A
Nação talvez ainda não tenha feito ideia justa, do labor penoso,
difícil, cheio de tropeços quase intransponíveis – que tantos
sacrifícios exige e é tão mal recompensado, – por ela atribuído aos seus
Estatísticos e Geógrafos, das mais modestas às mais elevadas
categorias. (...) Eles é que têm feito em verdade tudo que o
Brasil possui como conhecimento do que é e do que vale, através das
observações, pesquisas, estudos e levantamentos a que procedem.
Teixeira de Freitas
- 1 Ao abrir a quarta Assembleia Geral (AG), do Conselho Nacional de Estatística (CNE), em 1941, o pres (...)
1No Brasil, o ano de 1936 teria um alto significado pela criação do sistema estatístico brasileiro.1 Este
foi pensado, inicialmente, como sistema estatístico e cartográfico,
mas, por razões várias acabou por não nomear a cartografia, embora
continuasse a considerá-la implicitamente, e não tardaria a
evidenciá-la. E já em 1938, mais que a cartografia, emergiria a
geografia, fazendo surgir um sistema estatístico e geográfico
brasileiro.
2Pois
essa obra, em sua origem, foi sonhada, idealizada e realizada por um
homem admirável, infatigável, teórico e prático: Teixeira de Freitas,
que todo o tempo pensou o Brasil. E que logo teve o apoio inestimável do
Embaixador Macedo Soares, notável estadista da República. Por seu
prestígio, sua capacidade de negociação, de conciliação, sustentou a
realização da instituição idealizada por Teixeira de Freitas.
3O
movimento propulsor de Teixeira de Freitas foi bem visto por Carlos
Drummond de Andrade (seu antigo colega no Ministério da Educação), em
artigo no velho Correio da Manhã, a 25 de fevereiro de 1956, pranteando
seu falecimento a 22 daquele mês e ano. Entre outros pontos, disse que,
“sem governar o menor pedaço do Brasil, influía profundamente na sua
evolução”, e daria valor à sua obra (realça apenas a estatística):
Antes
dele, nossa estatística era um serviço à espera de uma fórmula, e essa
fórmula foi ele quem a cunhou e fez aplicar: cooperação
interadministrativa. Não teríamos nunca estatística brasileira
por um esforço federal isolado, maciço que fosse; era necessário,
transpondo montanhas de inibições, interessar no assunto todas as
unidades políticas, chegar até o município, criar um sistema. O sistema
está em pleno funcionamento, malgrado os golpes que a política lhe
vibra. E se hoje nos conhecemos mais a nós mesmos, se é possível
elaborar planos de governo com base em dados positivos, se a iniciativa
particular na promoção de riquezas dispõe de elementos essenciais para
conhecimento do meio social e econômico, tudo isso se deve a Teixeira de
Freitas. Teve antecessores ilustres e colaboradores de grande porte,
mas a ideia, repito, é dele, como também a prática, e dele a maior
glória. (IBGE, 1956, p. 63)
4Essa realização, já então também incluindo a geografia, teve uma laboriosa construção. Primeiro
foram os sonhos postos em planos, depois, pouco a pouco, vieram as
realizações, não raro enfrentando comezinhas realidades. Em meio a tudo,
tendo muito da atuação do Embaixador Macedo Soares, viria o “G” da
Geografia, mais que o “C” da Cartografia (ou “cartografia geográfica”,
associada à produção das estatísticas). Neste caso, a grandeza de
Teixeira de Freitas, com justiça e por justiça, terá que ser dividida
com Macedo Soares, e não apenas por questão da posição que ocupava, no e
fora do IBGE, mas pela visão ampla que tinha da Geografia. Pois uma
primeira tentativa de realçar-lhe a importância viria da pena do
jornalista, e velho ibgeano, Waldemar Lopes:
José Carlos de Macedo Soares teve um papel de excepcional importância na obtenção de apoio à obra empreendida. O
natural respeito que a todos impunha por seus títulos de homem público,
já com tantos serviços prestados, não só ao Brasil, mas também à paz do
Continente, imprimia extraordinária força moral a qualquer gestão que
promovesse, como presidente dos órgãos colegiados do IBGE – o Conselho
Nacional de Estatística e o Conselho Nacional de Geografia. O prestígio
de seu nome removia as dificuldades na execução dos planos de reforma,
na esfera estadual; quanto ao Governo da União, fácil lhe era o diálogo
no mais alto nível, inclusive porque em mais de uma oportunidade foi a
um só tempo presidente do IBGE e Ministro de Estado. (LOPES, 1968, p. 8)
5Tempos
depois, numa convincente interpretação, Alexandre Camargo ampliaria
essa importância dizendo-o “o embaixador da geografia”, e o vendo como
“o principal nome no movimento decisivo que levou à criação do CNG”, o
Conselho Nacional de Geografia. E diria mais: “Não se tem
atribuído o merecido crédito ao desempenho do embaixador, silenciado nos
meandros da memória”; a seu juízo, “a análise histórica do desempenho
de Macedo Soares na criação e consolidação do Conselho Nacional de
Geografia revela um papel bastante propositivo e atuante, bem além do
simples prestígio de um homem forte do governo”; e afirma: “Sob seus
auspícios e influência direta, foi instalado o Conselho Brasileiro de
Geografia [nome inicial do CNG] no próprio Palácio do Itamaraty, no dia
1º de julho de 1937” (Camargo, 2009, p. 236-237).
6Pois
este texto intenta descrever essa trajetória, em que o “G” da Geografia
se junta ao “E” da Estatística, já então posto no Instituto Nacional de
Estatística, vindo a surgir o IBGE, procurando valorizar tanto Teixeira
de Freitas como Macedo Soares.
7Chegando Getúlio Vargas ao poder, findava a Primeira República. Formado
no castilhismo (com suas raízes positivistas), tinha grande apreço
pelas estatísticas, e as percebia forma de saber e fonte de poder. Sem
elas não teria chances de governar, atuando para além da federação
vigorante na Primeira República. Precisava ter retratos em números da
população, da sociedade, da economia, e de pronto intentaria promover
mudanças, criando no âmbito do novíssimo Ministério do Trabalho,
Indústria e Comércio, um Departamento Nacional de Estatística para somar
a Diretoria Geral de Estatística (criada em 1871 ainda no Império, e em
1890 recriada na República, e tendo por mais longevo diretor o médico
Bulhões Carvalho) e a Diretoria de Estatística Comercial (criada no
Império, agregada ao Ministério da Fazenda, e tendo por primeiro e mais
longevo diretor o “estatístico ou economista” Sebastião Ferreira
Soares). Por razões pessoais, Bulhões Carvalho retira-se do serviço
público em 1930, sendo substituído no comando do recém-criado
Departamento por Leo de Affonseca, até então à frente da Diretoria de
Estatística Comercial. Este, por temer fragilizar as estatísticas
comerciais, sabidamente importantes, age com muita cautela e não sem
alguma reticência e resistência. Em consequência disso, nada mudaria
significativamente.
8Entrementes,
Francisco Campos convida Teixeira de Freitas – dileto discípulo de
Bulhões Carvalho no âmbito da Diretoria Geral de Estatística, e que
passara a década de 1920 idealizando e organizando as estatísticas de
Minas Gerais, com pleno sucesso – a criar e dirigir a Diretoria de
Informações, Estatística e Divulgação do também novíssimo Ministério da
Educação e Saúde Pública. Ele age com gosto, e logo proporá e negociará
um “Convênio entre a União, os Estados, o Distrito Federal e o
Território do Acre, para o aperfeiçoamento e uniformização das
estatísticas educacionais e conexas”, no contexto da IV Conferência
Nacional de Educação, promovida pela Associação Brasileira de Educação
(entidade criada por Heitor Lyra em 1924). Isso ocorreria em dezembro de
1931. Foi um marco na história das estatísticas de educação e conexas, e
marcaria fortemente a atividade estatística brasileira, pois fazia
emergir em caráter efetivo, a tão sonhada cooperação
interadministrativa, pela qual as três esferas políticas (federal,
estadual e municipal) uniam seus esforços.
9Enquanto
o “Convênio” era pensado, maturado, discutido, e finalmente aprovado,
Alvim Pessoa, antigo chefe de seção com Bulhões Carvalho, e agora
trabalhando com Teixeira de Freitas, sugere-lhe em carta pessoal
elaborar uma “lei de estatística” seguida de uma “lei orgânica” contendo
normas gerais. Entende, com inegável perspicácia, que aquele instante
era bastante favorável para organizar em definitivo a atividade
estatística brasileira; na verdade, tem como alvo a questão da obrigação
da prestação de informações aos órgãos federais por parte dos “donos”
dos registros administrativos, nos estados e nos municípios. Por certo
esse tema importava, e Teixeira de Freitas bem o sabia, mas, por sua
vivência mineira, sabia também que a iniciativa não bastaria e deveria
ser acompanhada por outras medidas, algumas muito fortes. Então, dando a
Alvim Pessoa o devido crédito, solicita ao ministro autorização para
pensar e avançar o tema. O Ministro concorda em resposta de agosto de
1931.
10Teixeira
de Freitas pensa, reflete e escreve. Faz revisões e reescreve. Por fim,
em início de 1932, entrega ao Ministro alentado relatório de avaliação
da atividade estatística brasileira, propondo uma profunda mudança.
- 2 A ideia não vingou por reação contrária da Academia Brasileira de Ciência, tendo à frente Alberto J (...)
11Propõe
de pronto formar um Instituto Nacional de Estatística e Cartografia,
afeto diretamente ao Presidente da República, e não a um ministério.
Imagina uma entidade colegiada, incumbida de promover uma atividade
estatística integral, uniforme e sistemática. Sob a nominação
“cartografia”, a que chama também de “cartografia geográfica”, pretende,
entre vários pontos, aprimorar a atividade estatística, no início, ao
tempo da coleta, pela divisão do território; e, ao final, quando da
divulgação dos resultados, pela elaboração de cartogramas. Mas quer
mais: realizar estudos geográficos (físicos e políticos). Pois essa
associação da cartografia com a estatística, entre outros pontos,
causará polêmica, e provocará reações contrárias.2 A aprovação do Instituto será adiada, entretanto Teixeira de Freitas segue atento.
12No
final de 1932, ao assumir o Ministério da Agricultura, Juarez Távora se
ressente da ausência das estatísticas, e pensa numa diretoria semelhante
à que Teixeira de Freitas criara no Ministério da Educação e Saúde
Pública. Pede-lhe ajuda, e a tem prontamente; logo surgirá a Diretoria
de Estatísticas da Produção (para a qual sugere o nome de Rafael Xavier,
atuando em Pernambuco, o que Juarez Távora aceitará). Conversam, em
profundas e profícuas tertúlias; identificam-se, e Teixeira de Freitas
lhe fala do projeto do Instituto Nacional de Estatística e Cartografia.
Juarez Távora aprecia a proposta e leva a ideia a Getúlio Vargas, que o
autoriza a constituir uma comissão interministerial para debater o
assunto em definitivo. Para dirigi-la, por natural deferência, é nomeado
Leo de Affonseca, e para secretariar os trabalhos é escolhido Teixeira
de Freitas, cuja proposta é debatida e aprovada, sem grandes mudanças.
13Quando
enviada aos ministros, três deles objetam: Oswaldo Aranha, da Fazenda,
contrário ao Fundo Especial; Salgado Filho, do Trabalho, Indústria e
Comércio, contrário a transferência da tipografia e da biblioteca da
extinta Diretoria Geral de Estatística para o novo Instituto; Maciel
Filho, da Justiça, contrário à vinculação do Instituto ao Presidente da
República. Então, Juarez Távora, querendo aprovar a criação do Instituto
antes da promulgação da nova Constituição, pede ajustes rápidos a
Teixeira de Freitas, que os faz. Desiste (por ora) de incorporar a
tipografia, e não ganha (por ora, também) o Fundo; mas mantém o vínculo
ao Presidente da República.
14Surge,
então, o Instituto Nacional de Estatística (INE), sem Cartografia. Para
compensar, Teixeira de Freitas introduz, com o apoio natural de Juarez
Távora, na estrutura da Diretoria de Estatística da Produção, do
Ministério da Agricultura, uma Seção de Estatística Territorial (tendo à
frente o engenheiro Christovam Leite de Castro), e que seria a matriz
do futuro Conselho Brasileiro de Geografia (logo CNG). Assim, a chamada
“cartografia geográfica”, já estaria presente e atuante no INE, ainda
que o nome Cartografia não tenha aparecido explicitamente. Engenhosa
articulação daqueles dois homens, que se identificaram e se aproximaram.
15Pouco
antes da promulgação da nova Constituição da República em 16 de julho
de 1934, que poria um ponto final no Governo Provisório, Getúlio Vargas,
nos termos do art. 1º do Decreto nº 19.398, de 11 de novembro de 1930,
assina o Decreto nº 24.609, de 6 de julho de 1934, criando o Instituto
Nacional de Estatística (INE).
16O
Instituto é criado como uma “entidade de natureza federativa”, com
vistas ao “levantamento sistemático de todas as estatísticas nacionais”,
mediante “a progressiva articulação e cooperação” das três esferas
políticas da República: federal, estadual e municipal (art. 1º).
Criava-se, assim, um sistema estatístico. A produção das estatísticas
seguiria um plano anual, sempre seguindo os “melhores padrões que a
técnica da especialidade aconselhar ou já estiverem firmados por acordos
internacionais, mas respeitadas as necessidades e contingências
peculiares à vida brasileira” (parágrafo único do art. 1º). Atuaria com
“autonomia plena sob o ponto de vista técnico e a limitada autonomia
administrativa” compatível com a legislação vigente (art. 2º).
- 3 E mais diziam os artigos seguintes: Art. 7º Os serviços estatísticos de qualquer dependência admini (...)
17O
art. 3º conferia-lhe “duas classes de entidades”: uma, as “repartições
centrais” dos ministérios da Justiça e Negócios Interiores, da Fazenda,
do Trabalho, Indústria e Comércio, da Agricultura, das Relações
Exteriores e da Educação e Saúde; outra, as “instituições filiadas”.
Faziam parte desta última categoria o serviço dos censos nacionais e
seus equivalentes do Ministério da Justiça e Negócios Interiores; o
serviço de atuária do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio; os
serviços de estatística do Departamento dos Correios e Telégrafos, da
Inspetoria Federal de Estradas, do Departamento Nacional de Portos e
Navegação, do Departamento de Aeronáutica Civil (todos do Ministério da
Viação e Obras Públicas); bem como, “quaisquer outros serviços de
estatísticas já existentes ou que venham a existir na administração
federal, excetuados os de fins privativos dos Ministérios da Guerra e da
Marinha”. Além dessa esfera federal, queria-se que viessem integrar o
sistema as repartições de estatística existentes nos municípios e nos
estados, como fruto de vontade manifesta livremente numa próxima
Convenção de Estatística.3
18Na
chamada direção superior do Instituto estaria um Conselho Nacional de
Estatística (CNE), que, nas suas funções estritas, agiria “com a mais
ampla autonomia administrativa e técnica, diretamente subordinado ao
Presidente da República” (art. 9º). As suas atribuições decorreriam da
Convenção Nacional de Estatística, a se dar em até seis meses a partir
da instalação do Instituto. Até definir-se o Conselho (pela Convenção), a
condução do Instituto caberia a uma Junta Executiva provisória, formada
pelo Presidente, pelos chefes dos órgãos federais de estatística (art.
10). O Presidente do Conselho, e, claro, do Instituto seria de livre
escolha do Presidente da República; um dos membros da Junta Executiva,
eleito anualmente, acumularia a secretaria-geral do Conselho e do
Instituto (pouco depois foi decidido que a escolha do ocupante dessa
função seria de livre vontade do Presidente do Instituto).
19Toda
essa complexa estrutura fora meticulosamente concebida por Teixeira de
Freitas em um anteprojeto elaborado em 1933, que recebeu do autor uma
interessante esquematização circular (figura 1).
“Instituto Nacional de Estatística: direção, estrutura e atividades”
Anteprojeto do Instituto Nacional de Estatística, elaborado por Teixeira de Freitas em 1933
(Fonte: Acervo do IBGE)
- 4 Isso quer dizer que o Instituto não seria formado por servidores públicos em caráter permanente.
20O pessoal próprio aos serviços mantidos pelo Instituto seria todo ele “admitido por contrato, em regime industrial”.4 Para
o caso de se fazer algum serviço contínuo, em que fosse necessária
“habilitação e aplicação intelectual”, haveria escolha de técnicos
mediante concurso (provas de capacidade e idoneidade), e “só [seriam]
confirmados na função depois de dois anos de trabalho regular e
inteiramente satisfatório”, a eles sendo aplicado “como estímulo à
dedicação e ao mérito, um sistema de remuneração progressiva em função
da antiguidade e do mérito” (art. 21, item II). Se para atender a
serviços temporários, seria admitido a “título precário, conforme as
necessidades ocorrentes, e remunerados por tarefa” (art. 21, item I).
- 5 Nos termos do artigo 30, os serviços gráficos dos órgãos centrais de estatística atenderiam ao Inst (...)
21O
Instituto teria seu orçamento anualmente aprovado pelo Conselho (art.
25). Os recursos financeiros decorreriam das “consignações que lhe
estipularem os orçamentos da União, das unidades políticas e dos
municípios”, de “créditos que forem abertos a seu favor”, bem assim de
receitas especiais na forma de “vendas de publicações, rendas de
publicidade comercial nessas publicações e dos serviços especiais
remunerados, etc.”, e de doações diversas (art. 24). Esses recursos
custeariam os “serviços por ele instituídos” ou incorporados, os
serviços das “entidades incorporadas federativamente”, bem como, ao
aperfeiçoamento dos equipamentos, às missões técnicas e científicas (em
estatística, e em cartografia geográfica ou topográfica), à contratação
de estrangeiros, à edição de revistas técnicas, e ao patrocínio da
Sociedade Brasileira de Estatística (art. 26).5
- 6 “Diplomas” eram quaisquer documentos geográficos, como mapas, atlas, corografias, monografias, anuá (...)
- 7 Ver o Cap. 5 “Agências Municipais de Estatística, alicerce do sistema estatístico”. In: SENRA, Nels (...)
22Ainda
tratou-se da coleta, peça-chave da atividade estatística (art. 13 a
15), que, afora informações individuais, agregáveis nas estatísticas,
recebia atribuições cartográficas e temas afins, ou seja, devia-se
coletar “diplomas cartográficos6
já existentes, com referência a cada localidade, circunscrição ou
região”, além de “dados de verificação cartográfica e levantamentos
expeditos, conseguidos com auxílio dos serviços de topografia porventura
mantidos pelos Estados ou Territórios e municípios”. Finalmente,
devia-se fazer “monografias de natureza histórica e geográfica”. Pese os
avanços havidos, e foram muitos, a consolidação dessa atividade só
estaria completa quando da ampla criação das Agências Municipais de
Estatística, no início da década seguinte, no contexto do esforço de
guerra.7
- 8 O primeiro número da Revista Brasileira de Estatística é de jan./mar. de 1940. Também haveria a Rev (...)
23No
que tange à inserção científica da atividade estatística e da formação
de recursos humanos, por certo essenciais, seriam apoiados pelo
Instituto os “trabalhos da Sociedade Brasileira de Estatística”, com
realce para a edição da “Revista Brasileira de Estatística, como órgão
técnico da estatística nacional”.8
A fim de manter atualizado o programa estatístico, tratou-se da
convocação das “Conferências Nacionais de Estatística” (art. 19 e 20).
Para o final do processo tratou-se da divulgação dos resultados (art. 16
a 18), tanto dos veículos como dos conteúdos, advogando em favor de uma
“perfeita regularidade na divulgação dos trabalhos elaborados pelo
Instituto”, ou seja, melhor dizendo, por todos os seus órgãos, devendo
haver a edição “regular e uniforme dos anuários estatísticos”.
24Entre 1934 e 1936, ao iniciar sua existência, o Instituto provoca críticas. Na
imprensa regional e na nacional, diversos técnicos o criticaram; a
unificação incomodava, tendo em conta o novo regime constitucional, que
recuperava o federalismo. A nova constituição fora duramente conquistada
pelos paulistas, após as lutas de 1932, e foram técnicos paulistas os
mais ácidos nas críticas. Teixeira de Freitas, pacientemente, rebate uma
a uma, usando os mesmos veículos. Explica e detalha as metas da nova
instituição. Talvez não tenha convencido os reticentes, mas, até porque a
estrutura não começara a funcionar, a polêmica arrefeceu-se. Faltava,
também, indicar um presidente. Teixeira de Freitas seguia atento, em
completa prontidão, e envia várias cartas a diversas autoridades,
solicitando suas intervenções. Em uma delas, dirigida a Gustavo
Capanema, já agora o Ministro da Educação, sugere alguns nomes: Bulhões
Carvalho, Ildefonso Simões Lopes, Affonso Penna Júnior, Conde de Affonso
Celso, Francisco Mendes Pimentel, Félix Pacheco; todas pessoas de
renome, com trânsito político, o que era visto como essencial.
25O
sonho segue sendo sonho. Então, em final de 1934 e início de 1935 surge
um ótimo momento para nova catequese de Teixeira de Freitas. É quando o
Itamaraty, sendo chanceler Macedo Soares, enfrenta a necessidade de
organizar minimamente (e muito rapidamente) as estatísticas brasileiras,
com ênfase nas comerciais e nas financeiras, de modo a apresentá-las em
negociações internacionais com banqueiros. Juntam-se os diretores
temáticos de estatística, e se lhes pede um esforço especial, quase
sobre-humano. Todos atendem ao chamado e colaboram. Teixeira de Freitas é
o mais ativo, e tem liderança indiscutível. Uma publicação estatística é
elaborada, com enorme esforço, com resultado no mínimo razoável.
Teixeira de Freitas fala do estado da atividade estatística brasileira, a
gerar vazios dessa ordem, e insiste no imperativo da instalação do
Instituto. Macedo Soares teria ficado convencido, e falado com Getúlio
Vargas, que o convida a assumir a presidência da nova instituição. Não
obstante sua recusa, e mesmo estando mesmo fora do país, é nomeado para o
cargo em meados de 1935. O chanceler adia a posse.
26Finalmente,
em 29 de maio de 1936, perante Getúlio Vargas, no Palácio do Catete,
assume a direção máxima do Instituto. O Presidente da República disse do
seu apreço ao novo Instituto, tanto que lhe dava seu ministro (Macedo
Soares era também seu Chanceler) e sua Casa (referindo-se ao Palácio do
Catete, que lhe serviria de sede). No ato Macedo Soares, entre outros
pontos, realça o papel de Luís Simões Lopes (uma espécie de “ibgeano” no
governo), e após suas primeiras medidas, propõe que todos o visitem, em
seu gabinete no Palácio, para agradecer-lhe as contribuições.
27Já
Teixeira de Freitas realça o papel de Bulhões Carvalho, seu grande
mestre. Afirma que, embora aquele instante fosse muito especial, no
fundo, era resultado da pregação daquele homem notável. O novo Instituto
não estava fundando uma tradição, um ano zero; ao contrário, foi
lembrado como herdeiro de uma tradição estatística que remontava, no
mínimo, à Primeira República – embora pudesse ser remetido ao Império, e
mesmo ao tempo da Corte Joanina no Brasil, com realce à figura de D.
Rodrigo de Souza Coutinho, o Conde de Linhares.
28Feita
a posse, Macedo Soares, nos termos previstos na legislação, instala uma
Junta Executiva provisória, para a qual Teixeira de Freitas é eleito
Secretário-geral. Pouco depois, o Presidente da República convocaria a
Convenção Nacional de Estatística (Decreto nº 946, de 7 de julho de
1936), nela se empenhando pessoalmente, em comunicado aos governadores.
Assim, a convocação da Convenção, imediatamente realizada no Palácio do
Itamaraty, foi um ato de alta política, manifestação clara da
importância das estatísticas para a moldagem do Estado e da nação. Essa
atuação do próprio Presidente da República conferiu àquele evento
autoridade para tomar decisões técnicas de forte significado político:
- 9 Presidirá apenas a sessão de encerramento, em 9 de agosto. As demais sessões serão sempre abertas p (...)
- 10 Esta exposição era uma das meninas dos olhos de Teixeira de Freitas, ele que estava à frente da ela (...)
As
notícias que me chegam diariamente sobre a acolhida que estão merecendo
de todas as Unidades da Federação as primeiras iniciativas do Instituto
Nacional de Estatística, preparatórias da realização de seu elevado
programa e, principalmente, sobre a cordial aceitação do convite do
Governo Federal, para participarem todos os governos regionais da
Convenção Nacional de Estatística, que se reunirá ainda este mês, me
trouxeram a animadora certeza de que foram bem compreendidos os meus
propósitos de promover a coordenação, dentro da força contratual, dos
serviços estatísticos brasileiros, em benefício dos vitais interesses
comuns às nossas três esferas governativas. Antes, porém, do início dos trabalhos da Convenção, a cuja instalação presidirei,9
desejo encarecer a todos os governos convidados para a reunião
convencional alguns pontos que reputo essenciais e que pedem solução
imediata. O primeiro é que os delegados à Convenção devem ter poderes
amplos para vincular os respectivos governos aos compromissos que forem
julgados liquidamente necessários à reorganização e integração do
sistema estatístico brasileiro, mesmo que alguns desses compromissos
importem em corajosas inovações ou exijam solicitação oportuna de
recursos especiais ao Legislativo. Outro ponto é que os esforços do
Instituto sejam secundados, vigorosamente, pelos governos regionais, no
sentido de conseguir-se, ainda este ano, dos governos dos municípios a
criação das respectivas agências municipais de estatística. O terceiro
ponto, finalmente, consiste na ação persuasiva dos governos estaduais
junto aos prefeitos municipais, afim de que estes façam organizar com
urgência o trabalho cartográfico por agora possível, ainda que
rudimentar, sobre o território dos seus municípios, destinado tal
trabalho a ser incluído entre os elementos de sua participação na
Exposição de Estatística e Educação, que se instalará nesta Capital em
20 de dezembro, sob o patrocínio do Ministério da Educação e do
Instituto Nacional de Estatística.10
Sendo patente o extraordinário alcance, do concurso que, por essa
tríplice forma, meu governo deseja obter do espírito de cooperação dos
governos das unidades federadas, aguardo uma resposta de V. Excia. na
expectativa de que possa contar com o seu afirme e decisivo apoio, para a
consecução dos objetivos expostos.
Atenciosas saudações.
Getúlio Vargas.
Palácio do Catete, Rio de Janeiro, 20 de julho de 1936.
29Estava
iniciado o processo. Já em 1955, reassumindo a presidência, por breve
período, o Embaixador Macedo Soares, recorda aquele momento fundador, ao
mesmo tempo em que rende justa homenagem a Teixeira de Freitas:
Ao
assumir, neste momento, a presidência do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística, por força de honrosa incumbência com que me
distinguiu o Senhor Presidente da República, Senador Nereu Ramos, desejo
confessar que experimento grata emoção. É que retorno, depois,
de alguns anos de ausência, à direção de uma Casa que é, de certo modo,
minha Casa também – a Casa do Brasil, cuja história está ligada à
própria história de minha vida pública. Guardo bem nítida a lembrança
dos primórdios desta grande instituição, desde quando era apenas um
ideal em marcha a implantação de um regime eficiente de coordenação e
aperfeiçoamento das atividades geográficas e estatísticas brasileiras.
Os
trabalhos que nesse campo se levavam a efeito, àquela época, traziam a
marca da descontinuidade, não possibilitando base segura para os estudos
necessários à boa ordem administrativa e ao progresso do País. Os fatos
evidenciavam a conveniência de adotar-se um sistema diferente do que
até então prevalecia e que se caracterizava pela desarticulação dos
serviços de estatística e de geografia, cada qual realizando suas
tarefas sem o mínimo entrosamento, com dispersão de esforços e gastos,
em prejuízo do interesse público.
A fórmula de cooperação
interadministrativa, que o IBGE consubstancia, constituiu uma audaciosa
inovação nos quadros da ação governamental. E justamente por ser uma
fórmula original exigiu, de início, um longo trabalho de persuasão e
esclarecimento, destinado a conquistar o apoio e a simpatia de todos os
que a ela se opunham, por desconhecerem as suas magníficas
virtualidades.
Contudo, os obstáculos que se apresentaram à ação do
IBGE foram admiravelmente vencidos, graças ao ímpeto idealista e à
inquebrantável pertinácia dos pioneiros, dentre os quais quero ressaltar
o nome de Mário Augusto Teixeira de Freitas, a cujo patriotismo e
espírito apostolar devem ser rendidas todas as homenagens. À medida que
se iam evidenciando as vantagens do sistema instituído, através,
sobretudo, de iniciativa e realizações do maior alcance e importância,
no campo da estatística e da geografia, mais se consolidava o prestígio
do Instituto, quer nos círculos administrativos, quer perante as forças
da opinião.
Gostaria de referir, neste passo, uma curiosa
coincidência histórica. Em 1936, o então Presidente Getúlio Vargas se
dispôs a instalar o Instituto Nacional de Estatística, que ele próprio
criara, dois anos antes, atendendo às razões expostas no estudo que lhe
fora encaminhado pelo Ministro Juarez Távora. Já havia os Diretores dos
Serviços especializados dos Ministérios conseguido, sob minha
presidência, a unificação das estatísticas nacionais, de que resultou o
“Brasil 1935”.
Convidou-me, então, o Presidente Getúlio Vargas para
dirigir o Instituto. Fiz-lhe ver que não estava devidamente habilitado
para cumprir a missão. Por três vezes ele insistiu, recebendo sempre a
mesma recusa.
Com surpresa li nos jornais o decreto que me nomeava
Presidente interino do novo órgão. Recusei-me durante meses a tomar
posse do cargo, até que o Presidente Vargas, mandando esvaziar algumas
salas do segundo andar do Palácio do Catete, m’as ofereceu para nelas
instalar o Instituto.
Foi o próprio Presidente Vargas que, com
indisfarçável satisfação, fez os convites para a cerimônia de minha
posse. E diante do Ministério, convocado especialmente para o ato, e dos
mais graduados elemento do funcionalismo público, pronunciou ele, ao
dar-me posse, aquelas palavras que se tornaram oraculares: “Tenho tal
interesse pelo Instituto Nacional de Estatística que lhes dei a minha
Casa e o meu Ministro”.
Dezenove anos depois, vejo-me novamente
convocado, quando nas funções de titular da pasta das Relações
Exteriores, para dirigir interinamente o IBGE. Não há dúvida de que a
história às vezes se repete (IBGE, 1955, p. 389-390).
- 11 Ver o Cap. 3 “Convenção Nacional de Estatística: a ‘Carta Magna’, a ‘Pedra Angular’ da Estatística (...)
30De
final de julho a início de agosto foi realizada a Convenção, seja como
forma de reunião, seja como documento de conformação institucional. A
presteza de sua realização e a ulterior aprovação vinha de se querer
promover de imediato “o funcionamento do sistema estabelecido para a
plena coordenação dos serviços de estatística do País, de que é o
referido Instituto o órgão nacional”.
- 12 A expressão “regional” referia-se aos Estados, ao Distrito Federal e ao Território do Acre.
31O
texto da Convenção foi anexado ao Decreto nº 1022, de 11 de agosto, que
o aprovou. Tinha cinco capítulos: I- Bases para a constituição e
regulamentação do Conselho Nacional de Estatística (1ª cláusula); II-
Compromissos do Governo Federal (2ª cláusula), III Compromissos dos
Governos Regionais (3ª à 27ª cláusulas);12
IV- Compromissos comuns a todos os Governos compactuantes (28ª
cláusula); V- Disposições gerais (29ª à 32ª cláusulas). A seus órgãos de
direção competia:
- 13 A Convenção, entre vários outros pontos, determinava ao Instituto Nacional de Estatística que crias (...)
a)
à Assembleia Geral, orientar e dirigir o Instituto, mediante
deliberação direta ou delegação à Junta Executiva Central, exercendo
ampla jurisdição técnica no que se referir a todos os serviços filiados,
e gozando de autonomia administrativa quanto aos serviços cuja
organização e movimentação forem confiadas ao mesmo Instituto, na forma
dos artigos 7º e 8º do Decreto nº 24.609, de 6 de julho de 1934;
b) à Junta Executiva Central, cumprir e fazer cumprir as deliberações da Assembleia Geral e resolver os casos omissos, ad-referendum da mesma Assembleia, sempre que o exijam a continuidade e boa ordem dos serviços do Instituto;
c)
às Juntas Executivas Regionais, cumprir e fazer cumprir as deliberações
de caráter geral da Assembleia Geral e da Junta Executiva Central, e
tomar as medidas necessárias à coordenação e desenvolvimento dos
serviços estatísticos regionais e municipais sob sua jurisdição,
resolvendo com autonomia o que for matéria privativa da economia interna
dos respectivos sistemas;d) às Comissões Técnicas, estudar e projetar a
sistematização técnica e os melhoramentos progressivos das estatísticas
compreendidas nos respectivos programas, expondo as conclusões do seu
trabalho em relatórios anuais à Junta Executiva Central, que os fará
publicar e os submeterá com o seu parecer à Assembleia Geral.13
32A Assembleia Geral (AG), órgão máximo do Conselho, deveria reunir-se anualmente, iniciando suas sessões em 1º de julho. Cabia-lhe,
entre outros pontos, designar as estatísticas consideradas privativas
dos órgãos federais e as que o seriam dos órgãos regionais; conduzir a
passagem aos órgãos regionais da produção das estatísticas que lhes
fossem privativas e que ainda estivessem na competência dos órgãos
federais; estar atento, a todo tempo, junto às autoridades competentes,
contra decisões que pudessem prejudicar a elaboração das estatísticas;
providenciar a organização de delegacias ou agências de atuações
regionais, sempre que essenciais à operação do sistema estatístico. Por
demais, cabia-lhe definir o número das Comissões Técnicas, e para
apoiá-las, podia designar Consultores de Estatística. Essas duas
instâncias pretendiam arregimentar o melhor da inteligência brasileira,
seus mais notórios pensadores, não havendo pesquisas acadêmicas
formalizadas.
33O
Governo Federal garantia acatar, em seus órgãos (aos quais daria
recursos para expandirem), as normas técnicas emanadas do CNE;
assegurava também não tomar nenhuma medida restritiva à autonomia da
direção superior do Instituto ou dos órgãos do núcleo central; por fim,
franqueava aos órgãos regionais o livre acesso às estatísticas
elaboradas pelos órgãos federais. Esses aspectos expressavam
modernidade, sendo chamados de autonomia e independência, princípios
pelos quais as repartições de estatísticas lutam a toda hora, em todos
os países. Isso mostra a madura conexão de Teixeira de Freitas com os
debates havidos nos Congressos Internacionais de Estatística, no século
XIX, e os havidos no Instituto Internacional de Estatística.
34Os
Governos Regionais, por seu turno, garantiam disposição de trabalhar em
irrestrito espírito de cooperação no âmbito do sistema estatístico que
então se criava. Seus serviços estatísticos teriam elevada hierarquia e
ampla autonomia, com funções específicas à elaboração das estatísticas.
Os registros administrativos, em especial o registro civil, bem como
vários cadastros, deviam ser objeto de muita atenção, como fontes
primeiras (ou primárias) das estatísticas. A ordenação e a redivisão do
território nacional deviam ser objeto da melhor atenção; os estudos
corográficos dos municípios, entre outros pontos, deviam merecer
cuidados particulares, e serem estimulados. Finalmente, deviam se
empenhar pela formação das Agências Municipais de Estatística, e/ou de
um corpo de Agentes Itinerantes, ambos na função de coleta.
35Ambas
as esferas de governo, Federal e Regional, se aplicariam na formação de
seus quadros, com estágios técnicos e cursos de formação. Em vários
artigos, é dito que todos deviam buscar a inclusão do “ensino elementar
da estatística” nos programas da “instrução primária, secundária e
profissional”, bem como de uma prova de estatística “nos programas dos
concursos destinados ao preenchimento dos cargos iniciais da
administração pública”. Caberia também a elas “providenciar para que, na
administração pública, as solicitações relativas aos serviços
estatísticos tenham, sempre que possível, preferência sobre os demais”.
Haveria no quadro de pessoal “categorias técnicas, devidamente
hierarquizadas e adequadamente remuneradas”, com admissão mediante
concurso público, e não haveria empréstimos dos funcionários a outras
repartições; mas poderia ocorrer troca, mesmo cessão, entre os órgãos do
sistema estatístico.
36O
instrumento convencional, sem dúvida nenhuma, era uma peça técnica e
jurídica minuciosa, valiosa àquela época e ainda hoje útil. O sistema
estatístico constituído alcançava sua dimensão nacional para e pela
federação. Nele, pelo diálogo contínuo e pelas decisões colegiadas, as
três esferas políticas (federal, estadual e municipal) acordavam-se em
voluntária cooperação governamental. Em suma, a Convenção pactuava
vontades, que eram livremente manifestadas: as partes cediam direitos e
assumiam obrigações, configurando um colegiado de decisão. Criava-se uma
“federação de repartições” estatísticas ou um “consórcio federativo”.
Por seu papel-chave, foi considerada a “Carta Magna” ou “Pedra Angular”
da Estatística Brasileira.
37Ao
recordar aquele momento em 1950, em texto na Revista Brasileira de
Estatística, Teixeira de Freitas, valorizaria as medidas tomadas e
realçaria seu espírito liberal, como gostava de destacar:
Uma
vez que a ação investigadora da Estatística deve ser “una”, mas sem que
deixe de estar presente em todo o território nacional; se é mister que
essa tarefa se execute em condições de servir a todas as estruturas
governativas, – então forçoso é que aquela unidade e aquele
desdobramento resultem de um entendimento entre as esferas
governamentais que, independentes mas harmônicas entre si, se
diferenciam na contextura política da Federação. (...) A
instituição desse sistema cooperativo “sui generis” só poderia adquirir
estrutura definitiva e eficiência perfeita se houvesse decorrido, como
fora justo e conveniente, de normas constitucionais. Entretanto, a
maneira pela qual a mentalidade média dos nossos homens públicos
compreendia a Federação não se havia ainda depurado de certas
interpretações errôneas, a tal ponto que uma iniciativa como esta
encontrasse clima favorável e pudesse ter sido tomada com êxito. Ou se
faria uma tentativa transigente, ou não se realizaria coisa alguma.
Daí
que, embora enfrentando grandes riscos e através de dificuldades sem
conta que bem poderiam ter sido evitadas se outra fosse a nossa cultura
política, tornou-se preciso admitir que a cooperação entre a União, as
Unidades Federadas e os Municípios não devessem ser originariamente
“determinada” por disposição constitucional, visto como o procedimento
em contrário seria suspeitado, ainda que sem fundamento algum, de
atentatório à autonomia dos Estados e dos Municípios. Bastaria,
portanto, isto sim, que a Constituição a permitisse inequivocamente,
para depois tentar-se organizar o sistema, mediante o apelo, fora de
qualquer obrigatoriedade, ao livre e unânime consenso das entidades
representativas das três esferas de governo. Porque somente assim o
sistema poderia surgir num ambiente de confiança mútua, na estrita forma
pela qual o regime era então compreendido, e segundo fórmula
lidimamente democrática.
Num pressuposto quase absurdo – tão liberal
era ele – admitiu-se que Estados e Municípios não pudessem obrigar-se, a
não ser voluntariamente, a um efetivo esforço de cooperação entre os
vários planos administrativos. Ainda mesmo quando se tratasse, como de
fato se tratava, de uma necessidade vital da própria Federação, a saber,
a necessidade, comum às três órbitas de governo, de garantir-se
eficiência e unidade quanto às pesquisas geográficas e estatísticas.
Bem
haja essa prudência. Certo, os governos não ficaram “obrigados” a
cooperar. Não se estabeleceu nenhuma compulsoriedade para essa
cooperação, a não ser a que resultasse do próprio compromisso que, a
isso convidados pelo Governo Federal, os Estados e os Municípios
livremente entendessem assumir para trabalharem em comum, mantendo cada
qual, a partir daí, apenas a liberdade de discussão e de decisão no que
dissesse respeito, quer à maneira pela qual deveriam cooperar, quer às
normas de ação comum que tornassem solidários, todos os esforços. Livres
de decidir se consideraram todos, sobre se cooperariam ou não; livres
permaneceram de fixar as normas da cooperação. E livres ficaram, ainda,
de manter, com inteira autonomia administrativa, os órgãos técnicos, por
meio dos quais houvessem de efetivar a cooperação na forma
convencionada ou conforme o deliberado em comum, consoante os ritos
estipulados. Nada obstante, o êxito obtido foi completo (FREITAS, 1950,
p. 531-532).
38E
o texto da Convenção, sob a capa de atenção à atividade estatística,
recupera e explicita a cartografia (Cláusulas 13ª a 15ª); assim, a
intenção não se perdera por completo, apenas fora adiada para um melhor
momento, proporcionado pela a Convenção. As referidas cláusulas, adiante copiadas, falam por si.
Cláusula décima terceira
Os
Governos Federados, pelo órgão dos serviços técnicos competentes, sejam
os de engenharia em geral, sejam os especializados de geografia ou
cartografia, filiados ou não ao Instituto, colaborarão nos trabalhos de
cartografia geográfica necessários á estatística e centralizados,para os
fins de síntese nacional, na Diretoria de Estatística da Produção, do
Ministério da Agricultura, segundo planos gerais aprovados pelo Conselho
Nacional de Estatística. Com esse objetivo serão tomadas
medidas, que assegurem a organização, para serem divulgadas nos anos de
milésimo nove e quatro (precedentes aos censos gerais ou regionais),
cartas físicas e políticas do território estadual, das quais constem a
divisão municipal e, se possível, também a distrital,bem como as demais
ordens de circunscrições administrativas e judiciárias. Aos Municípios,
os mesmos serviços formularão, ainda, as sugestões convenientes e
prestarão a assistência técnica necessária para que façam levantar ou
rever, com a perfeição possível, os mapas dos respectivos territórios.
Cláusula décima quarta
Os
Governos Federados, tendo em vista os interesses gerais da organização
administrativa, e em particular, o interesse dos levantamentos
estatísticos, encaminharão, com a assistência do Instituto, providencias
legislativas ou administrativas que tenham por fim racionalizar a
divisão dos respectivos territórios, tendendo a conseguir, além de
outros objetivos, que os entendimentos a esse respeito estabelecerem
como necessários ou vantajosos, os seguintes, que são considerados
essenciais:
a) uniformidade de data para a revisão do quadro
territorial, em todo o país, de modo que tenha ela lugar, para fins da
sua boa fundamentação e regular periodicidade, logo após a divulgação
dos resultados dos recenseamentos gerais ou regionais, ou seja nos anos
de milésimo dois e sete;
b) precisão e racionalidade dos limitas
circunscricionais a estabelecer, de modo que estes acompanhem acidentes
geográficos facilmente identificáveis, e fiquem também evitadas as
linhas até agora usadas segundo variáveis divisas de terras de
determinados proprietários;
c) sistematização da nomenclatura de
maneira a ficar definitivamente suprimida tanto a identidade de
designação entre circunscrição da mesma categoria, quanto a diversidade
de toponímia entre as circunscrições administrativas e judiciárias e as
respectivas sedes;
d) superposição sistemática da divisão judiciaria á
divisão administrativa, de forma que, por um lado, haja uma só divisão
distrital para fins tanto administrativos como judiciários e, por outro
lado, os termos e comarcas tenham sempre por sede a sede municipal que
lhes der o nome e compreendam integralmente, respeitados os respectivos
limites, um ou mais municípios;
e) atribuição da categoria e foros de cidade e vila segundo critérios específicos claramente fixados em lei;
f)
unificação dos âmbitos territoriais das unidades administrativas e
judiciárias, de modo que a área de cada uma delas seja um todo, ficando
assim suprimidos os casos de extraterritorialidade decorrentes das
chamadas "fazendas encravadas" e os casos anômalos de circunscrições
formadas de duas inferiores não contíguas;
g) definição exata da
constituição territorial das novas entidades administrativas criadas
(distritos e municípios), indicando-se sempre as circunscrições
distritais preexistentes que lhes houverem cedido território, e
descrevendo-se os respectivos limites de forma a ficarem nitidamente
destacados os trechos correspondentes a cada um dos distritos
confrontantes.
Cláusula décima quinta
Em complemento ao disposto
na clausula precedente, e, tendo em vista que a medida é necessária não
só para fins gerais da administração, mas principalmente para
classificar a população do país em "urbana" e "rural", com os
respectivos coeficientes de densidade, as Altas Partes Federadas
propõem-se, como objetivo comum, a ser conseguido pelas medidas que a
organização de cada Estado permitir, que todas as municipalidades fixem
ainda este ano, determinando-lhe os limites e a área, o "quadro urbano"
da cidade ou vila sede do município, ficando também assentado que esse
quadro só possa ser modificado por ato do respectivo Governo, no qual
venham referidos os novos limites e o acréscimo de área resultante da
alteração.
39Debatida
e aprovada a Convenção, já em 17 de novembro, o Decreto n. 1200, nos
seus termos, convoca para dezembro a instalação do Conselho Nacional de
Estatística (CNE), o que seria feito numa Assembleia Geral
extraordinária, presidida por Macedo Soares. Além dos diretores
das repartições temáticas federais, seus membros naturais, nela tinha
assento, em caráter especial, o chefe da Seção de Estatística
Territorial do Ministério da Agricultura. Pois, entre outros pontos,
delibera-se a Resolução n. 18, de 30 de dezembro, pela qual se revela as
démarches da “organização do Conselho Brasileiro de Geografia,
como órgão nuclear de um sistema coordenador das instituições
geográficas nacionais”, tendo como base a “seção de estatística
territorial, da Diretoria de Estatística da Produção, uma das
repartições centrais do sistema federal do Instituto”. Tal Conselho,
caso fosse efetivado, deveria integrar o Instituto Nacional de
Estatística, com sugestões “ao Governo relativamente à denominação do
Instituto e à estruturação e funcionamento de sua direção superior”.
40O
novo Conselho logo é criado pelo Decreto n. 1.527, de 24 de março de
1937, que previa sua integração ao INE, e, não por acaso, é dito que
teria uma relação próxima com o Ministério da Educação e Saúde, onde,
recorde-se, estava alocado Teixeira de Freitas. O chefe da seção de
Estatística Territorial, Christovam Leite de Castro, foi escolhido
Secretário-geral do novo Conselho. Estava andado meio caminho, e já
agora em evidente ampliação de atribuições, a Cartografia cedia lugar à
Geografia.
Art.
1º Fica instituído o Conselho Brasileiro de Geografia, incorporado ao
Instituto Nacional de Estatística e destinado a reunir e coordenar, com a
colaboração do Ministério da Educação e Saúde, os estudos sobre a
Geografia do Brasil e a promover a articulação dos Serviços Oficiais
(federais, estaduais e municipais), instituições particulares e dos
profissionais, que se ocupem de Geografia do Brasil no sentido de ativar
uma cooperação geral para um conhecimento melhor e sistematizado do
território pátrio.
§ 1º A cooperação dos serviços militares
far-se-á sempre mediante aprovação dos respectivos Estados-Maiores; e a
cooperação dos demais serviços oficiais obedecerá aos dispositivos
regulamentares correspondentes; regulada a das instituições particulares
por seus estatutos.
§ 2º Os serviços federais ficam obrigados a
fornecer ao Conselho Brasileiro de Geografia um exemplar de cada livro,
mapa ou outra qualquer publicação, referente a assuntos geográficos do
Brasil, que não tenham caráter secreto, bem como a prestar a colaboração
e as informações que forem solicitadas pelo Conselho, observadas as
disposições regulamentares.
41Os
órgãos do Conselho, assemelhados aos existentes no CNE, mas com ligeira
mudança de nomenclatura, eram o Diretório Central, os Diretórios
Regionais (nas capitais dos Estados e do Território do Acre), os
Diretórios Municipais (nas sedes dos Municípios, que não fossem
capitais), o corpo de Consultores Técnicos, e o corpo de Informantes
Municipais. Suas deliberações conformariam resoluções, como no
CNE. E para poder começar a funcionar, previa o decreto, caberia ao CNE
dar-lhe organização e regulamento, o que logo viria pela Resolução n. 15
da Junta Executiva Central (JEC), em 16 de junho de 1937, confirmada na
Resolução n. 31, de 10 de julho, da AG do mesmo Conselho. Cumpriam-se
as formalidades, e tudo celeremente.
- 14 Entenda-se que o fato do “G” aparecer na sigla IBGE antes do “E” não é nenhum sinal de importância, (...)
42Nos
termos dessa mesma Resolução n. 31, dada a expansão do Instituto, com
os serviços de estatística e de geografia passando a trabalhar
conjuntamente na “grande organização nacional dedicada ao estudo da
terra e do homem brasileiro”, era sugerida a adoção de “um novo nome
para o Instituto, passando a chamar-se Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística”. As mudanças serão, finalmente, formalizadas pelo
Decreto-lei n. 218, de 26 de janeiro de 1938: o Conselho Brasileiro de
Geografia passaria a ser o Conselho Nacional de Geografia (CNG) e o
Instituto Nacional de Estatística (INE) a ser o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatísticas (IBGE).14
- 15 Põe-se de lado, dessa forma, outros marcos também gloriosos: o 6 de julho de 1934, data do decreto (...)
43Nada
de fundo mudara, senão duas siglas. Eis, então, a razão do IBGE manter o
29 de maio de 1936, data da posse de Macedo Soares, como sua data
magna.15 E
sobre essa data, na sessão solene alusiva aos 15 anos do IBGE, em 1951,
presidida pelo Governador Amaral Peixoto, do Estado do Rio de Janeiro,
no Teatro Municipal em Niterói, Teixeira de Freitas assim falou:
- 16 O Dia do Estatístico foi instituído pela Resolução nº 190, de 22 de julho de 1941, da AG do CNE. O (...)
- 17 Na verdade, formalmente, desde janeiro de 1938. Teixeira de Freitas, ao se referir a 1937, realça a (...)
Esse
dia, dedicado entre nós a aviventar a nossa consciência cívica e
profissional, a afervorar os nossos sentimentos de zelo pelo bem
público, a fortalecer o nosso “espírito de corpo”, esse dia outro nome
não poderia ter senão este: “Dia dos Geógrafos e Estatísticos”.16 Pois
solidários labutam, no Brasil, os que fazem a Geografia e a
Estatística. E em cada carreira do Sol sob os signos do zodíaco, a
jornada preferida para simbolizar a nossa fraternidade, a serviço da
Pátria e da Humanidade, não haveria de ser outro, também, senão o
histórico dia 29 de maio. Porque foi este o dia em que se instalou em
1936, a instituição criada pelo Presidente Vargas dois anos antes, o
então “Instituto Nacional de Estatística”, o qual, desde 1937,17
posta em prática, em sua plenitude, a ideia que o havia inspirado se
transformou no “Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística”, ou
seja o nosso “IBGE”, hoje tão familiar aos brasileiros de todos os
quadrantes (IBGE, 1951, p. 256-257).
- 18 De setembro de 1952 a setembro de 1954, portanto sob o governo de Vargas, após Polli Coelho. Será s (...)
- 19 Em 18 de julho de 1939, pela Resolução nº 51, da AG do CNG, é concedido ao “grande geógrafo e explo (...)
- 20 Carlos Viegas Gago Coutinho (1869-1959), Almirante da Armada portuguesa, era historiador, matemátic (...)
44A
união seria profícua, como lembraria Teixeira de Freitas em início de
1953, ao tomar posse como membro da Sociedade Brasileira de Geografia,
presentes à solenidade, entre vários outros, Florêncio de Abreu,
terceiro presidente do IBGE,18o General (e futuro Marechal) Cândido Rondon19 e o Almirante Gago Coutinho:20
A Nação talvez ainda não tenha
feito ideia justa, do labor penoso, difícil, cheio de tropeços quase
intransponíveis – que tantos sacrifícios exige e é tão mal recompensado,
– por ela atribuído aos seus Estatísticos e Geógrafos, das mais
modestas às mais elevadas categorias. (...) Eu sei, – e sei-o de
experiência própria – o que custa aos Estatísticos e Geógrafos a dura
tarefa que lhes é confiada. Seja nos recessos dos gabinetes, no
planejamento das campanhas ou na análise dos resultados; nas seções em
que se desenvolvem as tarefas mecanizadas ou as atividades elaboradas ou
complementares, de rotina; ou, ainda, no trabalho externo, no serviço
de campo, cujos agentes são rudemente experimentados, não só pelas
incompreensões e incultura daqueles para quem apelam e que tudo temem do
Governo ainda pelos perigos sem conta, carências e desconforto que
todos enfrentam nas intermináveis viagens, durante as quais muitos
encontram, por vezes a invalidez, vezes outras a morte por acidente ou
traiçoeiras moléstias, – em toda a parte e de qualquer modo, o labor dos
Geógrafos e dos Estatísticos é difícil e de graves responsabilidades.
Posso,
pois, devo e quero dizer-vos, alto e bom som: os Geógrafos e
Estatísticos são na realidade, sob o mais lídimo julgamento, beneméritos
servidores da Pátria, seu merecimento cresce na razão direta da
obscuridade e anonimato das labutas diárias, onde não falta o sacrifício
ignorado, e que orfanam e desgraçam, não raro e sem remédio, inúmeros
lares. Eles é que têm feito em verdade tudo que o Brasil possui como
conhecimento do que é e do que vale, através das observações, pesquisas,
estudos e levantamentos a que procedem.
A eles, meus Senhores, a
esses heróis desconhecidos; a esses pioneiros incansáveis da grandeza do
Brasil, é que eu, compreendo bem o sentido desta homenagem, transmito
por inteiro a glorificação, o reconhecimento, o apreço vosso às
atividades, feliz e definitivamente conjugadas, da Estatística e da
Geografia brasileiras (IBGE, 1953, p. 206).
45A
concepção de Teixeira de Freitas estava quase pronta. Faltava apenas
obter o Fundo Estatístico, com o qual teria recursos autônomos, para
várias atuações, em especial formar as Agências Municipais de
Estatística. Isso viria em início da década de 1940, no contexto do
esforço de guerra, mas foge ao objeto desta narrativa.
46Alexandre Camargo oferece análises históricas bastante consistentes sobre o momento de constituição do INE. De
pronto, rende justiça a Macedo Soares, contra a tradição institucional,
que apenas valoriza Teixeira de Freitas, e o faz dizendo:
- 21 É verdade que tais reuniões representavam negociações entre os governos de Brasil e França, num nív (...)
Após
o término dos trabalhos da Convenção Nacional de Estatística, em agosto
de 1936, suas resoluções foram encaminhadas ao então ministro das
Relações Exteriores e presidente do INE, Macedo Soares. Junto às
resoluções, foi entregue carta de Pierre Deffontaines, em que este
apelava para a adesão do Brasil à UGI, formalizando o apoio daqueles
órgãos supracitados (IHGB, SGRJ, AGB, Academia Brasileira de Ciências)
para a criação de um espaço oficial de geografia. A implicação da
Convenção era clara: criar as condições para melhor articular a
coordenação das atividades estatísticas à exigência dos trabalhos
cartográficos e geodésicos, na fórmula da cooperação interadministrativa
entre federação, estados e municípios. Mas, o chanceler Macedo Soares
foi muito além, valendo-se de sua autoridade, já então como presidente
do INE, para liderar o movimento em favor da institucionalização de um
conselho nacional de sistematização e interpretação das informações
territoriais. A empreitada não era impune ou inocente. Ela se
compatibilizava plenamente com sua trajetória de homem de ação e de
letras, articulando espaços caros à sua autoridade política e
intelectual, em benefício de sua projeção pessoal.
Foi Macedo Soares,
afirmamos, o principal nome no movimento decisivo que levou à criação
do CNG. Nos entendimentos que surgiram, o ministro convocou, com a
aprovação do presidente Vargas, uma comissão das figuras mais
representativas da cultura geográfica brasileira, no Palácio Itamaraty,
com o intuito de apresentarem sugestões para a constituição de um
organismo nacional de geografia, destinado a promover a coordenação das
atividades geográficas brasileiras. Em reuniões realizadas entre outubro
e novembro de 1936, todas sob a presidência de Macedo Soares, foram
vencidas as últimas resistências para a criação do Conselho Brasileiro
de Geografia, logo Conselho Nacional de Geografia, como parte estrutural
do então Instituto Nacional de Estatística.21
Sob seus auspícios e influência direta, foi instalado o Conselho
Brasileiro de Geografia no próprio Palácio do Itamaraty, no dia 1º de
julho de 1937 (CAMARGO, 2009, p. 236-237).
47Por
demais, Alexandre Camargo disserta sobre a prática geográfica, marcando
a existência de um pensamento geográfico, e de uma comunidade
internacional de geógrafos, situação inexistente, até aquele momento, na
atividade estatística, a despeito do emanado dos Congressos
Internacionais de Estatística, no século XIX, e das discussões correntes
no Instituto Internacional de Estatística (ISI, na sigla em inglês).
- 22 “Segundo esta concepção, todos os fenômenos geográficos são únicos e excepcionais. O geógrafo dever (...)
Portanto, havia dois entendimentos sobre a natureza da prática geográfica em questão. Uma
subordinada, técnica, processual, atrelada à atividade estatística,
constante dos trabalhos em cartografia e Geodésia. Proposta bem
diferente sobrevém do “caráter quase enciclopédico da geografia
moderna”, da interpretação sobre o quadro territorial baseada em novas
técnicas de investigação, da exigência de trabalho empírico e de rigor
metodológico, alinhado com a literatura internacional. Sem dúvida, a
pressão de órgãos como a UGI e do governo francês, através do envio de
missões culturais, visavam integrar o Brasil no esforço de classificação
enciclopédica da géographie universelle, em seu objetivo de reunir e integrar o conhecimento das diversas regiões naturais do globo.22
De
fato, são disposições que posteriormente revestiriam a excelência do
Conselho Nacional de Geografia, em sua relativa autonomia de ação, em
sua inserção privilegiada na estrutura dirigente. No entanto, não
incorramos nos vícios do triunfalismo e da teleologia, presentes na
narrativa que ora analisamos. De forma alguma a futura eminência do
Conselho estava em formação gradual e irreversível, como o discurso da
memória nos quer fazer crer. Uma vez institucionalizado o Conselho, em
1937, e sedimentada a trajetória de sucesso do IBGE, desde 1938, este
discurso da comunidade de geógrafos proliferaria, buscando situar a ala
geográfica na unidade de pensamento e ação de Teixeira de Freitas,
fazendo retroagir no tempo certas concepções sobre o papel da geografia,
privilegiando alguns agentes prestigiados e eclipsando outros, com
vistas a monumentalizar o ato da criação (CAMARGO, 2009, p. 232-233).
- 23 Ver CAMARGO, Alexandre de Paiva Rio. A Revista Brasileira de Geografia e a organização do campo geo (...)
48Viriam
missões de geógrafos estrangeiros, que dividiam seu tempo entre o IBGE e
as Universidades, onde formalizavam o ensino da Geografia; em
contrapartida, geógrafos ibgeanos iriam se pós-graduar no exterior, não
raro, na volta, associando-se às universidades brasileiras, ainda que
também ficando no IBGE. Para ajudar nessa formação dos
geógrafos, seria criada uma grande Biblioteca Geográfica Brasileira, com
textos nacionais, e outros traduzidos, em 57 volumes valiosos. E
ganharia regularidade e cientificidade a Revista Brasileira de
Geografia;23
grandes nomes aí publicaram seus artigos, formando gerações futuras.
Vieram as incursões que revelavam o território nacional (as chamadas
“expedições geográficas”), mais e mais utilizando métodos e técnicas
aprimoradas ou avançadas.
Somente
as condições institucionais do CNG poderiam reunir fundos para
patrocinar expedições deste tipo, a exigir equipes inteiras, por semanas
a fio. Estas incursões a campo eram fundamentais para a
implementação da moderna geografia, ciosa da conversão de seus
profissionais a exploradores de seu próprio objeto, a natureza. Todo o
esforço de interpretação sobre o espaço, toda a sistematização das
informações territoriais deveriam se desenvolver dentro da exigência de
trabalhos empíricos profundamente metódicos. (...) “Geografia de
gabinete” e “geografia científica”. A oposição é clara, fala por si. De
acordo com as novas regras de definição do saber geográfico, o que
distinguiria o geógrafo dos antigos eruditos na matéria é, antes do
mais, o trabalho de campo. Este seria realizado nas viagens de
reconhecimento físico do território, de sua geomorfologia e de seu habitat rural (CAMARGO, 2009, 245).
49E
é ainda Alexandre Camargo quem realça um alerta de Francis Ruellan,
orientador científico das expedições do CNG, em seu artigo, de cunho
evidentemente pedagógico, O trabalho de campo nas pesquisas originais de geografia regional:
Esperamos que esta exposição fará sentir que aí reside a verdadeira tarefa do geógrafo. Quando
ele volta ao gabinete de trabalho, é para tirar partido da viagem de
estudos que acabou de realizar e formular problemas que ele estudará na
próxima excursão. Só existe geografia de gabinete para o compilador.
Para o pesquisador, serve apenas de complemento da investigação no campo
que é a fonte viva de toda observação e interpretação nova. Desde a
origem da geografia moderna, todos os grandes mestres não seguiram outro
método, o único em verdade que pode libertar a produção geográfica do
trabalho livresco e do vão palavrório sem base cientifica e sem nenhuma
relação com a vida do Globo. (RUELLAN, 1944, p. 44-45).
50A roda girou. Completada
a incorporação, os dois Conselhos atuariam ora irmanados, ora em
polidos desacordos. O lado científico do CNG várias vezes suplantaria
seu lado técnico, de interesse imediato do CNE, que seguia querendo a
“cartografia geográfica”, para fins estatísticos, provocando lamentos e
queixas.
51Predominava
uma autocrítica saudável. Sabia-se e dizia-se dos atrasos, das falhas,
das faltas. Faziam-se correções. Isso estava na pregação de Teixeira de
Freitas, para quem uma sólida tradição era fundamental, mas não uma
tradição estática; ao contrário, ou seja, sendo sólida exatamente para
permitir mudanças sem atropelos, evoluções sem revoluções. Mas não
tardou para que essas autocríticas perdessem a unidade e tomassem os
matizes de grupos. E viriam as crises.
52Em
1946, com a nova Constituição, o IBGE perderia pouco a pouco o Fundo
Estatístico, visto como uma injunção indevida na autonomia municipal,
reconquistada na redemocratização. A malha de repartições municipais,
entraria progressivamente em crise, com a excessiva criação de
municípios e a falta de recursos (provocada pela extinção do Fundo). Em
1948, já sem Teixeira de Freitas, que deixara a Secretaria Geral,
passando-a para Rafael Xavier, o IBGE estimula uma Campanha
Municipalista, e lança a Revista Brasileira dos Municípios (editada por
vinte anos); estimula ainda a formação da Associação Brasileira dos
Municípios, logo tornada o Instituto Brasileiro de Administração
Municipal (IBAM). O IBGE, de certa forma, “reiventava” os municípios com
essas medidas, para as quais não mediria esforços.
- 24 Ver SENRA, Nelson de Castro (org.). Brasília, as expedições geográficas em busca de um sonho. Rio d (...)
53A
maior crise viria com Polli Coelho, sucessor de Macedo Soares em 1951.
Ele era afinado com a Geografia, tendo sido membro do CNG, mas foi tão
açodado, que não deixou marca positiva alguma.24
Tendo Lourival Câmara como mentor intelectual, estava disposto a
desfazer e, dizia, refazer. Em sua posse, como a chamá-lo à prudência,
Teixeira de Freitas, ao saudá-lo em nome da Sociedade Brasileira de
Estatística, realçou alguns pontos da trajetória da instituição esboçada
por Juarez Távora em 1933 e lançada em 1936 por Macedo Soares:
Seguros eram os seus alicerces; excelentes os moldes. E
os seus “princípios”, a sua “alma”, não ocorrendo desvirtuamento,
resistiram a todas as críticas, a todos os embates, a quaisquer
peripécias e vicissitudes, que não faltariam por certo a um cometimento
de proporções e características inéditas na América – ou no mundo,
poderia talvez dizer. A empresa estava talhada para desafiar o tempo, as
incompreensões e os apetites – de pessoas ou de grupos – que não
hesitam em sacrificar as maiores realizações, quando estas só têm por
objeto o verdadeiro interesse da coletividade.
Mas a instituição, se
desafiava o tempo, não poderia suprimi-lo. Decorridos quinze anos,
estava ainda, não podia deixar de estar – a não ser que se houvesse
tornado um corpo sem alma, precocemente mumificado e enfaixado numa
“perfeita” regulamentação – em fase de grande vitalidade e exuberante
crescimento. Procurava ainda, laboriosa e vigilantemente – esta é a
verdade –, os moldes melhores para a ousada concepção política que
consubstanciava, numa instabilidade natural mas perigosa, que lhe
oferecia o flanco a investidas possivelmente fatais à sua verdadeira
destinação política. Somente uma direção de grande prestígio e que lhe
resguardasse a um tempo a integridade da obra já realizada e a
continuação do trabalho de expansão que haveria de revelar todas as
virtualidades do sistema, – somente esse pulso prudente mais firme,
poderia desviar os perigos que ameaçavam o audacioso sistema (IBGE,
1951, p. 246).
- 25 Ver os Cap. 22 “Crise no IBGE (I): Lourival Câmara inspira Polli Coelho, que fala demais, e no luga (...)
54Mas
Polli Coelho não resistiu à tentação dos holofotes e declarou que as
estatísticas feitas pelo IBGE eram caras, atrasadas e de duvidosa
qualidade. E veio uma crise funda, culminando na sua saída em 1952, sem que nada deixasse de produtivo.25
55Ao
incêndio seguiu-se a fumaça, ainda por muito tempo. O IBGE perdera
harmonia. Teixeira de Freitas, em 1953, lembraria aquela tormentosa
história, mas não sem pensar adiante, imaginando a associação dos
sistemas estatístico e geográfico a um virtual sistema de planejamento, o
que nunca chegou a existir, de fato, mesmo décadas à frente, com a
criação de um Ministério de Planejamento e Coordenação. O mestre das
estatísticas seguia sonhando, pensando o Brasil.
Há
necessidade, pois, seja proclamado por quem tiver autoridade para
tanto, que não está errada em ponto algum a estrutura atual do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística. Haverá nela é natural,
inúmeros aperfeiçoamentos que devem ser introduzidos pouco a pouco,
coerentemente com os seus justos princípios cardeais. Nas suas linhas
essenciais, é fácil verificá-lo, não há nada que mudar, mas muito que
realizar ainda. (...) O perigo imediato a afastar é a transferência do
Instituto “para a jurisdição” de um Ministério, tal como, em virtude de
um lapso lamentável, estabelece a projetada “reforma administrativa”.
Como um sistema intergovernamental de serviços geográficos e
estatísticos, que pertencem simultaneamente como não podem deixar de
pertencer, à União, aos Estados e aos Municípios, o Instituto possui,
nitidamente, inconfundível caráter nacional, que ultrapassa o campo de
jurisdição de qualquer Ministério a que fosse erradamente subordinado.
Dar a um Ministério jurisdição exclusiva sobre ele, seria negar a
jurisdição que também cabe, por sua própria natureza, estrutura e
destino, a todos os demais, bem assim aos Estados e aos Municípios.
Jurisdição coletiva, essa, que é exercida por intermédio dos Conselhos
Nacionais de Geografia e Estatística, nos quais se fazem representar
todos os Governos. Seria dar a um órgão da administração federal o
direito de intervir em todos os Ministérios, e também no exercício de
funções governativas que pertencem por igual aos Estados e Municípios.
Tais funções não podem ser transferidas à União, porque isto seria
indébita “intervenção federal”. E ainda menos por ato unilateral da
mesma União, o que seria manifestamente anticonvencional e
anticonstitucional. Demais disso o Instituto é uma organização sui generis.
Resulta de formais compromissos entre a União e as Unidades Federadas.
Tais compromissos, firmados que foram solenemente, na Convenção Nacional
de Estatística, assentaram de maneira iniludível a autonomia do
sistema, expressa na subordinação direta ao Chefe da Nação, em virtude
do livre assentimento dos Governos Compactuantes. Tal qual, aliás, está
implícito na lógica das atividades do sistema estatístico-geográfico
brasileiro, e tão ajustadamente corresponde, completando-o, ao alvitre
de criação, no mesmo projeto da Reforma Administrativa do Conselho de
Organização e Planejamento, diretamente subordinado ao Chefe de Governo.
É mister que a atual subordinação prevaleça, porque ela é a chave de
abóbada do sistema. Sem ela, a instituição se desvirtuará totalmente,
deixando, a mais disso, atingindo um delicado ponto de ética política,
uma vez que, dessa forma, a União estará denunciando, por ato
unilateral, a Convenção Nacional de Estatística, não mais levando em
conta os compromissos ali expressamente assumidos, aliás,
independentemente de qualquer previsão de denúncia da sua parte (IBGE,
1953, p. 206).
- 26 Ver o Cap. 19 “Em 1960, sétimo Censo Geral: novas técnicas (a novidade da amostragem) e novas máqui (...)
56Após
a rápida reassunção do Embaixador, viria Jurandir Pires Ferreira, um
homem afinado à Geografia (ele, com suas medidas, seria mestre em
desagradar a Estatística). Em sua gestão, entre outras coisas, o
IBGE, via CNG como base, faria a monumental Enciclopédia dos Municípios
Brasileiros, com seus 36 volumes (1957-64), a primeira edição da coleção
Geografia do Brasil (1959), e o primeiro Atlas do Brasil (1959), e
daria término à Carta do Brasil ao milionésimo (1960). Operoso, sem
dúvida, mas vaidoso e conflituoso, deixaria memória controversa.26
57Em
1956, falece Teixeira de Freitas e o IBGE perde seu maior defensor, mas
sua obra, apesar dos altos e baixos, seguiria adiante. A instituição
prossegue, mas seus órgãos colegiados perdem qualidade, de um lado
porque os estados se retraem, até mesmo extinguindo suas repartições
estatísticas e geográficas; na esfera federal, a situação seria
parecida, com vários órgãos saindo dos Conselhos. Há um empobrecimento
do quadro profissional. A necessidade imperativa da utilização de
pesquisas amostrais para novos temas se chocavam com a natureza do
sistema estatístico, em que todas as pesquisas eram censitárias,
cobrindo todo o território nacional, município a município, e todas eram
igualmente prioritárias. O modelo se esfacela.
- 27 Ver os Cap. 18 “1958: Seminário diagnostica deficiência e insuficiência nas estatísticas econômicas (...)
58Desde
1958, começam críticas externas: seminários, grupos de trabalho,
consultorias e alguns balanços conclusivos são elaborados.27
Enfim, em 1967, o IBGE se torna uma fundação pública de direito
privado, recuperando liberdades para renovação do quadro de pessoal,
para orçar e utilizar recursos, e para renovar seus métodos. Teixeira de
Freitas, é dito por todos, apoiaria as mudanças. O novo presidente
(Sebastião Aguiar Ayres) é o primeiro ibgeano na função. Há mudanças,
sem dúvida, mas sem atingir a essência da demanda por estatísticas
econômicas, no contexto do planejamento que deixava de ser meramente de
mobilização psicológica para tornar-se efetivamente operativo. Ainda
havia uma crise visível em 1968, ano em que falece Macedo de Moraes.
- 28 Costuma-se dizer que Isaac Kerstenetzky se apoiou fortemente nos geógrafos para promover suas mudan (...)
- 29 Ver os Cap. 23 “O surgimento da Fundação IBGE, 1967. A presidência Sebastião Aguiar Ayres (primeiro (...)
- 30 Ver os Cap. 25 “A Fundação é refundada com Isaac Kerstenetzky na presidência. Novo olhar de Tulo Ho (...)
59Em
1970, a reforma é ajustada por Isaac Kerstenetzky, economista e
cientista social, o que daria início ao longo ciclo de presença dos
economistas e sociólogos que se somaram aos estatísticos e geógrafos.28
Um novo modelo institucional se impõe: de descentralizado e fortemente
colegiado, passava a centralizado e com decisões unitárias; de
coordenador, produzindo só eventualmente, torna-se fortemente produtor.29
Vem então o Plano Geral de Informações Estatísticas e Geográficas
(PGIEG), em que, pela primeira vez, a Geografia é explicitada no
programa de trabalho institucional, assumindo posição de destaque.30
É o tempo da Geografia Quantitativa, liderada por Speridião Faissol,
com o trabalho de gabinete suplantando o de campo – as excursões
geográficas que haviam tido destaque nas décadas anteriores.
60Em
diante, já além dos objetivos desta narrativa, pouco a pouco as várias
partes da Geografia, que eram funções do CNG, ganharam especialização e
autonomização. O primeiro segmento temático a ser assim tratado foi a
Geodésia e a Cartografia (sempre postas juntas), depois seria a vez da
Base Geográfica para fins estatísticos, seguida da separação, em tempo
mais recente, dos Estudos Ambientais. Assim, hoje, a Geografia ainda que
siga na sigla e no nome, está restrita a uma unidade funcional, a nosso
juízo, em crise evidente de identidade. Todos esses temas, agora
autônomos, formam uma Diretoria de Geociências (par a par com outras
Diretorias).
61Apesar
dos pesares, em quase quatro décadas de existência, o IBGE apresentou
contribuições significativas, e não apenas no contexto da estatística, o
que é mais visível, mas também no âmbito das geociências. Novos mapas e
atlas foram feitos com modernas tecnologias, satélites foram usados,
dando melhor controle do território, o quadro de pessoal foi renovado,
contratando-se excelentes profissionais. Novas chefias, com excelente
formação, vêm renovando os programas de trabalho, trazendo avanços, e
sabendo motivar os técnicos. Por tudo isso, é possível (e justo)
expressar otimismo. Em pouco tempo, por certo, o IBGE será de novo
influente nas geociências.