- 1 No Brasil, o livro circulou em uma edição pirata desde o final da década de 1970 e foi finalmente p (...)
- 2 Valenti (2003) considera que a crise da universidade francesa reflete uma insatisfação estudantil c (...)
1Apesar de ter escrito ou organizado mais de vinte livros, Yves Lacoste geralmente tem seu nome associado a apenas um, La géographie ça sert, d’abord, à faire la guerre, publicado originalmente em 1976, reeditado com importantes alterações até 1985 e traduzido em diversos idiomas.1 Outra referência inevitável ao autor é seu papel como fundador e principal animador da revista Hérodote,
surgida no mesmo ano do famoso livro e já no seu 167º número (terceiro e
quarto trimestre de 2017). Este artigo pretende situar parte da
trajetória desse importante geógrafo enfocando sua atuação acadêmica e
política entre as décadas de 1960 e 1970. Assim, inicia-se com a
produção de Lacoste sobre temas como o subdesenvolvimento e a
descolonização. Em seguida, tenta-se reconstruir o período imediatamente
anterior à La géographie ça sert, d’abord, à faire la guerre, momento
em que Lacoste já busca outras maneiras de dar vazão a suas
inquietações como geógrafo, sobretudo políticas. Tomadas em sequência,
as motivações do autor estariam intimamente relacionadas ao contexto
econômico e político da França na época. As revoluções de liberação
colonial, o imperialismo, o maio de 1968 e a crise da universidade
francesa2
impunham a criação de uma nova Geografia, produzida por sujeitos
inseridos nas realidades sociais em conflito e – em teoria – capaz de
explicar todas as transformações dessa realidade. A obra de Yves Lacoste
é produto dessa exigência e assim deve ser investigada, como se busca
fazer no presente artigo.
- 3 A ocupação francesa no norte da África data da segunda metade no século XIX, do império de Napoleão (...)
2Nos
anos 1950 e 1960, Yves Lacoste preocupa-se com as questões do
subdesenvolvimento e da colonização em grande parte por ser, também ele,
um herdeiro do Terceiro Mundo. Filho de um geólogo francês responsável
pela exploração de petróleo no Marrocos, na época uma colônia francesa,3
Lacoste nasceu em Fez em 1929, onde passou a sua infância e
adolescência (Lacoste, 2010, 2012a). Criado, portanto, em uma sociedade
colonial, dentro dos quadros intelectuais e bem pagos do país, o autor
aproximou-se das questões e problemas concernentes ao Terceiro Mundo:
- 4 Tradução nossa, como todas as demais realizadas nesse artigo, a partir de originais analisados dura (...)
Acredito que essas ideias
explicam que desde a minha juventude eu tenha uma grande atenção
sentimental com o Marrocos, e um pouco mais tarde, mesmo que totalmente
diferente, com a Argélia; e em seguida meu interesse pelo conjunto de
países liberados das dominações coloniais, em condições muito diversas
uns dos outros. Mas foi somente a partir dos anos 1960 que esse
interesse se transformou em uma preocupação teórica. (Lacoste, 2012a:
15)4
3A
questão colonial é, portanto, um tema emocionalmente próximo à Lacoste
que transformou-se, ao longo de sua formação intelectual, em um objeto
de pesquisa e investigação científica. O autor cursou Geografia no
Instituto de Geografia da Sorbonne, em Paris, e fez um mestrado sobre a
geomorfologia do Marrocos, inspirado no trabalho do seu pai geólogo,
Jean Lacoste. Após a aprovação no exame de agrégation, mudou-se
para a Argélia, onde foi professor de liceu entre 1952 e 1955. Lá o
autor filiou-se ao partido comunista argelino, mas deixou-o em 1956,
quando do agravamento dos conflitos naquele país.
- 5 A guerra de independência da Argélia (1954-1962) faz parte, segundo Lacoste (2010), de um amplo pro (...)
4Devido
às suas manifestações anticoloniais, Lacoste foi obrigado a voltar à
França em 1955, durante a guerra de independência da Argélia,5
e tornou-se assistente de Pierre George na área de Geografia Humana do
mesmo instituto em que havia se formado (Lacoste, 2012a). Foi como
assistente de Pierre George que Lacoste interessou-se pela Geografia
Humana: “George foi um dos primeiros a considerar os fenômenos
demográficos, as formas de crescimento urbano, as indústrias e aquilo
que chamava de ‘os grandes tipos de organização econômica e social’ (em
essência, os países capitalistas e os países socialistas)” (Lacoste,
2012a: 25). Relata que desde a sua juventude foi próximo de Pierre
George, inclusive mantendo relações de amizade com sua família. Segundo o
autor, essa relação estreitou-se em 1964, momento da publicação da obra
La Géographie Active, escrita em conjunto com Bernard Kayser e
Raymond Guglielmo. Para o autor, sua relação com Pierre George manteve
um caráter de mestre e discípulo até 1968, quando discordaram sobre o
movimento de maio daquele ano. Pierre George teria se oposto ao
movimento estudantil na época, desencadeando um afastamento entre os
dois que durou até o final da década de 1990, quando Pierre George
convidou Lacoste para coordenar a republicação do seu Dictionnaire de Géographie (Lacoste, 2010, 2012a).
- 6 Nestes trabalhos de Lacoste, percebe-se um diálogo com autores que estavam analisando, por perspect (...)
5Dessa
forma, foi a partir da sua história no Magreb e da convivência com
Pierre George que o geógrafo iniciou uma carreira de estudos sobre o
Terceiro Mundo e o subdesenvolvimento. Já em 1959 publicou o livro
intitulado Les pays sous-developpés, no qual traz uma
perspectiva original de leitura das conquistas coloniais e do
imperialismo em relação às condições de subdesenvolvimento. Essa obra
obteve um grande sucesso editorial, com mais de dez edições na França e
tradução para 35 línguas (Lacoste, 2010). Na década seguinte, em 1965, a
publicação de Géographie du sous-développement foi um
aprofundamento do debate iniciado alguns anos antes. Nas palavras de
Lacoste (2012a: 26), “[essas] duas obras relativamente generosas
supriram uma grande quantidade de geógrafos que não tinham o hábito de
ver ‘em Geografia’ tantos fatores econômicos e políticos, quer fosse no
passado quer fosse no presente”.6
6O livro Les pays sous-developpés,
de 1959, é um dos primeiros momentos em que o autor explicita essa
preocupação, empreendendo uma análise geográfica do Terceiro Mundo a
partir da perspectiva da Geografia Ativa. Percebe-se que há, na obra, um
comprometimento com a compreensão da situação do subdesenvolvimento de
uma maneira não dualista, ou seja, não apenas em comparação com o seu
outro, o desenvolvimento.
7De
acordo com Lacoste (1959, 1965), a utilização do termo
subdesenvolvimento se daria após a Segunda Guerra Mundial, sendo o
conceito objeto de elaborações pouco rigorosas que o interpretaram ora
“por dentro”, sublinhando as causas que parecem internas aos países, e
ora “por fora”, atribuindo um papel primordial aos efeitos de dominação
dos países imperialistas. O autor partiu da crítica à diversas
perspectivas de análise da situação do subdesenvolvimento, quais sejam:
(i) os países subdesenvolvidos não dispõem do necessário, definido como
aquilo que o conjunto da população precisa para viver, o que depende da
evolução das estruturas econômicas, sociais e culturais; (ii) o
subdesenvolvimento como manifestação da subprodução, ou seja, a
insuficiência de forças produtivas ou de potencialidades naturais como
causa do subdesenvolvimento, agravado pelo acelerado crescimento
demográfico; (iii) o subdesenvolvimento como sinônimo de baixo valor do
PIB per capita, ou seja, o PIB per capita serve não apenas como índice,
mas como explicação da situação de subdesenvolvimento; (iv) a utilização
de um recurso comparativo entre os países subdesenvolvidos e a Europa
pré-industrialização, o que definiria o Terceiro Mundo como atrasado,
arcaico ou tradicional; (v) a ausência de industrialização como causa
principal do subdesenvolvimento, consequência da colonização, sendo esta
a definição do atraso; (vi) o subdesenvolvimento como dualismo
econômico e social, causado pela desarticulação entre um setor moderno e
industrializado da economia e outro setor atrasado e não
industrializado; e finalmente (vii) o subdesenvolvimento como resultado
dos efeitos de dominação exercidos pelas potências imperialistas, que
criam uma relação de exploração com os países subdesenvolvidos.
8Para
Lacoste (1959, 1965), existiria uma grande diversidade e
heterogeneidade dentre os países classificados como subdesenvolvidos. A
análise da situação do subdesenvolvimento deve, em meio à essa
heterogeneidade, encontrar as características comuns que formam o corpo
explicativo de tal situação:
A construção de um conceito de
‘subdesenvolvimento’ em escala planetária repousa na hipótese de que,
não obstante essa extrema diversidade de situações geográficas, é
possível encontrar características comuns suficientemente importantes
para desenhar, em um certo grau de abstração, os traços de uma situação
global ou de um conjunto global de situações. (Lacoste, 1959: 11)
9O
autor, portanto, busca compreender não apenas as diferenças entre os
países desenvolvidos e os países subdesenvolvidos, mas também as
contradições internas aos próprios países em situação de
subdesenvolvimento, visto que a modernização é um processo em si
contraditório que não produz, necessariamente, a melhoria das condições
de vida da população (Lacoste, 1959).
10Uma
das características comuns do subdesenvolvimento seria o forte
crescimento demográfico que diversos países sofreram durante o século
XX. Para Lacoste (1959: 32), “[a] ‘descoberta’ do subdesenvolvimento é
contemporânea de um fenômeno realmente novo: o extraordinário
crescimento da população mundial a partir do começo do século XX”. Para o
autor, tal crescimento demográfico deveu-se principalmente a uma forte
queda das taxas de mortalidade, em escala mundial, após o uso mais
corrente de técnicas e tecnologias médicas e sanitárias a partir da
segunda metade do século XX. Essas tecnologias médicas puderam diminuir a
propagação de doenças contagiosas, evitando as epidemias que se tornam
perigosas na medida em que a evolução dos transportes pode fazer com que
estas não ficassem mais restritas aos países do Terceiro Mundo.
11O
argumento fundamental para a análise de Lacoste (1959, 1965) sobre o
subdesenvolvimento se baseia em uma crítica à definição do Terceiro
Mundo como um conjunto de países arcaicos ou tradicionais: o
subdesenvolvimento não é uma situação estática ou imóvel, pois as
populações do Terceiro Mundo estariam vivendo grandes transformações de
natureza social e demográfica desde a Segunda Guerra Mundial. O
crescimento demográfico e o desemprego são as duas principais
transformações recentes que abateram os países subdesenvolvidos,
agravando as suas contradições internas e impedindo uma explicação
estática do atraso como mote para a interpretação do subdesenvolvimento.
Tais transformações seriam consequências da modernização capitalista:
Nos países ‘subdesenvolvidos’
deve-se constatar que as transformações são principalmente negativas
para a maioria da população e que estas determinam o aparecimento e o
agravamento das dificuldades que não eram conhecidas antes. Mas as
transformações não são apenas negativas, elas são também muito
positivas. Assim, a única forma de considerá-las é apreendê-las como
contradições. (Lacoste, 1959: 95)
12A
situação dos países subdesenvolvidos se caracterizaria, assim, pela
contradição interna entre crescimento acelerado da população e a
relativa estagnação econômica da produção, o que reduziria os recursos
que essa população poderia dispor efetivamente. Tal desajuste entre o
crescimento populacional e o crescimento econômico seria o fato novo na
história da humanidade ao qual se referiu Lacoste (1959). No passado, o
baixo crescimento econômico era sinônimo de baixo crescimento
demográfico. A partir da segunda metade do século XX importantes
mudanças estruturais (econômicas, demográficas e sociais) ocorreriam nos
países do Terceiro Mundo, na medida em que o modo de produção
capitalista se mundializava, aprofundando laços de dependência entre
esses países com as antigas metrópoles e os EUA.
13Essa
etapa de brusco desenvolvimento cumulativo dos desequilíbrios internos,
agravados por condições externas, pode ser considerada como uma crise
dialética dos países subdesenvolvidos, e portanto do capitalismo e da
humanidade, já que estes países constituem a maior parte da população do
planeta. A contradição do subdesenvolvimento é, dessa maneira, a
contradição da modernização: enquanto a miséria do passado era
equilibrada e durável, a miséria do subdesenvolvimento cresce juntamente
ao crescimento demográfico desajustado com o crescimento econômico.
14Argumenta-se,
assim, que a proposta de Lacoste (1959, 1965) foi de construir uma
definição de subdesenvolvimento que contivesse tanto a herança deixada
por situações históricas anteriores quanto as transformações recentes
que agravaram os quadros de miséria.
15Como já dito, em 1976 foi criada a revista Hérodote e publicada a obra La géographie ça sert, d’abord, à faire la guerre. Se
o ano foi marcante para a renovação crítica da geografia francesa e na
trajetória pessoal de Lacoste, deve-se reconhecer, porém, que este marco
já resulta de uma inclinação, no meio acadêmico francês da época, para
temas sociais e políticos que transcendiam em muito o escopo habitual da
geografia – mesmo da geografia econômica “progressista”, como aquela de
Pierre George. Com base nesta premissa, não seria despropositado recuar
alguns anos para buscar os sinais de descontinuidade, nas ideias de
Lacoste, com relação à sua geografia do subdesenvolvimento, que
produzira seu último fruto em 1965. No pano de fundo deste deslocamento
há ecos do maio de 1968 na França, com todas suas implicações na
universidade e na sociedade, bem como das crises políticas mundiais que
pareciam sinalizar fraturas no sistema imperialista (como a Guerra do
Vietnã) e no bloco socialista (como a invasão da Tchecoslováquia pela
URSS). Para usar uma expressão cara à Lacoste (1972, 1976), a “geografia
da crise” explicitava a “crise da geografia”. Era portanto necessário
responder à crise e o autor faria isso. A geografia francesa não seria a
mesma depois de suas intervenções.
16A primeira delas seria um ensaio epistemológico com forte teor político intitulado A Geografia, escrito para o volume 7 - dedicado à Filosofia das Ciências Sociais - da prestigiosa coleção História da Filosofia. Ideias, doutrinas,
organizada por François Châtelet. No Brasil, sua tradução antes do
livro de 1976 fez com que esta conhecesse considerável divulgação entre
os geógrafos, mesmo sem ter a força performática daquele. Sem dúvida,
foi a partir deste último que Lacoste passou a ser conhecido pelas
gerações futuras, inclusive no Brasil. No entanto, vale registrar que
antes da obra de 1976 houve produção significativa do autor. A passagem
da geografia para a geopolítica seria operada na mesma época por um
estudo de caso bastante concreto, que se examina a seguir, desta vez
mais longamente.
17Em 16 de agosto de 1972, Yves Lacoste publicou uma denúncia no jornal francês Le Monde na
qual revelou que o governo norte-americano, presidido por Richard
Nixon, estaria empreendendo um genocídio no Vietnã do Norte a partir do
bombardeamento deliberado dos diques de proteção do rio Vermelho. Nesse
texto, Lacoste explicou que entre abril e julho de 1972 os
norte-americanos bombardearam mais de 80 pontos diferentes das obras
hidráulicas do país, mais da metade concentradas na parte oriental do
delta do rio Vermelho – área abaixo do nível das águas e onde se
concentrava boa parte das vilas e cidades sujeitas à inundação caso os
diques se rompessem. Utilizando diversos recursos da análise geográfica,
Lacoste (1972b: 1-2) explicitou:
É possível considerar que a
concentração de bombardeios nos diques da parte oriental do delta, que é
também a região mais povoada e mais importante do ponto de vista
agrícola, traduz o caráter deliberado desses ataques, pois estes se
localizam onde os seus efeitos podem ser os mais graves.
- 7 Fundada em 1976 por Yves Lacoste, a revista Hérodote foi gestada, no pós-1968, na Universidade de V (...)
18Nessa
denúncia, o autor evidenciou a estratégia de guerra empreendida pelos
norte-americanos e, quatro anos mais tarde, no primeiro número da
revista Hérodote,7 Lacoste
(1976b) explicitou o raciocínio e a hipótese de pesquisa que
fundamentaram o artigo de 1972. No segundo texto, percebe-se que o
objetivo da reflexão sobre o bombardeamento dos diques no Vietnã, mesmo
após o fim da guerra da Indochina, foi demonstrar as relações existentes
entre a análise geográfica e a estratégia militar, indicando o problema
da responsabilidade dos geógrafos frente aos seus temas de pesquisa e
suas implicações políticas. Para Lacoste (1976b), o dano causado pelo
bombardeamento dos diques era revelador da função ideológica das
representações geográficas, e por isso a análise desse caso
constituiu-se tanto como uma denúncia da estratégia de guerra quanto uma
reflexão sobre a importância do raciocínio geográfico para o próprio
empreendimento da guerra.
- 8 Considerado por Lacoste (1978, 2010, 2012a) um geógrafo anticolonialista e militante das lutas anti (...)
19Tal tema de pesquisa chegou à Lacoste pelas mãos de Jean Dresch,8
em 1967. Na época, Dresch era diretor do Instituto de Geografia da
Sorbonne e recebeu do governo vietnamita uma ampla documentação sobre os
bombardeamentos que o país estava sofrendo na guerra. Estudando a
dinâmica fluvial do rio Vermelho, explicou a geomorfologia fluvial do
norte do Vietnã: a existência de elevações aluviais fazia com que o
delta do rio Vermelho corresse acima, entre 5 e 10 metros, de uma
planície extremamente povoada, protegida por diques que impediam a
inundação desta.
- 9 O trabalho de Pierre Gourou ao qual Lacoste se refere é a sua tese de doutoramento, intitulada Les (...)
20A partir de um estudo sobre a geomorfologia do rio Vermelho – tendo como fonte fundamental Pierre Gourou –9
e dos documentos sobre os locais bombardeados pelos norte-americanos,
Lacoste foi à campo, no ano de 1972, com a seguinte hipótese: a aviação
norte-americana não poderia atacar, explicitamente, todos os diques do
norte do Vietnã. Seria necessário, portanto, analisar os diques como uma
rede e assim bombardear determinados locais selecionados, onde o
consequente rompimento significaria a destruição mais grave. A escolha
desses locais para o bombardeamento deveria seguir alguns critérios,
pois os diques estavam conectados em rede hierarquizada, e o delta do
rio Vermelho era desigualmente ocupado. Era, portanto, fundamental
sobrepor o mapa dos bombardeamentos ao mapa da rede de diques para
revelar quais eram esses locais escolhidos. Com este novo mapa seria
possível reconstruir o plano estratégico do governo norte-americano.
21Em
campo, Lacoste concluiu que o bombardeamento dos diques selecionados
deu-se através de explosões em distâncias determinadas, que, em vez de
romper imediatamente os diques, os danificavam estruturalmente. À
seleção dos pontos que deveriam ser bombardeados seguiram-se três
diferentes níveis de análise geográfica, que articulavam dados
topográficos, hidrológicos e populacionais: as bombas foram, em grande
parte, explodidas nas partes côncavas dos meandros dos rios, ou seja,
nos locais onde a água corrente exercia maior pressão. Os
bombardeamentos também visaram bloquear as eclusas, o que dificultaria a
evacuação das águas de inundação em direção ao mar. Tais
bombardeamentos foram amplamente realizados no final da estação seca, de
forma que quando começassem as chuvas, os diques se romperiam
“naturalmente” com a força das águas, inundando uma planície povoada por
milhões de vietnamitas. Conforme explicitou Lacoste (1976b: 94),
tratava-se de uma tentativa de genocídio:
É necessário proclamar, desde
já, que se os diques se romperem neste verão, a responsabilidade deste
genocídio deve cair sobre o presidente Nixon, da mesma maneira como se
este houvesse determinado um bombardeio atômico.
22Constata-se
que este trabalho de Lacoste (1972b; 1976b) relaciona diretamente os
dados físicos e os dados populacionais do lugar, a partir de uma
pesquisa que integra informações de fontes primárias – os dados de
bombardeamentos fornecidos pelo governo vietnamita –, fontes secundárias
– o estudo de Pierre Gourou sobre as planícies do rio Vermelho – e o
trabalho de campo, produzindo como resultado um mapa que comprovava a
hipótese levantada anteriormente ao campo.
23Quando
retornou à França, após seu trabalho de campo no Vietnã, o resultado da
pesquisa de Lacoste foi amplamente divulgado por meio de um relatório
entregue às autoridades vietnamitas e do artigo publicado no jornal Le Monde, aqui mencionado. No artigo publicado alguns anos depois na revista Hérodote, Lacoste
definiu o plano de bombardeamento dos diques como uma “guerra
geográfica”, pois não se tratava apenas de destruir ou modificar as
relações ecológicas do lugar, mas sim de transformar amplamente a
situação na qual viviam milhares de pessoas:
De fato, não se trata apenas de
destruir a vegetação para obter resultados políticos e militares, de
transformar a disposição física dos solos, de provocar voluntariamente
novos processos de erosão, de modificar completamente determinadas redes
hidrográficas para modificar a profundidade do aquífero (com o objetivo
de secar os poços dos arrozais), de destruir os diques: se trata também
de transformar radicalmente a divisão espacial do povoamento
praticando, por diversas formas, uma política de reagrupamento dos
povoados isolados em uma urbanização forçada. Essas ações destrutivas
não são apenas a consequência involuntária da enormidade de meios de
destruição utilizados atualmente para uma certa quantidade de objetivos
para a guerra tecnológica e industrial. Elas são também o resultado de
uma estratégia deliberada e minuciosa na qual os diferentes elementos
são cientificamente coordenados no tempo e no espaço. (Lacoste, 1976:
114)
24A
Guerra do Vietnã, para o autor, marcou uma nova etapa na história da
guerra e da Geografia: pela primeira vez, comprovou-se que métodos de
destruição e de modificação do meio geográfico, tanto dos seus aspectos
físicos quanto humanos, foram utilizados para destruir as condições
geográficas indispensáveis à vida de milhões de pessoas.
25Tais
reflexões de Lacoste (1959, 1972b; 1976b) evidenciam uma preocupação
diferente da visão naturalizada da geografia tradicional, ou seja, em
vez de uma perspectiva que analisa os homens como um dos elementos da
paisagem, na interpretação do autor há uma relação entre a sociedade -
não mais os indivíduos - e o espaço - não mais a natureza – em que a
primeira age sobre o segundo, transformando-o para as suas necessidades
(Verdi, 2016). Lacoste (1959, 1972b; 1976b) utiliza amplamente dados
econômicos para demonstrar que o domínio do espaço é uma ação política
historicamente empreendida pela sociedade, cujo fundamento seria o
processo de colonização, obedecendo a fins determinados. Essas reflexões
trazem novos conteúdos, temas e abordagens para a geografia francesa,
constituindo-se em uma perspectiva original de análise na disciplina.
26Lacoste
(2012a) atribui ao trabalho de Pierre George e especialmente à
Geografia Ativa a sua perspectiva original de análise geográfica. Para
ele, caberia aos geógrafos a análise das interações entre o meio natural
e as estruturas econômicas e sociais, participando mais ativamente das
tramas que regem a organização da sociedade.
27A
análise do bombardeamento planejado dos diques do rio Vermelho durante a
Guerra do Vietnã é um dos momentos da obra de Yves Lacoste que revelam a
existência de uma relação intrínseca entre a biografia deste geógrafo e
a sua preocupação com as questões coloniais e do subdesenvolvimento,
que remetem tanto à Geografia Ativa de Pierre George quanto ao contexto
político e social da França nas décadas de 1960 e 1970.
28As
obras de Lacoste (1959, 1964, 1965, 1972b; 1976, 1976b) analisadas neste
artigo revelam que as reflexões sobre as contradições do
subdesenvolvimento, a herança das desigualdades da exploração colonial e
o conteúdo geográfico das guerras foram parte de um processo
empreendido pelo autor de reconstrução da geopolítica na França. Uma das
etapas fundamentais desse processo foi a publicação de La géographie ça sert, d’abord, à faire la guerre,
obra expoente da perspectiva original do autor frente às questões
geográficas. Segundo Lacoste (2012a), o livro foi objeto de escândalo e
de diversas polêmicas entre os geógrafos. No entanto, foi a partir desta
publicação que o geógrafo inaugurou uma reflexão epistemológica da
ciência geográfica que se desenvolveu na direção da elaboração de uma
concepção de geografia e de geopolítica:
Era necessário, acima de tudo,
construir uma nova concepção da geopolítica e a diferenciar da
Geografia. Certamente, não era possível opor-se à moda midiática da
geopolítica que permanece ainda hoje um fenômeno essencialmente francês,
sem grandes relações com uma crescente influência dos geógrafos. A
geopolítica, como eu a defini, analisa e explica as rivalidades de poder
sobre os territórios geográficos, quer sejam estes grandes ou pequenos,
considerando com especial interesse os argumentos que colocam
corretamente ou não os protagonistas, cada qual utilizando-se de representações, de direitos históricos mais
ou menos antigos, para justificar as suas ações. (...) Em essência, a
Geografia tal qual eu a compreendo é atualmente de grande utilidade para
a análise de todos os conflitos geopolíticos, a substância de todas as
rivalidades de poder sobre os territórios. (Lacoste, 2012a: 46)
29Essa
nova concepção resultou na fundação de uma Escola Francesa de
Geopolítica, institucionalizada, desde 2002, no Instituto Francês de
Geopolítica, parte da Universidade de Paris VIII e sede da revista Hérodote.
Nessa instituição, a perspectiva de análise geopolítica de Lacoste se
reproduz até os dias atuais, de maneira a atualizar as discussões
iniciadas na década de 1950.
30Este
artigo pretendeu destacar que há uma relação fundamental entre a
história pessoal de Yves Lacoste e seu interesse pelas questões do
subdesenvolvimento e do Terceiro Mundo. Considerou-se aqui que a
história do autor se reflete nas suas escolhas e interesses de pesquisa,
aproximando-o de temas até então ausentes ou pouco abordados pela
Escola Francesa de Geografia. É importante notar, no entanto, que os
países do Terceiro Mundo já haviam sido estudados pela Geografia
anteriormente – vide a tese de Pierre Gourou sobre o delta do rio
Vermelho, no Vietnã, defendida em 1936 –, mas não por uma perspectiva
que visava superar a descrição dos lugares e a análise regional (Verdi,
2016). Assim, compreende-se que Lacoste estabeleceu outro objeto e outro
objetivo para a ciência geográfica, diferenciando-se da tradição
vigente e inaugurando uma nova interpretação que atribui conteúdos
políticos à análise geográfica, de forma a produzir uma interpretação
geopolítica dos conflitos sociais e territoriais.