1A
análise da concepção de Alberto Torres (1865-1917) em torno das noções
de raça e território no Brasil consiste no objetivo central do presente
artigo. Para tanto, partimos da coletânea de textos publicados em 1914,
intitulados A Organização Nacional e O Problema Nacional Brasileiro, nas edições de 1978 para a primeira obra e a de 1938 para a segunda.
2Os
eixos temáticos que nos orientaram na leitura dos escritos de Alberto
Torres estão ligados, por um lado, ao conteúdo geográfico das noções de
território e de determinação das raças na construção da identidade
nacional e, por outro, às formas e funções atribuídas ao Estado na
construção da chamada “unidade nacional”. Os dois eixos convergem para o
centro das preocupações do autor: a “organização nacional”.
3A
pertinência do tema, em nosso entendimento, está em sua vinculação com
debate em torno das questões étnicas e raciais no Brasil, mas,
sobretudo, da especificidade histórica do elo que liga a formação social
capitalista aos temas relacionados à raça e ao território nacional. A
expressão ideológica desse elo histórico adquire formas bastante
peculiares na ciência, na literatura, nas organizações políticas e
institucionais do Estado e nos discursos nacionalistas e autoritários do
final no século XIX e primeiras décadas do século XX, constituindo-se,
nesse sentido, em um rico manancial de fontes e material de pesquisa
para a história do pensamento social brasileiro e das ideologias
geográficas na fase de transição do capitalismo periférico.
4A
particularidade do pensamento do nosso autor é de natureza controversa e
paradoxal, pois apresenta posicionamentos ideológicos que são, na
maioria das vezes, antagônicos aos próprios argumentos utilizados para
defendê-los. Embora Torres tenha sido uma voz dissonante em sua época em
relação às teorias racialistas e aos modelos de políticas eugenistas
importados da Europa ocidental e dos Estados Unidos, o seu pensamento
caracteriza-se pela tentativa de unificação de certo ideário republicano
com os princípios liberais herdados da chamada Primeira República,
momento em que as questões ligadas ao “trabalho livre”, à raça e à
identidade nacional encontravam-se no centro dos debates políticos sobre
o desenvolvimento econômico do país.
5O
debate que envolveu a relação entre raça, território e ciência para fins
exclusivos de dominação, expropriação, colonização, exploração da força
de trabalho e recursos naturais constitui a expressão ideológica da
trajetória expansionista do imperialismo europeu no final do século XIX,
como tentativa de justificar o “fardo do homem branco” na “guerra
justa” da civilização contra a barbárie. No Brasil, esse debate possui a
sua origem no final do século XVIII, quando “se passa da projeção da
inocência à inata maldade do selvagem” (Schwarcz, 1993: 61); a polêmica
ganhou relevo e novos contornos entre os monarquistas e republicanos no
final do século XIX, para, em seguida, ser incorporada aos projetos
políticos de nação em diversos segmentos do nacionalismo totalitário
surgido nas primeiras décadas do século XX.
6Autores
como Cuvier, Galton, Gobineau, Taine, Ratzel, entre outros, exerceram
decisivas influências sobre as concepções que se formaram no Brasil
acerca da mistura e da degeneração das raças. A partir de uma concepção poligenista
sobre a origem do homem, o grande problema para esses autores era em
relação à construção de uma teoria científica que pudesse produzir
provas suficientemente convincentes a respeito da superioridade da raça
branca (europeia) sobre as demais raças negras e mestiças. Colocava-se
como algo crucial o estabelecimento do conceito de diferença e,
ao mesmo tempo, de uma gradiente de evolução humana e de hierarquia de
ralações entre o mundo europeu, civilizado, e os povos periféricos,
colonizados, exóticos, selvagens, bárbaros ou, como relata Ernest Renan
no final do século XIX, “incivilizáveis”. De acordo com Ferro (1996:
40), “um conceito cultural, a civilização, e um sistema de valores
tinham função econômica e política precisa. Não só aqueles países deviam
assegurar aos europeus os direitos que definem a civilização, (...) mas
a proteção desses direitos tornava-se a razão de ser, moral,
entenda-se, dos conquistadores”.
7No
Brasil, essas teorias se difundiram e ganharam espaço nos museus,
institutos históricos e geográficos, faculdades de medicina, na
imprensa, na literatura e entre grupos políticos ligados a segmentos
monarquistas e republicanos. Entre os que se destacaram na defesa de uma
política racial no Brasil como forma de superação do atraso nacional,
pode-se citar os médicos Renato Kehl, Miguel Couto, Nina Rodrigues,
Azevedo Sodré e João Batista Lacerda, do Museu Nacional.
8O
movimento contrário às teorias eugenistas difundidas pelos museus
etnográficos, arquivos históricos, em congressos internacionais etc. não
obteve o mesmo sucesso como as teorias de diferenciação racial,
limitando-se, em muitos casos, a denúncias de indignação frente às
desigualdades sociais entre brancos e negros, sobre a ausência do Estado
na criação, manutenção e garantia de direitos civis para índios, negros
e asiáticos. No 1º Congresso Brasileiro de Eugenia (1929), por exemplo,
o antropólogo Edgar Roquete-Pinto apresentou forte oposição em relação
às teorias racistas e ao projeto eugenista de controle e redução do
cruzamento de raças.
9A
outra figura de destaque na oposição às teorias racistas foi o jurista
fluminense e Presidente do Rio de Janeiro entre 1896-1900, Alberto de
Seixas Martins Torres. A partir de Darwin, Spencer, Ratzel e outros, o
autor edifica uma verdadeira “babel científica” para apresentar e
defender o seu ponto de vista em relação à evolução das raças e o seu
papel na definição do caráter nacional. O segundo capítulo de A Organização Nacional
tem início com uma clara oposição aos modelos europeus que estabeleciam
relações diretas entre as características físicas do território e a
evolução das raças. Diz o autor: “um olhar sobre a carta do Brasil” nos
leva a perguntar se um país
(...) tão extenso e variado
território possui as condições físicas necessárias ao habitat de um
povo, unido pelo laço político da nacionalidade. A resposta é, à
primeira vista, negativa. Se as ideias de pátria e de nação obedecessem
ao conceito abstrato de certas filosofias, que prefixam, para essas
entidades, o estalão de um território e o de uma população, com
caracteres definidos e precisos, o Brasil jamais poderia ser tido por
uma pátria ou por uma nacionalidade. (Torres, 1978: 66)
10Para
Torres, os filósofos do Iluminismo que teorizaram acerca da unidade
territorial ligada à unidade política e social do monarca, da nação e do
Estado são, todos eles, personagens abstratos da burocracia e do poder. A “evolução humana”, afirma o autor, desmente esse quadro. No caso do Brasil:
(...) pode aplicar, prima facie,
o nome clássico de nação, pela predominância de um elemento étnico,
pela pronta fusão deste com os elementos indígenas e as minorias de
outras origens, pela unidade da religião e da língua, pela uniformidade
de costumes, pela tradição patriótica e pelo laço político. (Torres,
1978: 66-67)
11Esses
laços, escreve o autor em sua crítica à concepção de “branqueamento das
raças” mediante a imigração europeia, “afrouxam-se e se desatam à
medida que avança a colonização” (1978: 67). Esse processo difuso de
formação “étnico-cultural” produz “tipos regionais” distintos, gerando
dificuldades à coesão e a consolidação plena dos “interesses nacionais”.
Os “tipos regionais” são as metamorfoses resultantes das relações entre
o homem e o meio físico e que evoluem gradativa e espontaneamente,
traduzindo-se em especificidades geográficas produzidas pelas relações
entre a população e o território.
A imaginação, o calor, a
emotividade dos homens do Norte; a ponderação, o espírito mais positivo,
dos homens do Centro; a tendência prática, mas aventurosa, dos
paulistas; o cauto e prevenido conservantismo, de fluminenses e
mineiros; o arrebatamento e espírito combativo dos gaúchos; a
resistência e ambição tenaz do cearense, o auvergnat
brasileiro; traços de inclinação literária, na cultura de certas
populações; de pendor militar em outras – são agentes de diferenciação
que se irão acentuando gradualmente. (Torres,1978: 67)
12Na
região Norte, o clima atua na determinação da “emotividade dos homens”
em detrimento da razão, da “inclinação literária” e do “espírito
combativo” (pois esses se encontravam, ainda, em estágio inicial da
evolução social); para os fluminenses e mineiros, a relação entre homem e
meio apresenta-se mais generosa, menos hostil e diversa do determinismo
climático do Norte, pois os predestinaram a história, a civilização, ao
poder econômico e administrativo do país.
13Para
Torres, os “tipos regionais” constituíam-se em obstáculos à unidade
identitária nacional, mas, ao mesmo tempo, apresentavam-se como condição
essencial da evolução “gradativa” e diferenciada das etnias raciais. De
acordo com o autor,
(...) sabemos que a sua
adaptação ao meio produz uma vitalidade e uma média de longevidade e de
fecundidade, melhores que as de raças tidas por superiores. Podemos
afirmar que o negro puro e índio puro são suscetíveis de se elevarem á
mais alta cultura (...) Quanto ao mulato, o mesmo processo nos levará a
conclusão ainda mais segura: os tipos de mestiços de alta inteligência e
elevado caráter moral são comuns no Brasil (1938: 148-149).
14Embora
se deva considerar as determinações sociais do contexto histórico em
que se situa o nosso autor, nota-se, contudo, estreito alinhamentde seu
discurso étnico racialista com o evolucionismo e com o determinismo
geográfico e, ao mesmo tempo, com os princípios da poligenia. Para
Torres (1938: 145), a “adaptação física e a social são o modelador
étnico do homem”. Desse modo, o “desenvolvimento espontâneo do homem
brasileiro” deveria esforçar-se em “manter puros os tipos étnicos
aclimados, para que estes, evoluindo naturalmente, manifestem e
desenvolvam os caracteres próprios” (1938: 166).
15O
“regionalismo étnico-moral” de Torres remete à noção de regionalização
do território brasileiro em que as condições naturais favoráveis à
“adaptação física e social” estão entre o Trópico de Capricórnio e o
Paralelo 16°, em nítido contraste com as regiões Norte e Nordeste e,
paralelamente, com a própria configuração da rede hidrográfica que se
encontra em “espontânea sintonia” com o Centro-Sul do país. Embora o
autor reconhecesse a profunda importância do rio São Francisco na
integração regional do Brasil, acreditava que o fluxo de riqueza e
migração fluía em sentido contrário ao das correntes do “velho Chico”.
16A
função do território na evolução e no ordenamento das raças aparece para
Torres não apenas em sua versão determinista, mas também no processo de
adaptação no qual poderá surgir a possibilidade do salto
civilizatório. Nas palavras do autor: “as nossas terras oferecem regiões
de adaptação para todas as raças”; a “concorrência pacífica” entre as
raças leva a gradientes diversos de adaptação ao meio, desse modo, diz o
autor, “deixemos que a seleção faça a sua obra, dando a cada um seu
lugar próprio na trama complexa da atividade social” (Torres, 1938:
154-155).
17A
“concorrência pacífica” entre as raças e a “seleção” natural conformam
os eixos da concepção de Torres sobre o quadro étnico e racial do país. A
posição assumida parece contrariar a visão dominante em sua época a
respeito do “aperfeiçoamento e melhoramento” das raças através da
imigração europeia. A sua crítica dirigi-se, sobretudo, aos defensores
da chamada “formação de raças nacionais”; em posição contrária às
políticas eugenistas, Torres argumenta que:
(...) pretende-se formar, em
nossa época, raças nacionais nos países novos, é verdadeira utopia (...)
o pleno conhecimento do globo, em sua geografia física, política e
econômica (...) avolumam migrações individuais e coletivas (...) essas
migrações continuarão a ser intensas e repetidas, de forma a impedir a
formação e persistência de tipos étnicos. (1978, p. 115)
18A
determinação do meio sobre o homem está para Torres assim como a
determinação moral e intelectual está para os “tipos regionais”, isto é,
“dando a cada um seu lugar próprio na trama complexa da atividade
social”. Segundo o autor, “após estudos mais sérios, sobre os problemas
da formação e do desenvolvimento das populações”, passou a entender com a
lei de Malthus “as duas idéias capitais da formação e do
desenvolvimento das populações, que devem crescer paralelamente ao
progresso dos meios de obter a nutrição do seio da terra,
conservando-se-lhe a fertilidade, e a salvo dos abalos perturbadores das
ondas migratórias” (1978: 36).
19No
alto do assumido “conservantismo fluminense”, os conflitos sociais
produzidos pelas formas de desenvolvimento do capitalismo brasileiro na
passagem do século XIX para o século XX, as desigualdades regionais, a
consolidação da propriedade privada, da concentração de terras, das
práticas econômicas do imperialismo e da formação de um Estado nacional
demiurgo que se apresentava como a razão universal dos interesses privados
da classe dominante adquire, na versão de Torres, um caráter
nacionalista e puramente panfletário. A adesão tardia ao malthusianismo
possui como pano de fundo, como se observa em diferentes momentos de
suas obras, uma preocupação ecológica em relação às formas de expansão
da fronteira agrícola no interior do Brasil. Para Torres:
(...) o Brasil é, ainda, (...)
um repositório e uma reserva de riquezas; e a humanidade, crescendo
desproporcionalmente á sua produção, e, principalmente, ao seu sistema
de distribuição econômica, está pedindo, (...) lições, e escola, de
produtividade econômica, ao contrario das de esgotamento da natureza
(1938: 233-234).
20Embora Torres tenha permanecido preso aos valores conservadores de sua classe social, em breve passagem de O Problema Nacional Brasileiro
o autor parece tomar certa consciência de que as teorias racialistas
constituíam-se, na verdade, em produtos da “ciência básica do
imperialismo”. Assim, ele escreve:
(...) o imperialismo do novo
povo eleito fundado em sua definitiva e absoluta superioridade física e
mental. Aliando ao sistema das suas conclusões antropológicas a teoria
de Weissmann, funda Amonn sobre esse acervo de ideias uma ciência de
conclusões sociais práticas, em que se afirma e sustenta, além da
superioridade das aristocracias hereditárias, a força e energia
germânicas, o seu direito de submeter as raças e nacionalidades
inferiores, a necessidade de estender o poder colonial da Alemanha, de
aumentar a sua força naval, de ampliar o seu comércio e a sua
colonização nos países novos, mantendo e desenvolvendo as relações
comerciais por intermédio dos alemães estabelecidos no estrangeiro, e a
fidelidade destes à Pátria lei, aos costumes nacionais e ao Kaiser (1938: 133-134).
21A
crítica encetada pelo autor procura, através da consciência sobre o
passado colonial e de toda forma de clientelismo que se instalou no
interior da burocracia estatal, projetar o Brasil no futuro a partir de
novas bases políticas de organização nacional com um Estado forte e
centralizador. No entanto, toda força e apelo de seu discurso
esvaziava-se no interior de sua própria concepção determinista e
evolucionista da relação homem-meio. O determinismo geográfico de Torres
residia na crença de que a “vastidão” do território e sua diversidade
natural seriam capazes de estabelecer, para cada etnia, graus
diferenciados de evolução genética e moral e que pudessem garantir, ao
mesmo tempo, a adaptação física e o desenvolvimento intelectual em
posição intermediária entre os “árias do norte” e os negros e asiáticos.
22Nesse sentido, as raças:
(...) são produtos dos meios
físicos; é o meio que lhes determina os caracteres. Nenhum grupo humano
trouxe predisposição espontânea, nem adquire nenhuma superioridade ou
inferioridade natural, senão a que resulta da modelação do indivíduo e
das gerações pelo ambiente em que vem sofrendo o processo da formação
orgânica e mental. (Torres, 1978: 116)
23Vale
salientar, neste aspecto, a estreita proximidade da concepção de Torres
com a defendida por Ratzel no capítulo “O Homem e o Ambiente” (Antropogeografia,
1882) acerca das relações entre meio e raça. Para Ratzel, são quatro as
formas de influências da natureza sobre a constituição física e moral
do homem: a primeira atuava de forma duradoura sobre a fisiologia e o
desenvolvimento psicológico; a segunda, “direciona, acelera ou
obstaculariza [sic] a expansão das massas étnicas. Esta última
determinava a direção da expansão, sua amplitude, a posição geográfica,
os limites”; a terceira forma estava ligada às “condições geográficas”
que agiam sobre as forças de isolamento, garantindo a conservação das
características essenciais do povo, ou sobre as forças de dispersão,
facilitando a miscigenação e, portanto, a perda das características
próprias da “massa étnica”; a quarta influência insidia “sobre a
constituição social de cada povo que se exerce ao oferecer-lhe maior ou
menor riqueza de dotes naturais” (Ratzel, 1990: 59).
24A
posição de Torres em relação ao isolamento das raças como forma de
manutenção das características genéticas e de sua evolução diferencial
na “trama social” e à determinação das condições geográficas na
constituição da “unidade e caráter nacionais” reafirma a filiação do
autor ao determinismo geográfico ratzeliano e ao evolucionismo
darwiniano de H. Spencer como recurso de fundamentação científica sobre a
constituição e o “destino” das raças no Brasil.
25De acordo com Moraes (1991: 170-171),
(...) vale lembrar a difusão e a
rápida assimilação das teses do determinismo geográfico no Brasil. [A]
visão determinista reveste-se de um conteúdo progressista, pois é
levantada num contexto de críticas às teorias racistas. No geral, seu
uso atuou naquele sentido de naturalização de um ‘destino nacional’,
inscrito na conformação restrita de autores vai remeter-se diretamente a
Ratzel, defendendo que as potencialidades abertas pelo patrimônio
natural e territorial só poderiam se substantivar com o concurso de um
Estado forte (...) Enfim, foi nesse período de transição da monarquia
para a república (e do trabalho escravo para o trabalho livre) que a
visão da identidade pelo espaço parece adquirir certo relevo na
representação simbólica do Brasil (...) É um período de muitos ensaios
que tematizam a tarefa das elites – a construção do país –, questionando
bastante ‘o povo de que dispomos para realizar tal tarefa’. Observa-se
claramente nesses escritos a visão do país como um espaço a se ganhar,
sendo sua população apenas o veículo de tal ação.
26A
posição de Ratzel, entretanto, não se encontra isolada no âmbito da
Geografia. O tema sobre a constituição das raças e sua relação com o
território advém, contudo, de sua íntima ligação com a antropologia e
com a etnologia. De acordo com Capel:
(...) los contactos de la
geografia con la antropología fueron, sobre todo, estrechos desde fines
del siglo XIX hasta los años 1930, cuando la mayor parte de las obras
generales de geografia humana incluían siempre y dedicaban gran atención
a los problemas de los caracteres somáticos y las razas, las
civilizaciones y las culturas, la vivenda, las técnicas de cultivo, los
grupos rurales, los modos de vida, temas todos em los que los
antropólogos realizaban al mismo tiempo destacadas aportaciones. (1987:
26)
27Entre
os epigonais lablacheanos, J. Brunhes e P. Deffontaines são destaques
na realização de estudos sobre população, raça e território. Esse
último, juntamente com André Leroi-Gourham, dirigiu o Musée de l´Homme
de Paris no final dos anos de 1940 (Capel, 1987). A relação entre a
Geografia e a Antropologia não somente forjou os andaimes da Geografia
Humana como delineou, em grande parte, o seu temário de investigação. As
pesquisas em etnologia, etnografia, craniologia etc. forneceram as
bases empíricas para as mais diversas interpretações geográficas acerca
das relações homem-meio e, por conseguinte, entre território e raça.
28Ainda segundo Capel (1987: 27),
(...) debe valorarse aquí la
figura de Friedrich Ratzel, el padre de la geografía humana, considerado
también en las historias de la etnología como uno de los fundadores de
dicha ciencia. De el se ha valorado, sobre todo, su papel decisivo en el
triunfo de las ideas de difusión cultural, sus aportaciones al estudio
de las migraciones, su insistencia en la unidad biológica fundamental
del Homo Sapiens, y el haber realizado algo que no habían hecho antes
otros autores, como Tylor, a saber: una descripción de los pueblos vivientes agrupados geograficamente.
29Todavia,
Torres não demonstrara, ao longo de suas duas principais obras,
qualquer familiaridade com as discussões geográficas de cunho acadêmico
e, tampouco, fazia alusões à geografia francesa ou alemã. Mas o contexto
em que se inseriam as suas concepções acerca das relações entre
homem-meio remete-nos, para os fins da análise aqui empreendida, aos
vínculos entre o debate científico de cunho positivista sobre a
constituição das raças e a construção discursiva, empenhada pelo autor,
para dar fundamentação aos seus argumentos.
30Na
base de argumentação do autor, estão amalgamados tanto os preceitos
darwinistas da visão ratzeliana quanto os temores advindos das
proposições malthusianas. Na esteira dessas concepções, Torres concluiu
que:
(...) em relação ao território,
[diz o autor], o povoamento não é, por si só, nem um bem, nem um mal;
mas, no interesse do território, o objetivo político deve ser, não o do
seu aproveitamento inconsciente, o da “mise en valeur” – nome técnico da
arte, cara a banqueiros, economistas e corretores coloniais, da
extração incontinente dos produtos da terra – mas o do seu
aproveitamento útil, em beneficio geral (...). Povoar um território sem
educar o homem para a produção econômica, sem organizar o trabalho,
importa roubar á terra e causar mal ao homem, fazer das populações
infecções corroedoras da superfície do solo (1938: 231).
31Em A Organização Nacional,
o Brasil aparece como um país possuidor de imensas riquezas naturais,
extensa área agricultável e forte vocação agrícola, com um povo
inteligente e pacífico e, ao mesmo tempo, vítima involuntária de uma
tremenda desorganização política e social. Para Torres, “um país só
possui integridade e união quando cobre a sua terra, e envolve os seus
habitantes, um forte tecido de relações e de interesses práticos; se
esses interesses e essas relações não resultam espontaneamente da
natureza da terra e do caráter do povo, é indispensável criá-los” (1978:
70).
32Para
o autor, a ausência do “tecido de relações e de interesses práticos”, o
afrouxamento de sua urdidura e a laminação de sua trama social
colocavam-se como resultado trágico dos rumos que o progresso e o
desenvolvimento econômico seguiam naquele momento e cujos fenômenos mais
prejudiciais à “integridade nacional” eram os processos de urbanização e
industrialização, e os de consolidação do latifúndio e da monocultura
exportadora. Nesse sentido, era “indispensável” a invenção da “natureza
da terra” e do “caráter do povo” pela autoridade política e pelo Estado a
fim de garantir a consolidação da “unidade nacional”.
33Segundo
Torres, “sociedade e território são os elementos estáticos dessa
unidade: o interesse comum, moral ou material, seu agente dinâmico,
entre os indivíduos de uma época e projetando-se para o futuro” (1978:
114). Na consolidação da “unidade nacional”, um dos elementos peculiares
destacado por Torres diz respeito à relação entre pátria e raça: “a
idéia de nacionalidade é a que se procura representar, em regra, com a palavra raça” (1978: 115).
34A
própria noção de progresso estava, para Torres, estreitamente ligada à
necessidade de interação entre o homem e a terra. O progresso deveria
vingar com:
(...) o prosseguir do homem, em busca de sua adaptação à Terra e à sociedade pari passu
com o conhecimento do meio físico e com o exercício, educado, de
hábitos refletidos, sobre os fatos da vida; e de civilização ao período
ou estado de evolução em que a adaptação do homem à Terra e à sociedade,
e da sociedade à Terra, se realizam, com aplicação da razão à
experiência – em certo grau de equilíbrio e de harmonia. A Política é o
conjunto dos meios e processos de ação, material e social, destinados a
promover o progresso e realização da civilização. (Torres, 1978: 181)
35A
concepção organicista de Torres acerca do Estado, dispondo-o como o
móvel supra-mediador das ações políticas centralizadas no âmbito da
autoridade máxima da nação, permitiu-lhe a construção de uma singular
imagem do Brasil como “celeiro agrícola do mundo”, em que a profunda
interação entre o homem e o território seria consubstanciada, em relação
a sua “organização nacional”, na promoção do progresso e na
consolidação da civilização brasileira.
36A
visão teológica de Torres sobre o poder de transformação social através
do Estado e da autoridade central constituída pelos “interesses
nacionais” foi capaz de lançá-lo para o front do debate que
envolveu a complexa relação entre a construção da identidade nacional, a
partir da ação política do Estado na organização do “tecido social”, e a
espinhosa problemática da diferenciação étnico-regional e suas
variantes raciais na relação homem-meio. Com efeito, diz o autor, “para a
nossa civilização, sob um regime político democrático, que se propõe a
realizar o governo do povo pelo povo, o dever elementar do Estado é formar o povo, começando por ser o governo do povo para o povo” (1978: 229, grifos do autor).
37Contudo,
a particularidade da concepção de Torres no contexto da primeira década
do século XX em relação ao território e às raças no Brasil consistiu na
tentativa de construção, com argumentos científicos, de uma posição
política em defesa da diferenciação das raças e não do estabelecimento
da desigualdade racial, em que seria possível definir os graus de
superioridade de uma determinada raça sobre as demais. Com efeito, a
crítica endereçada por Torres às teorias racialistas serviu-se,
“antropofagicamente”, dos próprios princípios científicos da “ciência
básica do imperialismo”. A adaptação forçada dos princípios do
determinismo a uma espécie de antropogeografia dos trópicos o
conduziu, a respeito das relações entre raça e território, para um
posicionamento ideológico em defesa da “concorrência pacífica” entre as
raças e de sua integração “equilibrada e harmoniosa”.
38A
concepção de Torres sobre raça e território exposta em suas principais
obras revela, entre outras coisas, as formas sociais que as relações de
dominação assumem na constituição da unidade aparente raça-território como expressão inversa da unidade dialética
trabalho-capital. O alinhamento da urdidura do “tecido social” como
função primordial do Estado forte e centralizador e a concorrência
pacífica entre as raças, como defendidos pelo o autor, apresenta-se como
a estrutura significativa de sua expressão discursiva sobre os
“tipos regionais” em ocultação da luta de classes. Nesse sentido,
esclarece que “o problema social não é um problema de classes, e o ponto
de vista do interesse de classe é um dos agentes perturbadores de suas
soluções, causa de seus conflitos e de suas crises” (Torres, 1978: 228).
39Alberto
Torres constrói a sua concepção na confluência de diversas correntes do
pensamento social de sua época e procura traduzi-las na forma de
argumentos científicos em defesa de um ideal político construído a
partir de uma base conciliadora que visa unificar o liberalismo
conservador – eis o pleonasmo – ao nacionalismo autoritário do Estado
republicano.
40A
crítica em relação à urbanização, à industrialização, aos impactos
ecológicos da expansão agrícola predatória, aos “abalos perturbadores
das ondas migratórias” etc. o conduz, muitas vezes, a situações bastante
paradoxais, ou seja, a de um republicano em defesa de uma ordem escravocrata,
o que é justificado pela seleção natural das raças e sua adaptação ao
meio, pois, uma ordem estabelecida por uma divisão racial do trabalho e
relações sociais de dominação direta da “autoridade máxima da nação” em
um viés populista, centralizador e autoritário.
41Os
séculos de colonização portuguesa apresentam-se em suas mais distintas
variantes de interpretação, repletas de situações e contextos sociais e
ideológicos ligados às questões étnicas e sua relação com a Natureza. Os
primeiros contatos entre os indígenas da costa atlântica e os
colonizadores europeus foram selados pelo signo da desigualdade
étnica ou racial advindo da concepção monogenista do humanismo
renascentista, expressas sob as formas de “povos civilizados” e “povos
primitivos”. A igreja, através das missões evangelizadoras, imputou-lhes
desde o início os rótulos de pagãos, selvagens e canibais e, ao mesmo
tempo, de gentis e inocentes. Com a intensificação do comércio de
escravos africanos, a questão racial ganhou contornos novos, abandonando
a concepção sobre a diversidade étnica e natural, passou à
fundamentação científica da ideologia que articulou as noções de diferença e de superioridade racial.
42De acordo com Ferro (1996: 41),
A essa corrente acrescentava-se uma visão do homem tendendo a glorificar as façanhas e a ação, tal como a lebensphilosophie,
cujos defensores foram Wilhelm Dilthey, Oswald Spengler e Max Scheler,
imperialistas os três, e, assim como Nietzsche, favoráveis à idéia de um
certo darwinismo social voltado para o exterior; em torno dessa
corrente biologista havia cientistas, sociólogos e eugenistas que
retomavam certas idéias de Gobineau, glorificavam, tal como Gidding, os
super-homens de amanhã, e possibilitavam a união entre o neo-idealismo,
sobretudo inglês, e o biologismo, sobretudo alemão.
43A
visão eurocêntrica sobre o mundo colonial só pôde constituir-se a partir
do momento em que o conflito entre as sociedades passou a se reproduzir
no processo de ocupação do território e exploração da mão de obra
indígena. A expansão dos domínios territoriais, combinada à exploração
do trabalho, exigiu do Estado uma geopolítica colonizadora que pudesse
garantir a posse sobre o território e, ao mesmo tempo, a subordinação da
população nativa a uma nova ordem econômica e racial. A acumulação
primitiva do capital assumiu em sua face geopolítica as marcas da
ideologia das raças que se fortaleceu e intensificou-se durante todo o
processo de colonização europeia.
44O
debate filosófico e científico em torno dos conceitos de “civilizado” e
“primitivo” passou a ganhar relevância a partir do século XVIII, quando o
consenso sobre a unidade do gênero humano defendida pela visão
monogenista começou a ser questionada a partir da observação sobre a
diversidade étnico-cultural existente entre os povos.
45Contudo,
como visto até aqui, o contexto histórico do final do século XIX e das
primeiras décadas do século XX serviu de proscênio a uma variada gama de
discursos que procurou, na convergência de correntes políticas
conservadoras, o estabelecimento de uma base ideológica para construção
de uma imagem do Brasil pela qual o conflito entre as classes sociais
pudesse aparecer como um conflito entre as raças, e o processo de
desenvolvimento desigual gerado pela expansão das relações capitalistas
de produção, como o “progresso da nação”. Embora, como mostramos
anteriormente, o discurso de Alberto Torres tenha se colocado como uma
concepção dissonante em relação às teorias racistas do período, o autor
reproduz pari passu os princípios da visão poligenista de diferenciação das raças, “dando a cada um seu lugar próprio na trama complexa da atividade social” (Torres, 1938: 154-155).