1O
ano de 1850 é o divisor de águas de um processo histórico. O golpe dado
pela proibição oficial do tráfico foi prontamente respondido com dois
contragolpes: a Lei Eusébio de Queiroz, ou a Lei de Terras, e, em
substituição do tráfico de africanos forçosamente escravizados, a
organização do tráfico de europeus pobres “livremente” convencidos.
Certo é que o segundo tráfico somente ganhou vultos significativos
quando a escravidão foi abolida. No entanto, seu planejamento e suas
formas experimentais foram realizadas com antecedência considerável: era
preciso criar um contingente populacional capaz de reduzir
drasticamente os salários, tornando compensatória a substituição do
trabalho servil pelo livre.
- 1 “Os plantadores norte-americanos puderam contar com o crescimento contínuo da população escrava. (. (...)
2Se nos Estados Unidos o fim do tráfico internacional significou a montagem da empresa escravista nacional1,
em nossas paragens a mentalidade “consular” da elite econômica ainda
compreendia a força de trabalho como um “meio de produção”, podendo
gastá-la como se gasta o carvão:
O povo, primeiro, era o gentio
pagão (...). Depois, foi a negraria escrava importada como uma força
energética que se queimava como um carvão humano nas minas e nas
plantações para produzir o que não comiam nem queriam, mas sim o que
dava lucro ao amo e senhor. (RIBEIRO, D. 1986, pp.78-79)
3 A
cessação do tráfico internacional acarretou a promoção do tráfico
interprovincial. E no momento em que este também viesse a se exaurir, a
empresa imigrantista já teria se consolidado: o esgotamento físico
concorria para a eliminação real da força de trabalho, obrigando à
maiores investidas de busca através do tráfico ilegal (e a consequente
elevação do preço), de outro, a campanha abolicionista se avolumava com a
luta pela liberdade através das alforrias individualmente conquistadas e
das revoltas coletivas, do aquilombamento ou simplesmente da fuga para a
cidade.
4 A
segunda metade do século XIX presenciou um movimento do contingente
populacional brasileiro e das relações jurídicas da força de trabalho
somente capazes de se tornarem inteligíveis quando colocados diante das
transformações que o advento das sociedades imperialistas industriais
provocaram não somente em seus próprios territórios, mas também em seus
contrapontos evolutivos, as sociedades neocoloniais (RIBEIRO, 1983). Com
efeito, é evidente que a classe dominante brasileira optou
reiteradamente em fazer o país cumprir o papel de produtor de gêneros
agrícolas que atendessem aos mecanismos da industrialização europeia.
Para isto, investiu e reforçou a escravidão até onde foi possível
suportar.
No centro desta expansão da
segunda escravidão está a retomada do trabalho escravo como uma força
produtiva (Massensklaverei), isto é, a concentração em massa de
trabalhadores escravizados dedicados para a produção de insumos e a
criação de novas áreas produtivas a fim de satisfazer a crescente
demanda do mercado mundial por gêneros tropicais e semitropicais gerada
pela industrialização e urbanização. (TOMICH; ZEUSKE, 2008, p.92)
5Neste trecho, traduzido livremente, do artigo Introduction, the Second Slavery: Mass Slavery, World-Economy, and Comparative Microhistories, Dale
Tomich e Michael Zeuske versam sobre aquilo que denominam de “segunda
escravidão”, um novo momento do apresamento de seres humanos que está
relacionado com o avanço das forças produtivas industriais e a demanda
por insumos agrícolas. Para tanto, a manutenção e ampliação da
escravidão na segunda metade do século XIX contou minimamente com a
estruturação de um Estado Nacional (ou um poder local similar, como no
caso de Cuba), no qual estavam alocadas as elites escravistas desejosas
de manter a dominação socioeconômica que haviam adquirido no período
colonial às custas do mesmo trabalho escravizado. Por outro lado, esta
“segunda escravidão” precisa ser compreendida não apenas nas
características do escravismo colonial brasileiro (café), mas na capacidade de reprodução ampliada desse sistema econômico enquanto modo de produção sui generis também no Sul dos Estados Unidos (algodão) e em Cuba (açúcar) (GORENDER, 1980).
6Computa-se
nesse período, a abolição do tráfico internacional no Brasil - com a
correspondente cessação progressiva do apresamento de trabalhadores na
costa africana, tendo a constrição ao trabalho ganhado outros contornos -
o processo de expulsão do excedente populacional dos países europeus
dependentes (Itália, Espanha e Portugal), além da China, movimento que
ficou conhecido como “as grandes ondas de imigração”; a incessante
evasão da força de trabalho escravizada - através do aumento das lutas
diretas (fugas, aquilombamento, alforrias) e, em menor grau, das leis
atenuantes e etapistas (Lei do Ventre Livre, Lei dos Sexagenários) até a
abolição completa em 1888, que coincidirá com o avolumar da entrada de
trabalhadores europeus no Brasil.
7Todo
esse processo foi codificado e normatizado tanto interna como
externamente. A pressão inglesa, com ações diplomáticas e intervenções
diretas como o Bill Aberdeen, provocaria no Império do Brasil
uma dupla resposta. A abolição do tráfico internacional e o movimento de
emancipação dos trabalhadores escravizados - que era acompanhado de
perto pela classe senhorial - se desdobraria em dois processos
históricos complementares: a latifundiarização da produção, que tem na
Lei de Terras seu marco claro e objetivo, e a criação artificial do
excedente populacional capaz de reduzir a remuneração direta ou indireta
do trabalhador “livre”.
8A
latifundiarização da economia brasileira é resultado da exclusividade do
acesso à terra pela compra, a partir da Lei Eusébio de Queiroz, ou Lei
de Terras de 1850. Até então, a posse garantia o uso da terra para a
produção de subsistência ou para a produção comercial, seja ela
acessória ou de plantagem. De imediato, mais do que transformar
radicalmente o mercado de terras, a nova legislação “criava um sistema
cartorial de registro que tornava quase impraticável a um lavrador pobre
legalizar suas terras.” (RIBEIRO, D. 2007, p.217) O estudo recente de
João Fragoso (2013, pp.101-116) para o município de Paraíba do Sul, na
Província do Rio de Janeiro, ilustra esse processo ao mostrar, através
do levantamento de hipotecas e inventários registrados no cartório
municipal, como, no decorrer da segunda metade do século XIX, cai
consideravelmente o número de pequenos plantadores de café em favor do
aumento do tamanho das propriedades de um contingente reduzido de
barões, representantes da elite cafeeira.
9Esses
pequenos plantadores, antigos proprietários de terras, passam então à
condição de moradores ou agregados - muitas vezes permanecendo residindo
e plantando no mesmo local - à fazenda que se expandia e estabelecendo
uma relação de produção completamente distinta tanto da escravidão
quanto do trabalho livre assalariado. Por outro lado, com a ampliação da
capacidade produtiva da fazenda, a demanda por trabalhadores aumenta, o
que se verifica no fluxo de escravizados das províncias do Nordeste em
direção ao Sudeste e na empresa imigrantista. Com o auxílio da tabela
construída por Pedro Carvalho de Mello (1978, p.71), observamos que
entre 1823 e 1872-73 (período de estabelecimento da nova zona
produtiva), com exceção das províncias de Piauí, Ceará e Paraíba que
somadas aumentam em torno de 33 mil escravizados - todas as outras
perdem trabalhadores escravizados num total de 190.414 o que representa
33,34% dos 570.966 que detinham anteriormente. Enquanto isso, as
principais províncias cafeeiras veem seu plantel aumentado na ordem de
150 mil trabalhadores para o Rio de Janeiro, 110 mil para Minas Gerais e
150 mil para São Paulo.
10É
seguro afirmar que a contagem da população escravizada na matrícula de
1872-73 é o início do fim da escravidão no Brasil. A partir desta data,
com a sequência das leis “abolicionistas” e o aumento da revolta dos
escravizados bem como as manumissões e compras de alforrias, a
porcentagem de trabalhadores escravizados tanto quanto o número absoluto
caem drasticamente, como demonstra a última matrícula realizada em
1886-87.
Tabela 1. Evolução da população escravizada no Brasil e nas principais provinciais cafeeiras.
Fonte: Adaptado de MELLO, 1978, p.61.
11
12A
análise dos dados contidos na tabela indica que o dinamismo exercido
pela produção cafeeira, em especial a paulista, além de atrair um
quantitativo até então desconhecido de trabalhadores escravizados para a
província, garantiu o aumento da produção e funcionou como força
centrípeta contra a diminuição da força de trabalho escravizada. Em
números, isso significa que, enquanto Rio de Janeiro e Minas Gerais
deixam de contar com 182.095 e 158.341 escravizados, respectivamente,
São Paulo perde apenas 49.283. Mesmo que, tomadas as províncias isoladas
uma das outras, as perdas percentuais se mantenham próximas (51,73%,
42,99% e 45,91%), a participação da perda absoluta em relação ao
quantitativo total do país em 1886-87 é de 22,06% para os fluminenses,
19,18% para os mineiros e apenas 5,97% para os paulistas. Esses dados
comprovam o que Gorender denominou de “lei da população escrava”:
Se considerarmos uma população
escrava de dimensões dadas, verificamos que, ao invés da criação de uma
superpopulação relativa, o mecanismo econômico age tendencialmente no
sentido da diminuição absoluta da população escrava e da criação de sua
escassez. (...) No terço de século em que o escravismo perdurou após a
cessação do tráfico africano, (...) a lei da população escrava impôs o
reajuste interno do sistema escravista brasileiro, de tal maneira que as
regiões de economia decadente passaram a fornecer escravos às regiões
de economia florescente. (...) A consequência inevitável não foi senão o
fluxo de escravos das regiões menos prósperas ou decadentes em direção à
região mais próspera, ou seja, a região cafeeira. (GORENDER, 1980,
pp.320-325)
13O
incremento do volume da lavoura do café observado no período em debate,
dadas as características particulares do escravismo no Brasil – “força
energética que se queimava como um carvão” – não se daria exclusivamente
pelo uso da força de trabalho escravizada. Data da década de 1850 as
primeiras experiências de instalação de colônias e uso de trabalhadores
imigrantes, não só em São Paulo, mas em todo o Brasil. Esses
trabalhadores, expulsos de suas terras num processo de marginalização
causado pela capitalização do meio rural e urbanização desregulada,
foram chegando em números cada vez maiores no país, principalmente à
medida em que a abolição se aproximava – através das leis etapistas – e
com o “aperfeiçoar” dos contratos de locação de serviços – como a Lei de
1879.
Gráfico 1 – Entrada anual de imigrantes no Brasil
Fonte: IPEADATA. Disponível em: http://www.ipeadata.gov.br/ Obs.: busca por: “imigrantes”.
14Essa
conta estaria fechada, caso o destino dos trabalhadores imigrantes –
que diferente dos escravizados, eram compostos por núcleos familiares, e
não homens em sua imensa maioria – fosse exclusivamente a lavoura de
café. No entanto, o que os dados abaixo apresentam nos distanciam dessa
conclusão precipitada.
Tabela 2. População paulista classificada como “lavradora” no censo de 1872.
Fonte: BASSANEZI (b),
1998. Obs.: O Censo Geral do Império de 1872 é a única fonte da Coleção
“São Paulo do Passado” que discrimina a população por “profissão”.
- 2 José de Souza Martins, dentre outros autores, mencionam a reimigração para a Argentina e o Uruguai (...)
- 3 Esse fato já chamou a atenção recente da historiografia brasileira e está consideravelmente bem doc (...)
- 4 Do ano de 1854 – ano da regulamentação da Lei de Terras – ao ano de 1886 – último ano da contagem d (...)
15Surpreende
o total de somente 16.567 estrangeiros registrados pelo Censo de 1872
na Província de São Paulo, momento em que o país já contava com 250.398
segundo os dados do IPEADATA citados anteriormente2.
Causa maior espanto, todavia, o quantitativo computado como
“lavradores”, apenas 28,94%, o que significa, em números absolutos,
4.795 indivíduos frente aos 86.881 escravizados, 55, 47% do total.
Importa-nos observar, sobretudo que São Paulo registra nesse período
233.652 trabalhadores livres anotados como “lavradores”. Este fato eleva
nosso debate para outro patamar: ao mesmo tempo em que a dinâmica do
café paulista e seu “espírito escravista” impede uma queda relativa
brusca no total de escravizados se comparado com outras províncias, como
Rio de Janeiro e Minas Gerais, também atrai migrantes livres3 o que contribui para um crescimento demográfico significativo da província4.
Tabela 3. Evolução demográfica da província de São Paulo
Fonte: Bassanezi, (a), (b) e (c), 1998.
- 5 O abandono da lavoura e mesmo da província, bem como as naturalizações, ou simplesmente a passagem (...)
16Novamente,
nos deparamos com alguns elementos inesperados. O total de estrangeiros
em 1886, apesar de verificar incremento percentual de 122,25 pontos, é
de apenas 36.821. Este valor contrasta com o de 33.310 “imigrantes
entrados na Província de São Paulo que gozaram dos favores concedidos
pelas leis provinciais, no período decorrido de 1882 a 1887”.5
(BASSANEZI (c), 1998, p.101.) Esse aumento não eleva significativamente
a participação de estrangeiros no total de trabalhadores livres,
ficando abaixo dos 3,5 pontos percentuais. Mesmo assim, o total de
trabalhadores livres cresce percentualmente mais do que o total da
população. Essa diferença, que é de aproximadamente 40 mil pessoas, pode
ser explicada pela combinação de dois fatores: a) permanência de
escravizados libertos na província entre 1872 e 1886 e b) continuidade
da compra de escravizados de outras províncias. Isso significa que a
perda total de escravizados através de fugas e alforrias (ou morte) deve
ter sido maior do que os 49.641 que a “Tabela 5” informa.
17A
julgar pela proporção de escravizados na lavoura informada pelo Censo de
1872 (Tabela 4), e pelo fato de que as alforrias foram numericamente
maiores no meio urbano do que no campo, é de supor (apesar de não termos
dados seguros para isso) que a porcentagem de trabalhadores
escravizados a serem considerados como “lavradores” em 1886 se elevou.
Ao olhar mais de perto os dados fornecidos para cada município paulista,
temos uma dimensão mais minuciosa do que estamos discutindo.
Tabela 4. Relação entre escravizados e estrangeiros nos municípios com população estrangeira acima de mil
Fonte: BASSANEZI (c), 1998. * Munícipios do “novo Oeste paulista” (após 1865). ** Estrangeiros/Livres.
18 A
tabela acima foi construída tomando por eixo o levantamento daqueles
municípios que continham o total de estrangeiros acima de mil pessoas.
Nela observamos que com a exceção apenas de Botucatu, todos os outros
municípios possuem população escravizada maior do que a estrangeira.
Além disso, é notável que dois anos antes da abolição ainda perfaçam um
percentual de 15,57 pontos relativos de escravizados frente à população
total. Descalvado e São Carlos, municípios destacados como pertencentes
ao “novo oeste paulista” possuem taxa relativa de 26,42% e 18,51%
respectivamente, por exemplo. Por outro lado, da mesma maneira que
supomos um incremento da proporção de trabalhadores escravizados no meio
rural, é de se imaginar igualmente uma diminuição (obviamente em menor
grau) de trabalhadores livres na lavoura, devido à diversificação das
atividades produtivas dos quinzes anos finais da escravidão, ainda que
contando com seu aumento em números absolutos. Vejamos agora o que
acontece quando invertemos o eixo do levantamento e tomamos por base os
municípios que possuem população escravizada acima de mil.
Tabela 5. Relação entre escravizados e estrangeiros nos maiores munícipios escravistas (acima de mil)
Fonte: BASSANEZI (c), 1998. * Munícipios do “novo Oeste paulista” (após 1865). ** Estrangeiros/Livres.
Tabela 6. Relação entre escravizados e livres nos maiores municípios escravistas (acima de mil)
Fonte: BASSANEZI (c), 1998. *
Munícipios do “novo Oeste paulista” (após 1865). Obs.: Os municípios
acima listados não dispunham de informações sobre população estrangeira,
por isso estão alocados em tabela distinta.
19Sem
dúvidas, São Carlos, Piracicaba, Limeira, Amparo, Araras, Descalvado e
Pirassununga deveriam constar nas duas tabelas, por fazerem parte dos
principais municípios escravistas. Além disso, se esses sete municípios
se repetem nos eixos propostos, o segundo eixo dispõe uma relação de
localidades em que a participação de estrangeiros no total de
trabalhadores livres despenca de 11,40% para 4,43% (lembrando ainda que
os doze municípios da Tabela 8 não dispunham de dados para a população
estrangeira). Entretanto, a taxa relativa de escravizados sobre a
população total fica em 14,87% e 13,11% respectivamente, muito próxima
dos 15,57% observados na Tabela 6. Alguns munícipios superam em muito a
média: é o caso de Campinas com 24,20%, São Simão com 17,90% e Casa
Branca que atinge a notável marca de 38,77%. Abaixo reproduzimos uma
tabela elaborada por Jacob Gorender que compara o crescimento da
população escravizada com a produção de café.
Tabela 7. “População Escrava e Produção Cafeeira de Zonas da Província de São Paulo”.
Fonte: Apud
GORENDER, 1980, p.562. Nota-se que o somatório final de escravizados
alcança 163.349 trabalhadores, número significativamente discrepante do
fornecido pelos dados organizados por Maria Silvia Bassanezi. Optamos
por não os modificar já que as fontes em que se baseiam são distintas.
De qualquer forma, tal discrepância não prejudica, em nosso entender, a
análise proposta.
**Os
dados coligidos originalmente por Gorender estavam em “arrobas de café”.
Procedemos à conversão para “sacas de 60kg” de modo a padronizar (de
acordo com os dados de exportação) a apresentação de todas as tabelas e
gráficos neste trabalho.
20Com
tudo o que expusemos anteriormente, somos capazes de afirmar,
finalmente, que o aumento da produção de café é fruto do aumento do uso
da força de trabalho, como atestam os gráficos adiante. Os dados
fornecidos por Gorender, presente nas páginas finais de sua obra,
serviram para que o autor defendesse a ideia de que mesmo o “oeste
paulista”, tão afamado pela historiografia liberal como dotado de uma
“consciência capitalista” e propulsor do trabalho livre, em verdade, fez
uso do trabalhador escravizado até o último momento, ao mesmo tempo em
que alavancava a empresa imigrantista. Desse modo, além de atrair para a
província o trabalhador imigrante com promessas de ganhos pessoais
futuros, também catalisou a força de trabalho escravizada que se
desprendia das províncias economicamente decadentes, contribuindo
duplamente para o movimento demográfico observado em São Paulo.
Gráficos 2 e 3. Variação da população escravizada e da produção nas zonas cafeeiras paulistas, respectivamente
Fonte: Adaptado de GORENDER, 1980, p.562. Em total de trabalhadores e sacas de café.
21Em
resumo, a economia cafeeira da província, em seu processo de
modernização reflexa, produziu os seguintes efeitos diretos a) dinamizou
o comércio de escravizados, atraindo quantitativo significativo ao
mesmo tempo em que contrarrestava a queda absoluta e relativa no
processo de desmantelamento do escravismo (gráfico 4), b) transformou
pequenos proprietários produtores em agregados, camaradas e moradores,
ao mesmo tempo em que atraia migrantes livres de outras províncias, c)
através de iniciativas particulares e incentivos provinciais e do
governo central, promoveu a imigração europeia como forma de solucionar o
problema de “braços para a lavoura”, que, no entanto, só cumpriu seu
objetivo no momento da abolição; tudo isto gerou como resultado o maior
crescimento vegetativo relativo entre todas as províncias, fundamentado
na presença de trabalhadores “livres”.
- 6 A análise pormenorizada do “Gráfico 4” revela, ainda, o efeito contrarrestante da produção cafeeira (...)
Gráfico 4. Variação da população escravizada em SP, RJ e MG em números absolutos. 6
Fontes: MELLO, 1978; SÃO PAULO. * Para Minas Gerais, o ano de referência é a matrícula realizada entre 1884 e 1885.Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa Provincial... São Paulo: Typ. a Vapor de Jorge Seckler & C, 1886; RIO DE JANEIRO. Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa Provincial do Rio de Janeiro... Rio de Janeiro: Typ. Montenegro, 1886; MINAS GERAIS. Falla que o exm. sr. dr. Antonio Gonçalves Chaves... Ouro Preto: Typ. do Liberal Mineiro, 1884. 318907
22E
colaterais: a) o crescimento intensivo da força de trabalho escravizada
restaurou na província o fenômeno quilombola como um dos mecanismos de
luta entre os trabalhadores escravizados e a classe senhorial (FIABANI,
2012), b) o incremento das fugas e alforrias contribuiu para o
crescimento da população livre, especialmente os “livres de cor”, como
já atestavam os dados do Censo de 1872:
Tabela 8. “Livres de Cor” e escravizados nas principais províncias escravistas
Fonte: LUNA & KLEIN, 2010.
23Como
podemos ver, com exceção apenas do Rio de Janeiro, o número de
indivíduos arrolados como “livres de cor” é superior nas demais
províncias: pouco mais que o dobro em Minas Gerais – província que já
havia vivenciado um período de dinamismo no século anterior – e quase o
triplo para o total do país. Dois fatores contribuem para a aparição
desses dados. O primeiro diz respeito aos ciclos econômicos que
dinamizaram diferentes regiões que, em período de ascensão e auge
atraíam a compra de escravizados – além de experimentarem igualmente um
incremento na luta pela emancipação – e em períodos de descenso e
estagnação a repelia de tal modo que era incapaz também de manter o
plantel do período anterior. Por outro lado, a contínua luta pela
emancipação, protagonizada pelos trabalhadores e trabalhadoras (estas
sempre em menor proporção) agia decisivamente para que, rápida ou
lentamente, a proporção entre brancos e “de cor” fosse sempre favorável a
estes últimos e obrigasse à classe senhorial a constantemente repor seu
quantitativo ótimo de produção.
- 7 Aqui se associam as leis de “rigidez da mão-de-obra escrava” e da “população escrava”, esta última (...)
A rigidez da mão-de-obra
escrava significa o seguinte: a quantidade de braços de um plantel
permanece inalterada apesar das variações da quantidade de trabalho
exigida pelas diferentes fases estacionais ou conjunturais da produção.
(GORENDER, 1980, p.216) (...) Sendo o escravo uma propriedade valiosa,
não deixaria de entrar no cálculo do seu dono o interesse na conservação
de sua utilidade produtiva pelo período mais prolongado possível.7 (p.320)
- 8 É seguramente provável que, em realidade, a proporção de lavradores de “cor” seja maior que 34,32% (...)
24Com
a apresentação da tabela acima, merece atenção retomarmos rapidamente o
cálculo sobre a população classificada como “lavradora” na província de
São Paulo em 1872. Se, como mostrado na “Tabela 2” 34,32% da população
livre se dedicava aos trabalhos na lavoura e, supondo a mesma proporção
para os “livres de cor”, obteremos um quantitativo de 71.333 “livres de
cor” no setor produtivo. Somados ainda aos 86.881 escravizados também
classificados como “lavradores” – perfazendo 55,47% do total de
trabalhadores escravizados da província – chegaremos, então, ao total de
158.214 “pessoas de cor” alocadas na agricultura – direta ou
indiretamente ligadas à plantagem. Por outro lado, já que os 207.845
“livres de cor” reduzem para 433.432 (472.897) o total de brancos (e
livres) e, lembrando que temos 34,32% de lavradores entre os livres – em
verdade, alcançamos então 148.754 brancos “lavradores”8.
Se, finalmente, fossemos capazes de discriminar o percentual de brancos
proprietários entre os brancos lavradores obteríamos, então, não
somente uma dimensão mais exata da participação da população na
hierarquia escravista colonial de produção, mas também um perfil étnico
dessa hierarquia.
25Essa
fotografia demográfico-econômica que o Censo de 1872 revelou é, no
processo histórico em discussão, o ponto de viragem de um movimento mais
amplo que tendeu a aprofundar a contradição fundamental que poria fim
ao escravismo colonial: o conflito pela apropriação do
sobre-trabalho humano, ou simplesmente a luta de classes que, nesse
distinto modo de produção opunha escravizados a senhores.
- 9 Segundo a estimativa do Anuário Estatístico Brasileiro de 1960, o Brasil dispunha de uma população (...)
- 10 “(...) através da reapropriação [saques, roubos, rapinas] no interior da produção escravista, o cat (...)
26A
etapa neocolonial do escravismo, inaugurada pela independência das
colônias e vinculada ao processo de industrialização das antigas
metrópoles – com exceção da própria Espanha e de Portugal – contou de
maneira tardia e reflexa com um dos principais benefícios gerados pelas
sucessivas revoluções tecnológicas: a explosão demográfica garantida
pela melhoria geral das condições de vida9.
Como, no entanto, a nova nação era, na verdade, um “Estado escravista”
(assunto que retomaremos adiante), na qual não somente as relações de
produção estavam consubstanciadas na oposição senhor-escravo, mas também
as relações sociais previam a hierarquização pela posse ou não de
escravos e a repulsa ao trabalho manual para aqueles que desejavam fazer
parte dos “homens bons”, essa mesma sociedade teria que lidar, contínua
e aceleradamente, com a revolta dos escravizados em sua luta pela
emancipação e uso-fruto da própria força de trabalho10.
27A dinâmica própria do movimento demográfico observado – crescimento vegetativo da população livre (branca e “de cor”), crescimento conflituoso da população livre (fugas, manumissões) e crescimento artificial
da população livre (imigração europeia) – impunha o aprofundamento da
distinção racial da força de trabalho como única maneira possível de
perpetuar a própria estrutura interna da produção, a escravidão.
Os senhores de escravos do
século XIX promoveram novos preceitos políticos, negociaram novas
alianças sociais e herdaram, adaptaram e reconfiguraram um contrato
racial que atrairia o apoio de importantes grupos de pessoas livres, não
escravistas, dessas sociedades. Doutrinas relacionadas à raça, à
propriedade e aos interesses nacionais foram defendidas para justificar a
posse de escravos e conter os desafios abolicionistas. Da mesma forma
que os anteriores, os novos conceitos e estereótipos raciais retratavam
os afrodescendentes como necessitados de coerção física e de duras
restrições, e os indígenas como dignos apenas de desprezo. (...) Esses
homens trabalhavam por uma “civilização” e um “embranquecimento” da base
da população, por uma redução na dependência de escravos e pela negação
de direitos políticos ativos àqueles que não tivessem propriedades.
(BLACKBURN, 2016, p.23-24)
28Todavia, com o fim do tráfico internacional e a inauguração da empresa imigrantista – solução traficante e colonial
para a “demanda de braços para a lavoura” que se tornaria um mecanismo
de efeito contrário ao desejado pela classe senhorial, ao aprofundar a
contradição do uso da força de trabalho – os plantadores se viram
obrigados, enquanto gerentes do Estado, a promulgar leis que garantissem
minimamente um contrato o mais livre possível para o trabalhador
imigrante, já que estavam impossibilitados de promover uma escravidão
branca – daí, mais uma vez, o conteúdo crescentemente racista do fim do
escravismo brasileiro. A distância entre a imigração e a escravidão pode
ser medida pelo fracasso da parceria, por exemplo, ou pela proibição
determinada por alguns governos europeus da vinda de seus cidadãos para o
Brasil, ainda nas décadas de 1850 e 1860. É um contrassenso apostar que
a elite cafeeira paulista, tão acostumada a traficar gentes e
reduzi-las à escravidão, estaria disposta a conceder salários acima dos
que estavam “fixados a um nível que oscilava em torno do aluguel do
escravo somado ao custo do seu sustento” (GORENDER, 1980, p.568), nos
primeiros anos da experiência da colonização. O significado da Lei de
Locação de Serviços de 1879 é estarrecedor e auxilia no entendimento do
“sumiço” dos estrangeiros que chegavam à São Paulo:
(...) os contratos foram
expressamente limitados a seis anos para os trabalhadores nacionais e a
cinco anos para o estrangeiros; a dívida inicial do imigrante ficou
reduzida à metade do preço da passagem de navio e das ‘despesas de
instituição’ e se proibiram os acréscimos de juros sobre os débitos do
locador dos serviços, isto é, o próprio imigrante; proibiu-se a cláusula
abusiva da dívida solidária entre turmas de colonos, limitando-se a
responsabilidade do colono às dívidas de sua família; na transferência
da locação a outro locatário, tornou-se necessária a concordância do
locador. A par disso, manteve-se a pena de prisão no caso de abandono do
serviço sem pagamento da dívida, bem como o processo sumário de
julgamento. (GORENDER, 1980, p.568)
29Enquanto
perdurou formalmente a escravidão, principalmente na plantagem,
qualquer forma de utilização da força de trabalho “livre”, seja ela de
nacionais ou estrangeiros, esteve fadada a transitar entre maneiras mais
ou menos severas de expropriação do trabalhador, fundamentadas todas
elas na experiência escravista. A emancipação da força de trabalho – no
interior da sociedade escravista – teria como protagonistas, no entanto,
os próprios trabalhadores e trabalhadoras escravizados e não os
imigrantes. Suas formas de luta são largamente discutidas pelas mais
variadas correntes historiográficas e merecem nota apenas alguns
aspectos característicos do fim do escravismo colonial.
30O
primeiro deles diz respeito às manumissões ou alforrias e o significado
social dessa forma de emancipação para cada uma das classes envolvidas
no conflito. Como observamos, com o fim do tráfico internacional e a não
montagem de uma empresa escravista nacional – substituída pela
transferência de escravizados das regiões decadentes para as ascendentes
– a proporção entre trabalhadores livres e escravizados estava
tendencialmente determinada a aumentar. O avanço da luta abolicionista
ou autonomista pela emancipação funcionaria então, por um lado, como
acelerador desse processo e, por outro, como diretriz política da nova
forma de relação de trabalho que deveria suplantar a escravidão. As
alforrias, em especial, eram mecanismos essencialmente individuais dessa
luta e estavam na esfera da negociação entre escravizado e senhor,
fartamente regulados pelo direito escravista. Contudo, não deixavam de
representar a assimetria de poder nessa relação.
Tabela 9. Classificação das alforrias em Franca e Campinas no período final da escravidão
Fontes: (1 - Franca) Adaptado de: GOMES, 2008, p.118. (2 - Campinas) Adaptado de: LUNA & KLEIN, 2010.
31Das
setenta e uma alforrias “onerosas” arroladas no município de Franca,
trinta e sete delas estabeleciam compromissos de trabalho pelo liberto
até a morte do senhor, isto é, mais da metade das manumissões
“não-voluntárias” impediam a imediata libertação do escravizado. Esse
tipo de “contrato” é análogo à Lei do Ventre Livre e dos Sexagenários,
pois longe de modificar o estatuto jurídico e social do trabalhador,
aparentava uma benesse – “lenta, gradual e segura” concedida pela classe
senhorial. É evidente que as alforrias também ensejaram outras
dinâmicas, como a criação dos Fundos Provinciais de Emancipação, as
alforrias coletivas compradas com arrecadação de filantropos, a
solidariedade entre libertos e escravizados que se somavam na libertação
de cônjuges, filhos e pais, ou que também fundariam suas próprias
irmandades com o fim de libertar um número cada vez maior de
companheiros, até o ponto de roubos e assassinatos como forma de
antecipar o contrato estabelecido... (CHALHOUB, 2011) A vantagem, no
entanto, estava do lado dos proprietários e não dos escravizados e, caso
não houvesse um incremento na luta pela emancipação, a escravidão
duraria até a década de 1920, segundo os cálculos de Rui Barbosa.
32Esse
incremento, com efeito, se deve à confluência da campanha abolicionista
de classe média com o ímpeto dos trabalhadores escravizados em romper
de vez com o jugo senhorial. É de fundamental importância, para fins
desta discussão, observar a dinâmica perpetrada pela revolta escrava na
segunda metade do século XIX e sua relação com a pauta abolicionista.
Essa relação é determinante para o fim do escravismo colonial e sua tendencial suplantação pelo capitalismo dependente e não por outro modo de produção.
33Décio
de Azevedo Saes (1985), em sua tese de livre-docência da Unicamp,
sustenta o caráter revolucionário da Abolição. Em termos gerais, Saes dá
continuidade ao trabalho de Gorender ao afirmar que o Estado brasileiro
imperial era, na verdade, um “Estado escravista”. Isto é, de acordo com
as formulações de Marx, a um determinado modo de produção deve
corresponder um Estado que o sustente e garanta sua continuidade no
tempo. Logo, no modo de produção escravista colonial, o Estado deveria
ser escravista. Dado que a passagem de um modo a outro deve também
corresponder à reorganização do Estado, então o evento da Abolição – que
logrou pôr fim ao regime jurídico da escravidão – é um processo
revolucionário, o único ocorrido no Brasil, no pensamento do autor.
34Contudo,
essa Revolução teve uma força dirigente e uma força principal distintas
entre si. Enquanto a massa dos trabalhadores escravizados promovia a
luta direta pela emancipação, parte da classe média urbana(izada)
dirigia politicamente o processo abolicionista. O exemplo mais fidedigno
desse processo é a mudança de estatuto que o aquilombamento sofreu nos
anos finais da escravidão, principalmente na Província de São Paulo. De
estratégia, passou à tática:
O movimento abolicionista de
classe média não teve como objetivo estratégico a formação de
comunidades negras que restaurassem um modo de vida tribal ou
reproduzissem, em pequena escala, as relações entre senhores e escravos.
Seu objetivo (...) foi expressão da ideologia jurídica burguesa: a
classe média abolicionista queria “libertar” todos os trabalhadores
escravos para que os membros de todas as classes sociais – “indivíduos” –
acedessem igualmente à condição de sujeitos de direitos (isto é,
“cidadãos”). (...) Nesse novo quadro, marcado pela articulação entre o
movimento abolicionista de classe média e a revolta escrava, o quilombo (comunidade negra isolada, à parte) deixou de ser o objetivo estratégico da revolta escrava, convertendo-se em objetivo puramente tático. (SAES, D. 1985, pp.277-278)
35O
fim último da campanha abolicionista não era a emancipação total do
trabalho, senão a sua gradual substituição por um modelo mais moderno, o
“trabalho livre” tão experimentado nas nações civilizadas da Europa e
que teria garantido o desenvolvimento das forças produtivas dessas
nações. O golpe (ou a contrarrevolução) republicano e a promulgação da
Constituição de 1891 poriam fim às pretensões mais radicais da massa
escravizada ao apagar qualquer possibilidade de reforma agrária e
colocariam na ordem do dia o erguimento de um “Estado burguês”. É este
Estado burguês que teria a tarefa de implementar o capitalismo enquanto
modo de produção – dependente – no Brasil.
36Com
efeito, o significado social da emancipação era distinto para os
distintos agentes sociais. Enquanto que para a população submetida à
escravidão, a liberdade significava o fim da submissão ao senhorio e o
“viver por si” na cidade (ou mesmo nas fazendas) ou o retorno a
condições pregressas de vida camponesa (como verifica-se na
historicidade dos quilombos), para o movimento urbano-popular que lutou
pela Abolição, no qual incluíam-se libertos e brancos livres (pobres ou
pertencentes à setores intermediários e mesmo dominantes), o fim da
escravidão deveria pôr o Brasil nos trilhos do progresso, rumo às nações
adiantadas – ainda que mantendo sua vocação agrária... Finalmente, para
os plantadores, expressava a urgência de arrolar um mecanismo
alternativo de coerção ao trabalho que, definitivamente, ainda teria
caráter formal (e não real) de subsunção ao capital – por isso a
experiência do colonato nas fazendas paulistas.
37No
que diz respeito às possibilidades de mobilidade social e de acesso às
instituições do Estado, o período oligárquico da República desempenharia
papel nefasto na conformação de uma estrutura de classes assentada na
diferenciação racial e sexual que, no período escravista, estava
mascarada nas relações de produção. Mesmo que, como dissemos acima, a
etapa final do escravismo possuísse um caráter cada vez mais racista –
como forma de justificar a permanência da escravidão numa sociedade que,
dado o salto demográfico, já dispunha suficientemente de “mão-de-obra
excedente” –, tal caráter não se apresentava como uma contradição
ideológica inerente ao modo de produção (fixado na oposição
escravo-senhor, propriedade-proprietário) como se apresentará no
espectro liberal-democrático de uma formação social burguesa.