- 1 Versão ligeiramente modificada do capítulo 5 da tese de doutoramento A formação da memória territor (...)
A
literatura nacional que outra cousa é senão a alma da pátria, que
transmigrou para esse solo virgem como uma raça ilustre, aqui
impregnou-se da seiva americana desta terra que lhe serviu de regaço; e
cada dia se enriquece ao contato de outros povos e ao influxo da
civilização? (...) Sobretudo compreendem os críticos a missão dos
poetas, escritores e artistas, nesse período especial e ambíguo da
formação de uma nacionalidade. São estes os operários incumbidos de polir o talhe e as feições da individualidade que vai se esboçando no viver do povo.
José de Alencar (prefácio de Sonhos D’Ouro, 1872)
1Na
tradição cultural brasileira, desde o século XIX, o pensamento social é
marcado pela busca por uma continuidade de problemas e reflexões
cristalizada no problema fundamental da “formação”. O filósofo Paulo Eduardo Arantes notou com acerto que essa idéia marca o conjunto da experiência intelectual brasileira:
Salvo
em casos flagrantes de auto-engano deliberado, todo intelectual
brasileiro minimamente atento às singularidades de um quadro social que
lhe rouba o fôlego especulativo sabe o quanto pesa a ausência de linhas
evolutivas a que se costuma dar o nome de formação. Que se trata
de verdadeira obsessão nacional dá testemunho a insistente recorrência
do termo nos principais títulos de ensaística de explicação do caso
brasileiro: “Formação do Brasil Contemporâneo”, “Formação Política do
Brasil”, “Formação econômica do Brasil”, “Formação do Patronato Político
Brasileiro”, etc, – sem contar que a mesma palavra emblemática designa
igualmente o assunto real dos clássicos que não a trazem enfatizada no
título, como “Casa Grande e Senzala” e “Raízes do Brasil” (Arantes,
1977: 11).
2As obras citadas por Paulo Arantes em seu ensaio sobre a Formação da Literatura Brasileira,
de Antônio Cândido, têm em comum, além da reconhecida importância para a
cultura brasileira como um todo e para as disciplinas nas quais
concentraram seus esforços de pesquisa, o fato de terem pensado a
questão da formação no Brasil para além dos limites rígidos da especialização acadêmica tradicional. O
objeto tratado por todos esses textos, a própria especificidade do
pensamento sobre e no Brasil, impôs um método de investigação que fez
explodir as habituais distinções de competência. Assim, Sérgio Buarque
de Hollanda, Antônio Cândido e Gilberto Freire, por exemplo, aliam
conhecimentos de história, literatura, sociologia e geografia para
iluminar problemas que necessitam dessa múltipla relação para serem
corretamente configurados e entendidos.
3A
literatura brasileira incorpora em várias de suas obras mais relevantes
elementos de interpretação histórica e geográfica do país em formação.
Apropriada pela crítica literária, a idéia de “formação” ganha eficácia
explicativa em duas direções, aparentemente opostas, mas na realidade
complementares: a literatura, ao mesmo tempo, é formada e transforma o
chão social, cultural, histórico e geográfico sobre o qual nasceu, e que
lhe conforma organicidade e sentido. É formada, pois incorpora
problemas de seu tempo e de seu espaço; transforma, pois cria e cimenta
identidades locais, regionais e nacionais, impondo-se como representação
coletiva que funda práticas e vínculos culturais e sociais. Nesse
sentido, o livro de Antonio Candido, Formação da Literatura Brasileira, tem
por objetivo apresentar a “história dos brasileiros no seu desejo de
ter uma literatura” (Candido, 1981 vol. I: 25) em uma perspectiva
sistêmica e cumulativa, como constitutiva da “formação” paralela e
inter-relacionada da literatura e da nação brasileiras.
4No
Brasil a consolidação do Estado e da nação foi um processo longo e
conturbado, no qual a base territorial serviu muitas vezes como
parâmetro da unidade necessária à constituição do sentimento de
nacionalidade. O território foi assim um componente essencial no
processo de consolidação do sistema político e simbólico capaz de
legitimar uma lealdade nacional que garantisse a unidade do império.
5Ainda que efetivamente a história e geografia tenham ocupado um lugar de destaque na emergência de uma metafísica do território,
sobre a qual se erguem as histórias nacionais que legitimam os Estados
Nacionais, é certo que o imaginário territorial, ou melhor dizendo, a
produção simbólica do território, deriva de múltiplas fontes. Franco
Moretti, em seu Atlas of the European Novel traz essa reflexão
para o campo das relações entre geografia e literatura, destacando a
importância do romance na constituição do Estado nacional:
Bem, o Estado nacional (...) inventou o romance. E
vice-versa: o romance inventou o Estado nacional. Sendo a única forma
simbólica que poderia representá-lo, o romance tornou-se um componente
essencial de nossa cultura moderna. Alguns Estados nacionais
(notadamente a Grã-Bretanha e a França) já existiam, é claro, muito
antes da ascensão do romance: mas como Estados nacionais “potenciais”,
eu diria, e não reais. Eles tinham uma corte, uma dinastia, uma marinha,
algum tipo de rede de coleta de impostos – mas dificilmente poderiam
ser vistos como sistemas integrados: ainda eram fragmentados em diversos
circuitos locais, onde o elemento estritamente ‘nacional’ ainda não
havia afetado a existência cotidiana. Mas próximo ao final do século
XVIII, uma série de processos passaram a ocorrer que literalmente
arrancou os seres humanos de sua dimensão local, jogando-os em uma
dimensão muito maior. Charles Tilly fala de um novo valor para esse
período – ‘lealdade nacional’ – que o Estado tenta forçar e impor contra
as ‘lealdades locais’. Acredito que ele esteja certo, o choque da
lealdade antiga com essa nova lealdade mostra também o quanto o Estado
nacional era, inicialmente, um problema: um domínio mais amplo, mais
abstrato, mais enigmático – que precisava de uma nova forma simbólica
para ser entendido (Moretti, 1998: 17).
6Para
Moretti, a forma do romance moderno é, portanto, um componente
essencial da produção simbólica do Estado nacional, na medida em que
esse passa a ser o horizonte de novas identidades coletivas, em processo
de formação. A relevância da produção de uma atlas da
literatura, no qual são mapeados os cenários dos romances selecionados e
o deslocamento de seus principais personagens, está ancorada nessa
idéia chave.
7Mas
as análises de Moretti vão além da mera localização e descrição de
cenários literários. A geografia, segundo ele, molda inclusive a
estrutura narrativa e o gênero do romance europeu: “... a geografia
não é um recipiente inerte, não é uma caixa onde a história cultural
‘acontece’, mas uma força ativa, que perpassa o campo literário e o
forma profundamente” (Moretti, 1998: 3). Enquanto nos romances
sentimentais a ação girava em torno das capitais e de regiões fortemente
integradas dos espaços nacionais, os romances históricos europeus mais
importantes escritos no século XIX foram ambientados nas regiões de
fronteira, criando heróis nacionais que viveriam as tensões e disputas
territoriais que marcaram o período.
8O
trabalho de Moretti usa intensivamente a cartografia para analisar a
relação entre literatura e geografia, investigada a partir de três
grandes chaves interpretativas. A primeira, já exposta, investiga o
paralelismo entre a formação de literatura nacionais, enquanto produção
de espaços simbólicos, e a formação dos territórios nacionais. Os
romances históricos constituem, assim, uma verdadeira fenomenologia das fronteiras
européias, assunto que interessa particularmente aos geógrafos. Na
segunda parte, centrada nos estudo dos romances urbanos produzidos no
século XIX, Moretti aborda a representação das cidades na tradição
literária européia, analisando o modo por meio do qual os principais
autores do período, através de seus personagens, reconstroem as tensões
sociais que marcam a sociabilidade urbana. De fato, os mapas urbanos
elaborados por Moretti a partir das descrições e deslocamentos presentes
nos romances iluminam aspectos surpreendentes tanto das obras
literárias quanto das cidades nas quais se passa a ação. Finalmente,
também as teorias da recepção ganham uma dimensão geográfica. Por meio
da geografia das publicações, traduções e bibliotecas e de seu
mapeamento sistemático, Moretti apresenta a difusão das representações
simbólicas elaboradas pelos romances europeus no espaço mundial e seu
alcance no imaginário coletivo.
9Nessa
perspectiva, as relações entre literatura e geografia, mediadas pela
história, se tornam essenciais para o entendimento da problemática da
formação do Estado nacional, que subjaz, como já foi dito, ao conceito
mais geral de formação.
10Ainda que perseguindo objetivos diferentes, também o meu trabalho de mestrado investigou essas relações. Em No meio da multidão: a geografia de Mário de Andrade,
dissertação defendida em 1992, procurei demonstrar como os dilemas e
problemas enfrentados pelo escritor, na tentativa de expressar a genuína
nação brasileira em suas obras, eram revestidos de um forte componente
geográfico. A busca pelas raízes constitutivas de uma imagem dicotômica
do território brasileiro, traduzida em ritmos e espaços assintonizados,
constituiu a chave da investigação. Como resultado, demonstrei que as
dicotomias entre cidade e campo, entre o nacional e o estrangeiro e
entre as realidades regionais informam a estranha geografia de Mário de
Andrade:
Dois rios sintetizam simbolicamente esta geografia. O
Amazonas, associado à idéia de contemplação, de um ritmo de vida que,
em consonância com os calores amazônicos, tivesse lugar para o ócio e a
preguiça, e o Tietê, espelhando em suas águas uma cidade já dominada
pela máquina, pela velocidade derivada do ritmo da produção industrial.
Dois rios, dois tempos, dois ritmos a serem fundidos numa miríade de
particularidades regionais: teriam como resultante uma cultura e uma
civilização genuinamente nacionais (Araújo, 1992: 7).
- 2 Rubens Ricúpero, por exemplo, recupera Macunaíma para iluminar aspectos cruciais do debate acerca d (...)
11Nesse sentido, a relação de Mário de Andrade com o tempo e com o espaço é contraditória em sua essência. Esta
contradição reside na coexistência de um sentimento nostálgico e de uma
ansiedade com relação ao futuro, contradição que se reveste de uma
dimensão geográfica na medida em que se traduz em uma oposição entre
espaços simbólicos singulares. Se o sentimento nostálgico, no sentido
aqui expresso, finca raízes nas imagens amazônicas, a ansiedade do
futuro faz de São Paulo um dos grandes motes temáticos do poeta. O
imperativo nacional ganha em Mário de Andrade contornos originais:
construir a nação torna-se, antes de tudo, um exercício de fusão desses
ritmos e espaços descompassados. Em Macunaíma,
indiscutivelmente sua obra capital, Mário de Andrade promove essa fusão
por meio das corridas panorâmicas do personagem central – ‘o herói sem
nenhum caráter’ – pelo território nacional em busca de sua muiraquitã e
da mistura de elementos folclóricos oriundos nas mais diferentes
realidades regionais. A força dessa simbologia nacional, desgeografizada
e atemporal, e a busca de uma identidade própria que ela corporifica,
ainda pulsa nos trabalhos que investigam a realidade brasileira
contemporânea.2
12Mas
essa preocupação em constituir e expressar um sentimento nacional não
foi inventada pelos modernistas. Ela surge com a própria questão
nacional, no seio do romantismo. Roberto Schwarz estabelece, nesse
sentido, a continuidade de problemas entre José de Alencar e o
Modernismo:
A sua obra é uma das minas da literatura brasileira, até hoje, e embora não pareça tem continuidades no Modernismo. De Iracema, alguma coisa veio até o Macunaíma: as andanças que entrelaçam as aventuras, o corpo geográfico do país,
a matéria mitológica, a toponímia índia e a História branca; alguma
coisa do Grande Sertão já existia em Til, no ritmo das façanhas de João
Fera (Schwartz, 1981: 31; grifo meu).
13Desde a sua primeira geração, o movimento romântico brasileiro é o modelo mais importante daquele “caráter empenhado” que Antonio Cândido ressaltou como marca da literatura nacional (Candido, 1981 vol. I:
26-27). A elite intelectual se confundia, então, com a elite política
do país. Os escritores do período tinham intensa participação na vida
pública, e as revistas literárias por eles fundadas, como a importante Niterói,
eram também veículos de projetos políticos nacionalistas. A
independência, como comenta Antonio Cândido, desenvolveu na poesia, e
principalmente no teatro e no romance, o entusiasmo patriótico: “a
literatura foi considerada parcela dum esforço construtivo mais amplo,
denotando o intuito de contribuir para a grandeza da nação” (id.,
ibid. vol. II: 10). É por isso que, no romantismo brasileiro, o romance
contrabalança a tendência lírica e introspectiva da poesia da época com
um olhar atento à realidade nacional e uma tentativa de descrição das
particularidades da paisagem, dos costumes tradicionais e da vida urbana
do país em formação. Na expressão de Luis Felipe de Alencastro, a
literatura romântica brasileira “escapa aos cânones literários habituais para englobar todas as formas de expressão do ‘espirito nacional’” (Alencastro, 1989: 11).
14A
aclimatação das idéias românticas européias, é preciso lembrar, não teve
uma participação decisiva no processo de Independência, ocorrida antes
mesmo da importação do ideal romântico pelos jovens brasileiros que iam
estudar em Paris. É na constituição da nacionalidade no período do
império que o romantismo brasileiro exerce sua maior influência. Nesse
sentido, a própria consciência do caráter nacional já confere uma nova
cor aos temas principais do romantismo europeu: a imagem idealizada da
Idade Média é substituída pela América anterior à conquista; as sagas e
canções de gesta têm agora como personagens os indígenas nativos. O
indianismo, primeira figura do romantismo brasileiro, tem assim um
caráter alegórico de expressão da nacionalidade americana. Não por acaso
o nome Iracema é uma reorganização das letras presentes na palavra
“América”. O índio, opondo-se simbolicamente ao colonizador, apresenta
literariamente a nacionalidade em formação, que deseja se opor às idéias
estrangeiras, ao mesmo tempo em que as recebe e muda seu sentido.
15Essa
incorporação do espírito nacionalista, presente desde o início do
movimento na Europa, fez com que o romantismo brasileiro logo buscasse
configurar sua especificidade regional e nacional. Mas aqui os
intelectuais românticos enfrentavam um enorme problema: ainda não havia
uma nação para ser representada. Assim, o romance nacional dá lugar aos
primeiros romances regionalistas românticos. A unidade do império
precisa ser afirmada a partir da diversidade de paisagens e tipos. O
romance não poderia ficar alheio a essa tarefa. Entre os escritores mais
importantes do movimento romântico, José de Alencar e Bernardo
Guimarães são os que mais se “empenharam” em buscar essa construção
simbólica do território. Um problema que, como ressalta Antonio Cândido
era visto como fundamental pela elite do país logo após a independência:
A sociedade que deparava era pouco complexa: o país, pouco conhecido, com núcleos de populações esparsos e isolados. A
literatura ainda não havia, com Alencar e Bernardo, se atirado à
conquista do Norte, do Sul e do Oeste: a sua geografia não conhecia mais
que a pequena mancha fluminense de Teixeira e Sousa e Macedo (Candido,
1981 vol. II: 216).
16Em romances como O Gaúcho (1870), As Minas de Prata (1870), O tronco do Ipê (1871), Ubirajara (1874) e O Sertanejo
(1875), José de Alencar efetua a descrição das paisagens, da vida e do
homem de regiões distantes da “mancha fluminense” de que fala Cândido. O
“sertanismo” surge dessa necessidade de apropriação literária das
regiões afastadas da Corte e do litoral brasileiros, no sentido de
estabelecer a unidade da nação. Por isso é necessário estar atento ao
equívoco da qualificação desses romances como “regionalistas” em sentido
estrito. Como comenta Gomes de Almeida:
Inexiste em Alencar, como nos românticos em geral, o sentido particularista que caracteriza o regionalismo. A
dimensão nacionalista está sempre em primeiro plano, em função das
exigências mesmas do momento histórico que o Brasil então atravessava
(Almeida, 1999: 55).
17Na
célebre polêmica com Joaquim Nabuco, Alencar defendeu sua posição
literária e política contra o cosmopolitismo universalista do jurista de
formação francesa: “Que idéia faz este senhor de literatura, e sobretudo de literatura nacional! Acaso
está ele convencido de que a arte e a poesia podem existir em um estado
de completa abstração da sociedade em cujo seio se formam?”
(Alencar, 1965: 121). A literatura deveria ser pensada não apenas como
parte constituinte da sociedade nacional, mas também como meio de
retratar suas peculiaridades, dando concretude (ainda que literária) a
seus símbolos e anseios. O credo poético de Alencar, presidente da
província do Ceará, deputado, senador, ministro da Justiça, se traduz em
uma obra de forte teor nacionalista, que inclusive redefine o próprio
sentido do regionalismo: “O regionalismo romântico é menos
‘regionalista’ do que aparenta. A intenção do autor não é, como nos
ficcionistas da fase realista, ressaltar os elementos diferenciais que
fazem desta ou daquela região uma unidade cultural peculiar dentro do
país, mas, antes, através do engrandecimento de um tipo regional, erigir
um mito de significado nacional” (Almeida, 1999: 61). Em um
contexto de possível desagregação do império, a unidade nacional
retratada literariamente constituía um dos elementos da “imaginação”
necessária ao desenvolvimento e propagação, nas elites e camadas médias,
do sentimento de nacionalidade.
18Em Alencar, assistimos ao “advento do herói”
(Candido, 1981 vol. II: 223) moderno na literatura brasileira. Os
heróis dos romances sertanistas de Alencar, descritos em sua relação com
o “solo da pátria”, não são, entretanto, a imagem de um tipo abstrato
ou meras construções alegóricas, mas caracterizações idealizadas das
melhores qualidades do brasileiro que vive no interior do país, forjado
em seu caráter pela natureza americana. A intenção nacionalista da
criação desses heróis fica evidente na discussão de Alencar com autores
que não valorizavam, em suas obras literárias de cunho histórico, o
componente didático inerente à representação das poucas figuras
fundamentais da nação: “Responda-me agora, meu amigo, se eu tinha ou
não razão em dizer-lhe que era impróprio de um poeta arrancar do pó e
das ruínas do passado esses bustos nacionais para amesquinhá-los e
fazê-los descer do pedestal que a história os colocou” (Alencar,
1959 vol. IV: 895). A tarefa da literatura, no processo de formação do
país, era justamente a de aliar-se à história na exaltação das
qualidades do povo brasileiro, reunidas não apenas em seus líderes e
personagens mais importantes, mas também nos heróis anônimos que os
romances idealizavam.
19Mas a relação do herói com as diversas paisagens da pátria ia além da mera descrição. Em O sertanejo,
por exemplo, não é apenas o vaqueiro o personagem principal, mas o
próprio sertão. Não como mera paisagem, mas como imagem mítica do solo
nacional americano, ao mesmo tempo rico e ameaçador, cheio de segredos e
encantos, em tudo diferente ao já completamente conhecido e dominado
território europeu. A inspiração necessária à criação de uma literatura
nacional deveria se espelhar na riqueza do território, justamente para
representá-la artisticamente, e assim cumprir seu papel de “formadora”
ao insuflar o sentimento de orgulho nacional em cada um leitores: “Brasil,
minha pátria, por que com tantas riquezas que possuis em teu seio, não
dás ao gênio de um dos teus filhos todo reflexo de tua luz e de tua
beleza? Por que não lhes dás as cores de tua palheta, a forma graciosa
de tuas flores, a harmonia das auras da tarde? Por que não arrancas das asas de um dos teus pássaros mais garridos a pena do poeta que deve cantar-te?”
(Alencar, 1959 vol. IV: 865). A base da imaginação necessária à união
da “comunidade imaginária” (Anderson, 1989) é constituída pelas
características, reais e virtuais, do território.
20Essa
valorização da especificidade da paisagem brasileira não tinha apenas
uma função documental (como ocorria nos relatos dos cientistas viajantes
do início do século XIX), mas era parte fundamental do esforço de dotar
a jovem nação de uma épica própria. Nesse sentido, a natureza
brasileira precisava ser valorizada, para os próprios brasileiros,
diante da idealização romântica da natureza européia, presente nos
livros mais lidos da época. Alencar seria assim o precursor do
tropicalismo, tal como este era entendido por Gilberto Freyre:
O
que lhe repugnava era a idéia de alguns sofisticados de não ser a
natureza brasileira – ou a natureza tropical do Brasil – ‘bastante rica
para criar ela só uma epopéia’. Alencar – se bem o interpreto –
enxergava nessa atitude simples incapacidade de verem alguns europeus ou
sub-europeus valores épicos naqueles elementos de natureza, de vida e
de cultura não consagrados ou aristocratizados pelas tradições
literárias da Europa. Entretanto, Bernardim de Saint-Pierre soubera ‘dar
poesia a uma coisa que nós consideramos como tão vulgar’: a bananeira.
Eram tropicalíssimas bananeiras que cresciam perto da choupana de Paulo e
Virgínia ‘abrindo seus leques verdes às auras da tarde’. No Brasil,
como as bananeiras crescessem ‘ordinariamente entre montões de cisco, em
qualquer quintal da cidade’, ninguém descobria nelas – reparava Alencar
– encanto algum, mas somente aspectos ridículos (Freyre, 1967 vol. V:
xxv).
21A proximidade, justamente, era a causa da ambígua distância que o romance regionalista de Alencar pretendia superar. Ao
público leitor, em sua enorme maioria urbano, eram apresentadas as
características da natureza recém conquistada pelos desbravadores do
sertão. Assim, o próprio sentido da glorificação romântica da natureza
sucumbe aos desígnios do nacionalismo engajado. A natureza, ao se opor à
cultura da cidade, opõe também uma dimensão autêntica do “ser
brasileiro” à afetação cosmopolita da Corte.
22Em O gaúcho,
“romance histórico brasileiro” escrito em 1870 que tem como pano de
fundo a Revolução Farroupilha, o impulso nacionalista pode até mesmo
superar as dificuldades enfrentadas pelo autor para a descrição da
paisagem dos pampas, onde se passa o romance. A afirmação da
especificidade regional é descrita no contexto mais amplo da
constituição de uma “família”, que no decorrer da revolução terá de
fazer valer seus laços mais profundos de parentesco com a grande nação
brasileira:
Cada região da terra tem uma alma sua, raio criador que lhes imprime o cunho da originalidade. A
natureza infiltra em todos os seres que ela gera e nutre aquela seiva
própria; e forma assim uma família na grande sociedade universal
(Alencar, 1967 vol. IV: 5).
23Mas
a unidade política, embora baseada na comunhão do território, precisa
ser respeitada e cultivada pelo poder central do império. O
confronto das elites regionais com a frágil regência da Corte gera
tensões capazes de ameaçar a integridade nacional. Nesses casos, o abuso
é sempre, no entender de Alencar, da arrogância da Corte, incapaz de
sentir e ouvir os anseios das províncias. Em O gaúcho, a ameaça de separação é enunciada a partir do exemplo da independência uruguaia:
– Já se esqueceu do levante de Montevidéu?
–
Não vejo crime em libertar um homem sua pátria, acudiu o Lucas
Fernandes. Fez ele muito bem, e nós cá não estamos muito longe de seguir
o mesmo caminho. As coisas vão mal: o governo do Rio não dá importância
aos homens da província. Já não demitiram o coronel porque têm medo
(id., ibid.: 12).
24Como
no romance histórico europeu, a unidade nacional também se consolida
literariamente na reconstituição de um conflito de fronteiras. Mas no caso de O gaúcho,
a referência ao “outro” serve também como espelho para a crítica das
relações entre o poder central e as províncias. A “unidade nacional”
reconstruída no romance deve ser também conseqüência do reconhecimento,
por parte do poder central, das diversidades e autonomias inerentes à
integridade política do império. Reconstruindo o encontro entre Bento
Gonçalves e o líder revolucionário uruguaio Juan Lavalleja, o romance de
Alencar mostra como este incita o líder gaúcho à separação, algo que de
fato aconteceu nos anos seguintes à independência da província
cisplatina:
Caramba!
No momento em que Bento Gonçalves quiser, o Rio Grande do Sul será um
Estado independente como a Banda Oriental. Está bem claro agora? Para
arrancar minha pátria ao jugo do império bastaram trinta e três heróis;
bem sei que um deles era d. Juan Lavalleja. O senhor que tem por si toda
a campanha, deixa-se aqui ficar repousado, a chupitar seu mate como uma
velha; e pica-se porque lhe digo que não é um homem. Mas decerto que
não o é. Minha mulher, Dona Ana Monteroso, teria vergonha de praticar
semelhante fraqueza; ainda que é mulher de quem é, todavia... (id.,
ibid.: 15).
25Ao
que Bento Gonçalves, surpreendentemente afável depois de tão duras
críticas, retruca com segurança: “Sou brasileiro; nasci cidadão do
império; e assim hei de viver enquanto houver liberdade em meu país;
porque para mim a liberdade não é uma burla para enganar o povo, mas o
primeiro bem, que não se perde sem desonra e não se tira sem traição. Quando
eu me convencer que, para ser livre, é preciso deixar de ser
imperialista, não careço que ninguém me lembre o que me cabe fazer”
(id., ibid.: 15).Mas os conflitos eclodem, com a demissão de Bento
Gonçalves, comentada da seguinte maneira pelo narrador, que olha os
fatos da perspectiva histórica de quem escreve três décadas após o
confronto: “Não foi unicamente um crime político, um atentado à
integridade do império, foi mais do que isso: foi um grande erro que
felizmente não se consumou. A separação do Rio Grande seria um
sacrifício de sua nacionalidade que brevemente seria absorvida, senão
aniquilada pela anarquia das repúblicas platinas. Não se decepa um
membro para dar-lhe força” (id., ibid.: 76). O corpo da pátria deveria
manter sua integridade, mas para isso a força e importância de seus
membros deveria ser valorizada, e não menosprezada.
26O
tema fundamental da relação entre o poder da Corte e as províncias está
presente também nos escritos políticos de Alencar, principalmente nas
Cartas de Erasmo e nas duas obras em que condensou sua atividade
parlamentar: O sistema representativo, de 1868; e a reprodução de um
debate sobre a reforma eleitoral, em 1874. As duras críticas à
burocracia da Corte e à ânsia centralizadora de D. Pedro II estão
baseadas na defesa de um sistema federativo representativo que garanta a
voz das elites regionais (das quais o cearense Alencar era um evidente
representante): “Residindo a soberania solidariamente em toda a nação e
formando-se da consubstanciação de todas as opiniões que agitam o povo, é
evidente que um país só estará representado quando seus elementos
integrantes o estiverem na justa proporção das forças e intensidade de
cada um. É essencial à legitimidade dessa instituição que ela concentre
todo o país no parlamento, sem exclusão de uma fração qualquer da
opinião pública” (Alencar, 1991: 36). A “liberdade”, expressa pelos
personagens do romance de Alencar, é a condição para a unidade.
27Mas
essa luta pela liberdade também está incrustrada na memória territorial
da região de fronteira que é o Rio Grande do Sul: “Cruzando a coxilha
grande, que atravessa a província de São Pedro, se alonga a serra do
mar, como a bossa granítica daquele espinhaço. Ao norte ficam as altas
regiões, as chapadas da montanha; ao sul dilata-se a imensa campanha que
vai morrer nas margens do Uruguai e do Paraná. Estas vastas Campinas,
que se desdobram pelas abas da coxilha grande, são como as páginas de um
capítulo da história do Brasil. O dorso da coxilha é o lombo do livro;
as folhas espalmam-se de um e outro lado. Aí escreveram as armas
brasileiras muita cousa admirável: grandes feitos combates gloriosos,
brilhantes painéis em rude tela” (Alencar, 1967: 81). A paisagem como
símbolo da identidade nacional conquistada de maneira heróica, a
delimitação de “lugares simbólicos” que possam dar concretude ao
sentimento de pertencimento à nação, estes pontos clássicos do debate
sobre a questão nacional estão aqui presentes no mais alto grau, pois a
imagem da natureza como um livro no qual a nação escreve sua história é
justamente representada em uma obra fundamental do esforço de
consolidação de uma literatura capaz de incorporar as “cores da pátria”.
Descrever a natureza e a paisagem é ao mesmo tempo unir os habitantes
do território por uma história comum, que no caso do Brasil tem de ser
lembrada e construída pelo esforço engajado da geração romântica.
28Por
isso a descrição das paisagens e heróis regionais invoca a unidade
construída em oposição ao europeu e aos povos de língua espanhola. Na
comparação que se pode fazer entre os dois vaqueiros retratados por
Alencar, o do nordeste e o do sul, fica claro que ambos são o resultado
desse contato com o solo nativo da pátria, que consolida tipos nacionais
distintos, mas unidos pelo sentimento do “pertencimento” a uma mesma
nação em formação. O crítico Mário Casasanta, em um ensaio
sugestivamente intitulado Alencar – um formador de brasileiros comenta o
sentido nacional presente no escritor:
Além
de dar-nos a conhecer a sua gente brava, esperta, desembaraçada,
desassombrada e atuante, José de Alencar comunicou-nos a paixão de
nossas coisas e de nossa gente. É um autor propositadamente nacional, e, por isso mesmo, uma força nacionalizadora (Casasanta, 1967: xi).
29Mas
como essa força nacionalizadora baseava-se fundamentalmente na criação
de uma imagem literária da unidade histórica e geográfica nacional, a
paisagem em Alencar está submetida à uma composição de caráter simbólico
e épico. Pouco a pouco, entretanto, o espírito romântico vai
sendo criticado pela nova geração. Entre esses dois mundos está o juiz
Bernardo Guimarães, que aproveitou sua nomeação para cidades no sul de
Goiás e no interior de Minas Gerais para descrever literariamente, pela
primeira vez, o costume e as terras desta região do Brasil. Nos romances
O Ermitão do Muquém, O Garimpeiro, O Índio Afonso e A filha do fazendeiro
o impulso nacionalista romântico encontra o espírito determinista do
naturalismo recém importado. O resultado é uma atenção à paisagem que
supera a mera descrição e caminha no sentido de uma interpretação das
particularidades regionais, que prosseguirá no regionalismo (em sentido
preciso) de Franklin Távora.
30O
sentido do regionalismo desses romancistas ultrapassa o campo puramente
literário. Mais uma vez é preciso citar as peculiaridades históricas e
geográficas da formação econômica e territorial do Brasil para entender
as disparidades sociais e políticas configuradas na literatura
regionalista. Antonio Cândido, ao tratar do assunto, lembra que “A
unidade política, preservada às vezes por circunstâncias quase
miraculosas, pode fazer esquecer a diversidade que presidiu à formação e
desenvolvimento de nossa cultura. A colonização se processou
em núcleos separados, praticamente isolados entre si: o desenvolvimento
econômico e a evolução social foram, assim, bastante heterogêneos,
consideradas as diferentes regiões” (Candido, 1981 vol. II: 298).
31Com
os escritores nordestinos agrupados em torno de Franklin Távora surge
uma nova dinâmica no interior da configuração simbólica do território.
Se em Alencar o objetivo era frisar a unidade nacional em meio à
diversidade de terras e gentes, em Távora a perda relativa da
importância política das elites nordestinas encontra expressão na
exaltação da particularidade regional, no culto à cana e na lembrança do
passado heróico, onde a nacionalidade incipiente se debateu contra os
invasores franceses e holandeses. O romantismo cede à observação
cientificista, e Távora condena Alencar por não ter observado in loco os cenários de seus romances: “Por que não foi ao Rio Grande do Sul, antes de haver escrito o seu Gaúcho?”. O objetivo de Távora é a “exatidão daguerreotípica”, o instantâneo da paisagem a ser conhecida e retratada literariamente: “A natureza em primeiro lugar e depois complexa e completa observação – eis os dois elementos , as duas possantes asas do gênio”.
A obra de Távora já é um reflexo da introdução de um novo “enxame de
idéias” (nas palavras de Machado de Assis), o Naturalismo que aqui chega
junto com o Realismo (embora na França esses dois movimentos tenham
ocorrido em momentos distintos).
32Mas
além desses “influxos externos”, a própria evolução da sociedade e do
Estado brasileiros explicam esse novo sentido do regionalismo. A partir
da década de 1870, o Estado nacional consolidado tem de enfrentar
novamente as pressões regionais, que atuam não mais no sentido de
colocar em risco uma unidade nacional duramente conquistada (política e
simbolicamente), mas de ressaltar, na descrição e mesmo exaltação das
diferenças culturais e geográficas, a luta pelo poder entre as elites
regionais.
33O
regionalismo de Távora pode ser entendido justamente como uma resposta à
perda de importância relativa de Pernambuco no cenário político e
econômico nacional. A unidade da nação estava garantida, mas ao custo de
uma centralização forçada, tanto política quanto economicamente, na
Corte do Rio de Janeiro. Diante desse panorama, os romances históricos
de Távora glorificavam a importância de Pernambuco na formação da
unidade nacional, ao mesmo tempo em que suas pesquisas também geravam
uma reavaliação do papel atribuído à província pelos historiadores
“oficiais” do império.
34Em
1880, Franklin Távora se candidata a sócio do Instituto Histórico e
Geográfico. Apesar de todo o seu empenho científico, a obra histórica de
Távora é avaliada negativamente em um parecer da comissão de história
do Instituto (IHGB, 1880: 402-404), que questiona basicamente dois
pontos caros aos historiadores da época. Em primeiro lugar o fato de o
estilo de Távora, mesmo em seus trabalhos científicos, se assemelhar ao
de um “narrador”; em segundo lugar, por suas contundentes críticas a
Varnhagen, que havia sido uma figura de importância crucial para a
consolidação do Instituto. Em seu estudo sobre Távora, Cláudio Aguiar
argumenta que a crítica a Varnhagen fazia parte justamente do esforço de
valorização da revolução de 1817, duramente criticada,
restrospectivamente, pelos historiadores do império (Aguiar, 1997).
35Apesar
das pesadas ressalvas, a candidatura de Távora é aprovada, não tanto
pelo ensaio histórico, mas pelo conjunto da obra literária do autor,
considerada uma contribuição importante para a divulgação do “espírito
de nacionalidade”, uma vez que “o romance é uma forma mais agradável de transmitir conhecimentos às pessoas menos lidas”
(IHGB, 1880: 404). O reconhecimento de que a literatura era uma força
poderosa, mesmo em um país “pouco lido”, para a consolidação do
sentimento nacional, recupera, em pleno naturalismo, o sentido original
do romance histórico de feição romântica, que Moretti analisa como forma
maior da “invenção” e da “imaginação” do Estado nacional.
36Em
1882 morrem dois membros ilustres do instituto, que haviam contribuído,
com suas obras literárias, para a conquista simbólica do território
nacional: Gonçalves de Magalhães e Joaquim Manuel de Macedo. Não por
acaso, o escolhido para substituir Macedo no cargo de orador oficial do
instituto é outro literato: o próprio Franklin Távora. Duas gerações e
duas estéticas literárias diferentes se encontram na continuidade do
esforço de construção da unidade simbólica da nação sob o império, mas o
universalismo romântico cedia ao regionalismo como motor da
constituição geográfica da literatura brasileira: “As letras têm,
como a política, um certo caráter geográfico; mais no Norte do que no
Sul abundam os elementos para a formação de uma literatura brasileira,
filha da terra.(...) Esta imensa campina, que se dilata por horizontes
infindos, é o sertão de minha terra natal (...) De dia em dia aquelas
remotas regiões vão perdendo a primitiva rudeza, que tamanho encanto
lhes infundia” (Távora, 1973: 27). Ao contrário do que ocorria em
Alencar e nos românticos, a perda desse encanto natural não era
lamentada, porque a colonização e o progresso atribuiria um novo sentido
ao território, garantindo assim um novo sentido para a consolidação do
Estado e da nação brasileiras.
37No prefácio que escreveu ao romance Sonhos D’Ouro,
de 1872, José de Alencar descreve as três fases da formação da
literatura nacional, considerada, como vimos na epígrafe retirada desse
mesmo texto, a “alma da pátria”. Também nessa reconstituição ao mesmo
tempo histórica, programática e pessoal encontramos em várias passagens a
imagem do território como fundamento do princípio de consolidação do
sentimento da nação. A clareza com que está questão é explicitada
justifica a longa transcrição de um destes trechos:
- 3 Alencar refere-se a Alexandre Herculano.
O período orgânico deste literatura conta já com três fases. A
primitiva, que se pode chamar aborígene, são as lendas e mitos da terra
selvagem e conquistada; são as tradições que embalaram a infância do
povo e ele escutava como o filho a quem a mão acalenta no berço com as
canções da pátria, que abandonou. “Iracema” pertence a essa literatura
primitiva, cheia de santidade e enlevo, para aqueles que veneram na
terra da pátria a mãe fecunda – alma mater, e não
enxergam nela apenas o chão onde pisam. O segundo período é histórico:
representa o consórcio do povo invasor com a terra americana, que dele
receberia a cultura, e lhe retribuía nos eflúvios de sua natureza virgem
e nas reverberações de um solo esplêndido. Ao aconchego desta pujante
criação, a tempera se apura, toma alas a fantasia, a linguagem se
impregna de módulos mais suaves; formam-se outros costumes, e uma
existência nova, pautada por diverso clima, vai surgindo. É a gestação
lenta do povo americano, que devia sair da estirpe lusa, para continuar
no novo mundo as gloriosas tradições de seu progenitor. Esse período
colonial terminou com a independência. A ele pertencem o “Guarani” e as
“Minas de Prata”. Há aí muita e boa messe a
colher para o nosso romance histórico; mas não exótico e raquítico como
se propôs a ensiná-lo, a nós, beócios, um escritor português.3
A terceira fase, a infância de nossa literatura, começada com a
independência política, ainda não terminou; espera escritores que lhe
dêem os últimos traços e formem o gosto nacional, fazendo calar as
pretensões hoje tão acesas, de nos recolonizarem pela alma e pelo
coração, já que não o podem pelo braço. (...)
Onde não se propaga com rapidez a luz da civilização, que de repente
cambia a cor local, encontra-se ainda em sua pureza original, sem
mescla, esse viver singelo de nossos pais, tradições, costumes e
linguagem, com um sinete todo brasileiro. Há, não somente no país, como
nas grandes cidades, até mesmo na Corte, desses recantos, que guardam
intacto, ou quase, o passado. “O Tronco do Ipê”, “O Til” e “O Gaúcho”,
vieram dali, embora, no primeiro, se note já, devido à proximidade da
Corte e à data mais recente, a influência da nova cidade, que de dia em
dia se modifica e se repassa do espírito forasteiro (Alencar, 1967b:
165-166).
38Távora
e a nova geração realista fazem parte de uma nova fase da literatura
brasileira, diretamente ligada a um momento em que o Estado já está
consolidado e que assiste ao surgimento de novos focos de tensão,
republicanos e autonomistas, na complicada teia da unidade nacional. Esta
nova fase pode ser entendida, entretanto, como o resultado de uma
continuidade de formas e problemas característicos da consolidação do
sistema literário nacional pela geração anterior. A memória territorial,
submetida às novas narrativas histórico-nacionais, incorpora assim uma
nova camada de sentidos.