- 1 As adições entre colchetes não são originais do texto.
- 2 Na explicação de Marx, “Dinheiro - considerado aqui como expressão autônoma de uma soma de valor, e (...)
1A financeirização é uma palavra-chave para se entender o capitalismo contemporâneo. A aceleração das trocas, a concentração e centralização de capital-dinheiro, a expansão dos mercados financeiros, o papel das instituições financeiras e novas configurações de classe e de poder que advém desses processos são determinações particulares do modo de vida atual. A expansão das finanças e do capital financeiro está ligada aos fenômenos e processos que caracterizam o atual estágio do modo de produção capitalista. Sua determinação abstrata principal é o desenvolvimento exponencial daquilo que Marx chamou de “figura autônoma do capital portador de juros e a autonomização do juro perante o lucro [empresarial]”, a “ossificação e autonomização (...) de duas partes do lucro”, “uma como mero fruto da propriedade do capital, [ou seja, do “capitalista passivo” ou rentista,] 1a outra como fruto do mero funcionar como capital, como fruto do capital como processante ou das funções que capitalista ativo exerce” (MARX, 1985c, p. 269; 280). O capital que se torna mercadoria2.
2A pletora de títulos em mercados futuros, fundos hedge e derivativos tornou-se cada vez mais extraordinária e complexa. Na imagem pensada pelo economista paquistanês Anwar Shaikh, trata-se de uma pirâmide invertida onde os lucros reais se localizam na base e “um volume rapidamente crescente de ativos financeiros são empilhados sobre ela”, em que os “resultados presentes e futuros sobre os quais sua avaliação se baseia ainda são altamente improváveis” (SHAIKH, 2016, p. 231).
3Os nexos entre a financeirização e as dinâmicas espaciais contemporâneas ficam patentes quando se observa o papel do sistema imobiliário e do mercado de créditos e hipotecas na ascensão do mercado internacional de derivativos nos anos 1980. A partir do governo Reagan, um amplo rol de medidas foram tomadas pelos diferentes governos norte-americanos de matiz neoliberal buscando promover mercados financeiros baseados na capitalização de títulos secundários que pudessem ter seu valor padronizado e facilmente mensurado, aumentando sua liquidez em mercados internacionais de títulos e, com isso, garantindo as condições necessárias para que a elite financista tivesse acesso às fontes de capital representadas pelos títulos de hipoteca e que, por fim, definia as fundações de um mercado imobiliário global (GOTHAM, 2006, p. 235-237). A chave para o processo é o fluxo contínuo de pagamento das hipotecas, fonte daquilo que Leyshon e Trift denominaram “pão com manteiga das finanças”, ou seja, as fontes estáveis de rendimento sobre as quais os instrumentos financeiros possam ser construídos, e que capacitem a transferência de todo e qualquer fluxo contínuo de rendimento estável e duradouro em um título financeiro que possa ser negociado em mercados secundários (LEYSHON, TRIFT, 2007, p. 98).
4Para diversos autores, o capital portador de juros se apropriou de atividades que anteriormente eram exercidas por outras formas de capital produtivo e comercial, ou mesmo de atividades que não eram operadas por formas de capital (valor em movimento de valorização), caso do trabalho não-produtivo envolvido apenas na reprodução social. Particularmente, Fine (2014) aponta para a importância de se observar os modos como o capital passou a se acumular, especialmente com relação às reestruturações que ocorrem com acúmulo desigual de capital e suas atividades associadas, incluindo finanças, em todo o mundo, bem como com as mudanças nos níveis de reprodução da força de trabalho em termos de saúde, educação e bem-estar (FINE, 2014, p. 48-49).
5O processo de acumulação de capital determina a busca da redução do tempo de produção e de realização das mercadorias ao menor tempo possível. Essa condição é bastante peculiar no caso das mercadorias imobiliárias, pois seu tempo de produção e de realização costuma durar anos (produção) ou, até mesmo, décadas (realização do valor). Se do ponto de vista das características comuns a todo capital, a aceleração do tempo de rotação do capital e da passagem entre as figuras do capital – capital-produtivo, capital-mercadoria, capital-dinheiro – de forma a aumentar sua circulação são questões centrais para a reprodução ampliada, no específico ao capital imobiliário se observa que o espaço construído opera como uma espécie de prisão para o capital, uma acumulação de trabalho morto, fixada num determinado espaço, mas a qual é fundamental como base física sobre a qual se processam a acumulação de capital dos demais setores, tanto para a produção presente quanto para a futura. Além disso, o setor imobiliário opera de maneira tácita, especialmente durante as crises do capital, quando ocorre a própria destruição desta base física, para permitir uma posterior reconstrução da mesma (mas com novas características) mais bem adequada aos processos de acumulação modernos (HARVEY, 2013, p. 304-307; p.318 e ss.).
6Em um valioso texto de síntese sobre a financeirização e a produção do espaço no Brasil, Sanfelice (2013) argumenta que os pontos de destaque nas análises das relações entre a Geografia urbana e a financeirização estão na apreensão de três fenômenos: “a abundância do crédito habitacional para segmentos de renda que até então possuíam escasso acesso a esses empréstimos”; “a necessidade premente [das empresas] de satisfazer seus investidores [o que] obrigou as empresas a buscar terrenos e negócios em locais distantes de seus mercados de origem” (SANFELICE, 2013, p. 37); e “o fato de que essas empresas altamente capitalizadas vêm priorizando, (...) a oferta de empreendimentos de enorme magnitude” (Ibid, p. 40). Todavia, nos cabe perguntar quais os efeitos concretos para a produção do espaço que resulta dessas mudanças qualitativas e quantitativas na relação entre o setor imobiliário e os fluxos financeiros. De que modo essas relações explicam a expansão da atividade imobiliária nas grandes metrópoles brasileiras no século XXI, fenômeno empiricamente observado por Sanfelice.
7A forma espacial da expansão imobiliária na última década nas grandes metrópoles brasileiras, ou seja, a expansão imobiliária que já ocorre sob a hegemonia das finanças, particularmente nos empreendimentos vinculados a papéis financeiros e fundos de investimento imobiliário se caracteriza pela dimensão e escala dos investimentos, os quais resultam em grandes complexos empresariais, condomínios residenciais de alto padrão, shopping centers, museus e espaços culturais, ou ainda um “mix” desses vários usos. A localização desses empreendimentos, reforçam, cada vez mais, a valorização dos eixos de expansão das atividades econômicas modernas, das áreas ocupadas pela população de renda mais alta e a formação dos policentrismos, particularmente, este último, no caso dos condomínios fechados e empreendimentos turísticos.
- 3 Essa discussão se encontra nos Grundrisse (MARX, 2013, p. 583 e ss.), a forma como a expansão do ca (...)
8A dúvida posta acima surge porque a produção imobiliária capitalista possui um conjunto de particularidades fundamentais para se entender o movimento de reprodução ampliada do setor. A observação nos remete diretamente à lógica de capitalização da renda da terra como instrumento para garantir o caráter expropriativo e espoliativo da expansão do capital, que atua onde a captura da valorização imobiliária seja mais rentável, determinando, assim os processos de diferenciação social. Ao mesmo tempo, se o que caracteriza os empreendimentos imobiliários "típicos” da financeirização nas cidades brasileiras são a localização urbana e a magnitude e escala dos processos produtivos, essa lógica interna do setor imobiliário contemporâneo poderia ser explicada por um conjunto de leis gerais de reprodução do capital, tais como: a concorrência entre capitalistas ser movida pela busca dos lucros acima da taxa média de lucro (ou seja, pelo que Marx denominou superlucro) para a qual, no caso particular da construção, a capitalização da renda da terra é mecanismo fundamental, devido à força exercida pelo monopólio da propriedade privada da terra; a tendência à ampliação do capital constante empregado frente ao capital variável; a tendência à ampliação do capital total mobilizado por unidade de produção; a ampliação da produtividade do trabalho relacionada, além das mudanças na organização, com a apropriação do intelecto geral na forma do capital fixo3; a ampliação das transferências de valor entre setores econômicos com diferencial entre as composições orgânicas do capital e do exploração do trabalho e a transformação dessa mais-valia em lucro; a centralização do capital e a concentração do capital (a formação de monopólios e oligopólios), entre outras tendências.
9Esses pontos acima indicados, e poderiam ser outros tantos, são determinações históricas que atuam sobre o capital em geral e corroboram o fenômeno empiricamente observado da ampliação da escala dos empreendimentos, da elevação da quantidade de capital empregado e o reforço de certas localizações urbanas mais valorizadas. Porém, uma leitura deste tipo não observa as determinações particulares da produção imobiliária, que podem modificar esses efeitos, e sem as quais não se deve afirmar que tais fatos urbanos encontrariam barreiras à sua reprodução caso fosse retirada a hegemonia das finanças do mecanismo de reprodução capitalista antes de se estabelecer as relações de causa e efeito entre a financeirização e as determinações particulares do fenômeno.
10Como o próprio Sanfelice aponta, “não se trata de afirmar que esses empreendimentos não existiam antes que se estabelecessem mais fortemente os vínculos com as finanças mediante o mercado de capitais” (SANFELICE, 2013, p. 41). Útil como ferramenta para desnudar os meios pelos quais a financeirização ingressa na lógica de produção do espaço, exacerbando contradições inerentes ao processo, o olhar sobre as altas finanças permite entender mudanças que são mais da ordem quantitativa do que da ordem qualitativa sobre os fatos urbanos observáveis nas cidades brasileiras.
11Assim, este artigo propõe uma hipótese ainda a ser, seguramente, debatida: o que é novo e representa uma particularidade da produção do espaço, no caso brasileiro, desta era da financeirização, é a ampliação de empreendimentos voltados à população de baixa renda, particularmente nas áreas periféricas das metrópoles, em áreas estagnadas das cidades médias, além de municípios pequenos que antes apresentavam um setor imobiliário absolutamente pífio, criando novas configurações espaciais e novas dinâmicas urbanas, no âmbito da financeirização, e que decorrem, particularmente, como resultado do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV). Neste artigo, trataremos do caso das metrópoles e suas periferias, pois é onde se concentram os dados empíricos que utilizaremos em nossas análises.
12Este fenômeno emergente altera uma tendência histórica do grande capital, no setor imobiliário e da construção, o qual ignorava a possibilidade de acumulação nas frentes periféricas das cidades, onde a produção social do espaço era resultado da necessidade de pura subsistência e que arrolava um conjunto de processos reconhecidos como ilegais, informais ou irregulares. Assim como a produção mais moderna, localizada em eixos de expansão já consolidados da atividade imobiliária nas grandes cidades, as novas configurações espaciais e as dinâmicas urbanas surgidas nas periferias também estaria baseada nos nexos financeiros, na potencialização dos negócios com a propriedade da terra. A lógica setorial na produção do PMCMV repousa no papel das construtoras e incorporadoras como elos mediadores entre fluxos financeiros globais e a captura de rendas na escala local. Trata-se de um único processo, posto em marcha pela financeirização, com diferentes resultados espaciais. No caso da produção de habitação para a população de baixa renda, as finanças entram de modo capilar na economia, como apoio para a produção e a realização da valorização dos capitais vinculados ao setor imobiliário e cujos vínculos com o capital global são mais tênues que o caso dos empreendimentos vinculados diretamente com fundos de investimentos, ações e securitizações. Porém, abstraindo-se tais escalas e parâmetros, as determinações do fenômeno observado seriam os mesmos.
13As particularidades da produção do espaço são elemento central de toda teoria crítica da urbanização capitalista, já observadas na obra de Lefebvre, Harvey e demais autores que iniciaram essa leitura crítica ainda na década de sessenta do século XX. Topalov (1974) fez uma primeira sistematização dessas particularidades, observando que seu resultado é a formação de barreiras para entrada do capital no setor da construção de moradias, definindo, assim, certos limites estruturais para reprodução do capital no setor da construção. Esses pontos devem ser entendidos como: (a) a renda capitalizada da terra é capital necessário para o produtor, mas não é parte do capital ativo, do capital que se valoriza; (b) os elementos de capital fixo são expandidos para a forma de capital circulante e empréstimos são exigidos para simples pagamentos de insumos e salários ao longo da duração de cada processo produtivo; (c) o consumo da mercadoria também vai exigir capital de empréstimo (TOPALOV, 1974). Em nossa interpretação, esses três pontos podem ser melhor entendidos se os observarmos como singularidades internas à produção imobiliária, mas que se articulam e se determinam reciprocamente no interior de cada um dos diferentes níveis de apreensão do processo global de produção, ou seja, nas esferas da produção, de realização e de distribuição do valor.
14O processo de produção do espaço – a construção do ambiente construído – envolve historicamente a constituição de meios de trabalho e de meios de vida. No capitalismo, as técnicas, os processos e os conhecimentos pertencentes à arte da construção são subsumidos ao modo de produção capitalista, dominados pela forma-valor. A construção do ambiente construído passa a ser um processo de produção das condições gerais de reprodução do capital, o que envolve, de início, o cercamento, a apropriação e a mercadorização de dádivas gratuitas da natureza bem como dos produtos passados do trabalho humano.
- 4 Em setores como a tecelagem, a siderurgia ou a indústria química, podemos delimitar os momentos des (...)
15As condições técnicas da produção e o processo de trabalho na produção direta dos valores-de-uso, quando dominados pelo modo de produção capitalista, são dirigidas pela incessante busca dos capitalistas pelo lucro. Porém, isso não se dá por um salto, mas por uma mudança gradual, em que a busca pelo lucro determina a forma social que passa a assumir o processo de construção4, mas em que o próprio desenvolvimento dessa forma determina limites físicos, técnicos e organizacionais para avanço da lógica do capital na construção. A dinâmica histórica da subordinação da construção do ambiente construído ao capital aparece como um longo processo de subsunção formal e de subsunção real (MARX, 2004, 87-108) simultâneos, em que o avanço técnico e científico das condições de produção, buscando
16A tendência geral de aumento da extração da mais-valia relativa e os correspondentes processos de desenvolvimento tecnológico e de ampliação da composição orgânica do capital exigem um nível de padronização das mercadorias e do processo de trabalho que geralmente não são observadas no setor da construção, devido à exigência interna da lógica de produção do setor que requisitar uma sequência acumulativa de atividades que, no entendimento de diferentes autores (TOPALOV, 1974; JARAMILLO, 1982), tenderia a manter submissão formal do trabalho ao capital, conformando assim um processo de manufatura. A dificuldade para a massificação e reprodutibilidade provém também de outros fatores, como a própria infinitude de situações do sítio existente dentro do tecido urbano das cidades, as variadas dimensões do lote urbano, as diferentes restrições legais que determinam limites para a ocupação e construção nos terrenos, etc. Desse modo, a busca pelo lucro no setor é garantida pelo alto grau de utilização de força de trabalho com pequena qualificação – conclusão que não pode ser generalizada, mantendo à vista as particularidades das diferentes formações socioeconômicas – aproveitando a expansão da capacidade de trabalho disponível no mercado, ou seja, do exército industrial de reserva, que se torna disponível pelos setores que se utilizam uma maior proporção de capital constante. Assim, o setor tem uma grande importância como gerador de duas das principais contratendências à lei de queda da taxa de lucro, que atuam de forma generalizada na produção de mercadorias pelo setor imobiliário, quais sejam, o pagamento de salários abaixo do valor da força de trabalho e a expansão da taxa de exploração, ou seja da relação entre mais-valia e o valor da força de trabalho, tempo de trabalho excedente em relação ao tempo de trabalho necessário.
17Principalmente em cidades com elevada atividade econômica fez-se perceber, desde cedo, o poder do monopólio e dos terrenos e seu efeito sobre o setor da construção. A carência de moradias para a população, o crescimento da riqueza social, entre outros, levam à luta pelo acesso às melhores localizações. Simultaneamente é também a luta pela propriedade das melhores condições de produção, situação que determina o desenvolvimento do mercado de terras e das mercadorias imobiliárias. Nessa situação, o capital produtivo – ou seja, a figura do construtor – é deslocado do centro do processo de decisão em benefício do capital de incorporação, que se torna responsável pela definição de um produto comercializável, pela gestão financeira, jurídica e técnica da fase de transformação do capital comercial em mercadoria habitação. Pela realização dessas atividades fundamentais para o ciclo da produção imobiliária, o incorporador passa a rentabilizar a partir de estratégias de maximização do lucro imobiliário e da transformação do uso do solo (TOPALOV, 1974, p. 14 e ss.).
18A produção imobiliária é absolutamente imbricada com o monopólio da propriedade privada dos terrenos, “fundida em um único mercado” (PEREIRA, 1988, 10), em que um único preço é medida de valor do produto do processo de valorização que se dá no âmbito da construção e de uma capitalização de renda relativa, como resultado de uma privatização de um espaço da cidade, é uma mercadoria especial. A produção imobiliária é parte dos ramos industriais em que os valores das mercadorias estão acima dos preços médios e cujo lucro, portanto, não cedem ao nivelamento da taxa geral de lucro dos demais setores, proporcionando um lucro excedente, necessário para pagar a renda da terra (MARX, 1983, p. 525). Para o capitalista, o resultado do processo produtivo (e a venda dos produtos) resulta numa massa de dinheiro que, deduzido o valor dos meios de produção dispendidos no processo imediato de produção, deve ser dividido em três componentes, salário dos trabalhadores, lucro do empresário e renda capitalizada do proprietário do terreno, três componentes do preço que assumem a configuração de rendimento autônomas e independentes entre si, que se manifestam na representação desses agentes dentro das classes sociais. Essa manifestação imediata do valor, presente no cálculo executado pelo empresário para precificar a mercadoria somada ao preço das mercadorias deve corresponder à soma do preço do trabalho, do capital e da terra, além de um elemento que é o excedente sobre o preço de custo formado por esses elementos, e que aparece como lucro médio, cujo destino tem a aparência de ser regulado pela concorrência entre as classes (MARX, 1985c, p. 309-314).
19A divisão desse preço em três partes e a exigência de um montante de capital aplicado improdutivamente na aquisição de terrenos torna o lucro excedente uma condição necessária e permanente. O preço de produção não regula o preço de mercado, mas, a partir deste, se observa a possibilidade de ampliar a exploração do trabalho e ampliar a geração de mais-valia, buscando a manutenção de níveis elevados de valor em cada mercadoria individual. Não se trata, como sugerem diferentes autores, de um resultado do número de trabalhadores empregados na construção ou da prevalência da mais-valia absoluta sobre a mais-valia relativa. A aceleração técnica da produção do ambiente construído (e com ela, a passagem à subordinação real e prevalência da mais-valia relativa) é exigida quando a renda capitalizada altera a proporção com que o valor deve exceder o preço de produção.
20As características materiais e objetivas da construção imobiliária impedem uma produção em massa que acompanhasse o ritmo de uma linha de produção fordista. Ainda que as atividades de trabalho num canteiro hoje tenham se aproximado do que se denomina Toyotismo, dificilmente elas podem ser comparadas, ainda que uma aproximação bem maior caiba nas atividades realizadas em escritórios de projeto e de gerenciamento. Ocorreu, certamente, uma elevação da produtividade do trabalho na construção, mas esta elevação depende da possibilidade de reprodução de movimentos, processos e tempos que, de modo geral, não são possíveis de se realizar dado o infinito universo de situações de produção e a necessária sobreposição de etapas da construção (como execução de fundações, alicerces, elementos estruturais, paredes, revestimentos) que determina o longo tempo de produção.
- 5 A noção de composição técnica do capital (CTC) é melhor desenvolvida por Saad Filho (2011). A CTC c (...)
21Assim, assumir que nível de desenvolvimento técnico da construção é relativamente inferior aos demais setores industriais, não deve ser visto como ausência de uma orientação do setor para aumento da produtividade, redução de prazos e custos de produção. A produção em massa pode garantir um lucro excedente com a elevação da composição técnica do capital5 acima da média do setor, mas a produção de um edifício em menor escala simplesmente pode não comportar a elevação técnica do valor e exige maior uso da força de trabalho e a deposição do valor por um longo período.
22A queda relativa dos salários no setor frente à oferta total do mercado de trabalho, a qual os capitalistas justificam por ser uma atividade que não requer trabalho “qualificado”, é fator importante para se entender a elevação da mais-valia gerada e dos lucros no setor. A manutenção de um grande número médio de trabalhadores por unidade produtiva no ciclo de acumulação é resultado da expansão da mais-valia somada com o rebaixamento dos salários. O capital tende a desqualificar o trabalho manual, num quadro de homogeneização das habilidades e conhecimentos. Com isso, o setor da construção passou a funcionar como um “refúgio do trabalho” (PEREIRA, 1988, p. 15) que emprega maior quantidade de trabalhadores no conjunto da produção social.
- 6 Como exemplo: o capital constante do processo produtivo investido em máquinas, veículos e equipamen (...)
23Tais características contribuem para um conjunto de particularidades do setor, que se relacionam com o longo tempo de produção, dentre as quais, destacamos: a necessidade de uma acumulação prévia de capitais maior para início do processo produtivo de uma única mercadoria do que nos demais setores; o longo tempo de produção que exige que os elementos do capital constante “circulem” para diminuir a proporção de capital imobilizado ao longo do processo produtivo6; a necessidade corrente de capital de empréstimo para pagar desde os salários até os insumos básicos do processo produtivo, visto que retorno do investimento inicial, a transformação M’ – D’, muitas vezes ocorre anos depois do início da produção, etc.
- 7 Há ainda uma singularidade, cuja discussão não cabe a este artigo, que é a característica das socie (...)
24As particularidades do setor imobiliário resultam em grandes dificuldades para a garantia da reprodução ampliada do processo. Toda acumulação de capital exige valor em movimento e a contínua reprodução dos processos individuais de produção, o que significa que a realização do valor contido na produção imobiliária exige que as mercadorias sejam consumidas. No caso dos edifícios e do ambiente construído, mercadorias produzidas de modo análogo podem ter formas de consumo absolutamente diferentes, podendo ser consumidas como meios de produção, ou seja, tornam-se capital constante na mão de capitalistas, quanto podem se tornar meios de consumo, o que ainda possui grande diferença se a realização do valor depender de seu consumo pela classe capitalista, constituindo assim transferência de parte da mais-valia, ou pela classe trabalhadora, constituindo transferência de parte dos salários. Especialmente nesse último caso, das mercadorias destinadas ao consumo da classe trabalhadora, observa-se que diversos são os processos por meio dos quais procura-se garantir o movimento cíclico de rotação do capital no setor, através de medidas que facilitem seu consumo, como a diminuição de tributos, a redução dos juros, a produção direta do Estado na produção, entre outras formas que garantam que o valor representado na produção seja realizado e volte ao início do processo de rotação do capital7.
25A necessidade dessas formas que parecem negar o movimento de autoexpansão do valor, ou que aparecem como imposições do Estado à livre concorrência e à livre-circulação do capital, devem ser entendidos como momentos de ação necessária do Estado para permitir a reprodução da economia capitalista. Isso é particularmente óbvio no caso da habitação, tornada mercadoria, um valor-de-uso fundamental para reprodução da força de trabalho que comporta grande quantidade de valor e, por isso, tem um elevado preço.
26O preço de mercado das mercadorias aparece como se fosse determinado pelo enfrentamento da oferta e da demanda, entre proprietários de mercadorias e proprietários de dinheiro. Para o caso das mercadorias imobiliárias, os preços apresentam enorme variação de acordo com sua localização e situação. Ela não encontra um preço regulador na produção, mas na concorrência. Esse processo torna-se mais complexo ao se observar que cada mercadoria posta no mercado, ou seja, o resultado individual um processo produtivo unitário, um edifício, por exemplo, é uma mercadoria diferente, no que toca à mera impossibilidade de reprodução exata do edifício duas vezes. Dois edifícios que, devido ao desenvolvimento técnico, pudessem ser construídos exatamente iguais, estariam em duas localizações urbanas diferentes e apenas por coincidência apresentariam o mesmo preço da terra. Isso determina, de modo geral, que tenham dois preços de mercado diferentes, posto que a demanda pela melhor localização aumentaria seu valor social ainda que os custos de produção fossem idênticos.
27Como pode-se observar, toda antecipação necessária, pelo incorporador imobiliário, na definição do produto a ser produzido envolve uma série de decisões subjetivas (“incertezas”) que cercam a produção de uma mercadoria que sempre é singular, com uma localização singular, para a qual se busca um consumidor também singular. Os produtos imobiliários ainda sofrem a ação a contínua de concorrência dos demais produtos resultantes de processos passados – os “imóveis à venda” – e de outras formas de utilização do valor de uso da moradia – a forma aluguel. Essa concorrência entre mercadorias novas e antigas é reflexo de outra particularidade – a conservação dos valores de uso. Tais mercadorias apresentam um processo de desvalorização – desvalorização ou degradação de seus valores-de-uso – muito mais longo que o “normal” do mundo das mercadorias. Consumidas ao longo de anos (ou décadas, ou séculos), elas mantêm seu valor-de-troca quase perene, com uma diminuta depreciação ao longo dos anos. Essa concorrência entre mercadorias cujo valor já foi realizado e que “voltam ao mercado”, submetendo-se novamente à concorrência, acaba se tornando um parâmetro importante para definição de preços de mercado das mercadorias novas, recém-produzidas e recém-ingressadas ao mercado imobiliário. A definição dos preços de mercado, pelo confronto entre ofertantes e demandantes do produto, aparece como uma fantasmagoria ou fetichismo, que esconde a origem dos valores na quantidade trabalho socialmente necessário.
28No mercado imobiliário são postos em concorrência uma série de agentes, personificações de diferentes capitais autonomizados, cujos rendimentos estão contidos na mais-valia produzida no processo imediato de produção, e que são determinantes para o papel da equalização da taxa de lucro do setor.
29A subsunção do capital produtivo pelo capital de incorporação imobiliária – uma personificação das funções autonomizadas do capital de comércio de mercadorias e de um capital de comércio de títulos de propriedade, uma singularidade ainda a ser debatida – põe em relevo as funções desempenhadas pelo incorporador imobiliário, que explora uma série de trabalhos efetivos, como contadores, advogados, publicitários, etc. além dos próprios vendedores de imóveis, que consistem em atividades que precisam ser remuneradas. Estes são trabalhos improdutivos, ou seja, não agregam valor ao produto que é vendido, mas que se tornaram socialmente necessários nas condições históricas do desenvolvimento desse modo de produção.
30A função de capital de comércio de títulos de propriedade é de fundamental importância, pois ele aparece como o nexo que liga o início e o fim de cada ciclo, desde a compra de um título de propriedade na forma de pagamento de uma renda futura capitalizada, previamente ao início do processo de valorização, até a venda de outro título de propriedade (ou de múltiplos e variados títulos) ao fim da realização do valor. Os terrenos urbanos não são a mera base material sobre a qual se dá o processo de produção de mercadorias, mas é a base material de toda lógica do setor. O negócio imobiliário é o negócio de multiplicação dessa base material e de especulação sobre os títulos de propriedade. É a superação do confronto entre proprietários de terra que apenas especulam e capitalistas industriais que produzem, como colocada pela economia clássica, por uma figura que comporta esses dois capitais autônomos. Se o negócio do especulador de terras é obter lucro com transações simples entre títulos de propriedade (M–D–M), o negócio do incorporador é a multiplicação dos títulos de propriedade e com isso a geração de lucro (D–M–M’–D’).
31Concluindo, a presença e a hegemonia de um capital de incorporação que obtém uma parte não desprezível do lucro são determinantes para entender a distribuição da mais-valia neste circuito. Uma parte dos rendimentos do capital de incorporação aparece como parcela do lucro resultante das atividades improdutivas que exerce e outra parte como uma renda capitalizada relativa à expansão e multiplicação do terreno que é base material da produção.
32Além disso, parte da mais-valia é dividida, ainda, com o Estado, numa proporção que não é pequena, posto que no ato de troca e venda, a alienação da mercadoria imobiliária é também um contrato de propriedade imobiliária e fundiária, formando, em qualquer situação, mesmo na mais comum que é a aquisição de um imóvel como parte das condições necessárias de reprodução da força de trabalho, este imóvel se configura uma reserva de valor (entesouramento) e um patrimônio que, em geral, é sujeito a grande tributação pelo Estado.
33Assim, temos, do ponto de vista da produção e realização imobiliária, que a renda capitalizada da terra é capital necessário para o produtor, mas não é parte do capital ativo, do capital que se valoriza; os elementos de capital fixo são expandidos para a forma de capital circulante e empréstimos são exigidos para simples pagamentos de insumos e salários ao longo da duração de cada processo produtivo; o consumo da mercadoria com tal massa de valor, e consequentemente, elevado preço, também vai exigir capital de empréstimo. Finalmente, do ponto de vista da distribuição da mais-valia imobiliária, ela é repartida entre lucro comercial, lucro da produção, salários das atividades improdutivas e renda da terra.
34Em todo processo de reprodução do imobiliário, o capital-dinheiro autonomizado é convidado a participar, seja para acelerar a circulação, a produção ou a realização. Porém, na prática do setor imobiliário, observa-se que o capital de incorporação se especializou em escapar da dependência do capital portador de juros. Numa situação usual, antes de iniciar o processo de produção propriamente dito, o incorporador já executou diversas tarefas para as quais ele necessita de capital acumulado prévio, sendo a maior de todas, a primeira transferência de patrimônio fundiário ou imobiliário, e, além desta, o pagamento de tributos e dos salários dos empregados improdutivos. Munido de um projeto para o produto que será construído ele vai ao mercado e vende a promessa de produção – anúncios em jornais, estandes de vendas, internet, etc. – e acumula, sem precisar de seu próprio endividamento em um banco ou outra instituição financeira, o capital necessário para o processo produtivo que já começa com a garantia de realização do valor a ser valorizado. Se essa venda for bem-sucedida, aquele projeto será executado resultando nas mercadorias já vendidas. Se não for bem-sucedido, o incorporador pode estender o tempo que esperava deixar as mercadorias a venda e atrasar o início da produção. Nesse caso, a expectativa de não realização é empecilho a longo prazo, porém todas as mercadorias ainda podem ter seu valor realizado, especialmente se considerarmos as condições de conservação de seus valores-de-uso e manutenção dos valores-de-troca no tempo. Se essa expectativa ultrapassa certos limites que indiquem uma possível não realização do valor, quer dizer, uma suspeita de que cada mercadoria não será vendida pela taxa de lucro média, é possível ainda alterar o valor dessas mercadorias. Isso é possível pela flexibilidade existente no processo imediato de produção. Embora a mercadoria já vendida não possa ser alterada – um título de propriedade sobre um apartamento de três dormitórios não pode gerar um apartamento de dois dormitórios, ou com um a área menor que a estipulada no contrato – nada impede que se altere o capital constante e o capital variável, aumentando o tempo de trabalho, intensificando o trabalho, alterando insumos e a tecnologia construtiva que não constam do contrato de compra e venda.
- 8 Buscando maior esclarecimento sobre a financeirização, Chesnais (2016) distingue capital financeiro (...)
35A questão a ser respondida é como esses processos complexos se alteram nas atuais condições de financeirização, em que o capital financeiro e as finanças tornam-se agentes hegemônicos8. Diferente de outros países que vêm operando com taxas de juros baixíssimas ou mesmo negativa, o Brasil apresenta uma das maiores taxas de juro, operando como uma plataforma internacional de valorização financeira (PAULANI, 2017). Porém, de modo muito “estranho”, o setor imobiliário consegue manter seu nível de reprodução capitalista mesmo com a atual recessão dos setores industrial, de comércio e de serviços da economia brasileira. Se por um lado, a formação de preços monopólicos com base na renda capitalizada ajuda a explicar a sustentação do setor em meio à recessão, isso parece ser insuficiente, uma vez que muitas das incorporadoras do país, na verdade, as maiores, já se encontram intimamente ligadas com o sistema financeiro (SANFELICE, 2013).
36A capitalização de renda patrimonial, devida à propriedade do capital e da terra, conecta-se com a valorização dos títulos financeiros imobiliários ou de base imobiliária. As indicações preliminares conduzem nossa pesquisa no sentido de se pensar que a aceleração do circuito monetário, permitido pela ampliação dos instrumentos financeiros e da securitização, é uma força que atua em direção à inflação dos preços imobiliários, exigindo um alinhamento dos processos especulativos do mercado financeiro com a valorização imobiliária “real”. No caso brasileiro, a especulação sobre os preços da terra e das mercadorias imobiliárias ocorreu em níveis superiores à elevação da capacidade de consumo das massas, mesmo considerando-se a ampliação do emprego formal, os reajustes do salário mínimo, os programas de transferência de renda, a facilitação de crédito ao consumo, etc. que ocorreram no período da “bolha” imobiliária. A consequência direta desse processo é a concentração de riqueza e de propriedades, evidenciada por levantamento de 2016 que mostra que 1% dos proprietários de imóveis possuem 45% do valor imobiliário na cidade de São Paulo; trata-se de 22,4 mil proprietários, dentro de uma população de quase vinte milhões de pessoas, com média de 37 imóveis ou de 33 milhões de reais em patrimônio (RUFINO, 2017).
37Essa questão vem à tona na análise do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) por causa do entrelaçamento entre a política estatal e os interesses privados na produção habitacional. No Programa, as empresas trabalham com valores pré-estabelecidos para os insumos e serviços executados, excetuando os gastos que apresentam variações excessivas de acordo com a situação geotécnica, urbana ou ambiental, como são a execução das fundações dos edifícios e os sistemas de infraestruturas que precisem ser implantados. Com isso, as empresas buscam ganhos de produtividade por meio da racionalização da construção, da ampliação da escala dos empreendimentos e da padronização dos projetos e procedimentos. Observa-se nos canteiros dos empreendimentos da Faixa 1 uma evolução técnica e organizacional do processo de trabalho, em que foram alteradas as técnicas, o perfil dos profissionais, as máquinas e equipamentos e um controle muito maior da produção (BARAVELLI, 2014, p. 52-54). Esta lógica industrial da produção se sobrepõe às condições locais de produção e a quaisquer diretrizes específicas do lugar ou da população (RUFINO, 2015, p. 62). Além disso, eventuais ganhos obtidos com esses processos sequer podem ser transformados em benefícios ao comprador, pois os preços das unidades são definidos previamente e, em vez de se buscar melhorias na qualidade ou no dimensionamento dos projetos, toda a diferença é transformada em lucro pelo empreendedor (CARDOSO, ARAGÃO, 2013, p. 53). Esse fenômeno causa um retrocesso na qualidade urbanística e habitacional e esta é a principal característica do setor de “habitação social de mercado”, conforme expressão formulada por SHIMBO (2017, p. 311). Entender a natureza dos agentes, os nexos entre os mesmos (desde o controle econômico da produção até o trabalho direto) e as condições de produção e circulação dos capitais é parte dessa pesquisa. Nesse contexto, a inovação tecnológica e a restruturação da organização do trabalho são centrais para a ampliação da margem de lucro dos agentes (OLIVEIRA, 2017; SHIMBO, 2017).
38Outro ponto central da discussão é que o sucesso do PMCMV em um município – e não em todos os que houve sua atuação – se relaciona diretamente com as lógicas fundiárias e imobiliárias em cada localização. A margem de lucro aferida em áreas com variações do preço da terra, mas em que se aplicam o mesmo valor dos insumos, direciona diretamente a decisão das empresas sobre onde investir (ROLNIK et al, 2013, p. 40; OLIVEIRA, 2017, p. 333). A reprodução e manutenção do déficit habitacional acaba sendo regida por critérios de lucratividade e não conforme a localização territorial do déficit (CUNHA, SILVA, 2018, 66). Os municípios menos populosos e mais pobres, que deveriam empregar soluções construtivas de menor custo acabam sendo o foco de atividade de muitas empresas (KRAUSE, BALBIM, LIMA NETO, 2013, p. 47).
39O reforço da lógica financeira que pauta as empresas de construção envolvidas no PMCMV segue as normas e condições definidas pelo setor empresarial junto aos entes estatais. Muitas dessas empresas, que se tornaram gigantes a partir da abertura de papéis em bolsas de valores, impulsionaram o mercado de terras, ampliando a concorrência sobre terrenos que antes estavam “fora” do mercado formal (RUFINO, 2015, p. 59). A injeção de recursos em escala nacional permite que certos grupos empresariais tenham predomínio nas ações do PMCMV, expandindo a esfera de atuação dos mesmos. Essas empresas têm sua atividade facilitadas pelo grande leque de opções existentes dentro do programa, o que permite uma grande mobilidade as vezes em todo território nacional, para realização dos negócios (ROLNIK et al, 2013, p 39). O PMCMV facilita a atuação dessas empresas, comparando com o trâmite burocrático e a regulação existente para a produção habitacional por meio das companhias municipais e estatais bem como nos demais programas habitacionais previstos na Política Nacional de Habitação, bem como a facilidade em obter os financiamentos no PMCMV. Com isso o lucro dos empreendimentos passa a depender prioritariamente da capacidade produtiva de cada empresa, independentemente de processos licitatórios e burocráticos. Além disso, o PMCMV tem gerado novos arranjos empresariais entre as grandes construtoras e empresas locais, resultando na especialização de certas empresas em determinadas faixas de financiamento do programa (ROLNIK et al, 2013, 39-40).
40Alguns autores (OLIVEIRA, 2017; SHIMBO, 2017) afirmam que as novas relações entre os agentes promotores e as novas relações de produção habitacional que resultam do PMCMV estão diretamente relacionados com a restruturação das cidades brasileiras nesse período. Os novos arranjos empresariais permitem que uma mesma empresa participe de empreendimentos de alto padrão, para classe média, para o “segmento econômico” e para habitação de interesse social. Mesmo com as especializações territoriais ou com as especializações nas diferentes etapas de incorporação, construção e comercialização, estes autores observam que algumas empresas acabam tendo participação no PMCMV em escala nacional (OLIVEIRA, 2017, p. 346; SHIMBO, 2017, 308-311).
41Os nexos entre o fenômeno de financeirização e as transformações no setor imobiliário não se restringem aos processos observados nos mercados de títulos e ações e na formação de fundos imobiliários. A expansão imobiliária foi o veículo material para o início de uma valorização financeira baseada em rendimentos imobiliários. A forma espacial como se deu esse processo, particularmente no caso dos empreendimentos do Sistema Financeiro Imobiliário, dá continuidade às tendências históricas de produção e de localização geográfica dos empreendimentos imobiliários que antecedem a era da financeirização reforçando, ainda mais, as relações sociais preexistentes. A regulação desse mercado financeiro teve efeitos importantes no fortalecimento de um setor que antes não se vinculava com as finanças apesar da situação de plataforma de valorização financeira que caracteriza a economia nacional.
42Por outro lado, ao olharmos os efeitos da financeirização no interior das economias subdesenvolvidas, das estruturas urbanas periféricas de suporte à reprodução social espoliada, encontramos novos desdobramentos dos sentidos que a financeirização pode assumir, os quis, se não são exclusivos das dinâmicas concretas desses países (embora possam sê-las) constituem “novidade teórica” que permitiriam avançar no estudo das formações socioespaciais dependentes. Tais desdobramentos aparecem no âmbito da circulação de capital (ponto de partida para as finanças), refletem-se no processo de produção (novas dinâmicas de valorização do valor), resultam em novas de terminações de distribuição (definida por novos conteúdos das classes sociais) e de consumo (determinadas pelas condições de reprodução social e das relações sociais de produção – novas formas fetichizadas de relação social). Finalmente, do ponto de vista ontológico, decorrem transformações espaciais que determinam as próprias formas de produção, circulação, distribuição e troca. Novas configurações espaciais, que são avançadas pelas finanças, mas ainda que seus mecanismos aparentemente sejam mais simples que os processos de securitização, são muito abrangentes.