- 1 Edição original: 1924.
- 2 O “comunismo” aqui referido diz respeito a uma visão totalitária – e de direita –, no sentido de qu (...)
1Em A Montanha Mágica, Thomas Mann (1980)1
contrapõe, nas vozes dos personagens Leo Naphta e Lodovico Settembrini,
respectivamente, um “comunismo” religioso-militar, embrião de um futuro
misticismo de tinta nacionalista, devotado ao Estado forte,2 a um racionalismo liberal – supostamente humanista – de cunho inegavelmente eurocêntrico. Se
quando Mann começa a escrever o romance em 1912 ainda considera-se um
homem “apolítico” e em seguida defende a causa alemã durante a Guerra,
quando finaliza sua obra-prima, em 1923, já se tornará ao leitor
evidente a ligação do autor para com a segunda corrente. Em suma: a
democracia, o apego à arte e à cultura como espécies de ‘redentoras’ da
precariedade humana, a crença no “progresso” europeu em prejuízo à
estagnação, na fé ao ‘bom uso’ da ciência. Enfim, tornar-se-á o autor um
“negador do pangermanismo desenfreado e órfão, abjurador do hitlerismo” (Trías, s/d: 63-64).
2Sem
cair em uma armadilha maniqueísta, porém, poderiam ser o pano de fundo
político destas duas correntes aqueles que nos contextos alemão e
francês embasaram, somados às bagagens filosóficas do historicismo – na
França – e do darwinismo social – na Alemanha – as ‘escolas geográficas’
iniciadas por La Blache e Ratzel (que ainda que possam equivaler a
paradigmas diferentes, trariam, como se sabe, influências mútuas)
(Claval, 1974: 56-61; Estébanez, 1983: 51; Moraes, 1990: 57-58).
- 3 Como escreve Moraes (1990:71): “Ao definir o progresso como fruto de relações entre sociedades com (...)
3O
que quer dizer: ao pensamento político de Naphta caberia bem a visão da
idéia orgânica do Estado e o expansionismo ‘natural’ inerente ao seu
respectivo território (tal qual em Ratzel). Conforme Sodré (1989:
54-71), toda uma corrente de autores, que passa por Mackinder, Kjellén
e, no contexto alemão por Haushofer, desvia as influências ratzelianas,
transformando-as em suporte para as teorias sobre espaço geográfico e
política do nazismo, à sombra do Institut für Geopolitik. Já àquele humanismo de
Settembrini se complementaria, tal como na “Geografia Colonial” de Paul
Vidal de La Blache, a visão, pretensa e falsamente apolítica, segundo a
qual, por meio de uma ciência ‘neutra’ e de uma tecnologia a serviço da
civilização, corrigir-se-ia o ‘atraso’ inerente, por exemplo, ao asiatismo, tão criticado no livro de Mann pela voz do personagem italiano3 – projeto que seria construído no campo político pela democracia liberal.
- 4 Para o historiador inglês, o sentimento antiliberal surge em escala mundial a partir dos anos de 19 (...)
- 5 É importante salientar que os conteúdos nacionalistas vão, a partir do final do século XIX, afastan (...)
4Mas sobreveio o “trovão que fez explodir a montanha mágica”
(Mann, 1980: 793)... À Primeira Guerra vêm respostas no correr dos anos
de 1920 e 1930, a saber (entre tantas delas): a recusa ao liberalismo e
às Luzes, a via do socialismo e o tipo de pensamento que discípulos de
Naphta – e daqueles que radicalizaram à deformidade as proposições de
Ratzel – engendrariam aquilo que poderia ser resumido como nacionalismo autoritário de direita (Hobsbawm,4 1995: 116; Beired,5 1999: 116). E mais: quando as fagulhas da montanha mágica espalham-se pelo mundo, destroem, ou melhor, reformulam valores
de uma época, que só então restará nas lembranças daqueles que,
impelidos pelo ‘trovão’, voam lá ‘do alto’ para a ‘planície’, e atingem
todos os cantos do mapa. Assim, pergunta-se: como ecoaram por aqui
seus destroços? Ante a crise do liberalismo, como se conforma uma
direita autoritária e antiliberal no Brasil? E, sobretudo, que
ideologias geográficas portarão elas? Eis o que se pretende investigar neste artigo.
5Da
convivência entre posturas econômicas liberais e escravidão, da vida
política regida pelos grandes latifundiários, resultou, no Brasil, um liberalismo de caráter autoritário,
cujo escopo predominante foi a selagem de um ‘compromisso’ em torno da
‘ordem’, e cuja permanência em nossa vida política eclipsou, por
bastante tempo, a face política liberal mais afeita à ordem democrática.
Somente a partir dos anos de 1920 e 1930 é que se vislumbram, nos meios
urbanos, os primeiros sinais de grupos ou movimentos políticos de
massa, ou que ao menos em seus discursos sugeririam esta bandeira de mobilização. Contudo, sinais que acompanhariam uma tendência mundial em direção, para falar com Beired (1999), a uma nova ordem
(que não o socialismo): antiliberal (pois creditando papéis muito
amplos ao Estado) e antidemocrática, cuja mobilização popular, quando
havia, já que algumas destas propostas eram confessamente elitistas,
dava-se evidentemente por outros meios que não a democracia
representativa.
6Disso
resulta – e não só no Brasil – uma modernização autoritária: as
propostas antiliberais, por vezes passadistas e regressistas, adotariam
intenções ‘progressistas’, que viam na técnica e na ciência, desde que
postas a serviço desta nova ordem comandada pelo Estado, as
soluções para os descaminhos aos quais conduziram a Primeira República.
Neste sentido, era imperativa a construção – geográfica, jurídica,
histórica, social e cultural – do Estado-Nação.
7O
cenário mundial que culmina no conflito de 1914 na realidade
desenhava-se desde o final do século XIX – vale mais uma vez dizer – e,
combinado internamente com a crise da 1a República, fomentava desde pelo menos os anos de 1910 uma ideologia de Estado
(Lamounier, 1977: 356-358): um “Leviatã Benevolente”, tutor de uma
sociedade infantil; igual a ela, benévolo porque se tratava de um
guardião de um povo ‘cordial’ (Lamounier, 1977: 370-371). Daí a
conhecida tese sobre a inadequação das instituições liberais à realidade social brasileira,
que se constitui um debate freqüente no pensamento político brasileiro,
numa tradição que inclui nomes como Visconde de Uruguai (Paulino José
Soares de Souza), Sílvio Romero, Alberto Torres, e tem em Oliveira
Vianna seu formulador central na época em questão (Ferreira, 1999):
Um
completo distanciamento entre a ‘norma’ (...) e a ‘realidade nacional’,
desde o Brasil Colônia marcada por uma cultura autoritária e
individualista, seria o principal argumento contra as teses liberais, as
quais só seriam compatíveis com as sociedades essencialmente
democráticas, como as anglo-saxônicas e norte-americanas. Nesse
sentido, uma sociedade autoritária, escravocrata, altamente
hierarquizada, de mentalidade individualista, sem nenhum espírito
público, em agressiva dissonância em comparação às sociedades onde
haveria maior progresso político (Inglaterra e EUA), não poderia ser
regida por instituições que exigissem dos cidadãos uma consciência
social e política mais apurada (...). Em não existindo uma sociedade
liberal, não poderia haver um sistema político liberal. Portanto, a
‘receita’ para corrigir esses males estaria na construção de um sistema
político autoritário, sustentado por um Estado Forte, o qual deveria
estar nas mãos das elites (Bomfim, 2000: 78).
- 6 Sobre o estudo das ideologias geográficas nestes autores e no Estado Novo ver Diniz Filho (1993).
- 7 A respeito das ligações entre as ideologias geográficas e os militares ver Rudzit (1997).
8Em
que pesem as diferenças entre um variado espectro do autoritarismo da
época, os programas e propostas de crítica à Primeira República, as
idéias estatizantes, de “mobilização popular” (contraposta às vezes a um
claro elitismo), a urgência de uma efetiva ocupação dos “vazios
territoriais”, a constituição de um mercado interno, etc., poderiam ser
identificadas entre os integralistas (aos quais somam-se outros
movimentos similares de bem menor expressão); os católicos em torno da
revista A Ordem (Jackson de Figueiredo, Octávio de Faria e Alceu Amoroso Lima); os geopolíticos (aqueles
autores cujos discursos seriam embasados em referências diretas à
geografia política e suas derivações – Mário Travassos, Everardo
Backheuser, Elysio de Carvalho, entre outros); e os autores que se
ligariam mais ao Estado Novo (Azevedo Amaral, Francisco Campos, Almir de
Andrade e Oliveira Vianna).6 E
ainda – dentro de um espectro político autoritário – as tendências
liberais, mais afastadas destes grupos mencionados pela óbvia diferença
ideológica, como as próprias oligarquias do partidos estaduais, ou os
militares,7 cujas
ideologias abrigavam propostas reformistas que entre os anos 20 e o
período pós-30 transitam do “legalismo democrático” (liberal) à
‘renovação’ da ordem social às expensas da democracia liberal – caminho
este percorrido clara e explicitamente pelo tenentismo (Camargo, 1981:
132-133).
- 8 Como quer Milton Lahuerta (1997: 100), o “resgate de Alberto Torres pela geração de Oliveira Vianna (...)
9Configurava-se no período em foco uma onda de radicalismo intelectual,
apontando para várias tendências ideológicas, muito mais ávidas por
novas propostas que por reais soluções; noutras palavras, preocupadas
com supostas “mudanças modernizadoras” (ainda que ilusórias) que com
suas conseqüências. São tempos de produção de “textos de crise” (Mota, 1994: 63). Um autor como Alberto Torres, defensor desta ideologia de Estado, é “redescoberto” no período.8
A “questão nacional” – procurando resposta à indagação de ‘quem
seríamos’, do ‘que nos faria uma nação’ – será posta a parte
considerável da geração criada politicamente nos anos que se seguem ao
primeiro conflito mundial como investigação acerca da (re)
interpretação, da releitura do país, investigação pautada pela
necessidade de formulação de programas e movimentos, num nacionalismo que dia a dia adquire um caráter militante (Oliveira, 1990: 29). Revigoram-se no seio de nossa intelligentsia
debates que florescem desde os primeiros anos da República sobre a
“questão nacional”, a qual, nesse processo de interpretação do país,
terá vários desdobramentos temáticos relacionados à idéia de território,
a saber, pátria, nação, identidade nacional.
Ou seja, revestem-se essas temáticas de um ‘suporte telúrico’. Na
maneira como são trabalhadas, percebe-se como são alimentadas pelas
próprias transformações nas paisagens urbanas, percebidas sobretudo nas
grandes cidades e captadas no universo ideológico de forma perturbadora,
repleta de interrogações e dilemas (rural/urbano; país legal/país real;
etc.) O devido conhecimento da “geografia” e dos recursos naturais do
país seriam muitas vezes tidos como “parâmetros para a ação política”
(Oliveira, 1990: 126), vital à organização do Estado-Nação. O
questionamento vigoroso do cosmopolitismo e do cientificismo (e
contraditório também, pois muitas vezes para refutá-los utilizam-se
instrumentais retirados exatamente dessas mesmas matrizes) por parte
desta intelectualidade acentua o nacionalismo: buscar (ou forjar)
supostas raízes nacionais e empreender projetos de coesão do ‘nacional’
passam a ser metas importantíssimas entre os intelectuais brasileiros. A
amplidão que esta proposta poderia abarcar nos faz reiterar que deste
debate queremos sublinhar, retirar e analisar o seu caráter geográfico,
espacial, territorial.
10Daí ser o pressuposto teórico fundamental deste estudo a compreensão da análise do discurso geográfico
para além dos círculos da geografia acadêmica ou da geografia enquanto
disciplina escolar. Qualquer prática política de uma sociedade guarda em
si uma forte e inegável conotação territorial, podendo ser a reflexão
traduzida por uma metáfora: o território; nele atuar
politicamente faz parte da própria evolução histórica do Estado. Seria
óbvio pré-requisito para a configuração de qualquer Estado-Nação a
soberania sobre um território e seu conseqüente processo de apropriação
(Escolar, 1996: 103); matéria tratada inclusive de longa data pelos
princípios do Direito Internacional (Magnoli, 1997: 25). Pondo a questão
de outra forma: não há prática política que não resulte na configuração
de uma superfície política (Sanguin, 1977: 8), ou em uma
apropriação objetiva (pública ou privada) do espaço (Claval, 1984:
162-164). Como garantia de posse e soberania. Mesmo a geografia
clássica, evidentemente sob outros ângulos, versou sobre a ligação entre
Estado e território, a exemplo dos conceitos “biogeográficos” e organicistas dados àquele por Ratzel. Por
conseguinte, o pensamento político, como tenção da prática política, e
possuindo uma dimensão territorial, representa um dos muitos vértices do
pensamento geográfico
11A idéia do objeto geográfico como “produtor direto ou indireto de justificações ideológicas sobre o território” (Escolar, 1996: 13) forma
a base teórica para uma análise do pensamento geográfico que ultrapasse
as fronteiras da geografia institucionalizada, e mesmo das esferas mais
ligadas diretamente ao poder, e recaia sobre todos os níveis de
elaboração cultural: textos políticos, literatura, imprensa, textos
jurídicos, entre outros.
12Quando ligados à praxis política, estes “produtos culturais” podem ser classificados como ideologias geográficas,
ou representações e discursos acerca da relação sociedade/espaço e de
suas “imagens coletivas”, discursos inseridos numa articulação (direta ou não) entre pensamento geográfico e o mundo político de uma sociedade (Moraes, 1991a: 34-45); relação, pois, entre produção cultural e política: a conhecida (e intrincada) relação entre “cultura e poder”. Essas ideologias geográficas ou ideologias territoriais
têm implicação com a consciência de identidade de um grupo e de como
este constrói, valoriza e apreende a memória dos lugares (Claval, 1984:
352).
13Em
se tratando de países de passado colonial, o estudo do discurso
geográfico ganha ainda maior relevo. Em síntese, toda colônia é
resultado de um projeto de nítido sentido geográfico; nasce “sob o signo da exploração”
(Meyer, 1980: 35); e é obra de construção de um novo espaço, obra
viabilizada por uma ação: a ocupação territorial (Moraes, s/d); sendo o
Brasil, aliás, um dos poucos países do mundo em que este processo ainda
não foi completado (Moraes, 1991a: 94).
14Note-se
que o processo de construção e legitimação do Estado-Nação recorre
sabidamente à imputação do território como um dos mecanismos de sua
elaboração; e ao conjunto da história-geografia como “identidades”,
inclusive transmitidas ideologicamente, através da geografia enquanto
disciplina escolar, por exemplo. Ou seja, configura-se um processo de
articulação entre geografia, ensino e identidade nacional. É claro que
esse papel da geografia como motor ideológico da nação passa, como no
próprio caso dessa ‘geografia ensinada’, pelos meios institucionais.
Porém, no que se refere à ‘geografia acadêmica’, os primeiros cursos,
nas Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras, terão lugar apenas nos
anos de 1930, mesma década em que é criado o IBGE. Assim, se a geografia
acadêmica inaugurou-se por aqui tardiamente, houve espaço no cenário
cultural para “um debate marcadamente geográfico (com muitas alusões a autores e a teorias da geografia)” sem que existissem “de fato geógrafos ou cursos de geografia no país”
(Moraes, 1991b: 170). Esse ‘debate geográfico’ seria acentuado nos
momentos de ruptura ou reordenamento político, momentos de maior
aproximação dos intelectuais com a vida política, “necessariamente momentos de dificuldade na afirmação das identidades” (Moraes, 1991b: 167-168), caso das décadas de 1920 e 30.
15O autoritarismo estava às voltas com um conjunto de temas de notada espacialidade
que compreenderiam os debates sobre a identidade nacional ligada ao
território, a questão da centralização/descentralização
político-administrativa, a problemática entre agrarismo e industrialismo
e as formas de ação e/ou planejamento mais diretas do Estado. Em se
tratando de um artigo, serão apresentados aqui apenas três autores
selecionados tendo em vista alguns dos grupos citados: Miguel Reale
(como teórico integralista), Alceu Amoroso Lima (intelectual ligado à
revista católica A Ordem) e, como ‘geopolítico’, o pouco conhecido Elysio de Carvalho.
16Em teoria, a proposta de Miguel Reale de democracia integral teria como um de seus rumos primordiais identificar Estado e Nação. Se
o Estado estaria estruturado minuciosamente em seu discurso, inclusive
posto como eixo central da sociedade brasileira, a Nação precisaria de fato ser construída.
17A
organização da Nação começaria por meio da idéia de Pátria, resultante
do progresso “moral e técnico” da sociedade, cujos reflexos estariam
presentes na produção do espaço geográfico onde se assentaria o Estado.
Na definição de Reale (1983: 227), se a Nação seria construída
historicamente, o seu território não deixaria de ser um dado de certa
maneira concebido a priori e de forma naturalista, pois a pátria “seria uma resultante de natural elaboração histórica, e não um artifício do homem”.
18A partir dessa concepção, o patriotismo é elaborado no tempo e no espaço,
mas é principalmente a base geográfica que o alimenta. O “espaço” é
tomado como “dado fundamental” para a organização nacional e o
patriotismo, e a “terra” é de fato o eixo histórico para a construção da
Nação: realiza-se o “primeiro contato” com o Brasil através do
“espaço”, traço mais significativo de um país de passado colonial e
história recente, ao contrário das nações “velhas”, cujas tradições
históricas já teriam unido o homem ao seu meio. Destarte, o “sentimento
nacional” característico de países como Itália e França diverge em
relação à falta de um passado que pudesse individualizar a Nação
Brasileira (Reale, 1935: 114-115).
19Até
o momento da Independência, o país havia tão-somente conquistado uma
unidade de terra e de língua. O período colonial representou “três séculos de vida unitária obediente aos influxos espontâneos”
da terra. O homem havia recebido a influência do meio, mas igualmente
lhe respondido, o que Reale exemplifica através dos bandeirantes, que
teriam devassado o território virgem e fixado as fronteiras nacionais.
Munidos de uma liberdade “telúrica”, os homens do Brasil Colônia
reproduziam suas existências de acordo com as necessidades ou obstáculos
que o meio, a natureza, pudesse apresentar-lhes. Caracterizava-se,
pois, um certo equilíbrio entre o homem e o meio, porém, uma harmonia
frágil, primeiramente porque teria realizado uma unidade incompleta, em
que o território, ainda que estivesse demarcado, precisaria ser
efetivamente ocupado. Além do mais, com o processo de Independência a
doutrina liberal penetraria no país com força total, rompendo esse tênue
equilíbrio, impedindo que durante o Império e a 1a República se ‘construísse’ a Nação.
- 9 ...pois “Nós brasileiros ainda não temos um apego violento à terra, pelo simples motivo de que o es (...)
20Sobre
essa liberdade telúrica projetaram-se liberdades artificiais,
fundamentadas em conceitos falsos do liberalismo, que acabariam por
provocar um afastamento cada vez maior das ‘elites litorâneas’ da
realidade brasileira, do ‘país real’, deixando assim por ser realizada a
verdadeira integração nacional. Mas qual a razão de a “liberdade
telúrica” e de seu equilíbrio, frágil a ponto de ter sido facilmente
desagregado pelo liberalismo, terem se desmantelado? Ora, a resposta a
isso está na própria unidade da terra esboçada durante o período
colonial. A história européia fora constantemente marcada por guerras
cujas causas muitas vezes residiam em disputas e lutas por territórios;
em suma, na Europa lutava-se por espaço, diferentemente
do Brasil, onde este sempre havia sido abundante e, por isso mesmo, a
preocupação em ocupá-lo (haja vista que para Reale suas fronteiras já
estariam historicamente justificadas) seria reduzida.9
21Em
tendo apontado esses problemas referentes à ocupação territorial
brasileira, apresentam-se soluções para corrigir distorções e procurar,
com efeito, ‘equilibrar’, ou mais, racionalizar a produção do espaço, o
que só seria possível mediante o controle do Estado.
22É a
máquina estatal que deve dar conta da “organização nacional”, a qual
tem de, primordialmente, levar em consideração as “peculiaridades
mesológicas”, pois essas é que viabilizam (ou não) as atividades
econômicas em sua dimensão geográfica (Reale, 1983: 30).
- 10 Essa intenção de Reale está em total consonância com sua idéia de política centralizada, a qual ter (...)
23Tanto atividades industriais quanto agropecuárias não poderiam estar presas aos limites estreitos das Províncias, mas gerenciadas por um critério de “distribuição das atividades em círculos superprovinciais de produção”;10
ou seja, de acordo com os respectivos critérios “mesológicos”,
históricos e geográficos seriam criadas regiões econômicas
especializadas em diferentes ramos (inclusive industrial, que seria
igualmente dependente das condições oferecidas pelo meio).
24À medida que cada região se especializasse (para além dos limites provinciais) em um setor econômico, inibindo a “disseminação pelo país das mesmas atividades”,
configurar-se-ia toda uma rede interna de trocas, gerando um ativo
comércio interno, coordenado e integrado pelo Estado (Reale, 1936: 157;
1983: 30)
- 11 Note-se que, em relação à cana-de-açúcar, Reale não menciona a mais tradicional área de cultivo des (...)
25O autor tece um esboço dessas regiões superprovinciais: A chamada Zona Cafeeira deveria compreender as Províncias de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Paraná; a Zona Algodoeira abrangeria alguns estados do que seria a partir de 1946 a Região Nordeste, Santa Catarina e São Paulo; a Zona Ervateira compreenderia Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Mato Grosso; e, finalmente, na Zona Açucareira e de Criação ter-se-iam Rio Grande do Sul, Amazonas, Pará e Minas Gerais (Reale, 1983: 30-31).11
26Note-se que a proposta econômica principal de Miguel Reale (1983: 129) seria a criação de um “sistema global de todas as nossas atividades econômicas” coordenadas pelo Estado. Assim, descarta-se uma visão das atividades econômicas em separado e, o que é o ponto nodal, elege-se uma proposta de industrialização para o país, o que fica claro com a seguinte advertência:
Para
os cantores do país essencialmente agrícola, devíamos ter continuado a
ser uma Nação fornecedora de matérias-primas, sempre à mercê das altas e
baixas dos centros industriais estrangeiros (id., ibid.: 131).
- 12 ...um parque de proporções “generosas”, mas de produtividade (fala-se aqui de São Paulo) seria aind (...)
27O
grande problema da indústria, na realidade um problema da falta de
intervenção do Estado na economia, seria que o parque industrial
nacional, restrito a São Paulo na época, ainda que fosse de amplitudes “generosas”,12 estaria extremamente vulnerável por causa do exagerado protecionismo. O Estado limitar-se-ia a “proteger alfandegariamente” nossa indústria, deixando-a sem orientação e articulação, ao sabor de “todos os empreendedores e (de) todas as aventuras” (id., ibid.: 129).
28Dois seriam os efeitos desta fictícia intervenção. O primeiro seria a “falta
de distribuição dos mercados entre os centros produtores, a absoluta
falta de lógica nas linhas de escoamento de mercadorias”. O
segundo, o protecionismo, ainda que fosse um meio louvável no nascedouro
das indústrias, perdurava em demasia, tornando-se seu caminho “normal”
de sustentação.
- 13 A necessidade posta era “distinguir o protecionismo prudente e planificado [indispensável ao desenv (...)
29A delicada questão que se punha, a respeito do protecionismo, era o equilíbrio a ser perseguido.13
Em suma, a problemática seria o “abuso” das barreiras protetoras da
economia nacional. Assim, suprimir repentinamente o protecionismo seria
desastroso, pois adviriam daí falências e desemprego.
30Em um planejamento
econômico de recorte corporativista (que pudesse dar a dimensão ideal
para o protecionismo) estaria a solução para a economia do país; pesando
na balança os interesses coletivos, grupais, não individuais; como
estaria predominando então na ótica do autor.
31Em
tal nível de planejamento, graças a um movimento interno de trocas,
seriam solucionados todos os problemas ligados às crises internacionais,
à superprodução e aos conflitos regionais . Para o devido saneamento da “falta de (condições de) distribuição entre centros produtores e mercados”, Miguel Reale (1937: 140-141) sugere, assim, um Plano Racionalizado,
contendo opções de zonas de escoamento de mercadorias e centros
distribuidores especializados, distribuídos ‘racionalmente’ pelo
território nacional. Reale volta-se ao planejamento de todo um
“equipamento”, uma infra-estrutura para o espaço nacional (redes de
escoamento como ferrovias, rodovias, etc.); necessidade que já começava a
tomar corpo, principalmente devido à concentração industrial que já se
notava, por exemplo, em cidades como São Paulo. Procura-se, ao imaginar uma espacialização da
atividade econômica, não só dinamizar o mercado interno, mas também
sugerir uma distribuição mais racional da produção econômica pelo
território nacional, além de querer aproximar geograficamente os
respectivos espaços de produção e de consumo.
32Portanto,
sua proposta econômico-regional estaria vinculada a uma aceleração da
circulação de bens e de certa forma dinamizando e acentuando a
hierarquia e as funções dos lugares. Criando regiões produtoras
especializadas, o autor está propondo uma forma de racionalização que
persegue (pelo menos ao nível interno) o uso máximo do capital,
fazendo-o circular com maior rapidez pelo território.
33Em
algumas de suas páginas, Reale detalhará outras condições da organização
econômica regional. Para ele, na Itália o fascismo, ao reorganizar a
economia, já encontrara naquele país as associações econômicas
consolidadas e o “território nacional todo aproveitado na criação de riquezas” (id., ibid.: 210). No Brasil, mais que construir a Nação, havia, antes de tudo, de ser construída a economia em si, o que implicaria em um melhor (e necessário) aproveitamento da “capacidade geográfica” do imenso território (id., ibid.: 210).
34Imagina-se
um Brasil livre do capitalismo financeiro internacional; rompimento,
porém, dificilmente realizável em um país de capitalismo industrial
hiper-tardio, por mais rígido que fosse o intervencionismo econômico
estatal que, ainda que incluindo mecanismos como a nacionalização do
sistema bancário, por exemplo, teria de enfrentar um ‘inimigo’ (o
capitalismo financeiro internacional) já então bastante poderoso. Na
realidade o ‘grande inimigo’ do integralismo de Miguel Reale não seria o
capitalismo em si, mas a sua dimensão ‘internacional’, que somente
poderia ser anulada por um Estado antiliberal. Isso fica claro quando
são explicitados os contatos que o país deveria ter com o exterior,
‘pontes’ que seriam inevitáveis.
35Nesse
sentido, admite-se a vinda para o Brasil de novas tecnologias, desde
que com o objetivo de melhor racionalizar e aproveitar os recursos
naturais do país e porventura incrementar nosso parque industrial, pois o
Brasil, mais que qualquer outro lugar no mundo, teria as melhores
condições naturais para o surgimento de uma indústria competitiva,
bastando para isso uma tecnologia capaz de captar ao máximo o que a
natureza pudesse oferecer como matérias-primas ao setor industrial.
Reale exemplifica esse raciocínio advogando um plano urgente para o
aproveitamento do amplo potencial hídrico do país, medida de suma
importância para instalação de um parque industrial dinâmico no Brasil.
36O
segundo ponto seria até surpreendente (quando se generaliza o
integralismo como um movimento ideologicamente homogêneo): a entrada de
capitais estrangeiros (o que seria diferente de uma amarra com o “capitalismo financeiro internacional” – o “imperialismo”). Em suas palavras:
Limitamo-nos
a esclarecer que o Brasil pode perfeitamente receber capitais
estrangeiros para serem invertidos na produção nacional. Mas
o governo tem o dever de fiscalizar a entrada e a aplicação desses
capitais para que eles não se transformem em instrumentos do domínio
estrangeiro; tem a obrigação de impedir que aqui se estabeleçam capitais
unicamente com o fito de manobrar recursos nossos sem nenhum proveito
para a terra, antes com prejuízos formidáveis; tem o dever de não cair
na armadilha dos empréstimos internacionais que transformaram nossa
pátria em uma colônia de banqueiros; tem a obrigação de salvaguardar a
soberania nacional, livrando-a de certos compromissos financeiros que a
comprometem quando não a aniquilam totalmente (Reale, 1983: 141; grifo no original).
37Defendendo o “patrimônio nacional”
(o território), dando iniciativas para o aproveitamento dos recursos
naturais e respondendo ao “chamado da terra fértil”, o Estado Integral
dariam o sopro necessário em busca da sonhada autonomia nacional: fazer
que o Brasil deixasse de ser um “país de consumidores” e se tornasse um “país de produtores” (Reale, 1935: 211-212).
38Na
questão da especialização econômica regional, Reale vai imaginar uma
distribuição das atividades agrícolas segundo dois critérios:
proximidade dos núcleos consumidores mais significativos e a limitação
imposta pela própria natureza, selecionando-se as culturas de acordo com
condições climáticas e pedológicas. No que se refere às regiões
industriais, os critérios de localização seriam a conveniência de
divisão quantitativa pelo território e a proximidade dos centros que
apresentassem as melhores condições para receber as instalações
industriais (Reale, 1937: 157-159).
39Ao relacionar a tecnologia
como elemento indispensável à integração e ao desenvolvimento do país, o
autor a associa igualmente com a questão da influência dos imigrantes
na vida nacional, que teriam contribuído com novos conhecimentos e
técnicas, tanto na agricultura quanto na indústria.
40Aos
elementos “originais” formadores da nacionalidade brasileira
(portugueses, negros e índios), soma-se o imigrante; igual àqueles, este
recebe, como seria ‘natural’, “a influência poderosa do meio ambiente”, resultando daí um modo de vida novo, próprio, adaptando e incorporando costumes (Reale, 1937: 109-110). Contudo,
o Estado Integral, como em todos os setores da vida pública, deveria
intervir nessa questão, de maneira a controlar e regular os fluxos de
imigração, que só entre 1880 e 1933 trouxera para o país um número de
imigrantes próximo ao contingente de escravos para cá trazidos em três
séculos. Reale (id., ibid.: 112) propõe, portanto, uma política de
assimilação do imigrante, pois, conforme escreve, a “defesa do elemento nacional não exclui o aproveitamento de forças alienígenas”. Essa
política, repare-se bem, não deixará de impor restrições à entrada de
imigrantes (id., ibid.: 113) – tal qual faria Vargas com sua Lei de Quotas à imigração.
41Mas
quais seriam esses “elementos” mais aptos à integração com os
nacionais? Seriam, ainda que Reale não visse preocupações quanto a
saturações demográficas, dados a extensão do território nacional e seu
pouco aproveitamento e grande potencial econômico, os imigrantes que
estivessem mais dispostos a trabalhar no campo, pois, paralelamente
àquelas considerações, dever-se-iam evitar o inchaço urbano e as
superpopulações concentradas. Além de fiscalizar os fluxos imigratórios,
caberia ao Estado providenciar escolas e serviço médico para esses
novos “elementos”.
42É
visível um temor quanto à existência de grupos “fechados”, isolados
culturalmente; esses “quistos” étnico-territoriais. Neste tom, dar
preferência ao imigrante como trabalhador rural não significa a adoção
de uma proposta ruralista. Os objetivos seriam estratégicos: evitar a
difusão de idéias ‘alienígenas’ entre ‘nosso’ operariado e evitar os
prováveis inchaços urbanos. Particularmente em relação a esta última
questão, viria a conhecida retórica de garantir a posse e o uso da
terra, na medida em que ela se apresenta “na figura romana dos limites possessórios, exigindo trabalho permanente, utilização da propriedade [e] rendimento do imóvel”, daí a urgência em ocupar os fundos territoriais brasileiros (id., ibid.: 113).
43Povoar de fato
o território: eis aí uma das preocupações centrais da elite nacional.
Refletir sobre um suposto “equilíbrio demográfico” fez também parte das
proposições de nosso autor. Era preciso ocupar os fundos territoriais e
ao mesmo tempo evitar uma concentração populacional excessiva nos
grandes centros urbanos. E, da mesma forma como em todos os planos da
vida pública, caberia ao Estado coordenar, equilibrar esse mapa; e nada
melhor como um projeto de racionalização das atividades econômicas no
espaço geográfico para regular essas tensões. Se a amplidão de espaço
criara, sem um plano estatal coordenador, uma despreocupação em ocupar o
território, haveria um tênue equilíbrio, cujas medidas dos pesos e
contrapesos deveria ficar a cargo do Estado, que poderia catalisar o
povoamento do território. Contudo – e é aí que reside a necessidade de
um “equilíbrio demográfico” – seria imperativo evitar os excessos, os
inchaços, as aglomerações intensas. É Reale quem sintetiza, pois como
escreve:
Nós
podemos dizer (...) que o amor à propriedade e à terra intensifica-se e
torna-se violento na proporção direta da densidade demográfica (id.,
ibid.: 188).
44Política é o principal ensaio de Alceu Amoroso Lima na década de 30. Antes,
porém, de falar sobre os problemas brasileiros de seu tempo, o autor
faz considerações sobre a Sociedade e o Estado, as quais apontaremos
brevemente, pois são importantes para a compreensão dos pontos que mais
nos interessam. Há para Alceu Amoroso três causas básicas da sociedade, que em sua visão seriam potencializadas por meio de relações francamente hierárquicas.
45A
“causa material da sociedade” seria a ação e o resultado do próprio
trabalho do homem como ser social (cuja materialidade, poderíamos no
arriscar a dizer, resultaria no espaço geográfico). De uma
divisão do trabalho a mais fragmentada possível dependeria seu sucesso.
Em verdade, legitima-se as desigualdades como ‘naturais’; porque deve
haver uma distribuição das “tarefas sociais”, ‘permitindo’ que cada um
realize “mais completamente a sua vocação” (Lima, 1956: 18).
Ora, em tal leitura nada haveria a condenar sobre a desigualdade natural
entre os homens, pois nosso autor vê uma “causa final da sociedade”: o
bem comum, na concepção “tomista” um objetivo incompatível com as
concepções materialistas dos séculos XVIII e XIX. E mais: as ‘naturais’
relações hierárquicas também não seriam incompatíveis com o livre arbítrio.
E justamente em torno dele apareceria a “causa eficiente da sociedade”.
Aqui, mais uma vez a filosofia “tomista” daria sua resposta, com a
possibilidade do livre arbítrio, às sociedades pensadas a partir do determinismo social (como quereriam Marx e Durkheim) e às concepções da sociedade fundadas em torno do arbitrarismo,
que no pensamento do autor católico (Lima, 1956: 23-24) incluiria
Hobbes e – alvo favorito da direita da época – as idéias de Rousseau;
numa palavra, a doutrina liberal, que “nega a inclinação natural do homem à sociedade e faz esta se basear em um contrato (...) operado pelas partes”, redundando em uma sociedade artificial. Porém, este mesmo livre arbítrio teria de estar regulado por um equilíbrio entre a liberdade e a necessidade, pois:
Há
(...) na causa eficiente das sociedades (...) um elemento de
transformação social, que são as várias formas de necessidade social. Apoiar
a sociedade apenas na autonomia kantiana da vontade, no arbítrio, é
cair na instabilidade social moderna (...). Apoiar, por outro lado, a
sociedade nos elementos (...) da necessidade é cair no
absolutismo, seja ele de que espécie for (...). É justificar a razão do
Estado (...), como o fez Machiavel (id., ibid.: 26-27).
46Postas brevemente essas definições acerca da sociedade, define-se o Estado, o qual deve ser construído sobre o princípio da autoridade, o único capaz de viabilizar a ‘natureza’ estatal, coordenar e orientar os “grupos naturais”. O autor considera a vida comum impossível sem a autoridade: deve haver uma “subordinação natural do inferior ao superior”, de forma a resultar “um direito recíproco deste sobre aquele” (id., ibid.: 47).
47Neste sentido, o Estado é justamente esta autoridade, regida pelo princípio ético de almejar a garantia dos direitos privados, o “estímulo à civilização”, o progresso moral e religioso e, sobretudo, o bem comum de todos (id., ibid.: 75) – dentro desta ordem hierárquica natural. O que quer dizer que às elites culturais é que se deve destinar o comando da autoridade.
48O
ponto central para averiguar de que forma e em que proporções há no
pensamento de Alceu Amoroso Lima uma reflexão sobre as formas de
intervenção do Estado no território é buscar o que o autor concebe como
Nação e nacionalidade. Ao Estado deve corresponder uma nação (no
pensamento católico, ainda por ser construída), cujas partes componentes
são: religião, língua, os grupos familiares e o território (id., ibid.:
53).
49Abordando a realidade nacional
a partir de três aspectos, de ordem política, econômica e espiritual,
Alceu Amoroso Lima (id., ibid.: 155-159) empreende um exame sobre o país
estabelecendo um diálogo com Alberto Torres, para ele, o “maior dos pensadores políticos brasileiros”.
50Semelhante
à análise das sociedades, serão estabelecidas quatro “causas” da
nacionalidade: a “causa material” (a raça), a “causa formal” (a unidade
nacional), a “causa eficiente” (a autoridade política) e a “causa final”
(o bem comum econômico e espiritual) (id., ibid.: 171).
51Para Alceu Amoroso (id., ibid.: 172-174), a nação brasileira, esta “realidade em formação espontânea”,
seria constituída, dentro de um esquema intelectual comum ao seu tempo,
pelos elementos formadores da ‘democracia racial’, o português, o índio
e o negro. Com uma diferença, pois a estes três grupos somar-se-ia o “colono recente de outras nacionalidades”. Geograficamente, seriam identificados em nossa população três grandes “tipos”: o nortista, o centrista e o sulista.
52Porém, se a população ainda era encarada como um atributo da ‘nacionalidade’ em formação, a “unidade nacional” seria “o grande caráter distintivo”
da história do Brasil, o único exemplo em toda a América, graças à
capacidade da colonização lusitana (id., ibid.: 173). Note-se que Alceu
Amoroso Lima vai nos diferenciar não só em relação à América Espanhola,
mas também em relação aos Estados Unidos, cuja formação se dera “por aglutinação de diferentes estados de vida própria independente” (id., ibid.: 173).
53O
ponto capital é que, apesar desta “unidade”, a estrutura política
brasileira engendrada a partir da Carta de 1891 estaria trazendo para o
país o risco – cada vez mais ameaçador no horizonte – do separatismo. O
que quer dizer: a autoridade política, a “causa eficiente” da
nacionalidade, herdada do Estado português por meio da Monarquia, era
agora ameaçada pelo “federalismo anárquico”, que negara estes princípios
basilares da unidade e da autoridade.
54É importantíssimo observar que o caminho adotado não será aqui o da defesa do Estado Unitário. O que se propõe é sentido de um encolhimento
do federalismo; o fortalecimento do Executivo central, mas preservados
os mecanismos de descentralização política – e descentralização
administrativa ao nível máximo, nas esferas municipais – que são caros a um Estado Federativo. Como diz Alceu:
Qualquer
estrutura política brasileira que pretenda atuar essa exigência
unitária e autoritária de nossa história, negando o direito de autonomia
provincial (...), bem como os direitos naturais dos grupos formadores
do Estado, terá enveredado por um caminho errado. Nada mais
justo, por exemplo, em nossos Congressos e nada que melhor represente a
realidade brasileira, do que a distribuição de deputados e senadores por
Estados, ou antes, como deveríamos voltar a chamar, por províncias,
como queria com toda a razão Alberto Torres. A autoridade não é o oposto
e sim o complemento necessário da liberdade, como a unidade não é o
oposto e sim o retificador da variedade (id., ibid.: 175).
55Essa
unidade combinada numa dose adequada à variedade, capaz de unir
autoridade e liberdade, teria como fim, como a última “causa da
nacionalidade”, o bem comum da Nação.
56Contudo, afora esta breve consideração sobre o melhor ordenamento estatal para o Brasil (um modelo que se poderia chamar de federalismo autoritário), é na parte de sua Política
dedicada à economia que Alceu Amoroso Lima – sempre dialogando com
Alberto Torres – mais se voltará para a questão da intervenção do
Estado, sobretudo quanto à forma de coordenar a reestruturação fundiária
do país.
57A
“economia cristã” imaginada por Amoroso Lima (1956: 183-188) seria uma
ciência prática, subordinada à ética e à moral, categorias que regeriam
as mais elementares “leis” econômicas (como a da oferta e procura) e que
teriam, pois, força coordenadora sobre os principais “problemas
práticos de economia”: o da população (em que entra a questão da
colonização como “capítulo primordial da demografia”), o da produção (a
conjugação entre capital, trabalho e natureza), o da propriedade
(sobretudo, o incentivo à pequena propriedade rural), o da distribuição
(para a qual urgia a criação de uma rede de transportes adequada e uma
melhor distribuição em âmbito nacional das diversas atividades
econômicas), o da organização profissional (sindicatos vinculados ao
Estado – como nas propostas de M. Reale ou naquelas implementadas pelo
Estado Novo), o do preço, o da renda e o do salário, para o qual
propõe-se um “salário vital”, uma espécie de salário mínimo.
58A
“hipertrofia do economismo” seria para Alceu Amoroso um dos principais
problemas de seu tempo, redundando num fascínio pelo progresso técnico,
cujo resultado final seria o desajuste entre crescimento econômico e
‘justiça social’, tal qual no capitalismo e nas sociedades totalitárias:
o socialismo – “desdobramento lógico e histórico (da) civilização liberal” – e inclusive o fascismo” (id., ibid.: 189-191).
59A
primeira das várias medidas práticas fundamentais para a correção deste
descompasso seria – através de uma “economia cristã” – a descentralização econômica.
Medida já antevista por Alberto Torres e cerne do discurso político
radical da época. Amoroso Lima não adota uma postura que se poderia
chamar de ‘anti-industrialista’, porém, a simples leitura de seus textos
esclarece que apenas a condição de uma “república agrícola” (tal como
dizia A. Torres) alçaria o Brasil para um futuro. Futuro, pois,
localizado no ‘oeste’, no encontro do país com sua face ‘real’, o que
necessitaria, porém, de uma série de medidas e reformas, de maneira a “tornar
a existência agradável nos centros agrícolas, dispersando-se um pouco
pelas cidades e vilas do interior, em obras de saneamento e (...)
melhoramentos o que se despende em obras luxuosas nas capitais” (Alberto Torres apud
Lima, 1956: 192). Em uma palavra: ‘civilizar’ o campo; inclusive às
regiões mais longínquas do país levar a indústria, cuja excessiva
concentração no ‘litoral’ seria a razão de suas crises e do
“pauperismo”, e ainda incentivar em termos materiais (que seriam
exclusivos às grandes cidades) a população rural, por meio de concessões
de créditos municipais, construção de estadas, etc. Tais medidas
levariam ao mundo rural “higiene, instrução, ordem pública [e] progresso”
(id., ibid.: 201). Dadas estas condições acreditava-se que não haveria
razões para que o homem do campo migrasse em direção às grandes cidades.
Vale lembrar que esta desconcentração – uma vez que Alceu se põe como
defensor do federalismo de via autoritária – iria também corrigir as
distorções da própria federação brasileira, desequilibrada com a
hegemonia de alguns estados sobre outros; sobre a maioria das unidades
federativas.
60Mais
que descongestionar os meios urbanos, levando a indústria para o
‘interior’, seria necessário estabelecer critérios para uma melhor
fixação do homem do campo, ou seja, estabelecer uma política econômica
“humana”, com “uma distribuição mais eqüitativa da propriedade” rural (id., ibid.: 193).
61Porém,
esta solução não passava por nenhuma espécie de ‘reforma agrária’. Ao
contrário, Amoroso Lima frisa que não se tratava de uma “guerra imediata
contra o latifúndio”, visto como um “mal” que no Brasil ainda não
poderia ser extinto. Quer dizer: o problema não era para o autor a má
distribuição fundiária, mas sim a ênfase – ao ser negado um maior acesso
à pequena propriedade (nos ‘vazios’ territoriais brasileiros) – que se
dava com a política cafeeira à economia de produção – e exportação – e não, tal como queria, ao critério da distribuição econômica; noutros termos, as cruciais questões da necessidade de construção de um mercado interno nacional e de uma rede de transportes para escoamento da produção (meio da economia, cujo fim seria o posterior consumo).
62Sintetiza-se assim a “fórmula econômica brasileira”. Conforme Alceu a caracteriza:
- 14 Alceu Amoroso Lima estabelece, sempre quando possível, uma contraposição rígida diferenciando o Bra (...)
Se
aspiramos a formar uma nacionalidade própria, que tenha suas
características diferenciais em face da grande civilização
norte-americana (...), creio que podemos resumir nas seguintes fórmulas
os sinais que deveriam ser característicos da civilização econômica
brasileira em face da yankee. Esta
é uma civilização de grandes propriedades e pequenas famílias. Ao passo
que o Brasil deverá ser uma nação de pequenas propriedades e grandes
famílias (id., ibid.: 195).14
63Para Alceu Amoroso Lima a pequena propriedade deitaria longas raízes históricas no Brasil. E “desde a aurora da colonização”
(id., ibid.: 196). Numa leitura singular, verá, em oposição à
decadência dos “grandes latifúndios dos donatários”, os germes do
progresso de São Paulo, não na economia do café, já no Brasil
independente, mas na pequena propriedade que se firmara desde a Colônia
no planalto de Piratininga. Rebatem-se (id., ibid.: 196-200) (igualmente
de forma singular) os críticos da pequena propriedade, que para ele
estariam divididos em duas linhas, aqueles que a considerariam como
antieconômica (desde os comunistas até o “Sr. Azevedo Amaral”, partidário do “capitalismo científico norte-americano”) e outros que enxergariam o problema do latifúndio no Brasil como uma falsa questão, inexistente.
- 15 É muito característica esta argumentação no pensamento de Alberto Torres, para quem a produção econ (...)
64Lembrando
que não é a produção a finalidade da economia, mas o consumo, isto é,
as necessidades materiais do homem, Alceu Amoroso Lima argumenta serem
mais importantes que o fator produção a necessidade de inclusão dos
homens ao direito à propriedade e, principalmente, o aspecto
organizacional da economia.15 “Num regime desorganizado, nem a pequena nem a grande propriedade podem suprir às necessidades de produção” – em si só, um ‘meio’ e não ‘fim’da economia, lembre-se.
65Assim,
a organização do regime seria mais importante que a dimensão das
propriedades. Mas o que chama a atenção é que, ainda que o autor cite a
necessidade de ampliar o acesso à propriedade – seja agrícola ou
industrial – como questão econômica primordial, não vai considerar de
relevo a existência ou não do latifúndio. Em resumo: aos que já detêm a
propriedade (grande ou pequena), que lhes continuasse sendo garantido o
direito ‘sagrado’ a ela. O que reforça, como afirmado a partir das
constatações de Otávio G. Velho (1979), que a modernização de corte
autoritário desta intenção política radical insinuava insistentemente
com ‘reformas’ no campo sem, contudo, jamais tocar na estrutura
fundiária vigente; daí a retórica da ‘marcha para o oeste’.
66Na Política
de Alceu Amoroso Lima estão ainda detalhados os passos para a
concretização dos projetos de ruralização; fato que já estaria se
concretizando por meio da “solução distributista” (id., ibid.:
200) encontrada pelos pequenos proprietários do sul do país; exemplo a
ser seguido pelas outras regiões. A começar, graças à adoção da pequena
propriedade, pelo combate à monocultura. Deve-se igualmente mencionar
que Alceu Amoroso proporia, como caminho para concretizar a ação do
Estado em nível nacional (para fazer ‘coincidir’ Estado e nação), uma
série de nacionalizações (com destaque para os setores de fornecimento
de energia, correios e telégrafos) – ou ao menos um controle severo das
empresas privadas por parte do Estado (id., ibid.: 202-205).
67Por
fim, um resumo da alternativa econômica (com grandes implicações na
gestão do território pelo Estado) de Alceu Amoroso Lima pode ser
expressa em suas próprias palavras:
Alberto
Torres viu perfeitamente o desequilíbrio de uma nacionalidade baseada,
economicamente, em produtos de exportação e que desdenhou de seu consumo
interno. O exemplo do desastre da borracha e das flutuações
sucessivas do café (está) ensinando, a quem quer ter olhos para ver, que
a política econômica científica que devemos seguir, – favorecendo a
humanização da economia, a descentralização da indústria, o amparo à
economia de consumo, a multiplicação da pequena propriedade agrícola,
industrial e comercial – está naturalmente indicada a deslocar a nossa
economia do caminho perigoso da monocultura para as variedades naturais
da policultura (id., ibid.: 200-201).
68A situação de Alberto Torres como mentor intelectual da geração de críticos autoritários à ordem liberal nos moldes da 1a República é notória. Porém,
entre a produção do autor fluminense e os anos em que católicos,
integralistas e outros se iniciam nas letras, há – paralelamente a
Oliveira Vianna, cujos primeiros escritos aparecem na virada dos anos de
1910 para os de 1920 – um autor praticamente esquecido: Elysio de
Carvalho. No tempo em que O. Vianna começa uma trajetória que o
conduziria a ser o “grande” autor do pensamento autoritário dos anos 20,
30 e mesmo dos anos 40, E. de Carvalho assume uma série de pressupostos
que, de uma maneira ou de outra, poderiam muito bem fazer parte dos
textos dos autores que vimos até agora apresentando: o ruralismo, a
crítica ao federalismo, a questão da ocupação dos fundos territoriais
brasileiros e, entre outros temas, a conclamação do Estado, ou, no
mínimo, do ‘homem-político’ (político e intelectual) como
agente transformador. E mais: o modelo, também confessadamente tomado
por Elysio, das propostas advogadas justamente por Alberto Torres.
- 16 O texto de E. de Carvalho foi escrito para sua posse em 22 de junho de 1921 na Sociedade de Geograf (...)
69Ainda
que Elysio de Carvalho seja um ensaísta pouco comentado, alguns autores
(Miyamoto, 1981; Zusman e Pereira, 2000) já apontaram o seu O factor geographico na politica brasileira (1921) como o primeiro estudo feito no Brasil à luz da geopolítica.16
Se não trabalha explicitamente com as teorias ‘geopolíticas’ de Kjellèn
– o primeiro a fazê-lo por aqui seria Everardo Backheuser –, o caráter
de estudo dentro desta classificação caberia a Elysio pela fundamentação
que busca nas teorias da geografia política de Ratzel para esboçar um
modelo muito particular de análise da realidade nacional, em que há um
peso central da geografia, ou das ideologias geográficas, conectado ao intervencionismo da praxis política – mais uma vez a cargo do Estado. A ligação entre o homem e a terra deveria ser de interesse de nossos estadistas e políticos, pois da geografia
(entendida pelo autor na acepção de quadro natural) dependeriam as
‘possibilidades’ de atuação do Estado e inclusive as circunstâncias
históricas da formação nacional; do conhecimento geográfico do país
adviria a revelação do ‘país real’.
70Entrementes, a doutrina da geografia política é que daria os subsídios para o elo entre o homem e a terra: Para E. de Carvalho (1921: 10-13), tal doutrina seria a “mais sólida base da concepção do Estado moderno”,
estando presente nas formulações de Napoleão, no “espírito territorial”
de Ratzel, em Ritter, Michelet, etc. Conforme seu entendimento, a
importância deste “espírito territorial” seria suficientemente
explicitada na medida em que fora incorporado pelas principais
teorizações entre Estado e território formuladas pelo direito.
71Se a geografia seria o “fundamento da política”
(id., ibid.: 13), cumpriria indicar o sentido exato da expressão ‘fator
geográfico’, o que para o autor fora dado menos pelo geógrafo alemão
que por Buckle, que em sua História da civilização na Inglaterra, lançava – ainda que sem as preocupações com nomenclaturas, as quais depois seriam consolidadas pela geografia política – os passos fundamentais para a sociogeografia (a aplicação do ‘fator geográfico’ à política), ao “examinar as influências exercidas pelas leis físicas sobre o caráter dos indivíduos e sobre a organização da sociedade” (id., ibid.: 15).
72Como
se vê, E. de Carvalho não apenas entende não haver grandes mudanças
entre a obra de Buckle e a daqueles considerados como formuladores da
geografia moderna – no caso, fazendo menção a Ritter e Ratzel – como
refutará a pecha de “determinismo absurdo” imputada ao
historiador inglês. A ciência geográfica dependeria da associação entre a
Terra e o Homem, e estes dois ‘fatores’ seriam “compensativos”. Assim, “No mesmo meio, uma raça diferente produzirá necessariamente diferente resultado”, o que para Elysio não ocorreria em se admitindo um “determinismo absoluto”
(id., ibid.: 15-16). Tendo cada civilização a sua particularidade,
ainda que estivessem várias ‘raças’ num mesmo meio, o passo decisivo da
teoria de E. de Carvalho (1921: 17) seria definir o fator geográfico, no caso, de um país, enquanto estudo de seu meio físico: “a constituição geológica, a natureza do solo, a propriedade e a capacidade de produção, o clima”, etc.; para a seguir “estudar as induções de ordem social e política”
(o que o autor denomina “induções sócio-geográficas”), em um espectro
que deveria, para estar inserido no quadro da “ciência geográfica”,
abarcar da “geografia política” à “geografia matemática”. Nestes esboços
teóricos do autor, um fato é de extrema importância para entender por
que se dá tamanho peso aos fatores de ordem natural: Porque eles são
perenes, ao contrário dos fatos humanos – sociais, políticos e
econômicos. “Não são as culturas diferentes, nem os vários regimes
econômicos que hão de instituir um senso territorial diverso (ao
Brasil), quando essas condições têm de ceder à força de vínculos muito
mais poderosos. E esses laços são (...) resultantes de outros fatores
mais fortes e gerais que asseguram a nossa unidade” (id., ibid.: 52); os fatores – reitere-se – físicos, naturais.
73Dadas tais premissas, a análise acerca dos fatores geográficos brasileiros intentará justificar a unidade natural do país, que segundo Carvalho já fora explicitada no texto de Reclus O homem e a terra
(id., ibid.: 18-20). Mais que uma unidade, a uniformidade brasileira
seria mesmo singular, inigualável se comparada a qualquer outra nação
sul-americana:
(...)
há de se ver que de toda a América do Sul é o nosso território o melhor
caracterizado como natureza ou meio físico geral, e a tal ponto que poderíamos ser tomados como tipo visto à luz da antropogeografia (...) (id., ibid.: 21) (Grifo nosso).
- 17 Carvalho (1921) cita como fontes para o levantamento do ‘quadro físico’ brasileiro os seguintes aut (...)
74Deve-se
atentar, contudo, que esta uniformidade, apesar de todos os detalhes
climatológicos, geológicos e geomorfológicos que são arrolados,17 seria dada pelos limites naturais brasileiros – delineados pelas Bacias Amazônica e do Prata e pela muralha dos Andes. Ora, tal argumentação, anteciparia ainda, o papel estratégico – portanto, de tom geopolítico – destes limites que, só para citar um autor, Mário Travassos trabalharia.
- 18 ...e como Carvalho (1921:41) escreve, estaria completada a profecia de Humboldt sobre a Amazônia, p (...)
75Vejamos a questão mais de perto: O Brasil teria seu território limitado “pelos dois maiores rios da América Meridional”,
abrigando parte das áreas das Bacias Amazônica e Platina (além da bacia
“secundária” do rio S. Francisco, inteiramente ‘nacional’) (id., ibid.:
40). Da Bacia Platina, o Brasil possuiria amplas seções das sub-bacias
dos rios Paraguai, Paraná e Uruguai. Desta maneira, através desta grande
rede hidrográfica formar-se-ia um “sistema de rios interiores”
único no mundo, cujo potencial para a navegação fluvial, se de fato
aproveitado, poderia viabilizar uma comunicação conjugada com quase
todos os países da América do Sul (id., ibid.: 37-40). Elysio de
Carvalho proporia uma conjugação do Brasil com todo o continente
sul-americano pelo transporte fluvial de forma ambiciosa:
completar-se-ia a circunferência da unidade natural do Brasil (com base
em uma idéia de Ferdinand Denis e seu livro Brésil) com uma ligação entre o rio Madeira (na Bacia Amazônica) e o Paraguai, um canal de navegação, através do qual “estaria aberta uma navegação interior ininterrupta entre a embocadura do Oceano e a do Rio da Prata” (id., ibid.: 40-41).18 Contudo, não seria esta a única forma de conjugação, de coesão interna dada pela natureza:
através da Bacia Amazônica o Brasil teria um pleno potencial de
comunicação com o Mar das Antilhas (pela Venezuela) e com a Colômbia, o
Equador, o Peru e a Bolívia (logo, subentende-se que com o Pacífico).
Também, pelos rios da Bacia Amazônica (Xingu e Tocantins) poder-se-ia
atingir a Bacia do S. Francisco e daí com facilidade as cabeceiras do
Paraná e, mais uma vez, unir, para falar com Travassos, os dois pontos
de antagonismo do continente: o Amazonas e a embocadura do Rio da Prata
(id., ibid.: 40-42).
76Estes seriam, em suma, os fatores geográficos
brasileiros. A natureza exuberante, repleta de “pompa”, dera todas as
condições para que, por meio da ação política, o Brasil chegasse ao
patamar sonhado por Elysio de Carvalho. Devido apenas ao desconhecimento
de tais fatores geográficos é que o país ainda não se vira totalmente integrado e alçado à condição de potência sul-americana. Conclui-se portanto pela unidade territorial do Brasil. O próprio autor sintetiza a questão:
A
linha marítima do Atlântico, a nossa estrutura orográfica, e a ação das
duas grandes bacias fluviais, principalmente a do Amazonas, asseguram
uma particularidade de que decorre fortemente a vinculação política de
todo o território (id., ibid.: 51).
77Assim, a devida atenção às induções sócio-geográficas seria fundamental para qualquer programa político verdadeiramente nacional, afastado da ‘mesquinhez’ regional. Dentro deste escopo, uma das primeiras induções sócio-geográficas que se põe é, na crítica ao espírito regionalista, a reivindicação do modelo Unitário para o ordenamento estatal brasileiro. Para Elysio de Carvalho (Os bastiões da nacionalidade,
1922: 60-63), quaisquer ‘vantagens’ que apresentaria o federalismo
seriam anuladas pela “própria natureza” do sistema de alimentar o
regionalismo. Além do mais, o desequilíbrio econômico entre as unidades
federativas seria, na prática, um desvirtuamento do ordenamento.
É preciso notar que em seu ataque ao federalismo o autor em foco
termina por associá-lo necessariamente à democracia. Tal qual escreve,
“[n]as democracias, os laços federativos tendem sempre (...) a
afrouxar-se, até desaparecerem; ou então (...) vão-se apertando até que
se extingam as condições federativas”; o que acontece por um “erro
de origem (...) a que se expõem todas as federações: ou caem na
dissolução e no desmembramento; ou desandam para a unidade política
fundada na astúcia ou na força” (Carvalho, 1921: 54).
- 19 Há aqui um equívoco do autor: a questão da unidade política centralizada aproximava-se muito mais d (...)
78A uma unidade territorial do Brasil, dada pela natureza, deveria corresponder portanto uma unidade política, “um forte e vasto aparelho político central” (id., ibid.: 54), que combinasse esta centralização, uma confederação, nos dizeres do autor,19
com qualquer outro regime que não a democracia – que associada ao
federalismo, jamais poderia na prática ter um ponto de equilíbrio entre
as tendências centrífugas e centrípetas.
79Posto
o problema da governabilidade do país, cujo modelo deveria ser
basicamente construído sobre um alicerce antidemocrático e centralizado,
há a seguir, de forma análoga àquela dos ‘ensaístas’ apresentados, a
enumeração de um programa que fizesse completar este Estado
inacabado. Esta própria “fórmula do destino brasileiro” já revela o teor
deste programa nacionalista. Tal qual Carvalho afirma, uma fórmula
concebida num “aforismo euclidiano” (id., ibid.: 63): rumo aos sertões.
80O programa de E. de Carvalho tem uma influência marcante de três autores: Euclides de Cunha, Graça Aranha e Alberto Torres.
81O
autor toma de Graça Aranha as concepções da “metafísica brasileira”, que
é sintetizada num conjunto que compreende raça, meio físico, ‘estado
social’, religião e ‘continuidade histórica’ (Carvalho, 1922: 183).
Porém, aquilo que mais nos interessaria seria que certos aspectos de
nossa história se combinariam aos ‘fatores geográficos’ no sentido de
reforçar a unidade nacional. Noutras palavras, à homogeneidade física, ‘natural’ desta unidade nacional soma-se a unidade do Brasil enquanto Nação. Caberia, pois, investigar esta unidade, a começar pelo seu caráter singular na América Latina: o “fenômeno da nossa integridade territorial”
(id., ibid.: 46). Esta coesão seria “admirável” na compreensão de E. de
Carvalho, haja vista que o Brasil teria se mantido unido mesmo sem a
interferência de Portugal. Ao contrário, aliás, pois o autor vê na
separação da colônia lusitana em Estado do Brasil e Estado do Maranhão
um empecilho para a formação do território brasileiro tal como seria
posteriormente (id., ibid.: 46-48). Em assim sendo, a unidade brasileira
seria justificada (para além dos “fatores geográficos” – naturais) por
um “nexo moral”, dado principalmente pela uniformidade de língua, de
religião e de tradições herdadas dos portugueses. Para Elysio, este nexo já é reconhecido “desde o início da colonização”
(id., ibid.: 13), mas ganha corpo na luta contra os invasores franceses
e holandeses. À frente destes últimos ficaria evidente “o sentimento de que já éramos povo,
e povo digno de assumir o seu papel no convívio internacional, porque
nos sentíamos capazes de afirmar pelas armas a nossa existência política” (id., ibid.: 15; grifo no original). Se este sentimento nacional
estava presente desde o século XVI, ele apenas é alimentado nos séculos
seguintes, e neste sentido os acontecimentos de 1822 apenas serão o
reconhecimento formal de uma independência anteriormente efetuada (id.,
ibid.: 19).
82Mas
o ‘nexo moral’ estaria caracterizado também pela particularidade do
povo brasileiro; povo resultante, nas palavras citadas de Graça Aranha (apud
Carvalho, 1922: 28) do encontro de três raças, um “tipo novo”, para
cuja constituição contribuíram duas influências decisivas, a do
português e a da “meio físico em que se [desenvolveu] esta transplantação da alma latina”. Note-se que Elysio de Carvalho (1922: 29-32/185-188), concordando com o autor de Canaã
e com teóricos racistas do século XIX, notadamente Lapouge, no sentido
de que a ‘raça’ seria fator dominante no destino dos povos, conclui –
contraditoriamente – que, não obstante a miscigenação racial
(reprovável, aos olhos das teorias racistas), o povo brasileiro seria
menos uma “mistura” que uma “síntese étnica”, na qual
predominariam traços do português, ‘aclimatado’ ao ‘novo mundo’, e que
estaria convivendo à época em que o autor escreve com o crescimento dos
brancos – via imigração – e com o declínio das “raças subalternas” – no que se referiria às suas porções não ‘sintetizadas’, não misturadas à nova etnia.
83Conforme
destacado, o peso maior, nesta “síntese racial”, era contudo creditado
aos portugueses. Assim, Carvalho condena abertamente o nacionalismo
antilusitano (id., ibid.: 30-31/37). Nossas tradições nos ligariam a
Portugal, e qualquer projeto verdadeiramente nacionalista deveria
realçar esta contigüidade com a Península Ibérica – o que, segundo o
autor, fora já sublinhado por Alberto Torres. E é exatamente deste
último autor e de Euclides da Cunha que Elysio de Carvalho toma várias
das metas de seu nacionalismo político.
84Uma
das temáticas já foi exposta: a necessidade de vias comunicação para o
território brasileiro. Contudo, faltava-nos uma rede de transportes
capaz de realmente integrar o país, o que deveria ser feito combinando a
navegação fluvial à ferrovia. Esta última apareceria como a “maior anomalia brasileira”, com seus parcos 28 000 km – dos quais vinte mil localizados no sul do país (id., ibid.: 146-147).
- 20 Sobre a ‘geografia’ no pensamento de Euclides da Cunha ver Bromberg (1994).
85A
imprudência da política nacional deixava ainda, em pleno século XX,
estados como Mato Grosso, Goiás e o oeste de Minas Gerais isolados do
mundo. E.de Carvalho (1921: 57-59), cita a comparação que, em À margem da história, Euclides da Cunha faz entre a rede de transportes norte-americana e a nacional.20 O fator geográfico
norte-americano, com a grande bacia hidrográfica do Mississipi cortando
o território no sentido norte-sul, teria sido engenhosamente conectado a
um sistema ferroviário de cerca de 382 000 km de trilhos, muitos dos
quais ligando o Pacífico ao Atlântico. A mesma providência de buscar uma
conexão territorial por meio das ferrovias fora adotada no Canadá e na
então recente URSS (Carvalho, 1921: 58). Passando à análise específica
do caso brasileiro, o autor mostra (novamente com base no texto de
Euclides da Cunha) a pertinência de suas reivindicações através do
exemplo paulista: a rede ferroviária deste estado seria a única no
Brasil a ligar o litoral ao interior e isto fora fundamental para a
posição econômica alcançada por São Paulo (id., ibid.: 59-60). Em
oposição, no resto do país, ao invés de voltarem-se ao ocidente, as
ferrovias seriam todas paralelas ao litoral, “como se a viação pudesse concorrer com a navegação” (id., ibid.: 60). Na síntese de E. de Carvalho:
Tudo (...) no nosso habitat,
nos está indicando que a nossa grandeza econômica depende apenas de
associarmos, por um sistema de viação em que entrem os nossos rios, a
navegação costeira e os grandes caminhos para o sertão. É o que
decorre dos nossos elementos de riqueza, das particularidades da nossa
rede potamográfica, e da própria configuração do nosso solo. No dia em
que à nossa política não forem estranhas as induções que se podem tirar
da nossa fisiografia geral, o Brasil será a primeira nação do
continente. Invadindo decisivamente o hinterland, é
claro que a nossa própria característica nacional há de fixar-se melhor e
definitivamente (id., ibid.: 61; grifos no original).
86Ora,
de acordo com Elysio, o caminho “rumo aos sertões” estava indicado no
ideário de E. da Cunha, de Alberto Torres e de Alberto Rangel (em Rumos e perspectivas). Em
termos econômicos, a integração nacional deveria ser dada por dois
caminhos: O primeiro seria pelo incremento da produção agrícola. Dela
dependeria o futuro do país: potencial para tanto não lhe faltaria, com “terras em todos os climas”
(Carvelho, 1922: 149), mas com um espaço econômico muito mal
aproveitado. Não mais que dez ou doze mil hectares estariam sendo
lavrados e de fato utilizados pela agricultura no Brasil (Carvalho,
1997: 205). Observe-se que nem mesmo o fato de a economia brasileira ser
à época calcada no sistema agro-exportador cafeeiro seria indicativo de
solidez. Além de geograficamente restrita a S. Paulo, à agricultura
então praticada faltava, por exemplo, mecanização e instrução técnica
para o trabalhador (Carvalho, 1997: 205). Outro fato importante seria
quanto à capacidade que teria a agricultura em atrair a construção de
vias férreas (id., ibid.: 207) – o que se poderia atestar no caso
paulista. Elysio advogava, pois, uma reforma econômica muito calcada, é
verdade, na agricultura, de cujo aumento da produção dependia o futuro do país,
mas não se pode ver seu programa como exclusivamente agrarista. Há ao
lado da defesa da agricultura (com o máximo de produtividade e com a
maior expansão geográfica possível) uma necessidade imperativa de defesa
da indústria e sua desconcentração das regiões marítimas (Carvalho,
1922: 146). A chave para a resolução dos problemas econômicos
brasileiros passava pela siderurgia: seria “impossível (...) conceber-se o progresso de um país livre da influência irresistível” da indústria pesada. A “civilização” giraria em torno “dos campos ferríferos e das minas de carvão”
(Carvalho, 1997: 185). Finalmente, o modelo econômico em pauta
privilegiaria, paralelamente ao incremento do mercado interno, a
inserção do Brasil na economia mundial como potência industrial e
agrícola, que seria muito mais vigorosa que num modelo exclusivamente
agro-exportador. A importância desta ‘abertura’ econômica pode ser
resumida na máxima segundo a qual “Importar é sinal de riqueza, mas exportar muito e mais é índice de força expansionista e de poder” (Carvalho, 1922: 146).
87No
intuito de dinamizar a economia nacional, há uma intenção inequívoca de
alçar o Brasil à condição de potência sul-americana. Ao falar sobre a
necessidade de expansão das atividades rurais pelo país, o autor deixa
claro que, por exemplo, na pecuária poder-se-ia competir “vantajosamente com a Argentina”
(Carvalho, 1997: 212). Mas ilusório seria crer que esta competição se
restringiria a apenas um setor da economia. Muito mais que isso, em seu
discurso emerge todo um tom de clara oposição frente à América
Espanhola. Ou melhor: Carvalho (1922: 343-344) considera que do lado das
repúblicas de origem hispânica sempre o Brasil estivera excluído, posto
à parte, sempre fora visto com antipatia.
88Neste
antagonismo entre o Brasil e os vizinhos platinos, surgem
interpretações segundo as quais a dimensão territorial brasileira e a
Monarquia teriam contribuído para acentuar diferenças para o autor
irreconciliáveis, a ponto de declarar: Ainda mais nos assombra a ingenuidade de tanta gente que ainda duvida de que os (...) povos platinos sejam nossos inimigos (Carvalho, 1922: 345; grifo nosso).
- 21 Para citar um exemplo, na Geographia de Pedro Martin o Brasil seria dividido em três regiões: “la ‘ (...)
89Inimigos que
internamente não se furtaram jamais de forjar visões deturpadas sobre o
Brasil. No Uruguai, Carvalho (1922: 346-347) afirma que em La diplomacia oriental en el Paraguay, de Alberto Herrera, creditava-se “Todos os males sofridos pelas repúblicas platinas”
como obra do Império Brasileiro. E que pelas obras escolares de
geografia e história seriam difundidas interpretações como esta e
leituras sempre negativas e pejorativas a respeito do Brasil.21 Por meio de tais textos “se inocula na alma das novas gerações o veneno que as há de alimentar no futuro”.
90Deste
enfrentamento, desde “ódio” dos países platinos para com o Brasil,
poder-se-ia esperar algo de apocalíptico: dever-se-ia estar atento à
política argentina que de um momento para outro poderia secionar o
transporte fluvial pelo rio Paraguai em direção ao Mato Grosso (id.,
ibid.: 373). Seria posto um obstáculo, assim, ao contorno da unidade natural brasileira. A própria uniformidade dada pelos fatores geográficos
ao território brasileiro passava na visão de Elysio de Carvalho menos
por uma relação amistosa com a Argentina que por um inevitável atrito,
por uma disputa sobre as áreas estratégicas do continente. Ora, “rivais em matéria econômica tornam-se facilmente inimigos quando são vizinhos” (id., ibid.: 435), e, conforme anunciado, segundo Elysio de Carvalho, por um certo Gen. Maitrot (em A França e as repúblicas sul-americanas),
o cenário de uma possível guerra pela hegemonia continental já estava
traçado: pela transposição do rio Uruguai, entre Concepción e
Uruguaiana, as tropas argentinas, apoiadas pela boa rede ferroviária aí
existente, paralela ao rio, se embrenhariam pelo território nacional,
dando o estopim do confronto (id., ibid.: 435-436).
91Frente a cenário tão sombrio, se justificaria uma atitude sempre agressiva do Brasil, se quisesse erguer-se à condição de potência.
92O autoritarismo no Brasil das décadas de 1920 e 1930 representou, no alvo que lhe dera a própria raison d’être, a 1a
República, e em que pesem as imensas e variadas diferenças entre em seu
interior, um conjunto de propostas que buscavam, no fortalecimento do
Estado e na derrocada da democracia liberal, basicamente um
intervencionismo cujo cerne residia na idéia, tão decantada por governos
populistas ou autoritários posteriores, de integração do território
nacional. Numa produção do espaço a cargo dos mecanismos
estatais. ‘Questão nacional’ basilar era perseguir um suposto
equilíbrio econômico e político entre as unidades de uma federação, que
necessariamente deveria ser reorganizada, na inspiração em modelos
francamente antiliberais. Na síntese da carga crítica à Velha República
liberal, aparecia a questão do federalismo, distorcido, e de uma
economia que, voltada para o mercado externo, abandonara, no seu laisser-faire,
o país à própria sorte. Nesta leitura, aparecia um sentido muito
particular de modernização sonhado pelos autoritários. O prenúncio de
uma ‘modernização conservadora’, que visava a alternativas econômicas
que não a monocultura latifundiária para exportação, mesmo quando a via
da industrialização ainda fosse posta como interrogação. O que acima é
afirmado pode ser tirado como a conclusão mais generalizada no balanço
deste autoritarismo político. Poder-se-ia dizer, mesmo que repetindo
muito do que já implicitamente teria surgido neste texto, que a leitura geográfica
do país, em maior ou menos grau, não seria desprezível: a coesão do
território passava por variadas formas de intervenção do Estado. Caso se
rememorasse o consenso em torno do fortalecimento do Estado (inclusive à
esquerda), tão devedor a Alberto Torres, o sentido modernizador traria
em si a necessidade de construir, entre outros elementos, um mercado
interno, para o qual urgia um novo ordenamento estatal do (e sobre o) ‘corpo’ da nação. Um novo que creditaria ao Estado o papel de indutor da produção do espaço.As ideologias geográficas
– mesmo quando tratando de temas “aglutinadores de tendências”, comuns à
esquerda e à direita, mas com fins sociais absolutamente diferentes,
deixe-se isso bem claro – estiveram a serviço da “estruturação
espacial”, poder-se-ia assim dizer, de um capitalismo autoritário excludente (cuja agonia perdura até a década de 1980), construído pela via de um suposto planejamento cujo objetivo era uma eqüidade espacial (improvável no capitalismo monopolista) sustentada como ideologia de nossa burocracia técnica.
93
É
certo que se coadunaram fatores internos e externos para que pudesse
emergir o autoritarismo de direita no Brasil. Em síntese, a crise da 1a República e a ascensão, como o revidar aos destroços da Montanha Mágica,
de um nacionalismo antiliberal de fundo mistificador. Foram variados os
seus destinos. Mas a onda crescente de radicalização, alimentada, como é
notório, por revanchismos interimperialistas, se consumiria até seu
próprio suicídio. O personagem Leo Naphta se mata antes do estouro da 1a
Guerra. Mas até extinguir-se sua ideologia – que estava então apenas no
nascedouro – arrastaria consigo toda uma nação irremediavelmente
condenada. Como desabafa nosso escritor em Doutor Fausto (nos anos em que se desenrola a Segunda Guerra):
- 22 Edição original: 1947.
Tudo se acabou para a Alemanha; acabar-se-á num inominável colapso econômico, político, moral e espiritual (...). Não
quero ter desejado esse desenlace, pois o que nos ameaça são o
desespero e a insânia. Não quero nutrir tal desejo, porque minha
compaixão, minha lastimosa comiseração dedicam-se a esse povo infeliz, e
quando recordo o seu levantamento e seu cego fervor, a rebeldia, a
erupção, a explosão, a reviravolta, o reinício pretensamente
purificador, o renascimento nacional de dez anos atrás – quando recordo
aquele transe aparentemente sagrado, com o qual, na verdade, indicando
seu caráter falaz, já se mesclavam muita rudeza feroz, muita brutalidade
ordinária, muito gozo sórdido de violações, torturas e aviltamentos, e
que, para quaisquer pessoas clarividentes, já evidenciava os germes da
guerra, de toda essa guerra – quando recordo tudo isso, confrange-se-me o
coração em face do formidável investimento de fé, entusiasmo,
apaixonada exaltação histórica, efetuado naqueles dias, e que agora
deverá esvair-se numa bancarrota jamais igualada. Não, longe de mim ter
desejado isso... E todavia tive de desejá-lo, e sei também que o
desejei, que hei de desejá-lo hoje e saudarei o seu advento, por ódio ao
celerado desprezo da razão, à pecaminosa renegação da verdade, ao culto
vulgar, extasiado de uma mitologia de cordel, à culposa confusão entre a
degeneração atual e aquilo que existia antes, o abuso cabotino e a
abjeta venda em liquidação dos genuínos valores (...) alemães, à base
dos quais sabujos e mentirosos nos prepararam um filtro
intoxicante,suscetível de alienar os sentidos. A gigantesca embriaguez,
que de nós, os sempre ávidos de ebriedade, apossou-se, quando o bebemos,
e na qual, através de anos cheios de uma ilusória vida superior,
cometemos um sem-número de atos ignominiosos – cumpre pagarmos por ela. E
qual é o preço? (Mann, 2000: 246-247)22.