1Henri Acselrad (2005) utiliza a expressão geografia do dissenso para
representar a dinâmica dos conflitos ambientais gerada no Estado do Rio
de Janeiro no contexto da recente busca de recuperação do crescimento
econômico a qualquer custo, quando investiu-se contra a responsabilidade
ambiental do Estado e se opôs de forma direta agentes econômicos e
“atores sociais no terreno”, como diz. Representaria, assim, uma
“geografia da crítica que a sociedade civil (...) endereça à
configuração espacial do modelo de desenvolvimento econômico instaurado
no estado” (ACSELRAD, 2005, p.8). Esta dinâmica conflitual, diz o autor,
pode nos ajudar a compreender as ações de resistência que vêm
contestando o modo como o desenvolvimento se foi configurando
espacialmente no estado. Entre essas ações estão aquelas que se
confrontam com as “dinâmicas locacionais que têm penalizado os grupos
sociais que pouco puderam se fazer ouvir nas esferas decisórias” (idem).
2Como
ilustração atual, podemos ver uma face dessa dinâmica no Norte
Fluminense a partir do processo de implantação do complexo de
mega-empreendimentos no contexto do Porto do Açu, proposta que, segundo
Soffiati Netto (SOFFIATI NETO, 2011) já havia sido rejeitada
anteriormente no estado de Santa Catarina em função da avaliação de seus
impactos socioambientais negativos. No dia dois de setembro deste ano,
participamos de uma audiência pública realizada em Campos dos Goytacazes
(RJ), referente ao processo de licenciamento do novo Distrito
Industrial de São João da Barra (RJ), empreendimento integrado ao
contexto do também chamado “Super Porto do Açu”, realização do grupo
EBX, comandado pelo empresário Eike Batista. Sob uma atmosfera de
tensão gerada pela: (i) polêmica estratégia de licenciamento; (ii)
pelos atuais mecanismos de desapropriação de agricultores do Quinto
Distrito de São João da Barra; e (iii) pela da própria precariedade do
mecanismo de esclarecimento e controle público através das audiências
públicas, alguns manifestantes expressaram sua indignação. Entre eles
estavam agricultores familiares e ambientalistas, que denunciaram a
existência de um continuum entre as agendas da empresa e dos ––
supostamente controladores/fiscalizadores –– órgãos governamentais,
ambas voltadas para a aprovação de tais empreendimentos. Requentando
antigas fórmulas, o desenvolvimento (cuja retórica evita a
adjetivação “capitalista”), naturalizado e entendido em si mesmo como a
realização do bem-comum, continua sendo o carro-chefe da operação
simbólica que disputa o status de escolha social mais legítima frente a tantos outros projetos de sociedade:
“Existem
aqueles que não gostam, que não querem sair das suas casas, das suas
terras, pelo valor afetivo... e a gente respeita isso. Mas, em
contrapartida, nós, como representantes desta terra, a gente vê essa...
como uma grande oportunidade de desenvolvimento, com o crescimento do
cidadão, com geração de renda, com distribuição de riqueza.” (REPORTAGEM
INTER TV/REDE GLOBO, 2011a).
3Contrapondo-se a esta fala da prefeita de São João da Barra, podemos citar a de uma agricultora, moradora do Quinto Distrito:
“A gente vai permanecer na terra... a gente tem uma vida digna e honesta aqui, trabalhamos pra sobreviver daqui, da terra. Isso
aqui tem documentos... é tudo em dia... Então, a gente não tem como
temer... a gente confia em Deus, e vamos torcer pra continuar lutando e
trabalhando a nossa terra”. (REPORTAGEM INTER TV/REDE GLOBO, 2011b).
4Como
em outras dinâmicas de configuração espacial do desenvolvimento de
precário teor democrático, e mais especificamente no contexto dos
conflitos ambientais, os direitos de uma suposta minoria são suspensos
ou precarizados em nome da geração de emprego e renda para uma suposta
maioria. Novamente se vê a retórica de um necessário sacrifício
social “de alguns” para a realização do interesse comum “de todos”,
deslegitimando tantas outras formas de existência social, tantos modos
diferenciados de apropriação, uso e significação do território. Uma
tentativa mesmo de invisibilização de tais atores sociais, associada à
idéia de um “vazio demográfico” e político, e à ação concreta de
desvalorização de suas terras e bens assim melhor disponibilizados ao
sucesso do empreendimento.
5Segundo Acselrad (2004), podemos reconhecer dois momentos diferentes de emergência dos conflitos ambientais no Brasil. Em
um primeiro momento, até os anos 1980, grandes projetos de apropriação
do espaço foram implementados pelo Estado brasileiro
“desenvolvimentista”, articulando-se com a implantação de uma complexa
estrutura industrial espacialmente concentrada, ocorrendo assim a
ampliação dos espaços integrados à dinâmica do desenvolvimento
capitalista. Aceleraram-se os ritmos do ciclo industrial de extração de
materiais, emissão de efluentes e resíduos, ancorados na concentração da
renda e nas exportações (ACSELRAD, 2004). Isso tudo causou grande
desestruturação nos ecossistemas, deslocando populações que dependiam
dessa base de recursos para áreas menores e menos férteis, levando à
intensificação desse uso e comprometendo, com o tempo, sua qualidade. Os
conflitos ambientais foram então se avolumando. Com a maior abertura
democrática nos anos 1980, muitas práticas sociais perseguidas e
silenciadas ao longo de duas décadas foram se fortalecendo: novas vozes
se expressam, projetos alternativos conquistam (e criam) um espaço
público de debate, inovações administrativas são gestadas no governo,
movimentos sociais começam a ser reconhecidos em suas lutas por direitos
e em suas propostas alternativas de sociedade, os impactos negativos do
modelo de desenvolvimento socioeconômico – antes ocultados – puderam
vir à tona.
6Em
um segundo momento, nos anos 1990 acelerou-se a inserção brasileira no
mercado capitalista mundializado através da especialização de funções de
diferentes porções do território nacional, intensificando a corrida
pela captação de investimentos internacionais.
7Nesse
modelo a “natureza” foi concebida ou como estoque de valor para esse
mercado (natureza a ser conservada), ou como campo de expansão de
empreendimentos incompatíveis com sua conservação (natureza a ser
destruída). Para tanto se promoveu a flexibilização das normas
ambientais e a fragilização das agências públicas responsáveis pela
aplicação delas. Contra essa intensa “desregulação do ambiente” é que
emerge um novo momento dos conflitos ambientais no Brasil. Nesse
sentido, tanto o que é valorizado pela proximidade da “natureza a ser
conservada” quanto o que é desvalorizado pela proximidade da “natureza a
ser destruída” constituem-se forças de expulsão-exclusão de populações
de menor renda e menor poder político para se expressarem nas arenas
públicas, fazendo valer seus direitos. No primeiro caso podemos
encontrar tudo o que ganha valor de mercado ou tem seu preço aumentado,
tornando-se inacessível ou inviável para tais populações; e no segundo,
encontramos tudo o que, perdendo seu valor de troca e de uso implica na
degradação da saúde, na elevação não apenas dos riscos, mas também da
efetiva contaminação e óbitos resultantes de degradação do ambiente em
que vivem essas populações. Vemos aí a pressão social para a permanência
desses grupos sociais mais vulneráveis nas proximidades das zonas
industriais, abandonadas ou não, dos bota-foras e lixões – contexto bem
representado nas denúncias de racismo ambiental nos EUA nos anos 1980.
8Conceitualmente,
os conflitos ambientais se originam quando a forma de sobrevivência de
alguns grupos sociais no território é ameaçada por impactos indesejáveis
– transmitidos pelo solo, água, ar ou sistemas vivos –, causados pela
ação de outros grupos sociais (ACSELRAD, 2004). Estes conflitos vêm a
público a partir da ação de denúncia dessas atividades indesejáveis, mas
a configuração dos conflitos acontece mesmo é durante as ações de
disputa entre os atores sociais, quando fica explícito que a
distribuição de poder entre eles e o respeito aos direitos de cada um é
muito desigual, motivo que faz com que as populações afetadas contestem e
até se revoltem contra essa “realidade”. Passa a existir assim uma
disputa por recursos, que não são apenas materiais, mas também
simbólicos.
9São
simbólicos por envolver o desafio de se conquistar espaços de expressão
das insatisfações e injustiças, de comunicação com a opinião pública
pela mídia, de cobrança da legislação e influência na elaboração de
novas leis, de luta por reconhecimento de legitimidade e de identidades.
10Uma
grande contribuição da dinâmica dos conflitos ambientais é justamente
sua saída da invisibilidade histórica para alcançar o debate público,
reclamando a democratização das decisões sobre a produção socioespacial
dos territórios, problematizando os consensos que nos são empurrados
diariamente – tal como o consenso do desenvolvimento (dito) sustentável.
Vale lembrar que o ideário da “sustentabilidade”, polemicamente
consagrado na Rio-92, desde então tem sido cooptado como importante
combustível da renovação da própria lógica capitalista.
11Acselrad
(2004) indica a abordagem da justiça ambiental como a mais coerente
para enfrentarmos a questão dos conflitos ambientais, evitando tratá-los
apenas em termos de eficácia e eficiência na mediação entre interesses,
típico de abordagens tecnocráticas e economicistas. Nesse mesmo sentido, ele critica as chamadas tecnologias de consenso (imbricadas à engenharia de favorecimento dos negócios),
que desqualificam as reivindicações dos demandantes e restringem as
“soluções” da questão a benefícios particulares, negociados sob
persuasão e coerção.
12A
relevante produção de conhecimento sobre o campo dos conflitos
ambientais tem revelado que a maior carga dos danos ambientais do
desenvolvimento é destinada prioritariamente às populações de baixa
renda, aos grupos sociais discriminados, aos povos étnicos tradicionais,
aos bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis: a injustiça ambiental é
o mecanismo que viabiliza e realiza isso tudo (ACSELRAD, 2004;
ACSELRAD, HERCULANO e PÁDUA, 2004; LEROY & ACSELRAD, 2006; ZHOURI;
LASCHEFSKI e PEREIRA, 2005; ZHOURI, LASCHEFSKI, 2010).
13Pensar
esse quadro em termos de justiça ambiental significa entender que os
efeitos da degradação ambiental são desigualmente distribuídos entre a
população (ao contrário do que se costuma dizer sobre as questões
ambientais), dependendo de seu poder econômico e político de influenciar
opinião e decisões públicas. Ao criticar a concentração dos riscos
ambientais sobre as populações mais enfraquecidas, estaríamos então
combatendo a degradação ambiental de um modo geral, uma vez que os
impactos negativos não mais poderiam ser transferidos para os mais
pobres.
14Acselrad
(2002) denuncia a receita que tem guiado a dinamização das economias
local, regional ou nacional, na chamada nova ordem mundial competitiva
(globalização), nomeando-a de desregulação institucional. Isso se daria no contexto de novas formas de organização que pretender transcender o sistema dos Estados-Nação, desterritorializando e reterritorializando capitais,
produzindo tensões e conflitos sociais na medida em que pretende
destituir tais processos das “referências às relações de poder que aí se
encontram” (ACSELRAD, 2002, p.33). Segundo o autor, essa reestruturação
das geografias da circulação e da acumulação do capital altera as
escalas de governo existentes, onde os capitais financeiros tornam-se
independentes das estruturas produtivas e da regulação dos Estados, e os
Estados nacionais continuam fortes reguladores da fixação espacial da
força de trabalho. Segundo Acselrad (2002, p.34) “substituiu-se a
política operada em escalas abrangentes pelos procedimentos técnicos
acionados em escalas locais e fragmentárias”, e nos Estados Nacionais
periféricos, como o Brasil, estreitaram-se os espaços de possibilidade
para o exercício das políticas públicas, ajustes que seguem a cartilha
do “Consenso de Washington”:
Pois
o que um certo discurso hegemônico vem pretendendo induzir é que os
processos históricos passem a ser substancialmente governados pela
própria dinâmica da inovação tecnológica, em detrimento das escolhas
coletivas fundadas em valores e projetos que podem ser debatidos no
espaço público (ACSELRAD, 2002, p.34)
15O
autor diz ainda que, uma vez sendo eleita a capacidade de inserção
internacional como o principal fator de dinamização econômica, o
discurso da necessidade de competição legitimou o desemprego. O
planejamento estatal agora considera que é a própria crise o “motor do
desenvolvimento”. Esse cenário é interpretado pelo autor como um
resultado histórico que envolveu a transformação da noção de governo do território (na pré-modernidade) para a de governo de homens e coisas,
onde ele localiza a emergência da Economia Política, associada a uma
Biopolítica que precisava fornecer o recurso trabalho à nascente
produção capitalista. Entre os indícios desse movimento ele aponta as
privatizações e os discursos sobre “parcerias”, “responsabilidade social
das empresas” e de uma “sociedade que toma nas mãos os seus próprios
problemas” (ACSELRAD, 2002, p.36).
16A
manutenção dessa nova ordem seria fundamental para os fluxos de capitais
mundializados, restringindo – conforme deseja o Banco Mundial – os formatos governativos para que melhor se defendam da “explosão de demandas sociais e corporativas”, concentrando o poder decisório. Em resumo, a boa governança tem
significado (para países como o Brasil que seguem o “receituário
liberal”) a abdicação da responsabilidade do Estado para com as
políticas sociais, com a educação e o meio ambiente: “subordinou a saúde
da população à saúde dos bancos e a sustentabilidade do meio ambiente à
sustentabilidade dos fluxos financeiros especulativos” (ACSELRAD, 2002,
p.37). Essa boa governança tende, portanto, a invisibilizar os
mais pobres, coagindo-os para que não onerem todo esse sistema. Ou como
diz Jacques Rancière, nessa nova ordem é preciso impedir que os
“não-considerados” apareçam na cena pública como divergência ou
reivindicação, impedi-los da tentativa de representar a si mesmos
(RANCIÈRE, 1996). Para Rancière (com quem Acselrad também dialoga), a Política deve
ser entendida como a atividade que tem por racionalidade própria a
racionalidade do desentendimento. Assim também entende Marilena Chauí: a
democracia seria o único regime político onde os conflitos sociais são
considerados o próprio princípio de seu funcionamento; impedi-los de se
expressar seria destruir a própria democracia (FOLHA DE SÃO PAULO,
2003). Mas na atual ordem social estaríamos mais próximos de uma Polícia que de uma Política, como diz Rancière. O conceito de Política trabalhado por este autor traz como princípio a igualdade,
uma igualdade que não está lá longe como um sonho que será alcançado
talvez um dia, mas sim uma potencialidade que só ganha realidade se é
atualizada no aqui e agora. E essa atualização se dá por ações
que irão construir a possibilidade dos “não-contados” serem levados em
conta, serem considerados nesse princípio básico e radical de igualdade.
17Citado por Chico de Oliveira, diz Rancière que a Política é
a reivindicação da parte daqueles que não têm parte; que política se
faz reivindicando “o que não é nosso” pelo sistema de direitos
dominantes, criando assim um campo de contestação (OLIVEIRA, 2004). O
autor acredita que em uma sociedade como a nossa em que os que não têm parte são a maior parte, é preciso fazer Política. Rancière chama de dano a
não-realização dessa suposta igualdade; a reivindicação desses que não
“cabem” na sociedade mas estão nela, coloca em destaque que está
ocorrendo o dano: a contagem oficial da população – a
Biopolítica que fala Acselrad – não dá conta dessa população. Mas seria
precisamente quando essas duas ordens de definição entram em oposição
(explicitando o desentendimento) que aconteceria a Política. Na atual “pós-democracia consensual” (Rancière apud ACSELRAD,
2002, p.38) condena-se o conflito e considera-se razoável apenas a sua
resolução ótima baseada no conhecimento do que é possível e na discussão
entre “parceiros” legitimados socialmente. A prática consensual é
assim, a prática do apagamento das formas do agir democrático e, por
isso, para Rancière, democracia e consenso são termos contraditórios: o
consenso seria o desaparecimento da política. Frustrando as expectativas
da abertura democrática brasileira nos anos 1980, diz Acselrad (2002)
que o paradigma vigente hoje é o da “desqualificação da política”, o que
viria justificando o deslocamento de “temas antes políticos” para a
esfera privada:
“Políticas
governamentais são transferidas para atores não-estatais através de
novos canais como fóruns, conselhos, Agendas 21 locais, que se pretendem
alheios aos males da política, pequena esfera a ser deixada doravante
ao arbítrio das elites “por sua pouca relevância e eficácia”. As
instituições privadas da sociedade civil passam a encarar a unidade,
antes prerrogativa da autoridade política estatal. Os valores, modelos
culturais e regras do jogo em que se definem os interesses são
considerados indiscutíves e os interesses diversos são simbolicamente
unificados. Economiza-se por fim a
política, através de metáforas econômicas da “cidadeempresa” para as
políticas urbanas, [...] da atribuição de preços aos elementos
não-mercantis do meio ambiente, da consideração da capacidade de venda
como expressão do valor do conhecimento produzido nas Universidades etc”
(ACSELRAD, 2002, p.38).
18O
autor cita o caso dos Conselhos Municipais, cada vez mais
participativos em sua composição, mas menos decisórios em sua pauta e
“mais passíveis de apropriação por uma política-espetáculo”, uma
democracia imagética (ACSELRAD, 2002, p.38). Se por um lado, como diz o autor, tal cenário é influenciado pelos discursos de busca de consenso social, segurança e sustentabilidade ecológica,
por outro, estaria cada vez mais difícil de se invisibilizar a ruptura
dos laços de sociabilidade, a segregação socioespacial e a violência
social. Cria-se assim um “vazio político” que se tentará preencher – em
vão – pela promoção da “cidadania local” e dos “laços comunitários”,
elementos de uma “democracia de proximidade” oferecida como remédio à
desagregação social; mas “as causas mais profundas da exclusão não podem
ser encontradas na esfera local”, fazendo-se do local uma expressão da
razão “globalitária” (ACSELRAD, 2002, p.39). A partir dos anos 1980 teria havido uma aposta no dinamismo local para
que se revertessem os aspectos negativos das políticas de
desenvolvimento “de cima para baixo”, consagrando-se aí a noção de desenvolvimento local: “O
desenvolvimento local liga-se assim, intimamente a uma abordagem
pragmática, traduzida na realização de projetos concretos, que levem em
conta as especificidades do território e o enraizamento dos atores – as
chamadas sinergias locais’”. (ACSELRAD, 2002, p.40)
19Distanciando-se
do que poderia ser uma visão determinista e fatalista, Acselrad aponta
também o caráter paradoxal e contraditório do desenvolvimento local,
onde os movimentos sociais disputam com as elites – empresariais e
políticas – a atribuição de significados: os primeiros reivindicam “o
aumento da democracia local e a integração do conjunto da população”; e
os últimos “enfatizam a competição internacional, o foco em setores de
ponta e o aumento das vantagens comparativas da cidade na rede
hierarquizada de cidades e competição” (ACSELRAD, 2002, p.41). O
que os governos locais buscam, diz o autor, são formas de coalizão –
“especialmente com o poder empresarial” – para angariar recursos
não-governamentais, para enfrentar a fragmentação de poderes econômicos e
políticos.
20Acselrad diz que as parcerias locais surgidas
nos anos 1990 eram na verdade motivadas pela disputa de recursos, sendo
melhor compreendidas no contexto da “distribuição de fundos do governo
central mediante programas que enfatizam a competição interlocal”, ao
contrário do discurso de “atribuição de poder às comunidades” e de
favorecimento de sua autonomia (ACSELRAD, 2002, p.42).
21Encontramos em Harriss (2001) uma crítica à noção de capital social, associada a este mesmo campo semântico e ideológico do desenvolvimento local, da ativação das sinergias locais. Segundo
o autor, o entusiasmo com a perspectiva de construção de capital social
alinha-se com agenda neo-liberal de redução do papel do Estado e das
despesas públicas, descontextualizando a questão do desenvolvimento das
relações de poder na sociedade (HARRISS, 2001, p.30). Assim:
« [...] essa nova ênfase no
desenvolvimento da comunidade estaria ligada ao objetivo neoliberal
mais amplo de criar cidadãos ativos para promover o apoio mútuo e a
iniciativa local, e reduzir a “dependência” dos atores locais em relação
ao Estado de Bem-Estar Social. Esse tipo
de parceria, estabelecido com o objetivo de competir por fundos
governamentais, acabaria, ao contrário dos propósitos explícitos que a
justificam, por restringir a autonomia dos atores locais no processo de
definição das estratégias de regeneração do local ». (ACSELRAD, 2002, p.42)
22Na
medida em que os poderes e recursos efetivos das comunidades não
acompanharem os discursos oficiais de “igualdade entre os parceiros”, o
envolvimento delas nas estratégias de desenvolvimento local poderá
assumir duas principais funções nesse cenário, diz o autor: legitimar
programas públicos ou oferecer “bodes expiatórios” para eventuais
fracassos das políticas públicas no local (ACSELRAD, 2002, p.42). Diz ainda Acselrad que, acionando uma “lógica exógena” o desenvolvimento local significa
a busca de funções especializadas para regiões, cidades ou localidades
em novos circuitos integradores, em troca de alguns benefícios que se
estendem à sociedade. E acionando uma “lógica endógena”, ele fomentaria
uma organização socioeconômica alternativa em busca da ativação e melhor
aproveitamento de recursos próprios – “práticas potencialmente
inovadoras, poupança local, ofertas de emprego correspondentes às novas
aspirações coletivas quanto à qualidade de vida, meio ambiente, lazer,
etc” (ACSELRAD, 2002, p.42). Mas considerar que “a crise vem do alto” (é
global) e que “a solução vem de baixo” (é local), opondo endógeno a
exógeno, seria apenas uma estratégia persuasiva, pois ambas estão
relacionadas e o poder de disposição sobre os recursos materiais e
institucionais não se situa nem no local nem no global, mas “naqueles
atores dotados de maior mobilidade espacial e de maior capacidade de
efetuar o que se entende crescentemente ser uma política de escalas”
(ACSELRAD, 2002, p.43).
23Marilena
Chauí diz que, para a classe dominante brasileira (os “liberais”),
democracia é o regime da lei e da ordem. Para ela, no entanto, a
democracia é “o único regime político no qual os conflitos são
considerados o princípio mesmo de seu funcionamento”: impedir a
expressão dos conflitos sociais seria destruir a democracia (FOLHA DE
SÃO PAULO, 2003). O filósofo Jacques Rancière critica a idéia de democracia que tem estruturado nossa vida social (regida por uma ordem policial,
segundo ele) por ela se distanciar do que seria sua razão de ser: a
instituição da política (RANCIÈRE, 1996). Estamos acomodados a acreditar
que a política é isso que está aí: variadas formas de acordo social a
partir das disputas entre interesses, resolvidas por um conjunto de
ações e normas institucionais. Essa ideia empobrecida do que seja a
política está, para o autor, mais próxima da idéia de polícia,
já que diz respeito ao controle e vigilância dos comportamentos humanos e
sua distribuição nas diferentes porções do território, cumprindo
funções consideradas mais ou menos adequadas à ordem vigente. Estamos
geralmente tão hipnotizados pela “necessidade de um compromisso para se
alcançar o bem-comum” e pela opinião geral de que “as instituições
sociais já estão fazendo todo o possível para isso”, que não conseguimos
perceber nossa contribuição na legitimação dessa política policial que administra alguns corpos e torna invisíveis outros.
24O conceito de Política trabalhado pelo autor traz como princípio a igualdade, uma igualdade que não está lá como sonho a ser alcançado um dia, mas que é uma potencialidade que só ganha realidade se é atualizada no aqui e agora. E
essa atualização se dá por ações que irão construir a possibilidade dos
“não-contados” serem levados em conta, serem considerados nesse
princípio básico e radical de igualdade. Para além dos movimentos
sociais, existem os ainda-sem-nome e ainda-sem-movimento. Diz o autor
que a Política é a reivindicação da parte daqueles que não têm
parte; política se faz reivindicando “o que não é nosso” pelo sistema de
direitos dominantes, criando assim um campo de contestação. Como diz
Chico de Oliveira, em uma sociedade em que os que não têm parte são a
maior parte, é preciso fazer Política (OLIVEIRA, 2004). Para Rancière, a Política é a atividade que tem por racionalidade própria a racionalidade do desentendimento.
Mas vivemos sob uma ordem social hegemônica (marcada pela força do
compromisso entre Mercado, Direito, Estado e Mídia), uma ordem “que
define as divisões entre os modos de fazer, de ser e de dizer dos
corpos” (a tal polícia que fala Rancière). O discurso da
igualdade que essa ordem promete (por exemplo na imagem de um Estado de
direito) não é a mesma igualdade concebida pelo autor como princípio da política. Essa segunda definição de igualdade é
a que é reivindicada por uma outra ordem de práticas, que criam
transgressões na ordem hegemônica (quando, e se conseguem). O autor
chama de dano a não-realização dessa suposta igualdade. A reivindicação desses que não “cabem” na sociedade mas estão nela, coloca em destaque que está ocorrendo o dano:
a contagem oficial da população não dá conta dessa população. É quando
essas duas ordens de definição entram em oposição (explicitando o desentendimento)
que acontece a política. Mas essa oposição encontra forças poderosas de
repressão e controle, marcadas pela pressão para o consenso. Nessa democracia consensual condena-se
o conflito e considera-se razoável apenas a sua resolução ótima baseada
no conhecimento do que é possível e na discussão entre “parceiros”
legitimados socialmente. A prática consensual é assim, a prática do
apagamento das formas do agir democrático. Não é permitido estar fora
desse consenso, e só se garantiria alguma igualdade obedecendo a ordem política policial de “ser igual aos iguais”.
25Por
isso, para o autor, democracia e consenso são termos contraditórios: o
consenso é o desaparecimento da política. Pelas estratégias de controle e
formação da opinião pública, o povo precisa continuamente
receber uma imagem pré-fabricada de si mesmo e da organização social
(tipo “Estado de direito”), manipulando os “não-considerados” para que
não apareçam na cena pública como divergência ou reivindicação, nem
tentem representar a si mesmos.
26Se desconsiderarmos as condições sociais em que tal consenso é produzido, as forças políticas policiais ficam
invisíveis e, assim também, toda a violência dos consensos forçados.
Como no caso em que o conflito em si é considerado um problema a ser
resolvido, um defeito do sistema harmônico a ser identificado e
conduzido por peritos até o regime do “possível de ser feito” pelo
Estado. Se não for “possível”, esse “problema” não é considerado
razoável e novamente se reforça a legitimidade e necessidade de uma política policial,
repressora. Apagando esse tipo de conflito que potencialmente surge de
um “povo esquecido na contagem”, fica fácil sugerir a harmonia entre um
Estado gestor (aquele que administra) e um Estado de direito.
27Em meio à “política das escalas” desempenhada pelos atores hegemônicos e a luta por direitos daqueles que sofrem danos em
função de tais ações, vemos emergir as disputas pela afirmação
territorial destes últimos, favorecidos pela diversidade de estratégias
de mapeamentos participativos que vem ocorrendo no Brasil nos últimos
vinte anos. Nesses mapeamentos a proposta é a inclusão de
populações locais nos processos de produção de mapas, quando
historicamente estiveram envolvidas diferentes instituições,
principalmente: agências governamentais, ONGs, organizações indígenas,
organismos multilaterais e de cooperação internacional, fundações
privadas e universidades (ACSELRAD e COLI, 2008).
28Se
os mapeamentos participativos outrora carregavam principalmente os
objetivos das agências promotoras do desenvolvimento, hoje podemos ver o
destaque de sua contribuição pendendo para a chamada “guerra dos
mapas”:
“(...) se por um lado, tornam-se
claras as implicações políticas dos mapas, podemos falar, por outro
lado, da emergência de políticas cartográficas, em que os mapeamentos
são eles próprios objeto da ação política. E se ação política diz
especificamente respeito à divisão do mundo social, podemos considerar
que na política dos mapeamentos estabelece-se uma disputa entre
distintas representações do espaço, ou seja, uma disputa cartográfica
que articula-se às próprias disputas territoriais” (ACSELRAD e COLI,
2008, p.14).
29Entre essas estratégias destaco aqui o projeto Nova Cartografia Social da Amazônia,
coordenado pelo antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida, que tem
como objetivo “dar ensejo à auto-cartografia dos povos e comunidades
tradicionais na Amazônia”. O interesse do projeto não é apenas
obter um maior conhecimento sobre o processo de ocupação da Amazônia
“mas sobretudo uma maior ênfase e um novo instrumento para o
fortalecimento dos movimentos sociais que nela existem” (PROJETO NOVA
CARTOGRAFIA SOCIAL DA AMAZÔNIA, 2011). Tais movimentos sociais consistem
em manifestações de identidades coletivas, referidas às situações
sociais peculiares e territorializadas. Estas territorialidades
específicas, construídas socialmente pelos diversos agentes sociais, é
que suportam as identidades coletivas objetivadas em movimentos sociais.
A força deste processo de territorialização diferenciada constitui o
objeto deste projeto, apontam seus coordenadores.
30O
projeto, que hoje já conta com um grande número de fascículos
representativos das pesquisas em auto-cartografias realizadas em muitas
regiões do Brasil traz uma forte perspectiva prática e de apoio ao
fortalecimento dos movimentos sociais, além de o fazer a partir de suas
expressões culturais diversas: “A cartografia se mostra como um elemento
de combate. A sua produção é um dos momentos possíveis para a
autoafirmação social”. Sobre a metodologia do Projeto, como dizem seus
coordenadores:
“(...) cada fascículo é
resultado de uma relação social específica entre um povo ou comunidade
tradicional e a equipe de pesquisadores. É o movimento social que busca o
PNSCA para realizar a cartografia. A partir desse interesse manifesto, é
realizada uma oficina de mapas com a participação de cerca de 30
agentes sociais e os pesquisadores membros do Projeto. Nela, os
pesquisadores ensinam técnicas de GPS e de mapeamento, além de conversar
com os agentes e coletar depoimentos sobre a história social e
problemas da comunidade. Os agentes sociais produzem croquis, mapeando
sua região e indicando quais os elementos relevantes para a sua
composição. Em um segundo momento, sem a presença dos pesquisadores, os
agentes sociais marcam, com GPS, os pontos do que consideram
significativo de seu território. Na seqüência, o PNSCA recolhe as
informações das marcações de ponto e as georeferencia na base
cartográfica, inserindo as ilustrações produzidas nos croquis. Essas
ilustrações compreendem desenhos, esboços e reproduções de símbolos e
objetos (remos, casas, embarcações, instrumentos de trabalho, animais,
plantas, etc.) que são transformados, a partir do trabalho da equipe de
pesquisadores, em ícones para compor as legendas dos mapas.
Simultaneamente, transcreve-se excertos de depoimentos e seleciona-se os
que comporão o fascículo.” (PROJETO NOVA CARTOGRAFIA SOCIAL DA
AMAZONIA, 2011)
31Ainda de acordo com informações disponibilizadas no site do
Projeto, após publicados os fascículos, a maior parte dos exemplares
fica de posse do movimento social, podendo utilizá-los como parte
integrante de sua estratégia de auto-afirmação social e de resolução de
seus problemas. A consolidação deste projeto acontece desde as
experiências de mapeamento social realizadas na área correspondente ao
“Programa Grande Carajás”, em 1991-93, e na região ecológica de
babaçuais, em 2005, dizem os coordenadores. Entre os movimentos sociais
abrangidos pelo Projeto poderíamos citar as Quebradeiras de Coco Babaçu
dos Estados do Piauí, Maranhão e Pará; as Comunidades Quilombolas dos
Estados do Pará, Maranhão, e Amazonas; artesãos e artesãs, ribeirinhos,
ribeirinhas, piaçabeiros e peconheiros dos Estados do Amazonas e Pará;
os povos dos Faxinais, dos Fundos de Pasto, Pescadores, Ribeirinhos,
Cipozeiros e Povoado Pantaneiro, nos Estados do Paraná, Bahia, Pará,
Amazonas, Roraima, Pernambuco, Espírito Santo, Santa Catarina e Mato
Grosso. A partir de 2006 o Projeto estendeu suas pesquisas aos Conflitos
nas Cidades da Amazônia, alcançando já hoje dez trabalhos realizados na
cidade de Belém, além de nove trabalhos na cidade de Manaus. Em Belém
as pesquisas envolveram Indígenas, Homossexuais, Afro-religiosos, Negras
e Negros, Catadores, Pessoas com deficiências, Feirantes e Ribeirinhos.
32A
compreensão da dinâmica social como essencialmente conflitual (e por
isso mesmo não patológica, nem a ser “sanada”) traz em destaque a
importância da dimensão política, da democratização, para os processos
de produção do espaço geográfico. A segunda onda dos conflitos
ambientais que se destacam no Brasil a partir dos anos 1990 é marcada
por processos de desregulação do ambiente, justamente quando a dinâmica
da globalização cobra que se retire a natureza dos conflitos sociais,
facilitando a disponibilização do ambiente para as especializações
exigidas do território, pelo capital: seja para a degradação seja para a
conservação, com seus processos de desvalorização e valorização. Os
sujeitos coletivos desenvolvem variadas formas de resistência à ação de
projetos representantes das dinâmicas hegemônicos de reprodução do
capital, resistência à mercantilização da vida, integrada a formas de
resistência territorial. E embora tenham geralmente prejudicadas
suasvariadas formas de existência cultural, social e política, vêm
conquistando novos recursos simbólicos relevantes para a disputa pela
legitimação de sua existência, e deslegitimação do caráter policial das políticas desenvolvimentistas. Destacam-se
aí o campo dos estudos dos conflitos ambientais, a corrente da justiça
ambiental e a abordagem das cartografias sociais que colaboram para o
fortalecimento dos movimentos sociais e para a democratização da
produção sócio-espacial.