1O
presente texto tem como propósito apresentar ao público algumas
passagens ainda pouco percorridas na história da Geografia no Brasil,
embora fundamentais na construção de um arranjo historiográfico mais
aberto da disciplina, que reconheça a diversidade de agentes,
organizações e fóruns acadêmicos responsáveis pela conformação,
consolidação e afirmação da ciência geográfica no país.
2Serão
aqui exploradas passagens que põem em evidência alguns fatos,
personagens e produções acadêmicas desconhecidos de ampla parcela dos
geógrafos brasileiros, integrando-os em um fluxo comum que os articulem
ao movimento de realização da Geografia no Brasil, reconhecendo suas
contribuições tanto no campo científico como pedagógico.
3Particularmente,
enfocaremos a realização do 5º Congresso Brasileiro de Geografia,
realizado na cidade de Salvador em 1916, presidido pelo
engenheiro-geógrafo baiano Theodoro Sampaio, mas orquestrado pelo
professor do Ginásio da Bahia e Secretário do Instituto Geográfico e
Histórico da Bahia – IGHB, Bernardino José de Souza, observando as
contribuições deste personagem para a institucionalização e renovação
epistemológica da ciência geográfica no Brasil.
4A
abordagem histórica neste trabalho segue os pressupostos
teórico-metodológicos do filósofo alemão Walter Benjamin (1996, 2006) – o
discurso/arranjo historiográfico tornar-se um texto aberto a
novas-velhas contribuições quando visto sob a ótica benjaminiana,
podendo ser resignificado a todo momento.
5Segundo
Seligmann-Silva (2006), Benjamin rompe com a crença positivista de que
seria possível acessar os eventos do passado exatamente como se deram
suas realizações. Nas palavras do próprio Benjamin (1996: 224-29):
[A]rticular historicamente o
passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa
apropriar-se de uma reminiscência (...). A história é objeto de uma
construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo
saturado de ‘agoras’.
6O
que chamamos história são arranjos de fragmentos, um encadeamento de
fatos contados segundo a posição de quem os conta (Seligmann-Silva,
2006). Não se trata de relativismo vazio ou abstrato, mas da compreensão
de que nem todas as passagens da vida cotidiana são percorridas pela
historiografia dominante – a história toma outros contornos quando vista
e arranjada por outros ângulos (Benjamin, 1996, 2006).
7Neste
sentido, percorreremos ao longo deste texto algumas passagens pouco
conhecidas no tocante a um dos mais importantes eventos da história da
Geografia no Brasil, pondo em evidência um de seus mais relevantes
autores, proponente de sistematizações metódicas e conceituações da
ciência geográfica no âmbito de fóruns nacionais precedentes à formação
da disciplina, assentada nas instituições de ensino superior criadas
após a década de 1930 no território nacional.
8A
reduzida bibliografia sobre o professor Bernardino José de Souza o
retrata como um homem oriundo da aristocracia rural do Império. Nasceu
no dia 8 de fevereiro de 1884, cinco anos antes da Proclamação da
República, no engenho Murta, localizado no atual município de
Cristinápolis (Sergipe), antiga Vila Cristina, mas foi registrado em Rio
Real, antigo município de Barracão, Bahia (Mattos, 2013 [1984]).
9Bernardino
José de Souza descende, pelos eixos paterno e materno, de famílias há
muito fixadas na Bahia, produtoras de açúcar e destacadas no cenário
político do Brasil imperial, mas originalmente vindas de Portugal, na
condição de sesmeiros instalados na transição entre as regiões semiárida
e litorânea, entre os atuais estados da Bahia e Sergipe (Mattos, 2013
[1984]).
- 1 Ernesto Carneiro Ribeiro é considerado um dos maiores filólogos da Bahia, de amplo domínio das letr (...)
10Em
1894, já na Primeira República, aos dez anos de idade, Bernardino de
Souza deixou a fazenda Murta para instalar-se em Salvador, a fim de
prosseguir os estudos e ficar aos cuidados do renomado educador Ernesto
Carneiro Ribeiro, professor de nomes de destaque nos cenários político e
cultural da Bahia do final dos oitocentos e início dos novecentos.1
No ano de 1900, aos dezesseis anos de idade, Bernardino de Souza
ingressou na Faculdade de Direito da Bahia, onde se diplomou quatro anos
depois (Nogueira, 2013 [1949]; Mattos, 2013 [1984]).
11Mas
foi na prestigiada escola do professor Ernesto Carneiro Ribeiro, na
capital baiana, que Bernardino José de Souza iniciou sua trajetória na
ciência geográfica. Destacando-se desde cedo como aluno exemplar, logo
passaria a exercer o magistério no Ginásio Carneiro Ribeiro, lecionando
Geografia a partir de 1905, ano em que também casou-se com Maria Olívia,
filha do professor Carneiro Ribeiro (Nogueira, 2013 [1949]; Mattos,
2013 [1984]).
12Já
em 1906, Bernardino de Souza passou a também lecionar História Universal
e do Brasil, além de tornar-se professor da Faculdade de Direito da
Bahia, onde ministrou cursos de Direito Internacional Público. Ascendeu
na carreira docente obtendo prestígio na instituição de ensino superior
onde se formou. Quase uma década depois, em 1915, foi nomeado professor
catedrático do então Ginásio da Bahia, instituição de ensino mais
importante de Salvador, tornando-se diretor do Ginásio no ano de 1925 e,
novamente, entre 1929 e 1934 (Mattos, 2013 [1984]).
Figura 1 – Bernardino José de Souza
Fonte: IGHB, Arquivo Theodoro Sampaio.
13Bernardino
de Souza também trabalhou na legislatura e na administração pública,
onde atuou com o mesmo empenho dedicado ao ensino, tendo o nacionalismo
como eixo de suas ações. Foi eleito (1905/1906) e reeleito (1907/1908)
deputado estadual pelo Partido Republicano da Bahia – PRB, fundado pelo
ministro de Estado Severino Vieira (1849-1917), homem de forte
influência política nas escalas regional e nacional. Na Câmara dos
Deputados da Bahia mostrou-se um bom orador, qualidade que ajudou a
impulsionar a sua carreira na vida pública (Tavares, 2008; Francisco,
2013).
14Nos
meses em que ocupou o cargo de Secretário do Interior e Justiça do
Estado da Bahia, durante a curta interventoria de Arthur Neiva
(fevereiro a julho de 1931), Bernardino de Souza destacou-se como
articulador de reformas municipais importantes no interior do estado da
Bahia. Mais do que homem de confiança do interventor, exerceu, ele
próprio, funções de interventor na Bahia nesse período, rompendo com a
tradição política de os governos do estado, na Primeira República, não
ultrapassarem as funções de uma segunda prefeitura municipal da capital
(Teixeira, 2013).
15No
ano de 1934, Bernardino de Souza foi nomeado juiz da Câmara de
Reajustamento Econômico, com sede no Rio de Janeiro, mudando-se então
para a capital da República. Ali passou a exercer a presidência da Casa
até março de 1937, quando foi nomeado ministro do Tribunal de Contas da
União – TCU, no qual chegou ao posto máximo de Presidente (Francisco,
2013).
16Quando
ministro do TCU, Bernardino de Souza ainda participaria de duas
jornadas acadêmicas de abrangência nacional, na condição de expositor e
de presidente. Em outubro de 1938 esteve presente no 3º Congresso de
História Nacional, onde apresentou a tese O Pau Brasil na História Nacional,
publicada um ano mais tarde e considerada um dos seus principais
livros; em 1940, presidiu o 9º Congresso Brasileiro de Geografia, no
estado de Santa Catarina. Seguiu trabalhando em obras de teor geográfico
até 1949, ano do seu falecimento (Francisco, 2013).
- 2 No ano de 1941 foi criado o primeiro curso superior de Geografia e História na Bahia. Com diretrize (...)
17Em
termos de organização institucional ligada à Geografia, além dos fóruns
acadêmicos que coordenou, Bernardino de Souza viajou pelo Brasil e pelo
interior da Bahia em busca de recursos, junto a setores públicos e
privados, que lhe permitiram inaugurar a atual sede do IGHB, edificada
com base em planta arquitetônica concebida pelo sócio e futuro
presidente da agremiação, Theodoro Sampaio (Francisco, 2013). O IGHB foi
tido até o início dos anos 1940 como o principal centro de estudos e
pesquisas em Geografia na Bahia.2
18No
tocante à produção acadêmica, Bernardino de Souza ganhou projeção
nacional junto à comunidade geográfica a partir da apresentação do
trabalho intitulado A remodelação do ensino da Geografia é uma necessidade inadiável, tendo como base a criação de uma cadeira de Geografia Física,
no 1º Congresso Brasileiro de Geografia, ocorrido em 1909, no Rio de
Janeiro, representando o Ginásio Carneiro Ribeiro e o Instituto
Geográfico e Histórico da Bahia (Souza, 1909; Nogueira, 2013 [1949]).
19Além
do texto de 1909, um dos primeiros a colocar o ensino de Geografia no
Brasil em sintonia com as novas matrizes científicas da disciplina,
Bernardino de Souza publicou também outra proposta metodológica digna de
nota – O Ensino Primário de Geografia (1914a). Por solicitação
do governo da Bahia, o autor elaborou este programa de ensino dividido
em três seções: a) planos de estudo da Geografia Geral; b) Geografia do
Brasil, e c) Geografia da Bahia. Com a definição das três seções, o
professor do Ginásio da Bahia construía a ponte didática entre a
Geografia Geral e a Geografia Particular, como será visto mais à frente.
20Passado
o 1º Congresso Brasileiro de Geografia, o professor Bernardino de Souza
esteve presente nos nove congressos de Geografia que se seguiram no
Brasil, promovidos pela Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro e
institutos históricos e geográficos estaduais (ao todo foram oito
jornadas na Primeira República e duas na Era Vargas), chegando à
presidência da Comissão Organizadora do 9º Congresso Brasileiro de
Geografia, realizado em 1940 em Florianópolis (Nogueira, 2013 [1949];
Cardoso, 2013).
21Ao
lado das publicações citadas, inovadoras no campo do ensino de
Geografia, Bernardino de Souza é também autor de livros e artigos como Limites do Brasil (1911); Elogio do Barão de Rio Branco (1912); Por mares e terras (1913); Geografia das cidades (1913), texto pioneiro da Geografia urbana no Brasil; Corografia do estado do Piauí (1913); A Ciência Geográfica: seu conceito e suas divisões (1914); O problema das fontes do Amazonas (1916); O município de Bom Conselho (1916); Onomástica Geral da Geografia brasileira (1927); O pau-brasil na história nacional (1939); Ciclo de carros bois no Brasil (1958), entre outros.
22Sobre
as obras de teor geográfico do professor do Ginásio da Bahia, cabe aqui
reproduzir alguns comentários feitos por autores que se debruçaram
sobre o livro Ciclo de carros de bois no Brasil. Não se
tratando de autores quaisquer, mas sim de nomes do peso de Anísio
Teixeira e Guimarães Rosa, tais testemunhos permitem aquilatar a
contribuição de Bernardino de Souza para o conhecimento da terra e da
gente do Brasil, para usarmos a formulação cunhada por ele próprio em
1937, ao renomear sua Onosmática Geral, quando publicada na Coleção Brasiliana.
23Assim descreve Anísio Teixeira o livro do professor do Ginásio da Bahia:
É uma pesquisa em profundidade,
com material planejado e reunido pelo autor, material este que
normalmente exigiria uma equipe distribuída pelos quatro cantos do país.
A indomável energia de Bernardino de Souza conseguiu emoldurar seu
vasto painel, cheio de variantes no tempo e no espaço, e transformá-lo
em obra monumental de arte e de pensamento a um só tempo: inspiração
para o artista e instrumento de trabalho para o cientista social.
(Teixeira, 2013: 267)
24“Monumental” também é palavra que salta no texto de Guimarães Rosa:
Monumental, para admiração e
exemplo, ensina e comove. É preciso lê-lo para se ter real imagem de
como o Brasil se fez. Saber como, com as tropas de muares e as tangidas
boiadas, tanto coube ao rústico veículo – ao arcaico, ao tardonho, ao
romântico, ao heroico, ao bulhento, ao primevo, ao rudimentar, ao
chambão, e, contudo, eficaz carro-de-bois, pioneiro dos transportes – na
longa desbrava e tomada de nosso território interior, esse difícil
imenso. (Rosa, 2013: 268)
25Ainda
sobre o livro, considerado expressão da maturidade intelectual de
Bernardino de Souza, Péricles Madureira de Pinho, ex-ministro de Getúlio
Vargas, relata o esforço e o caminho metodológico percorrido pelo autor
na compilação do material sobre o qual se debruçou por quatro anos. O
início das pesquisas teria se dado timidamente, em caráter exploratório,
construído a partir de informações recolhidas junto a amigos e pessoas
conhecidas das cercanias da fazenda Murta, onde nascera. Nas palavras de
Pinho (2013: 94):
Desse início de colheita de
material, veio a ideia de imprimir um questionário e distribuí-lo por
todo o país, entre pessoas experientes da nossa vida agrária. Os
quesitos foram estudados e reestudados. (...) E as gravuras e as
fotografias para a ilustração foram sendo recolhidas (...) Em livros, em
revistas, nos arquivos, nas bibliotecas, foram sendo desenterradas
ilustrações para o livro. De dezenas foram a centenas e ultrapassaram o
milhar. Trabalhou febrilmente durante quatro anos. Concluída a tarefa,
vieram as desilusões quanto à publicação imediata. (...) A sua natureza e
a sua extensão foram entraves irremovíveis a uma pronta impressão da
obra.
26Outros
estudiosos que pesquisaram a obra de Bernardino de Souza nos fornecem
informações adicionais que ajudam a completar o perfil intelectual e
político do professor baiano. O historiador colombiano German
Arciniegas, em texto publicado no Jornal da Bahia, em fevereiro de 1984,
evoca as motivações nacionalistas e o ensejo que fez surgir e alimentou
em Bernardino de Souza a ideia de uma obra alinhavada pela trajetória
do uso de um objeto técnico na extensão do território nacional, o carro
de bois. Em suas palavras:
Bernardino de Souza revestia
todas as coisas do sentido da geografia humana (...). Um dia chegou a
Montevidéu e viu o monumento à carreta de José Belloni no Parque Battle y
Ordónez, onde os uruguaios puseram mais bronze, mais pátria, mais
emoção que em nenhuma estátua pessoal. As pessoas acostumadas a ver nas
capitais a estátua ao general da Independência ficam perplexas ante esta
manifestação poética de um povo que põe em bronze as juntas de bois, a
carreta que conduziu os bravos de Artiga na ‘redota’, o gaúcho anônimo
no pampa com seu agulhão... Bernardino viu tudo isso e disse: é preciso
fazer o livro de carro de bois. E pôs mãos à obra. (Arciniegas, 2013
[1984]:136)
27Já o
professor Waldir de Oliveira, professor da antiga Faculdade de
Filosofia da Bahia, um dos primeiros membros do Departamento de
Geografia da Universidade Federal da Bahia – UFBA e sócio do Instituto
Geográfico e Histórico da Bahia assim se refere ao livro Ciclo do Carro de Bois no Brasil:
(...) podemos aqui compará-lo a
um outro trabalho, já famoso no mundo inteiro, publicado apenas cinco
anos antes do livro de Bernardino de Souza, no ano de 1955. Trata-se do
livro ‘L’ Homme et la Charrue à travers le Monde’, de André G.
Haudricourt e Mariel Jean-Brunhes Delamare, esta última filha do grande
mestre da Geografia francesa, Jean-Brunhes [sic]. Os autores europeus,
trabalhando com todas as facilidades que o universo acadêmico do Velho
Mundo lhe propiciou, não ultrapassaram, contudo, em erudição, ao nosso
Bernardino, intelectual de província, vivendo num país subdesenvolvido e
com poucos recursos postos à sua disposição. O surgimento, pois, desse
trabalho, na França, engrandece ainda mais a obra do autor brasileiro.
Se lá trataram do arado, Bernardino escolheu como tema o vulgar carro de
bois (...). Em muitos pontos, especialmente no da documentação, através
de desenhos, gravuras ou fotografias, o trabalho de Bernardino suplanta
o dos autores franceses. Podemos assim considerá-lo um trabalho de
gigante. (Oliveira, 2013: 54-55)
28Tendo
em vista toda a extensão da obra de Bernardino de Souza, suas
contribuições em termos de atualização epistemológica da Geografia no
Brasil já eram significativas desde o final da primeira década do século
XX, particularmente no tocante ao ensino, discutido por ele no texto de
1909 mencionado. Já a primeira proposta de sistematização metódica
acompanhada de uma conceituação para a Geografia feita pelo professor do
Ginásio da Bahia está apoiada em mestres atuantes em universidades na
Europa e na América do Norte, como Davis, De Martonne e Lawson (de quem
toma emprestada a expressão geomorfogenia).
- 3 A memória foi apresentada no 3º Congresso Brasileiro de Instrução (Salvador, 1913) e publicado um a (...)
29Tais influências se expressam claramente na argumentação desenvolvida por Bernardino de Souza na memória A ciência geográfica: seu conceito e suas divisões. Seriação lógica dos estudos geográficos, 3 que, devido ao seu grande interesse, merece aqui um breve comentário.
30O
texto parte de uma divisão consagrada da ciência geográfica em Geral e
Particular, estabelecida por Ptolomeu e atualizada por Varenius em
meados do século XVII. Na versão apresentada por Bernardino de Souza,
embebida da cultura científica do final do século XIX, a Geografia Geral
daria conta da parte teórica e racional, efetuando estudos analíticos e
identificando leis gerais para os fenômenos em si, enquanto a Geografia
Particular estaria pautada precisamente na descrição e na explicação
racional de territórios definidos, combinadas ao conhecimento do geral.
31Dada
a preocupação do professor baiano de identificar – e entrecruzar – as
diversas ramificações do estudo geográfico, a divisão básica referida e
suas subdivisões são discutidas exaustivamente. Mas este aspecto está
longe de esgotar a questão. Para Bernardino de Souza, o estudo
geográfico só mereceria esse nome se articulasse os fenômenos físicos
aos elementos bióticos, ainda que tal relação fosse tratada através de
uma abordagem morfológica ou tipologizada, quando abarcasse os grupos
humanos.
- 4 Somente alguns anos mais tarde o autor assumiria a Antropogeografia como campo individualizado, tra (...)
32A
dimensão inorgânica (terra, água e ar), identificada pelo autor como
Geografia Física, deveria, portanto, estar vinculada à dimensão por ele
denominada de Biogeografia (que incluía, naquele momento, a
Antropogeografia) (Souza, 1914).4 A conceituação que Bernardino de Souza atribui à Geografia é exemplar desse esforço de integração:
A geografia enquanto ciência é o
estudo racional da Terra em suas partes constitutivas, formas e
fenômenos que nela se encontram e realizam, seres que a povoam e
habitam, evidenciando as correlações entre os mundos orgânico e
inorgânico. (Souza, 1914:11)
33A
integração entre essas duas dimensões constituía, assim, a culminação do
estudo geográfico para Bernardino de Souza, em uma perspectiva
estreitamente afinada com a noção de organismo terrestre,
evidenciada por Ratzel e difundida extensamente nos círculos acadêmicos –
inclusive extrageográficos – no final do século XIX e início do
seguinte. É justamente esta nova visão que permitia a superação das
versões estáticas e dicotômicas estabelecidas no ensino de Geografia,
que o professor do Ginásio da Bahia tanto combatia.
34No
âmbito do 5º Congresso Brasileiro de Geografia, tratado de modo
detalhado no tópico seguinte, a contribuição mais importante de
Bernardino de Souza, além da própria organização do evento, diz respeito
à sua segunda proposição de método científico para a Geografia.
Trata-se das monografias regionais descritivas, que foram realizadas em
vinte e três municípios baianos no mesmo ano de 1916, sendo alguns
desses municípios contemplados com mais de uma monografia, totalizando
assim a feitura de mais de trinta monografias regionais (Souza, 1916;
1918).
- 5 Os professores Bernardino de Souza, Pierre Monbeig, Jorge Zarur e Francisco José de Gomes Oliveira (...)
35As
contribuições de Bernardino de Souza se estenderam pelas décadas
seguintes. Em 1940, já na Era Vargas, o professor do Ginásio da Bahia,
então Ministro do TCU e residente no Rio de Janeiro, se destacaria
novamente em âmbito nacional ao presidir o 9º Congresso Brasileiro de
Geografia. Da jornada acadêmica realizada em Florianópolis, participaram
ou aderiram ao Congresso nomes como Pierre Monbeig, 5
Aroldo de Azevedo, João Dias da Silveira, Delgado de Carvalho, Orlando
Valverde, Fernando Raja Gabaglia, Ari França, Caio Prado Junior,
Fernando de Azevedo, Eurípedes Simões de Paula, João Dias da Silveira,
entre outros representantes da recém-instituída Geografia universitária
no Brasil (IBGE, 1941).
36Sistematicamente,
os Congressos Brasileiros de Geografia promovidos pela Sociedade de
Geografia do Rio de Janeiro (SGRJ) e institutos histórico-geográficos
estaduais foram realizados, por ordem cronológica ascendente, nas
cidades do Rio de Janeiro (1909), São Paulo (1910), Curitiba (1911),
Recife (1915), Salvador (1916), Belo Horizonte (1919), João Pessoa
(1922) e Vitória (1926). Após o fim da Primeira República mais dois
congressos foram promovidos pela SGRJ em parceria com o recém-criado
Conselho Nacional de Geografia (CNG): em Florianópolis (1940) e,
novamente, no Rio de Janeiro (1944) (Cardoso, 2013).
37Dos
oito congressos realizados na República Velha, o mais expressivo, com
maior número em adesões, em trabalhos apresentados e em páginas
publicadas foi o de Salvador – 1507 adesões, 111 trabalhos apresentados e
1.877 páginas publicadas nos anais do evento, divididas em dois tomos
(Souza, 1916; Cardoso, 2013).
38A
título de comparação, em relação aos dois estados em que foram criados
os dois primeiros cursos universitários de Geografia no Brasil na Era
Vargas, o congresso realizado no Rio de Janeiro, observando os mesmos
parâmetros, ocupa o segundo lugar em dimensões de participação e
publicação, com 557 adesões, 108 trabalhos apresentados e 1.400 páginas
publicadas, em doze volumes. Já o congresso de São Paulo contou com 348
adesões e 79 trabalhos apresentados e sem publicação de anais (Cardoso,
2013). Para melhor visualização comparativa, veja-se a tabela 1:
39Tabela 1: Adesões, trabalhos apresentados e páginas publicadas por congresso
|
Adesões
|
Trabalhos
|
Anais (páginas)
|
|
Salvador (1916)
|
1057
|
111
|
1877
|
|
Rio de Janeiro (1909)
|
557
|
108
|
1400
|
|
São Paulo (1910)
|
348
|
79
|
-
|
40Fonte: adaptado de Souza (1916) e Cardoso (2013).
41Não
seria supérfluo, aqui, apresentar alguns dados sobre o 5º Congresso
Brasileiro de Geografia. Sua diretoria foi eleita em dia 17 de dezembro
de 1915, contando dos seguintes nomes: Theodoro Sampaio (presidente);
Braz do Amaral (vice-presidente); Bernardino de Souza
(secretário-geral); Joaquim dos Reis Magalhães (1º secretário); Revault
de Figueiredo (2º secretário); e Arnaldo Pimenta da Cunha (tesoureiro),
primo de Euclides da Cunha e futuro prefeito de Salvador. Foram ainda
escolhidos como presidentes de honra o Dr. Antônio Ferrão Moniz de
Aragão, governador do estado da Bahia, Dr. Joaquim José Seabra e Barão
Homem de Mello, ex-governador e ex-presidente da província da Bahia,
respectivamente (Souza, 1916).
|
Figura 2: Comissão organizadora do 5º Congresso Brasileiro de Geografia
Sentados,
de aparência mais idosa, Theodoro Sampaio, Barão Homem de Melo, e
Ernesto Carneiro Ribeiro. Em pé, do lado direito de Carneiro Ribeiro,
Bernardino José de Souza.
|
|
Fonte: Arquivo Theodoro Sampaio, IGHB.
|
42Em
25 de dezembro de 1914, em pleno festejo natalino, a Comissão
Organizadora iniciou a divulgação da jornada acadêmica por todo o país,
por meio de ofícios, cartas, convites, boletins de adesão e circulares
para a imprensa de diversos estados. Foram emitidos 14.322 textos de
divulgação, entre cartas, circulares, regulamentos e boletins de adesão;
582 ofícios e 54 telegramas (Souza, 1916).
43Pode-se
perceber através das palavras de Bernardino de Souza que um apelo
territorial forte, de caráter nacional e regional, imprimia o tom do
evento. A ideia de união em torno do território baiano pautou o
desenrolar dos trabalhos e a de execução do Congresso:
Todos por um e um por todos foi o
nosso lema na porfia afanosa, em que um dos nossos – Dr. Arnaldo de
Campos – descortinou o trabalho pelo supremo ideal da união dos
brasileiros, transformado pelo amado decano dos educadores da Bahia –
Dr. Ernesto Carneiro Ribeiro – na divisa que correu todo o Cruzeiro.
A
imprensa da Bahia sem demora alimentou o fogo sagrado: Xavier Marques, o
maior dos nossos literatos, apelava para o povo baiano e escreveu na
sua frase tersa e elegante: alie-se com o Governo e com a esforçada
Comissão Organizadora do Congresso o publico baiano, por todas as suas
classes inteligentes, cultivadas e prestimosas, e o resultado será
infalivelmente o mais profícuo para a ciência e o mais honroso para o
nome da Bahia. (Souza, 1916: 10-11)
44Em
uma passagem do texto, Bernardino de Souza enaltecia o evento
ressaltando que o congresso de Salvador contou com mais adesão do que as
quatro jornadas acadêmicas de Geografia anteriores no Brasil e mais
participações do que os dois congressos internacionais que lhe
antecederam, o de Genebra e o de Roma (Souza, 1916). Quanto à dinâmica e
aos antecedentes da jornada de Salvador, é possível imaginar a
atmosfera que lhes envolvia a partir das palavras do professor do
Ginásio da Bahia:
Foi no dia 16 de setembro de
1915: uma assembleia majestosa, maior de 200 pessoas da fina flor da
sociedade pernambucana [refere-se ao 4º Congresso Brasileiro de
Geografia], aclamou o nome celebrado da Bahia, indicada por unanimidade
de avisos para sucessora dos triunfos científicos na investigação da
terra brasileira (...) Agradeci em nome da Bahia a escolha honrosa, e em
momento solene jurei que ela cumpriria o seu dever e na pugna futura
não se forraria a trabalhos para perlustrar a senda iluminada que o
Distrito Federal iniciara e a pauliceia gloriosa abrilhantara com a sua
forma justíssima, e onde o Paraná e Pernambuco assentaram com fulgores o
terceiro e quarto marcos miliários (...) O seu Governo não desatendeu a
grande obra patriótica e o Instituto Geográfico e Histórico, que vai, a
lanço e lanço, conquistando as simpatias de todos os baianos,
empenhou-se na maior cruzada de sua história benemérita, na recordação
dos avoengos ilustres ou na semeadura de exemplos para a futuro: sob os
auspícios de ambos é que se iniciaram e hoje chegam a termo os trabalhos
preparatórios, agora transformados em realizações práticas para a
glória de nossa terra. (Souza, 1916: 8-9)
45Tomando
ainda como base as palavras do professor Bernardino de Souza, podemos
observar, além da crescente expectativa de setores da sociedade em torno
do Congresso de Geografia, algumas das mais notáveis referências nas
quais se apoiava naquele momento a produção geográfica dos associados do
IGHB, mas também de um número significativo de autores que escreveram
sobre os problemas geográficos da Bahia e do Brasil. As menções
primeiras recaem sobre os geógrafos alemães e suas concepções
científicas, mas as alusões não deixam de lado as formulações
provenientes de outros países.
Poucas ciências suscitam hoje
interesse mais amplo, mais prático, mais científico. [que a Geografia].
Muito longe de ser um agregado eclético de ciências várias, é uma coesão
sistemática de partes dominadas por uma ideia central unificadora, que é
a do homem no sistema do mundo e do mundo no sistema do universo.
Alexandre
Von Humboldt e Karl Ritter desenharam-lhe novos horizontes e, quando,
meado o século 19, desapareceram os dois grandes vultos, campo
vastíssimo nas suas raias, mas preciso no seu caráter legaram aos
discípulos de dois continentes. A superfície da Terra é teatro das mais
sugestivas investigações, desde que se considere não como um espaço
inerte, mas como grandioso laboratório, em que tudo se transforma e tudo
depende do jogo de vários elementos, colaborando as forças da natureza
na obra da humanidade e cooperando esta para o desenvolvimento das
energias físicas e biológicas, com as que vive em íntima solidariedade
no tempo e no espaço (...) eis o motivo primeiro dos entusiasmos dos
pedagogos pela ciência de Reclus e Davis. (Souza, 1916: 16)
46Dentre
as 1.557 adesões ao 5º Congresso de Geografia, realizado em Salvador,
seis foram de estados da Federação, 18 de municípios, 63 referem-se a
instituições e associações diversas interessadas pela Geografia, 34
foram enviadas por damas e 936 por cavalheiros.
- 6 Como houve acentuadas mudanças nos limites municipais e estaduais no Brasil ao longo do século XX e (...)
47Por
ordem quantitativa decrescente, as adesões se dividiram no Brasil da
seguinte forma: Bahia (737); Rio de Janeiro (79); Pernambuco (25); São
Paulo e Minas Gerais (23); Ceará (19); Alagoas (18); Santa Catarina
(17); Paraíba (13); Sergipe (12); Rio Grande do Norte (11); Rio Grande
do Sul (10); Paraná (8); Mato Grosso e Goiás (6); Maranhão (5); Pará
(4); Espírito Santo e Piauí (02); Acre e Amazonas (1). Externas ao
Brasil, as adesões contemplaram quatro países: Uruguai, Paraguai,
Argentina e Portugal (todos com apenas uma adesão) (Souza, 1916).6
- 7 Os documentos referentes ao congresso reconhecem esses pesquisadores como geógrafos.
48Ao longo dos cinco dias em que foi realizado o Congresso em Salvador, foram expostos retratos de geógrafos,7
desconhecidas que eram suas fisionomias do grande público. A galeria
era composta por 19 personagens, alguns dos quais ainda vivos quando da
realização do evento. São eles: Pieter Lund, Agassiz, Frederick Hartt,
Orville Derby, Henri Coudreau e Mme. Coudreau, Alm. Mouchez, Élisée
Reclus, Carl Von Martius, Theodoro Sampaio, Euclydes da Cunha, Cândido
Rondon, Couto de Magalhães, Barbosa Rodrigues, Candido Mendes, Severiano
da Fonseca, Antônio Rebouças, Moreira Pinto e Barão Homem de Mello
(Souza, 1916).
49No
congresso de Salvador foram realizadas algumas inovações em relação às
quatro jornadas anteriores: as seções de Geografia Física e de Geografia
Política foram separadas em duas subáreas; foi introduzida a seção
Antropogeografia, também denominada de Geografia Humana; finalmente, a
Geografia Biológica passou a ser tratada como Biogeografia (Souza, 1916,
Cardoso, 2013).
50O Congresso foi dividido em 12 secções:
-
– Geografia Matemática (Geoplanetologia, Noções topográficas e geodésicas, Cartografia);
-
– Geografia Física (Aerologia, Oceanografia e Geomorfologia);
-
– Geografia Física (Hidrografia terrestre, Potamologia e Limnologia);
-
– Vulcanologia e Sismologia;
-
– Climatologia e Geografia Médica;
-
– Biogeografia (Fitogeografia e Zoogeografia);
-
– Antropogeografia ou Geografia Humana;
-
– Geografia Política e Social;
-
– Geografia Econômica e Comercial e Geografia Agrícola;
-
– Geografia Militante e Geografia Histórica;
-
– Ensino de Geografia, Regras e Nomenclaturas;
-
– Monografias descritivas regionais.
51De
todas as contribuições do evento à conformação da Geografia no Brasil, a
mais importante parece mesmo ter sido a feitura das monografias
regionais descritivas, aplicadas às circunscrições territoriais dos
municípios. O plano, publicado no Diário Oficial da Bahia, em 5 de
fevereiro de 1916, trazia como exigência o levantamento de informações
sobre mais de trinta tópicos, entre os quais: nome da circunscrição,
origem histórica, formas e dimensões, formação geológica, formas de
relevo, flora, clima, hidrografia, organização político-administrativa,
instrução pública, agricultura, pecuária, comércio, entre outros (Bahia,
1916).
52Nas
advertências preliminares da monografia regional descritiva que
realizou em parceria com o Juiz de Direito da Comarca de Bom Conselho,
João Mendes da Silva, sobre o município de Bom Conselho, o professor
Bernardino de Souza destaca os procedimentos que levou a termo para a
ampla divulgação e a realização das monografias regionais no estado da
Bahia (Souza, 1916; 1918):
Por força do meu cargo de
Secretário geral da Comissão Organizadora do 5º Congresso Brasileiro de
Geografia, tive a honra de pedir a todos os Intendentes dos nossos
Municípios, Juízes de Direito, Promotores e Juízes Municipais das nossas
comarcas e termos, bem como os intelectuais em geral, a feitura e
remessa de monografias descritivas dos Municípios ou Comarcas em que
administrativamente e judicialmente se divide o estado da Bahia. O
pedido era oportuníssimo: não se conhecendo a Geografia do amplo
território baiano julguei, como julgo ainda, que um dos meios mais
fáceis de se iniciar um trabalho geográfico completo sobre o Estado, é a
elaboração de monografias regionais que, mais tarde, ajustadas e
conjugadas por competentes, podem dar em resultado a Corografia da
Bahia, escoimada das falhas que tanto a adulteram. Nos labores desta
propaganda publiquei no ‘Diário Oficial’ do Estado da Bahia de 5 de
fevereiro de 1916 uma nota vulgarizadora do 5º Congresso, na qual
apresentava o plano metodizado do que deviam conter as referidas
monografia (...). (Souza, 1918: 221)
53As
palavras do professor Bernardino de Souza denotam a vontade de se romper
velhos vícios nas formas de se fazer Geografia no Brasil – falhas que tanto a adulteram –,
vontade que também aparecerá reclamada nos textos de outros associados e
colaboradores do evento. A metodologia que serviria de formato às
monografias regionais descritivas foi publicada oficialmente em
fevereiro de 1916, conforme já apontado. Já os resultados vieram ao
público no mês de setembro de 1916, ao final da jornada acadêmica
(Souza, 1916; 1918).
54Na
publicação do tomo II do 5º Congresso Brasileiro de Geografia, editado
dois anos depois de sua ocorrência, em 1918, Dr. A. J. de Souza Carneiro
expressava preocupações semelhantes às do professor Bernardino José de
Souza quanto à falta de um método que garantisse maior rigor às
contribuições documentais à Geografia. São palavras introdutórias que
exaltam a possibilidade de os novos geógrafos ultrapassarem a imprecisão
descritiva e os arroubos da imaginação que vinham pautando as
representações espaciais dos lugares e paisagens. O texto do Dr. Souza
Carneiro foi apresentado ao público com o título de A nova orientação das monografias descritivas regionais.
Afora os grandes inconvenientes
que a escola dos neo-geógrafos aponta e repudia, sobressai o da
liberdade de mentir e de exagerar, muito própria aos nossos escritores,
que fazem de sua região natal, o primeiro, o mais rico, o mais notável e
o mais digno pedaço da terra de todo o mundo.
Para esse mal, que só
nos tem servido de entorpecimento e de vaidade, os remédios são eficazes
com a disposição científica das monografias regionais, em cujos
capítulos ficam as provas da verdade e da falsidade do autor (Carneiro,
1918: 181).
- 8 Alguns desses municípios são, na atualidade (2016), distritos de outro município, a exemplo Santa R (...)
55Os
municípios baianos sobre os quais foram realizadas as monografias
regionais descritivas, em 1916, obedecendo às suas denominações no ano
de realização do evento,8
foram os seguintes: Bom Conselho (atual Cícero Dantas), Jacobina,
Jeremoabo, Patrocínio do Coité (atual Paripiranga), São José do Riacho
de Casa Nova, Mundo Novo, Ilhéus, Villa Bela de Palmeiras, Curaçá,
Andaraí, Barreiras, Areia, Macaúbas, Camisão (atual Ipirá), Santa Rita
do Rio Preto, Belomonte, Maragogipe, Canavieiras, Nazaré, Montes Claros,
Monte Santo, Umburanas, Morro do Chapéu e Juazeiro (Souza, 1916; 1918).
Foram assim contemplados 23 municípios, tendo alguns desses municípios
destacada posição na formação territorial do estado, inseridos em zonas
de mineração e de produção agrícola economicamente relevante.
56Em
1916 a Bahia continha 132 municípios, em contraposição aos 417
municípios na atualidade (2016). Com os seus quase 600.000 km², seus
municípios continham extensões territoriais maiores do que muitas
regiões trabalhadas sob a metodologia das monografias descritivas na
Europa. Desta forma, embora os recortes espaciais tenham sido tomados a
partir dos limites municipais, o trabalho foi realizado sobre grandes
extensões territoriais.
57As
monografias de 1916, registradas nos anais da jornada acadêmica, trazem,
além da sistematização descritiva dos recursos territoriais dos
municípios baianos, uma iconografia composta de mapas e fotografias que
possibilitam a remontagem geo-histórica das paisagens dos municípios,
constituindo-se em um rico material de estudo.
58Esta
breve apresentação de um dos mais notáveis personagens da história da
Geografia no Brasil por um lado reafirma a compreensão benjaminiana da
história – um texto aberto, inconcluso e intrinsecamente relacionado à
posição de quem a conta –, por outro lado, abre uma agenda de pesquisa
que vai desde a análise da vasta produção do professor do Ginásio da
Bahia, passando por suas contribuições institucionais e epistemológicas,
até os questionamentos sobre o seu esquecimento pela comunidade dos
geógrafos brasileiros, percurso trilhado no Projeto História da Geografia na Bahia: do Período regencial à República, que desenvolvemos no momento.
59O
que impressiona em Bernardino de Souza pode ser traduzido na pergunta
levantada por Waldir Oliveira (2013): como pôde um professor de
província – uma província que já havia perdido sua centralidade
político-econômica para a região Centro-Sul do país – contribuir para a
renovação da Geografia no Brasil com todo o repertório
teórico-metodológico que teve acesso ao longo das quatro primeiras
décadas do século XX? E, completando a indagação do professor Oliveira,
como pôde esse impressionante personagem ter sido esquecido pelos
geógrafos brasileiros?
- 9 Nos textos consultados, são citados Albrecht Penk, Peschel, Ratzel, Wagner, Suess, Hettner e Supan (...)
60Método
de pesquisa e método de ensino estavam articulados nas suas propostas
sistematizadoras da Geografia de modo indissociável. No âmbito das
discussões de teor didático, seus argumentos também passam por um rol de
leituras que incluem geógrafos ingleses, franceses, estadunidenses e,
sobretudo, alemães,9 acompanhando a moderna Geografia desenvolvida na Europa e nos EUA.
61Quanto
aos métodos propostos pelo professor do Ginásio da Bahia, a
“sobreposição de camadas” – sobreposição da morfologia dos diferentes
elementos da paisagem (solo, relevo, vegetação, estradas, habitações,
etc.) – somada a tipologias dos aspectos sociais, representava, sem
dúvida, naquele momento, um grande avanço nos estudos de uma ciência que
se pretendia racional e moderna.
62No
mesmo compasso em que reforçava a necessidade de introduzir métodos
capazes de impor limites às descrições em voga naquele momento,
contribuindo para aproximar a Geografia no Brasil dos procedimentos
científicos modernos, o professor Bernardino de Souza fazia ainda alusão
à questão do ensino geográfico nas escolas, comprometido por um árido
repertório de temas e uma prática pedagógica carente de maiores
reflexões e materiais didáticos adequados, tais como laboratórios,
coleção de mapas, globos terrestres etc. (Souza, 1914: 12-13).
63Não
parece exagerado afirmar, através desse breve resgate histórico, que o
desenvolvimento institucional e epistemológico da Geografia no Brasil da
primeira metade do século XX, deveu-se em boa parte aos esforços de um
estudioso ligado por muito tempo à sua terra, a Bahia, em um momento em
que esta perdia a centralidade político-econômica que detivera nos dois
séculos anteriores. O descompasso entre o avanço das ideias geográficas
em instituições baianas e a perda progressiva de uma posição
político-econômica – e consequentemente de centralidade cultural em
termos institucionais – mais destacada do estado, no período considerado
é, sem dúvida, um ponto interessante na reflexão sobre os caminhos
trilhados pela Geografia no Brasil. Questão para outro texto.