1Muito
do trabalho do historiador da ciência é mostrar o quanto de social há
na prática científica e com isto relativizar a imagem do senso comum de
que a ciência está acima do bem e do mal. Um bom exemplo desta abordagem
é tomar algo que se tem por "natural" como as coordenadas geográficas e
os fusos horários e analisar o quanto de consenso e embates políticos e
diplomáticos há nestas ideias. Existe um ponto de convergência que
deixa transparecer as relações entre ciência, tecnologia e diplomacia e
este pode ser visto no Congresso Internacional de Washington de 1884. O
objetivo daquele congresso era unificar as longitudes e estabelecer a
hora universal.
2
Uma das características da ciência, principalmente nos oitocentos, foi a
procura em estabelecer um padrão universal para sua prática, então nada
mais justo que procurar estabelecer um meridiano inicial de longitude
para todos. No caso da cartografia esta preocupação estava expressa no
Primeiro Congresso Internacional de Geografia em 1871 na Antuérpia.
Diversos países como a França, Itália, Portugal e Espanha ainda
utilizavam os meridianos iniciais nacionais (Bartky, 2007: 42). Assim, a
partir da segunda metade do século XIX, a questão da diversidade de
meridianos originais tornou-se um problema.
3Desta
forma, o Congresso de Washington de 1884, sendo organizado pelos
Estados Unidos, convidou todas as suas nações amigas para resolver esta
questão do ponto de vista das relações internacionais. O Brasil estava
entre as nações convidadas.
4 O que nos move a estudar este evento é
a possibilidade de investigar as interseções entre história da
cartografia, história da ciência na busca de um padrão universal para o
cálculo da longitude. Após a leitura dos anais do Congresso fica
bastante evidente a relação entre política e ciência na determinação de
um meridiano que deveria obedecer aos critérios de neutralidade. Nestas
circunstancias, é bastante profícuo acompanhar a atuação do
representante brasileiro, que nos permitiu obter outra compreensão das
discussões ocorridas naquele Congresso.
- 1 Sobre o tema conferir também os trabalhos de Ian Bartky (2007), Derek Howse (1980; 1985) e Jacques (...)
5 O fascínio da história da longitude já seduziu muitos historiadores da ciência. Um bom exemplo é o livro Longitude
de Dava Sobel, de grande sucesso editorial e que resultou na produção
cinematográfica de 1999 com o mesmo título, dirigido por Charles
Sturridgen. Além de popularizar o tema, o trabalho de Sobel possui o
mérito, de mostrar como se deu a resolução do problema da longitude no
século XVIII, ligado ao contexto das navegações. Naquele momento o
enigma era saber qual era a exata longitude em alto mar e a solução veio
com o relógio de Harrison (Cf. Sobel, 2008). No século seguinte o
problema não era mais o mesmo. A profusão de observatórios nacionais
contribuiu para uma multiplicidade de longitudes iniciais nos mapas que
circulavam globalmente. Naquela época, o cenário mudou com o telégrafo,
as ferrovias e a navegação a vapor e começou a se tornar premente a
unificação da longitude, ou seja, um único meridiano longitudinal para
todas as nações, como demonstrou Peter Galison (2003).1
A respeito deste problema, passamos a palavra ao delegado
norte-americano Sampson, fala proferida nos primeiros dias do Congresso
de Washington:
Na escolha do meridiano inicial,
não nenhuma característica física em nossa Terra que recomenda esta
escolha sobre as demais, uma vez que a forma da terra não apresenta
nenhuma particularidade que indique o ponto inicial. (...). Na verdade,
como meridiano inicial deve ser fixado, não há como fixá-lo com nenhuma
constante física. Isto significa disser que a escolha deste meridiano é
tão arbitrária como qualquer outra decisão. (Protocols, 1884: 38,
tradução nossa)
6
Menos que analisar o deslocamento do problema da longitude como uma
evolução linear de acumulação do conhecimento, acreditamos ser mais
importante vê-lo como fruto das inquietações de seu tempo. Em outras
palavras, se no século XVIII o desafio era a precisão, no século XIX a
palavra de ordem era padronização e unificação da prática científica.
Outrossim, a diferença estaria também no fato de que no primeiro caso a
questão fora resolvida no âmbito da Royal Society de Londres, e
no período seguinte nota-se a adição nesta equação do fator nacional
com colorações específicas do século XIX, ou seja, a solução deveria vir
de um acordo entre as nações e não mais de uma só agencia.
7 O
Congresso de 1884 é frequentemente referido pela historiografia como um
ponto de convergência para a unificação das coordenadas levando em
consideração as disputas entre poderosas nações, mescladas com o impacto
de novas tecnologias da época.
8 O
problema da unificação já estava expresso em congressos internacionais
anteriores, como, por exemplo, no primeiro de geografia em 1871 na
Antuérpia. Segundo Ian Bartky (2007), havia uma tendência neste
congresso em se deliberar a favor da adoção do meridiano de Greenwich
como o inicial por conta do franco uso do Almanaque Náutico produzido
por aquele Observatório. Não obstante, muitos trabalhos científicos
ainda estavam ligados ao meridiano de Paris, principalmente nos
trabalhos de geodesia, o que tornou inconclusiva a resolução final do
Congresso da Antuérpia. Segundo Bartky (2007), o importante geógrafo
francês Émile Levasseur falou sobre o ocorrido:
Existem apenas dois meridianos a
serem considerados: Paris e Greenwich. Se estivesse no século XVII ou
XVIII seria muito provável a adoção do meridiano de Paris, que
refletiria o domínio francês na geodesia e na cartografia. Entretanto,
naquele momento, a decisão deveria atender aos navegadores que já usavam
o meridiano de Greenwich, devido ao Almanaque Náutico e assim, do ponto
de vista prático deveria ser o meridiano inglês. (Levasseur apud,
Bartky, 2007: 42, tradução nossa)
9
Esta fala de Levasseur em 1871 significativamente coincidiu com o fim da
guerra Franco-Prussiana. E expressou perfeitamente a auto-consciência
da França sobre o declínio de sua hegemonia na esfera de influência
cultural, na qual fornecera os padrões de civilização e progresso para o
restante do mundo.
10
Esta tensão entre o meridiano de Paris e Greenwich perdurou nos
Congressos de Roma e de Washington, em meados da década de 1880. A Association Géodésique Internationale
(AGI) recebeu do Senado de Hamburgo uma demanda para a unificação das
coordenadas. No século XIX as distâncias se tornam ainda menores com o
telégrafo, navegação a vapor e a ferrovia. No caso do encontro de Roma,
aquela solicitação poderia ter sido formulada por qualquer outra
instituição uma vez que a unificação era uma necessidade premente,
devido, por exemplo, ao adensamento da rede ferroviária na Europa e
Estados Unidos. A falta de padronização gerava transtornos diários, bem
como acidentes nas ferrovias (Cf. Galison, 2003).
11
Em 1883 foi realizada a Conferencia Internacional de Geodesia,
organizada pela AGI, em Roma, onde se discutiu a adoção de um meridiano
inicial único e a unificação do tempo pela introdução de uma hora
universal. O Brasil não participou deste encontro. Logo na sessão de
abertura já havia sido anunciado o Congresso de Washington para o ano
seguinte com o objetivo de resolver o impasse do ponto de vista das
relações internacionais (Hirsch, Oppolzer, 1883: 8), pois o de Roma, por
ser de especialistas, não teria o poder de convencer as nações à adesão
a um meridiano universal na vida civil dos países como elaboração de
mapas nacionais e estabelecimento de fusos horários.
12
Cabe registrar que o resultado daquele encontro em Roma foi a escolha de
Greenwich como meridiano zero, seus participantes tinham em mente que,
para vencer o obstáculo para a padronização internacional era preciso
acionar a diplomacia. A decisão final do Congresso da AGI se baseou na
alegação da praticidade uma vez que grande parte da frota mundial já
navegava por aquele meridiano. A França tomou esta decisão como uma
derrota e decidiu formar uma comissão preparatória no âmbito do
Instituto de França para o encontro de 1884 (Cf. Gapaillard, 2011), como
se eles estivesse se preparando para uma revanche francesa.
13
Em outubro de 1884, 40 delegados de 25 países, tanto no mundo da
diplomacia quanto da ciência, se reuniram na cidade de Washington para
procurar erigir um acordo entre nações sobre o meridiano de longitude
zero e começar a contagem do tempo a partir de um ponto comum. A seção
inaugural se deu no Salão da Diplomacia do Departamento de Estado
Norte-Americano. Esta foi aberta pelo então Secretário de Estado,
Frederick T. Frelinghuysen que lembrou a todos que estava com eles a
missão de dar um resultado definitivo para os trabalhos que os
precederam seja em associações científicas seja nos congressos
preparatórios. Finalizou seu discurso desejando sucesso e que se
chegasse a uma conclusão satisfatória para o mundo civilizado. Passou a
palavra para o presidente da Conferência, o almirante norte-americano
C.R.P. Rodgers, que assinalou a importância de se determinar uma
longitude única, pois sendo um homem do mar, viu a confusão de se ter
vários meridianos provocando tumulto e perigo para a tripulação.
14
Na primeira seção de trabalho, o delegado americano, o astrônomo Lewis
Rutherfurd propôs Greenwich como meridiano zero. Ou melhor, “como o
meridiano padrão o que passa através do centro da luneta de transito do
Observatório de Greenwich” (Protocols ,1884: 41, tradução nossa).
15
No mesmo instante o delegado da França, o consul-geral Albert Lefaivre
se levantou contra a decisão. E seu colega, Pierre J. C Janssen, então
diretor do Observatório de Meudon, argumentou que aquela assembléia, com
inúmeros delegados dos quais muitos eram cientistas, deveria ser vista
com profundo respeito pelo restante do mundo. Segundo Janssen o poder do
Congresso de Washington era “inteiramente de caráter moral e (...)
deixando absolutamente intacto a independência de cada Estado
individual” (ibidem: 24). Segundo ele, uma das vantagens do Congresso
era de não ser formado somente por especialistas, mas composto também
por funcionários de Estado, que não estavam familiarizados com questões
científicas, mas eram encarregados de examinar esta questão do ponto de
vista político. E propôs a moção da adoção de
um meridiano inicial com caráter
de absoluta neutralidade; exclusivamente escolhido de modo a assegurar
vantagens gerais à ciência e ao comercio internacional, especialmente
que não atravessasse nenhum grande continente: nem a Europa, nem a
América (idem).
- 2 A adesão norte-americana à Greenwich se deve ao fato de haver uma disputa interna entre os estados (...)
16
É possível sistematizar as discussões em dois blocos: o francês que se
fundamentava no argumento de um meridiano absolutamente neutro, sem a
marca nacional; e o anglo-saxão que defendia o ponto de vista da
praticidade. As posições favoráveis a Greenwich, defendidas
principalmente pela Grã-Bretanha e pelos Estados Unidos2,
reiteravam os argumentos utilitários como aquele já enunciado em Roma
de que a maior parte da frota mundial já navegava pelo meridiano inglês.
Durante o evento, a França defendeu o meridiano da Ilha de Ferro, por
razões históricas, que remetia a geografia de Ptolomeu, mas eles mesmos
reconheciam que este era um meridiano francês disfarçado pelo fato do
geógrafo Guilherme Delisle, contemporâneo de Richelieu, ter arredondado o
meridiano da Ilha do Ferro para 20º oeste do Observatório de Paris,
pois na Ilha de Ferro não havia observatório. A própria delegação
francesa sabia que isto enfraqueceria a escolha daquele meridiano como
absolutamente neutro e também defendia um meridiano neutro que não
passasse por regiões densamente povoadas, ainda não especificado. Caso a
decisão a favor do peso da tradição e da história não fossem
suficientes, os franceses afirmavam que era missão daquele Congresso a
escolha de uma longitude zero que atendesse ao critério de neutralidade
supranacional (Protocols, 1884: passim).
- 3 Luiz Cruls (1848-1908) era um engenheiro belga que chegou ao Rio de Janeiro em 1874. Ele começou a (...)
17
O representante do Brasil no Congresso de Washington era o astrônomo
Luiz Cruls, diretor do Imperial Observatório do Rio de Janeiro, hoje
Observatório Nacional3.
O início dos preparativos para o evento se deu com os Estados Unidos
expedindo os convites às nações amigas em dezembro de 1883. Em março do
ano seguinte, há uma carta de Cruls persuadindo o Imperador a enviá-lo
como representante do país utilizando argumentos da grandeza
territorial:
Em relação ao convite dirigido
ao Governo do Brasil, julgo convenente que fosse este país representado
no futuro congresso, pois que trata-se de um assunto cuja solução
interessa altamente o império do Brasil, como primeira potência sul-americana e para ser um dos quatro países de maior superfície do mundo inteiro,
cito os três outros: a Rússia, a China e os Estados Unidos. Parece-me,
pois que o convite dirigido ao Governo do Brasil deve ser aceito, a fim
de que o delegado brasileiro possa tomar parte deliberativa nas
discussões que se haverá no Congresso internacional de Washington.
(Carta de Luiz Cruls ao Imperador Pedro II. Tradução Jean-Pierre
Barakat. Rio de Janeiro, 3 de março de 1884. Acervo do Museu Imperial,
grifo nosso)
18
Ao tomar conhecimento deste convite, Cruls solicitou a Pedro II as
providências necessárias para garantir seu lugar no referido evento:
Em consequência, peço a V. Ex.
que se digne a responder ao Aviso da delegação americana no sentido de
ser comunicado ao Governo dos Estados Unidos que o Brasil, aceitando ao
seu convite, enviará um delegado a fim de representá-lo no referido
congresso. (Idem)
19
Nesta carta ficou explicita a utilização retórica da territorialidade
brasileira como forte elemento persuasivo acrescidas das pretensões de
“potência sul-americana” do Império Brasileiro, não só para persuadir
Pedro II, mas também em instruí-lo como agir para firmar a posição do
Brasil naquele evento. Esta relação entre a grandeza territorial e seu
devir como potência no hemisfério sul, pode ser considerada como um
traço de longa duração do discurso geopolítico brasileiro.
20
Ao que tudo indica, Cruls recebeu instruções do Imperador para
acompanhar o voto francês naquele Congresso. Esta informação está em um
artigo do próprio astrônomo (1885: 62). Entretanto, esta instrução se
deve ao fato de Pedro II ser um associado estrangeiro do Instituto de
França. Cabe lembrar que o Brasil era naquele momento uma monarquia, na
qual os limites do público e privado se diluem tornando-os pouco nítidos
(Cf. Schwarcz, 1998). Assim, a política de estado se confundia com a
pessoa do Imperador e o voto alinhado com a França é mais uma expressão
desta política do que propriamente um indicativo direto sobre o status
da ciência no país.
21
Pretendemos demonstrar que a posição de Cruls não era um simples
assentimento ao pedido francês. Nesse artigo desejamos analisar as
circunstancias de sua ida ao Congresso o que nos remete a questões
pontuais e materiais do processo de institucionalização da astronomia no
Brasil. Devemos ler com atenção o voto de Luiz Cruls. Segue o texto:
Eu desejo de minha parte deixar
clara a atitude que o Brasil deve tomar nesta Conferência. Esta atitude
deve ser de absoluta neutralidade, em relação se este meridiano deve ou
não ser nacional, o que deve provocar rivalidades legítimas entre as
nações. Do ponto de vista do interesse do Brasil, a escolha de um
meridiano é recomendável, qualquer que seja o escolhido. Nossas cartas
locais têm com referência o meridiano mais próximo que é dado pelo
Observatório do Rio de Janeiro, que oferece ponto de partida para
operações geodésicas e hidrográficas em curso no Brasil, conectadas com o
mesmo meridiano. As cartas marítimas de nossa costa são usadas como
resultado do trabalho do Comandante Mouchez, atual diretor do
Observatório de Paris. A determinação da longitude por telégrafo é feita
que é feita no Rio, se deve ao trabalho da Comissão americana, dirigida
pelo Comandante Green, da marinha americana. (Protocols, 1884: 81,
tradução nossa)
22
Em 1885, em um periódico de geografia, Cruls explicitou com mais vagar
as suas razões realizando uma distinção entre meridianos nacionais e de
origem ou zero:
Os meridianos de observatórios
devem ser considerados essencialmente nacionais. O seu papel é permitir
aos observatórios ligarem-se entre si para unificação das suas
observações. Servem além disto de ponto de apoio para os trabalhos
geodésicos e topográficos que se executam em torno deles. Porém o seu
papel de ordem meramente particular deve ser limitado, em geral, ao país
que os possui.
Pelo contrário, os meridianos de origem, na
geografia, não necessitam ser fixados com tão rigorosa precisão do que a
exigida pela astronomia; mas em compensação, seu domínio deve
estender-se ao longe, e enquanto há interesse em multiplicar os
meridianos de observatório, há necessidade de reduzir tanto quanto
possível as origens de longitude em geografia. (Cruls, 1885: 57)
23
No mesmo artigo Cruls confessou sua admiração por, numa assembleia com
“tantos sábios e homens teóricos eminentes, (...) o lado utilitário da
questão [ter ditado] as resoluções tomadas” (idem: 58). Ele se absteve
na votação sobre a adoção do meridiano de Greenwich como meridiano
universal, pelo fato desta escolha possuir mais um caráter utilitário, o
que não o convencia por ser um critério que contrariaria os paradigmas
da neutralidade da ciência. Na sua opinião, aquela linha não poderia
dividir continentes densamente povoados. Outra razão assinalada por
Cruls para a inviabilidade do meridiano de Greenwich como inicial era a
resistência francesa, que pela falta de um acordo geral, não se poderia
chamar aquele de meridiano universal.
24 A
solução do problema para Cruls seria retornar aos antigos como Marino
de Tyro e Ptolomeu, com alguma modificação, ou seja, colocar o meridiano
pelo lado dos Açores. Ou lançá-lo no oceano que separa a Ásia da
América “onde o novo mundo dá a mão ao antigo” (Cruls, 1885: 61). Para
ele, ambos meridianos afastariam do perigo de um meridiano nacional e o
ponto de referência poderia ser perfeitamente calculado pela astronomia
moderna.
25
Nos corredores do Congresso houve uma articulação entre o Brasil e a
França e os ecos do voto de Cruls também repercutiram no Anuário do Bureau des Longitudes,
quando o delegado Janssen reproduziu em parte as posições de Cruls como
um argumento de autoridade, enfatizando que a missão daquela assembleia
era encontrar um meridiano de absoluta neutralidade e, portanto, não
poderia ser um meridiano nacional. E que a melhor decisão prática
deveria ser feita no terreno da ciência pura (Janssen, 1886: 864).
Importante é ver o esforço de Cruls em mostrar que no Brasil era um país
soberano e onde as instituições científicas desenvolviam ideias
próprias a respeito deste tópico. Ele também afirmou que seria contrário
a França se ela estivesse propondo Paris como meridiano inicial. Isto
Janssen não mencionou em seu texto.
26
Tendo em vista que São Domingos, Brasil e França fizeram um bloco
contrário a adoção de Greenwich, cabe relatar o voto do primeiro
proferido por seu Ministro Plenipotenciário Galvan, que se posicionou
favorável à França pela admiração a uma “nação reconhecida por ser a
primeira nos progressos intelectuais” (Protocols, 1884: 196), sem
acrescentar muito ao debate.
27
Para Howse (1985), o principal impacto da Conferência de Washington foi a
adoção progressiva do meridiano de Greenwich como inicial, processo que
se conclui até as primeiras décadas do século XX, sendo adotado
universalmente.
28
Mas o que estava em jogo nesta disputa pelo meridiano inicial? Seria a
ferida no amor próprio nacional, para utilizar uma expressão da época,
ou seria uma ênfase maior no aspecto utilitário da ciência? O Congresso
de Washington pode ser analisado como a antecâmara da transformação de
noção de ciência como um bem universal e desencarnado dos interesses
nacionais imediatos para algo que se justifica pela razão de sua
eficácia nas circunstancias econômicas e geopolíticas. O papel da
tecnologia nestes debates também foi central, e sua relação com a
ciência se tornaria cada vez mais íntima nas próximas gerações, tanto da
perspectiva de sua prática quanto da apreensão pública da ciência. Em
outras palavras, ideologicamente, a ciência saiu de uma percepção de si
mesma como algo vinculado puramente à teoria e à construção de uma
cosmovisão, a um plano em que era vista e validada por suas aplicações
práticas, junto com a tecnologia.
29
Importante também registrar o voto do Ministro Plenipotenciário da
Espanha, Juan Valera. Ele decidira a favor de Greenwich, mas esperava
que por sua vez a Inglaterra adotasse o sistema métrico decimal francês
(Protocols, 1884: 38). A universalidade do sistema métrico decimal era
um ponto frequente nos debates defendido pelos franceses, sendo ele
apresentado como um modelo a ser seguido para elaborar um sistema sem as
veleidades nacionais. Permeou a fala de vários delegados o fato da não
aceitação inglesa ao sistema métrico como um obstáculo à universalização
da ciência. Neste sentido, o voto espanhol expressou uma preocupação
difusa e corrente tanto no Congresso de Roma quanto de Washington, de
que a adesão inglesa à Convenção do Metro (1875) seria um passo
importante para a universalização e padronização da linguagem
cientifica.
30
No dia 22 de outubro de 1884, a Conferência Internacional encerrou-se
com uma série de considerações sobre o meridiano inicial e a hora
universal. A resolução II dizia, por fim: “a conferência propõe aos
Governos aqui representados adotar o meridiano que passa pelo centro do
instrumento meridiano do observatório de Greenwich como meridiano
fundamental para as longitudes” (Protocols 1884: 199). Esta decisão fora
aprovada por 22 votos a favor, o voto contrário de São Domingos e as
abstenções da França e Brasil.
31
Assim, vemos que Cruls sentiu-se muito à vontade para expressar suas
opiniões e seguir sua própria agenda de interesses, apelando
retoricamente para o instinto de nacionalidade do governante que lhe
acolhera e lhe dera condições de exercer plenamente seu ofício no
Brasil.
32 Sobre longitude é preciso se ter em mente que, devido a seu movimento de rotação,
a Terra possui diferenças horárias. O meridiano de Greenwich foi
considerado o referencial das longitudes, e simultaneamente também
passou a ser considerado o da determinação de uma hora-base no planeta.
No próximo item iremos ver como se deu o processo de articulação entre a
criação do sistema internacional de tempo e a adequação deste sistema
ao território do país. Com base nesta articulação, pensar no fuso
horário seria uma forma também de se pensar no território.
33Nas
primeiras décadas do século XX a questão da unificação das longitudes
deu grandes passos. Temos assim que em 1905, na Europa, apenas a Irlanda
e outros três países ainda não haviam mudado suas referências
longitudinais para o referencial do meridiano de Greenwich (Bartky,
2007: 132). Dentre eles estava a França, principal opositora à adoção do
sistema. Esta, no entanto, também adota o meridiano de Greenwich em
março de 1911 (Gapaillard, 2011). Desta forma, a organização de um
sistema horário internacional ganhou fôlego e o Brasil seguiu este
movimento.
34Mas
de que forma ocorreu esse processo? E por que o Brasil, neste momento,
decidiu seguir esses padrões mundiais? É importante considerar que entre
o Congresso de Washington de 1884 e as primeiras décadas do século XX, o
Brasil passou por transformações sociais e econômicas consideráveis,
como a abolição da escravidão e o advento da República. Inagurou-se uma
nova etapa do processo histórico brasileiro onde o capitalismo
aprofundou-se e a busca por progresso e civilização orientou grande
parte dos discursos e das práticas dos nossos dirigentes políticos.
35Tais
ideais de progresso e civilização eram acompanhados igualmente pelo
ideal de ciência, entendida como uma das formas de se alcançar certos
padrões de civilização. Já estava presente ao longo do Império, tal
lógica ganhou maior força durante a República. Neste período havia a
necessidade da nação brasileira reconhecer-se e apresentar-se como nação
civilizada. Em grande parte este movimento vinha da tentativa de romper
com um passado considerado atrasado, frequentemente relacionado à nossa
história colonial.
36Temos
assim que a adesão do Brasil ao sistema internacional de tempo, nas
primeiras décadas do século XX, não representava apenas o reflexo da
filiação da França ao mesmo sistema. Essa era também uma resposta às
inquietações dos nossos intelectuais e nossos dirigentes, que buscavam
mais um argumento que endossasse nosso pertencimento às nações
civilizadas. Em outros termos, era crucial fortalecer a imagem do Brasil
como nação civilizada não apenas no cenário internacional, mas também
de modo a atender a demandas nacionais.
37
Em 18 de junho de 1913 foi aprovada, portanto, a lei n° 2.784 que
estabeleceu a Hora Legal Brasileira. A lei significava a adoção oficial
do meridiano de Greenwich como o meridiano longitudinal de referência,
em concordância com o sistema universal da hora aprovado em 1884. Este
sistema propunha a divisão do globo em vinte e quatro faixas horárias
contendo cada uma quinze graus de longitude e demarcadas por meridianos
contados a partir de Greenwich. Como meridianos teóricos, deveriam ser
adaptados à geografia e às divisões político-administrativas do
território brasileiro. O resultado desta adequação constitui o conteúdo
do artigo 2° que estabeleceu quatro fusos horários no país.
38
Percebemos aqui que o debate sobre o sistema longitudinal internacional
ganhou outra feição no início do século XX. De fato, no século XIX, o
que estava em jogo era a articulação de um sistema internacional de
tempo que contasse com o apoio das grandes potências econômicas e,
também, marítimas. O século XX trouxe a realização deste projeto através
da adesão, ainda que lenta e gradual, de diversas nações ao novo
sistema. Voltando nosso olhar ao caso brasileiro, parece-nos
particularmente instigante analisar o momento de adequação destes
padrões internacionais à realidade nacional, visto que se tratava, neste
momento, de pensar o território brasileiro e as divisões horárias que
lhe seriam atribuídas. Tal processo deixa patente o caráter social das
práticas científicas.
- 4 As notícias sobre a elaboração de um fuso horário mundial, a adoção da Hora Legal Brasileira e o en (...)
- 5 O projeto discutido nas sessões do Clube de Engenharia, uma vez aprovado pelos membros do Clube, fo (...)
- 6 Henrique Charles Morize (1860-1930) deixou a França para radicar-se no Brasil em 1874 e se naturali (...)
- 7 Publicado na obra Notícias sobre a hora legal, este mapa foi elaborado por Henrique Morize no intui (...)
- 8 Isto considerando a configuração dos estados brasileiros de 1911/1913, período de elaboração e apro (...)
39
Se a instituição da Hora Legal Brasileira data de 1913, as discussões
sobre a criação de uma hora oficial e de fusos horários ocorreram, no
Brasil, a partir de 1911, principalmente no âmbito do Clube de
Engenharia. A questão também ganhou espaço e projeção nos periódicos da
capital e de São Paulo.4 O principal responsável pelo projeto dos fusos5 foi Henrique Morize, diretor do Observatório Nacional e membro do Clube de Engenharia.6 O mapa do Brasil que observamos abaixo mostra as divisões horárias que foram então estabelecidas.7
Temos assim o fuso amarelo, o azul, o vermelho e o verde
correspondendo, respectivamente, aos fusos de menos duas horas do
meridiano de Greenwich, menos três horas, menos quatro horas e menos
cinco horas. Além dos fusos, estão indicadas as linhas teóricas das
fronteiras horárias. A primeira (verde) atravessando o Nordeste; a
segunda (roxa) passando pelo Sul do país, depois por Mato Grosso e Pará;8 e a terceira (vermelha) cortando Acre e, sobretudo, Amazonas.
Mappa do Brazil — Observatório Nacional do Rio de Janeiro (1913)
Fonte : Morize, 1913 (Acervo Henrique Morize, Arquivo do MAST).
40
Este mapa do Brasil é especialmente valioso por tornar bastante nítida a
forma como foram adaptadas linhas teóricas do sistema horário
internacional ao território brasileiro. Para que esta adaptação fosse
feita era preciso avaliar o espaço real por onde estas linhas teóricas
passavam e propor linhas aproximadas que pudessem levar em conta fatores
geográficos e divisões político-administrativas do país. Nas palavras
de Morize:
A dificuldade encontrada está em
transportar para o terreno os meridianos que servem de limites aos
fusos. Como todos sabem, os meridianos são linhas abstratas, que será
preciso materializar no terreno para que a reforma possa reproduzir bons
frutos. Esta demarcação será muito penosa, e é a sua substituição por
alguma aproximativa que deveremos estudar em outra sessão. (Revista do
Clube de Engenharia, 1926, p. 154)
- 9 O princípio ao qual Morize faz referência na citação não era outro senão o de modificar a hora lega (...)
- 10 A hora local correspondia à hora do meridiano local e a hora legal seria, com a aprovação da lei, a (...)
41
Evidentemente, a maneira mais simples de realizar esta adaptação seria
utilizar as fronteiras interestatuais do país, já estabelecidas, para
delimitar as faixas horárias. Porém, esta não foi a opção de Morize. O
astrônomo mostrara-se especialmente cuidadoso em respeitar, segundo
dizia, “o princípio adotado na Convenção de Washington” (Revista do
Clube de Engenharia, 1926, p. 164).9 Cuidado este necessário para que a diferença entre a hora local e a hora legal não ultrapassasse 30 minutos.10
O aumento dessa diferença seria, em seu entendimento, “intolerável e
perturbaria as relações sociais que espontaneamente tomam como base a
hora solar real” (Idem). Era preciso, portanto, criar novas fronteiras:
fronteiras horárias.
42
Para realizar esta tarefa, Morize buscou apoiar-se em marcos
geográficos, frequentemente considerados fronteiras naturais por serem
entendidos como elementos divisórios ou barreiras naturais. Para a
região do Nordeste, Morize tentou aplicar esta lógica. Visto que a
região era atravessada pela fronteira teórica dos fusos de menos duas
horas e menos três horas, dizia ele:
Procurei dividir a área de Pernambuco entre os dois fusos adjacentes, mas infelizmente não se encontra naquele Estado nenhum acidente geográfico suficientemente característico e convenientemente dirigido,
para que esta solução seja possível. Fica-se, portanto, reduzido à
escolha entre a inclusão total desse Estado nos fusos ‘menos duas horas
ou de ‘menos três horas’. (Idem: 183, grifo nosso)
- 11 Morize explicava da seguinte forma a questão: “O Estado de Pernambuco, por estender-se muito em lon (...)
- 12 Nesta época o Pará também compreendia o atual estado do Amapá.
- 13 Separando os fusos de menos três horas e menos quatro horas. Ver mapa acima.
43
Na ausência de um acidente geográfico importante, Morize decidiu
flexibilizar a fronteira horária nesta região para incluí-la no fuso de
menos três horas de Greenwich, que compreendia o litoral do país. Assim,
incluiu também o resto da região no mesmo fuso, devido à extensão
longitudinal do estado de Pernambuco.11 Em contrapartida, o Pará,12 também atravessado por uma fronteira teórica,13
foi de fato dividido. Morize utilizou a bacia hidrográfica deste estado
para delimitar a fronteira horária. O rio Xingu e o rio Jarí serviram
como linha divisória entre os dois fusos que passaram a dividi-lo em
dois horários distintos.
44
Com relação à região Sul, no entanto, Morize não aplicou a mesma lógica.
Apesar de atravessada por fronteiras horárias, esta região não sofreu
qualquer divisão. Morize apenas conjecturou que, estando a maior parte
do Rio Grande do Sul teoricamente no fuso de menos quatro horas de
Greenwich, este estado poderia ser a ele integrado. Caso isso viesse a
ocorrer, no entanto, ele acabaria “discordando dos demais Estados do
Sul, com os quais mantém ativas relações” (Idem). Em vista disso, Morize
decidiu incorporar a região Sul também ao fuso de menos três horas de
Greenwich. Desta forma, o litoral do Brasil passou a possuir um único
fuso. Dizia Morize: “todo o litoral brasileiro, bem como a parte mais
povoada do seu interior, [que] gozará do benefício de ter somente uma
hora local” (Idem).
- 14 Minas Gerais e Goiás, estados do interior do país, também foram incluídos neste fuso provavelmente (...)
- 15 Diz o texto da lei n°2.784, artigo 2°, alínea c: “O terceiro fuso, (...) compreenderá o Estado do P (...)
- 16 O Tratado de Petrópolis, assinado entre Brasil e Bolívia, que anexava o território do Acre ao Brasi (...)
45 Enquanto o litoral14
manteve uma única faixa horária, o interior do país foi dividido.
Henrique Morize propôs dois fusos para o interior. A linha divisória que
serviu para delimitar o limite desses fusos é significativa, na medida
em que era, também, uma linha teórica. Fica evidente no mapa, assim como
no texto da lei, que a divisão feita entre o terceiro e quarto fusos
brasileiros era uma linha reta.15 Vale lembrar que se tratava, neste caso, da uma zona recentemente anexada,16
cujo território ainda não havia sido amplamente explorado, apesar da
necessidade de demarcação de fronteiras dessa região (Vergara, 2010).
- 17 Sobre essas comissões ver: Vergara, 2010; Peixoto, 2002.
46
Vale, nesse sentido, recordar a dificuldade encontrada por sucessivas
comissões, em fins do século XIX e início do século XX, para encontrar e
demarcar as nascentes do rio Javari, considerado como o ponto
geográfico que historicamente definiu o extremo Oeste do Brasil.17
Além disso, no ano de 1913, Henrique Morize também apontava a escassez
de documentos sobre a região referida quando ficou encarregado de emitir
um parecer sobre o mapa do Acre, elaborado pelo engenheiro Masô
(Parecer relativo ao mapa da região do Acre pelo engenheiro J. Masô,
Arquivo do Clube de Engenharia). Devido à dificuldade de conhecimento
territorial desta região, a linha reta que servia de divisor horário
para o fuso partia de um ponto conhecido (Tabatinga) para atingir outro
(Porto Acre).
47
Podemos perceber nesta falta de informação sobre o território acreano e
adjacências outro aspecto que merece ser destacado no que se refere ao
processo de demarcação das fronteiras horárias: o centro de decisão
estava concentrado na capital do país. Como vimos, foi no âmbito do
Clube de Engenharia, no Rio de Janeiro, que o projeto de lei dos fusos
horários foi elaborado por Morize e discutido entre os membros desta
agremiação. Assim, cabe lembrar que o reduzido conhecimento da região
também estava relacionado à grande distância que separava essa parte do
território brasileiro de sua capital, o Rio de Janeiro.
48 O
que procuramos demonstrar aqui, no entanto, é que esta distância não
era meramente física. Na realidade a distância também estava relacionada
à perspectiva do que era definido como conhecimento do território. Não
há dúvida de que este território era bastante conhecido pela população
que ali vivia. No entanto, o desconhecimento entendido na capital
provinha da falta de informações sobre a região classificadas como científicas.
O conhecimento definido nesses moldes seria obtido através da
elaboração de mapas que aplicariam critérios igualmente científicos, ou
seja, padronizados de modo que a região pudesse ser enquadrada na visão
de quem estava no eixo central do país. Evidentemente este tipo de saber
era produzido por comissões exploradoras que partiam da capital para
mapear e identificar o território.
49 O
posicionamento de Henrique Morize quanto à questão deixa claro também
que, para ele, esta seria uma situação temporária: “A divisa provisória
no Amazonas poderia ser uma linha (círculo máximo) que, partindo de
Tabatinga, fosse à Prefeitura do Acre” (Revista do Clube de Engenharia,
1926: 184, grifo nosso). Isto nos leva a pensar que o astrônomo
acreditava na exploração e demarcação deste território em um futuro
próximo, com a consequente produção de mapas capazes de estabelecer uma
outra divisão horária para este fuso. Divisão esta que deveria
considerar os acidentes geográficos da região, estabelecendo fronteiras
consideradas naturais.
- 18 Lembrando novamente sua participação na Comissão Exploradora do Planalto Central em 1892 e na Comis (...)
50
Podemos ressaltar o peso que a geografia do país tinha, para Morize,
quando se tratava de estabelecer fronteiras, mesmo internas, através da
divisão que ele propôs para os fusos horários brasileiros. Aqui é
preciso ter em mente que Morize era um cientista que não só acompanhava
de perto os diversos debates e inquietações sobre a demarcação do
território brasileiro, mas que já havia participado ativamente deste
processo.18
Assim, ele revelava grande preocupação em apoiar-se, sempre que
possível, nos acidentes geográficos encontrados no país, que lhe
pareciam o meio mais seguro de garantir o estabelecimento efetivo dessas
divisões.
- 19 Vale lembrar que a navegação de cabotagem estava centralizada, na época, na praça comercial e finan (...)
51
Além do apreço por marcos geográficos, Morize também demonstrou em sua
divisão horária uma tendência em manter o litoral do país no mesmo fuso.
Neste sentido, Morize defendeu o uso de um fuso que seria o mesmo da
capital, tanto para o Nordeste quanto para o Sul. Sendo assim,
parece-nos que o peso da integração territorial brasileira no litoral,
convergindo para o Rio de Janeiro, influenciou as decisões tomadas
quanto aos fusos. Esta integração era feita por ferrovias, telégrafos e
linhas comerciais de navegação.19 Henrique Morize, já na década de 1920, ainda considerava a unidade horária do litoral essencial quando afirmava:
O segundo [fuso], de
todos o mais importante, é aquele em que a hora legal é igual à de
Greenwich diminuída de 3 horas, compreendendo todo o litoral (...) tem a
grande vantagem de dar a todo o litoral a mesma hora legal, sem que a
pequena diferença existente produza incômodo, oferecendo em compensação,
em vez das divergências antigas, a grande vantagem de que todas as
estradas de ferro, repartições de telégrafos, e linhas de navegação,
mostram simultaneamente a mesma hora, desde o Pará até o Rio Grande do
Sul, o que é de incontestável vantagem, sem que a diferença existente
entre as horas legais e as naturais, seja sensível na vida comum.
(Morize, 1987: 163)
52
Ao mesmo tempo, ele reconheceu também a separação existente entre o
litoral e o interior do Brasil. Fica particularmente nítida esta
situação quando consideramos o quarto fuso horário do país. Para
estabelecer os limites deste fuso, Morize considerou as relações que a
região correspondente mantinha com os países vizinhos (Peru e Bolívia),
baseada nas comunicações fluviais. Colocando-os no mesmo fuso, Morize
destacava sua integração e, consequentemente, a separação desta porção
do território brasileiro em relação ao litoral. Dizia Morize em 1911:
A separação entre os fusos de
“menos quatro horas” e o de “menos cinco horas” será efetuada por forma
análoga. O território do Acre e o cedido pela Bolívia, os quais se acham
em totalidade do fuso de “menos cinco horas” ficarão lhe pertencendo.
Quanto ao trecho do Amazonas, que fica além de Tabatinga, pode também
sem inconveniência caber-lhe, porque, além de geograficamente
pertencer-lhe, é muito distante de Manaus e já que tem muitas relações
com os vizinhos (Peru e Bolívia), convém ter a mesma hora que estes.
(Revista do Clube de Engenharia, 1926: 184)
53
Fica evidente, portanto, que o fator horário era um elemento que
permitia pensar a integração de certas regiões, ao mesmo tempo em que
sublinhava a divisão entre elas. Isto porque incluir algumas regiões no
mesmo fuso horário implicava, necessariamente, excluir outras regiões
deste fuso. Tal dinâmica estabelecia, assim, integrações ao mesmo tempo
que propunha rupturas. Lucia Lippi Oliveira (2010: 46), analisando os
conceitos de região e nação é particularmente clara quando coloca:
Ao se definir uma região está se
definindo igualmente as outras regiões; ao se construir uma identidade
particular está se definindo igualmente quem faz e quem não faz parte
desse subconjunto. Nação e região são assim formas similares de
representação social, conferem padrões de referência identitária,
permitindo coesão social e constituição de sentimento de pertencimento,
ou seja, o reconhecimento do “nós” e do “outro”.
54 O
estabelecimento desses fusos horários também criava, como dissemos,
aspectos de integração/exclusão no território nacional. Ainda que esta
referência identitária não constituísse um dos pilares da identificação
social de pertencimento, não podemos diminuir a importância desse
elemento, que foi muito pouco explorado pela historiografia brasileira.
Por outro lado, cabe ressaltar que esta identificação torna-se
especialmente interessante quando consideramos que ela foi fruto de
decisões tomadas na capital e aplicadas, com a promulgação da lei, a
toda a extensão do território brasileiro. Assim, podemos perceber na
letra da lei uma representação territorial do país que refletia uma
visão centralizadora e, mais especificamente, refletia as interpretações
do diretor do Observatório Nacional sobre a questão.
55
No entanto, neste momento, é importante esclarecer que essas divisões
horárias não foram apenas objeto de assentimento. No âmbito do Clube de
Engenharia, por exemplo, surgiram algumas propostas diferenciadas para a
adaptação do sistema horário mundial ao território brasileiro. No
entanto, o peso de Henrique Morize como diretor do Observatório Nacional
forneceu a este a prerrogativa da elaboração do projeto. Desta maneira,
sua visão sobre a divisão horária acabou convencendo os demais membros
do Clube que aprovaram integralmente e sem alterações sua proposta.
- 20 No número de lançamento da Revista de Engenharia de São Paulo. Revista de Engenharia, São Paulo, vo (...)
- 21 Afirmava Rodrigues na Revista de Engenharia: “O Estado do Amazonas ficará, como o do Pará, com duas (...)
56
Fora do círculo da capital, as propostas de Morize não tiveram a mesma
recepção. Lúcio Martins Rodrigues, engenheiro e professor da Escola
Politécnica de São Paulo, publicou em junho de 191120
um artigo desaprovando a proposta do Clube de Engenharia. Entendendo
que o sistema horário mundial deveria servir para facilitar a disposição
horária no país e no mundo, Lúcio Rodrigues defendia que as unidades
horárias dentro do país deveriam ser mantidas, ou seja, que os estados
não deveriam possuir fusos horários distintos, como era o caso do Pará e
do Amazonas.21
Ele lembrava também neste artigo que a unidade horária do Rio Grande do
Sul fora preservada. Sendo assim, segundo Rodrigues, a mesma lógica
deveria ser aplicada aos estados do Norte do país:
O que foi estabelecido no
projeto para o Estado do Rio Grande do Sul, que é cortado quase a meio
pelo meridiano limite do primeiro fuso do continente e que apesar disso
fica com a unificação da hora em seu território, poderia com maior razão
ser estabelecido para o Amazonas, evitando-se assim a dualidade de
horas no território de um mesmo Estado. (Revista de Engenharia, 1911: 32)
- 22 Alguns estudos apontam, inclusive, o peso e a influência que os engenheiros ganhavam na esfera polí (...)
57
A crítica de Lúcio Rodrigues é fundamental por evidenciar as escolhas
que existiam por trás da criação dos fusos horários brasileiros. Como
ele mesmo afirmava, “no fundo é uma questão pura de convenção que se
poderá dilatar mais ou menos conforme o interesse nacional assim o
exigir” (Revista de Engenharia, 1911: 32). O projeto do Clube de
Engenharia, baseado nas propostas de Henrique Morize, ganharia força de
lei em 1913. Mais do que analisar questões relacionadas à influência e
disputa das associações profissionais na política,22
pretendemos demonstrar aqui que as decisões relativas ao
estabelecimento dos fusos horários brasileiros continham,
indubitavelmente, representações e interpretações sobre o território.
Estas definiam os critérios a serem adotados no momento de adaptar
linhas horárias teóricas ao desenho político-administrativo do país ou
no momento de criar fronteiras horárias.
58 A
ideia que nos moveu no presente artigo foi mostrar o lugar da
astronomia na formação e gestão territorial brasileira do final do
século XIX ao início do século XX. A tecnologia envolvida no
estabelecimento de coordenadas geográficas e na determinação da hora
universal atuais já não é a mesma daquele período. Agora estes dados são
fornecidos por satélites artificiais. No entanto, ao destacarmos a
atuação do diretor do Observatório Nacional em questões estratégicas,
buscamos compreender o papel da ciência em um momento de grandes
discussões sobre os destinos da nação, em meio a outras vozes que se
levantavam.
59 A
questão da longitude no Brasil é um tema pouco explorado na
historiografia e que pode estimular uma reflexão mais sistematizada
sobre a relação entre astronomia e formação territorial brasileira, além
da institucionalização da astronomia no país. Acreditamos que as
discussões acerca da longitude constituem um caminho firme neste
sentido.