmo tempo finitos e infinitos) e aos números “primos”.
Para o autor, as contradições, embora aparentemente resolutas pelo
mecanismo binário (zero e um), fundamental na construção das máquinas de
calcular, reaparecem “sobretudo no pensamento crítico que continua”, já
que “o número e o pensamento do número não coincidem” (ibid.: 72).
29Encerrando, qual seria, assim, a relação entre tática, estratégia, operatório e operador?
De modo a colocar essa questão em níveis mais avançados, a proposta é
que se pese a possibilidade de se reconsiderar os termos contemporâneos
das formas de alienação,
seja no tempo, seja no espaço: no mundo do trabalho, da educação, da
política... E que a figura do Estado seja realmente posta em questão, e
que se desvelem as práticas operatórias dessa economia a partir de seus
expedientes táticos e estratégicos.
30O
que se buscou discutir, neste texto, foi justamente a ação, o drama, a
concepção e as possibilidades. Não se trata, contudo, de uma espécie de
“teoria dos jogos”, ou ainda uma tentativa de refinar essas ou aquelas
táticas ou estratégias “político-econômicas”. Trata-se
de revelar, justamente, os limites intrínsecos à própria forma
política, ao próprio Estado como figura primaz da alienação política
contemporânea, esse grande mediador, operador e operatório,
onde o consenso parece mover a inexorável razia do espaço (como no caso
apresentado), manifestando-se em suas múltiplas escalas: em toda e
qualquer cidade e território deste país e deste mundo.
31O
grau zero do espaço, a sua assepsia, comportando a varredura operada
pela violência da lógica, incluem a tática e a estratégia, portanto,
como ações coordenadas, simultâneas, operadas, de modo a efetivar e
azeitar a maquinaria da valorização do valor. Trata-se, assim, de
enfrentar uma sobreposição de diversas formas de alienação, e considerar
o quanto a dialética, a contra-força, reporia o movimento e a contradição
como fundamentos sociais, considerando a negatividade e apontando
efetivos caminhos ou vias, aberturas, de modo a enfrentar essas
alienações. É o drama, sempre o drama!