1Este
artigo tem como objetivo discutir a relação entre a trajetória de Denis
Cosgrove e a produção de uma obra específica, o seu Geography and Vision (2008),
de modo a apresentar uma alternativa à tendência dominante da abordagem
geográfica na análise de livros. Como motivação para desenvolver tal
intento, destacam-se dois elementos, sendo um de caráter eminentemente
metodológico e o outro surgido da apreciação da obra supracitada.
2Sobre
o primeiro elemento, tem-se aquilo que é chamado de “geografia do
livro”, um encaminhamento de pesquisa bem sintetizado em três aspectos
por Ogborn & Withers (2010) na apresentação de seu Geographies of the Book:
constitui a investigação dos locais materiais e das condições em que as
obras foram produzidas, dos padrões e modalidades de circulação dos
livros e, por fim, da dimensão espacial que qualifica as práticas
situadas de leitura e consumos dos livros. Obviamente, ao mesmo tempo em
que tais aspectos se constituem como linhas de pesquisa sobre a
dimensão espacial do texto, estas não se excluem e podem apresentar
intercruzamentos na investigação de um fenômeno. Neste artigo
procuraremos explorar um outro aspecto: as maneiras com que o estudo da
trajetória autoral pode constituir uma dessas vias de pesquisa da
produção do livro, ainda que não se limite a isso.
3Apresentada
a breve explanação do primeiro fator que motivou o presente texto,
partiremos para a explicação do segundo motivo, que também se configura
como uma justificativa para o material documental da pesquisa. O livro Geography and Vision (Cosgrove,
2008) não é uma narrativa teórica inteiriça, por mais que os capítulos
iniciais tenham o objetivo de torná-lo um empreendimento coeso. Ele é um
livro com seis partes e dozes capítulos, muitos deles apresentados em
distintas ocasiões, em outros formatos e para públicos diversos.
4Ademais,
tendo em vista a origem múltipla dos ensaios, a biografia se insinua
entre o ordenamento do texto e a história da geografia. Sabendo da
origem localizada das experiências que resultam na confecção de um texto
pelo autor, a organização destes textos na ideia central do livro pode
oferecer elementos para a compreensão do desenvolvimento do pensamento
geográfico deste autor. Em outras palavras, como a escrita da história
do pensamento geográfico se expressa em muitos gêneros [obituários,
histórias conceituais, histórias contextuais e biobibliografias],
questionamo-nos sobre a maneira como a organização de um livro a partir
de textos surgidos em outros momentos e lugares também é uma forma de
contar a história da geografia.
5Quais
serão os elementos da análise? Essa é a questão que pode aparecer
primariamente ao leitor e, por isso, trataremos de respondê-la de
antemão. Aventada a necessidade de desenvolver procedimentos
metodológicos para ampliar os caminhos de investigação da produção dos
livros, a pesquisa será pautada segundo análise de elementos textuais e
paratextuais. A questão que nos move é de que maneira a organização e
conteúdo de tais elementos, em articulação com aspectos biográficos,
contribuem para dar ordem à narrativa do livro.
6A
geografia do livro é devedora dos pressupostos instaurados na
historiografia do pensamento geográfico a partir da década de 1990. Uma
reorientação nas pesquisas em história da geografia, ao menos no cenário
investigativo anglo-americano (Powell, 2007), pode ser sintetizada por
um interesse sistemático no papel das condições sociais e materiais na
construção do conhecimento.
- 1 Uma abordagem contextual, com escopo teórico-metodológico bem fundamentado na história da ciência, (...)
7Na obra Geographical Tradition
(Livingstone, 1992), em um momento de efervescência
teórico-metodológica da história da geografia ressaltada pelas
publicações dos geógrafos David Stoddart (1986) e Vincent Berdoulay
(1981), o princípio de interação entre texto e contexto expressa
claramente a preocupação de localizar a geografia nas circunstâncias
sociais e intelectuais mais amplas. Nesse instante, no entanto, a
abordagem da historiografia da geografia voltada à investigação da
racionalidade situada e da natureza negociada do pensamento e prática
geográficos (Livingstone, 1992) ainda não possuía uma denominação
amplamente reconhecida1.
Esta abordagem da história da geografia ganharia denominações múltiplas
de meados dos anos de 1990 em diante [geografia histórica da ciência,
geografia da ciência, geografias interdisciplinares da ciência].
Todavia, apesar de sua variedade, as noções de lugar, espaço,
espacialidade e situação constituem o elemento fundamental para o exame
da produção, circulação e consumo do conhecimento científico.
8Em
diferentes livros e artigos, Livingstone (1995; 2003; 2005) sugere
encaminhamentos possíveis para o aprofundamento do que denomina
“geografia da ciência”. Esta denominação é constituída a partir de uma
crítica à historiografia da ciência no que tange à negligência aos
aspectos espaciais das elaborações científicas. Diante da referida
negligência, o autor elabora abordagens que corroboram a importância das
considerações ao espaço e à espacialidade na análise do pensamento
científico. Com base em uma pequena descrição desse percurso da crítica a
uma historiografia a-espacializada até a “geografia da ciência”, serão
destacados os elementos de tal proposição nos quais livro, espaço e
biografia se apoiam.
9As
questões mais gerais feitas por Livingstone (2003) são fundamentais para
iniciar esta descrição: A localização do esforço científico poderia
fazer a diferença para os caminhos da ciência? E, de forma mais
profunda, poderia a localização modificar o conteúdo da ciência? Para
Livingstone (2003), a resposta é positiva para ambas as perguntas e o
esforço do autor consiste em clarificar os pressupostos de uma geografia
da ciência, um esforço de sistematização.
10A
geografia da ciência é estruturada, de forma geral, com o objetivo de
analisar o significado dos locais onde o conhecimento é construído, os
lugares onde o conhecimento é produzido. Segundo Livingstone (2003),
mesmo os geógrafos – teoricamente atentos e treinados profissionalmente
aos aspectos do lugar e da localização – que se detiveram à análise da
história do pensamento científico não incorporam à ciência seu
significado espacial. As narrativas científicas são apropriadas de
maneiras diferentes em locais distintos, conforme sua mobilização para
fins específicos – intelectuais e culturais. Além disso, as teorias
científicas não se difundem uniformemente entre os lugares, isto é, a
medida de seu deslocamento também é a de sua transformação (Livingstone,
1995).
11Adicionalmente,
o autor destaca o trânsito dos seres humanos não somente em espaços
materiais, mas em uma variedade de espaços abstratos, arenas sociais e
culturais, com um repertório de significados que possibilita a
comunicação em um espaço material. Os lugares contêm sinais e símbolos
da comunicação, na medida em que servem como substrato, mas também
vinculam espacialmente o conteúdo, uma vez que a espacialidade implica
na ordenação da comunicação. Lugares distintos possibilitam, então,
formas de relação diversas, por mais que as pessoas sejam as mesmas. O
espaço pode ser compreendido como um princípio organizador da produção e
circulação do conhecimento científico e os parâmetros para a análise
decorrente de tal princípio podem ser os lugares de produção e espaços
científicos, a circulação e a transformação do conhecimento que daí
decorre, além das regiões científicas (Livingstone, 2003).
12O
conhecimento científico é sempre posicionado, ele é fenômeno geográfico
na medida em que é adquirido em locais específicos e se transforma, além
de transformar o mundo, nos processos de circulação (Livingstone,
2003). Um aspecto essencial da circulação é a geografia da leitura (Id,
1995), traço representativo das relações entre localização e discurso.
As geografias da leitura constituem uma denominação às formas como
determinados textos são apropriados em diferentes contextos, sendo que
os significados variariam, então, conforme as mutações de significados
empreendidas pelos leitores nos diversos locais. O significado
científico não é estável e sua instabilidade reside exatamente na
variabilidade espacial de interpretações de um texto ou fenômeno.
13Livingstone
(2005), ao discorrer sobre as geografias da escrita e da leitura, faz
uma contraposição à biografia como sequência linear cronológica. A
biografia linear, diferentemente da espacialidade da recepção de um
autor, refletiria uma forma de compreensão do espaço e da geografia como
um pano de fundo estéril, um contexto amorfo de um período histórico
com conteúdo discursivo prévio. Atribuir centralidade à biografia de um
geógrafo não significa limitar os espaços da investigação –
principalmente tendo em vista que, com base nas tecnologias de
transporte e comunicação, torna-se cada vez mais improvável que os
espaços e deslocamentos da vida de um autor sejam limitados. Não é no
puro sequenciamento cronológico que se constrói a narrativa, mas nos
múltiplos nexos que dão tom aos “espaços de uma vida” (Livingstone,
2003) o sujeito representa e está referenciado segundo condições
contextuais de época e lugar.
14Uma
geografia da ciência, ou geografia histórica da ciência (Livingstone,
1995), sublinha a necessidade da análise das marcas da localização no
empreendimento científico. Portanto, ideias, instituições, teorias e
práticas têm uma dimensão espacial, assim como qualquer outro
empreendimento humano. A variedade da ciência reside, na análise de um
autor, na compreensão da relação da trajetória biográfica com os
lugares, momentos e circunstâncias que marcam o fazer ciência. Pelo
menos em parte, é sob a influência dos pressupostos descritos nesta
seção que se estrutura a geografia do livro.
15O conhecido periódico britânico Progress in Human Geography, publicado desde 1977, possui tradicionalmente uma seção dedicada a publicações de Progress Reports.
Essa seção de “relatórios de progresso” é constituída por artigos que
têm como objetivo elaborar uma apresentação panorâmica e oferecer uma
imagem coerente de mudanças teóricas, conceituais e metodológicas de
diversas temáticas da pesquisa geográfica. O relatório de progresso de
James Ryan (2003) é particularmente pertinente ao desenvolvimento da
geografia do livro no início do século XXI. Na abertura de seu relatório
de progresso intitulado History and philosophy of geography: bringing geography to book, 2000-2001,
Ryan (2003) desenvolve uma apresentação da geografia do livro baseada
no livro de James Secord (2000), que é professor de História e Filosofia
da Ciência da Universidade de Cambridge.
16O
próprio autor do relatório antecipa o choque do leitor que, em busca de
um relatório de progresso da investigação geográfica, encontra uma
abertura composta por um proeminente historiador da ciência. De acordo
com a perspectiva de Ryan (2003), o livro de Secord (2000) é uma
referência essencial para os historiadores da geografia, pois o autor
mapeava a geografia do texto traçando seus caminhos – que vão da
publicação e circulação ao consumo por uma série de atores que ocupavam
diferentes lugares físicos e culturais. Para Ryan (2003), fica claro que
o caminho percorrido pelos geógrafos na história das ciências, levando
em consideração o momento esmiuçado no relatório, era a análise do papel
do lugar e do espaço nas formas de consumo e produção do conhecimento.
Por mais que a história da geografia seja afetada pela hipótese de que a
ciência é constituída espacialmente, a geografia histórica da ciência
não é tarefa a ser assumida somente por geógrafos.
17A
reflexão recente acerca da geografia do livro (Mayhew, 2007ª, 2007b;
Ogborn & Withers, 2010; Keighren, 2010; Keighren, 2013) enfatiza a
textualidade na história do pensamento geográfico, sobretudo, a partir
da materialidade dos livros. Tal aspecto parece indicar a proeminência
de uma dupla filiação epistemológica: a tradição dos estudos do livro na
história literária ou científica e a geografia da ciência que foi
descrita na primeira parte do artigo. A realidade material da impressão,
ainda que seja um tema frutífero para traçar conexões entre espaço e
textualidade em períodos históricos específicos, pouco tem a agregar num
contexto de disseminação eletrônica da informação.
18Tanto nas tentativas de traçar o desenvolvimento da geografia do livro como da história do livro, menções ao capítulo Geography of Book, de
Lucien Febvre e Henri-Jean Martin (1976), em um livro dedicado ao
impacto da impressão na Europa desde sua inserção em Mainz no século XV,
são recorrentes e descrevem a investigação dos autores. Em tal
capítulo, eles se dedicam a investigar pessoas e instituições influentes
com interesse na divulgação de textos e nos fatores econômicos de
atração das prensas móveis. A distribuição das prensas e sua dependência
de aspectos econômicos, políticos, culturais e intelectuais ofereceriam
elementos fundamentais para a análise de processos históricos. No
entanto, segundo Ogborn e Withers (2010), a história da difusão de
tecnologias fixas elaborada por Febvre e Martin (1976) possui limitações
fundamentais, e uma delas é a dificuldade de explicar como a geografia é
fundamental para a constituição do livro em si. De quais maneiras,
então, o espaço e o lugar implicam na produção, distribuição e consumo
dos livros?
19As
respostas à questão supracitada são múltiplas e Orgborn e Withers (2010)
apresentam uma síntese esquemática já mencionada: i) exploração dos
locais em que os materiais foram produzidos, além do impacto destes
locais na natureza material e simbólica dos livros; ii) os padrões de
circulação; iii) o posicionamento geográfico dos leitores, cujo caráter
espacial contribui para definir formas de leitura. Este artigo se
posiciona no contexto específico da produção de um livro. Isso não quer
dizer que a produção se limite a um ponto, pois, como aponta Secord
(2004) em seu texto sobre o conhecimento em trânsito, o recurso à
trajetória intelectual do autor significa que a situação local se
constituiu em conexão com outros lugares ao longo do tempo. Tal
constatação reforça nosso objetivo de investigar como um
texto-compilação, produzido no final da vida, se configura como uma
forma particular de organizar a trajetória.
20Para
Howsam (2008), autor que faz uma análise da historiografia do livro
desde o clássico texto de Darnton (1982) sobre o circuito de
comunicações até os livros do bibliógrafo histórico Donald Mckenzie
(1931-1999) e do historiador Roger Chartier (1945-), o desenvolvimento
da abordagem historiográfica do livro associa-se a dois pressupostos
interligados: a estabilidade material do objeto cultural [o livro] e a
plasticidade cultural das unidades de leitura [redes nacionais,
transnacionais, urbanas e disciplinares]. Como tais artefatos culturais
adquirem forma e significado em diferentes contextos espaço-temporais?
Segundo Rubin (2003), a exemplo de Howsam (2008), esta é a questão
unificadora da historiografia do livro.
21Para
Darnton (1982), a história do livro tem como objetivo compreender os
processos pelos quais as ideias transmitidas pela impressão afetaram o
comportamento da humanidade. No estudo dessa imbricação entre cultura
impressa e condições sociais, econômicas, políticas e intelectuais da
época, Darnton (1982) elabora um esquema conceitual do circuito de
comunicação. O circuito comunicativo de Darnton (1982) é composto por:
autores e condições de autoria; editores e a elaboração de seus
contratos de edição, negociação com autoridades, publicidade e
organização das finanças e suprimentos para publicação; impressão e
outros processos produtivos do material impresso; livreiros, ou seja, os
agentes e mecanismos de mediação entre oferta e procura dos livros;
leitores e efeitos sociais da experiência da leitura. Nesse circuito
comunicativo, as questões sobre quem lê e o que é lido (e em quais
condições) abrem conexões com a geografia do livro dos últimos anos.
22Na
revisão do trabalho de 1982, Darnton (2007) enfatiza que não desejou
oferecer, com a organização do circuito comunicativo, um modelo fechado
para a análise historiográfica dos livros. Tendo em conta os livros
eletrônicos e mecanismos digitais associados e as novas formas de
leitura e controle sobre a navegação pelo layout do livro
(Keighren, 2013), novas questões de circulação das ideias são colocadas;
surpreender-nos-ia, portanto, se a estratégia de Roberto Darnton (1982)
fosse a cristalização de um modelo de análise. O autor apenas desejava
enfatizar três questões unificadoras: como os livros surgem?; como os
livros chegam aos leitores?; o que os leitores fazem a partir dos
livros?
23Darnton
(2007) sintetiza um conjunto de abordagens que informam os seus
próprios trabalhos e que surgiram das críticas a seu ensaio de 1982: a
dimensão da sobrevivência do texto incorporada ao circuito comunicativo,
de modo a agregar as mudanças do contexto de leitura; a
paratextualidade como uma abordagem concreta de partes do texto que
também constituem a percepção da obra pelo leitor; a intertextualidade,
ou o modo como a obra se posiciona diante de um discurso coletivo; a
sociologia do texto como um modo que liga o meio de transmissão (aspecto
que Mayhew (2007a) chamou de organização espacial da página) à leitura e
interpretação da mensagem impressa.
24Tanto
os historiadores da ciência quanto os da geografia têm contribuído,
desde o final do século passado, para a sofisticação do quadro analítico
da recepção e comunicação textual da história do livro. O trabalho de
Rupke (2005) discute a variabilidade da recepção e leitura crítica da
obra de Alexander von Humboldt em unidades nacionais e o de Keighren
(2010), por sua vez, tendendo a reconhecer a complexidade da prática da
leitura, discute a natureza escalar da recepção de textos: pode revelar
padrões entre países, dentro de cidades, entre cidades, em redes
disciplinares, entre outras formas de organização da leitura. A
geografia do livro, nesse sentido, constitui-se como abordagem
interessada em explicar a produção e disseminação material e epistêmica
do conhecimento. Não se trata somente de identificar o “onde” e o
“quando”, mas de analisar os elementos que constituem os processos de
produção, circulação e recepção.
25A
geografia e a história do livro (Ogborn & Withers, 2010; Keighren,
2013; Rubin, 2003; Darnton, 2007; Howsam, 2008) são interesses de
pesquisa que se beneficiam do diálogo entre si. Com vistas a contribuir
para a história do pensamento geográfico, as abordagens empíricas e
metodológicas de historiadores e sociólogos da ciência são também
fundamentais para a compreensão do “conhecimento em trânsito”, para
novamente utilizar os termos de Secord (2004).
26Na
perspectiva tradicional, a biografia é uma história narrada a partir de
um sequenciamento cronológico. Contendo introdução, desenvolvimento e
fim, a trajetória evidenciaria o sentido da vida no tempo, mas não
ofereceria claramente um panorama dos significados dos lugares e espaços
de conhecimento que dão cor a esta vida narrada. Nesse tipo de
abordagem, o papel do biógrafo é criar o significado fundamental de uma
vida tendo como base um material empírico supostamente inquestionável.
Tal posição é problemática, pois, ao escrever a biografia como reflexo
de uma experiência vivida, esquece-se de dois pressupostos fundamentais
dessa tarefa: as fontes documentais utilizadas e sua limitação e as
escolhas feitas pelo biógrafo na construção da narrativa histórica.
27No
entanto, concebida no sentido estabelecido pela geografia da ciência, a
biografia não pode ser reduzida ao enquadramento cronológico, e as
espacialidades de uma vida também devem se constituir no cerne da
investigação de uma trajetória. Se o conhecimento é posicionado e,
portanto, adquirido em locais específicos e transformado a partir do
processo de circulação, uma trajetória intelectual é resultado da
passagem de um autor por lugares, em momentos e circunstâncias diversas,
que deixam marcas em cada produto do seu pensamento. Os produtos do
pensamento podem ser múltiplos, sendo que o livro, privilegiado nesta
análise, é um deles. Como qualquer outra forma de organizar a
trajetória, a narrativa do livro também contém um recorte específico de
aspectos biográficos considerados.
28A primeira peculiaridade de Geography and Vision (Cosgrove,
2008), concebido como produto de um pensamento, é que o livro
investigado neste artigo representa um ponto de vista bastante peculiar
para contar uma história, pois o autor se encontrava na iminência da
finitude de sua trajetória de vida. Nesse sentido, os elementos
paratextuais das seções são fundamentais, porque correspondem
basicamente aos recursos utilizados para dar ordem ao livro nesse
momento da trajetória. Os artigos selecionados e os paratextos
utilizados para organizá-los no livro constituem um lugar para olhar a própria trajetória.
29Nos
momentos originais em que as mesmas publicações vieram ao público [em
palestras, conferências e artigos], outros leitores tiveram acesso aos
demais elementos paratextuais contidos em cada ensaio do livro – notas
de rodapé, títulos de seção e mesmo as imagens. Como outros leitores
puderam acessar cada texto separadamente, a escolha de analisar somente o
elemento paratextual da “seção” é justificada por nossa intenção de
investigar o modo como um livro pode ser uma forma de contar a própria
biografia. O que nos interessa não é cada texto em si, mas sim o modo de
concatenar tais textos na estrutura narrativa de um livro. Sendo o
livro organizado em um momento específico da trajetória do autor, aquele
próximo de sua morte, ao invés de considerarmos os elementos
paratextuais de outros momentos, trabalhamos com aquele contexto que é
fundamental para o projeto do livro. Por esse motivo, os demais
paratextos, como quarta capa, notas de rodapé e informações editoriais,
não serão investigados na presente oportunidade.
30Cada ensaio que constitui o Geography and Vision,
individualmente, não é essencial para a compreensão de como o trajeto
de um livro corresponde a uma visada possível da trajetória de vida de
seu autor. Afinal, se os espaços da vida do autor podem fazê-lo assumir
diferentes formas e o objetivo não é relatar “a vida de Cosgrove”, mas
apenas uma forma de contá-la, somente um projeto consciente de
organização de um compêndio como Geography and Vision pode se
prestar à análise da trajetória intelectual. Através de nossas análises,
buscaremos demonstrar que um comprometimento geográfico com o livro,
principalmente a partir da figura dos lugares e espaços de vida de seu
autor, contribui para forjar uma versão da história de vida. A depender
das fontes documentais analisadas e dos fragmentos de vida e memória aos
quais elas correspondem, novas versões da história podem ser contadas.
Há uma tensão, na escrita biográfica, entre a fonte documental e a
espacialidade das histórias de vida.
31Os
paratextos, tradicionalmente considerados na sociologia dos textos e
história do livro (Mayhew, 2007a; Darnton, 2007), são os elementos
essenciais para a criação do significado da obra como um todo, mas não
constituem a narrativa textual do desenvolvimento do livro. Títulos de
seção e parte, notas de rodapé, informações editorais, ilustrações,
prefácio, quarta capa e o próprio título do livro são exemplos de
elementos paratextuais. Em geral, os componentes paratextuais fazem a
mediação entre o propósito geral da obra e o leitor, oferecem
orientações implícitas ou explícitas sobre o modo como o livro deve ser
lido e, por vezes, antecipam leituras críticas. Deve-se frisar que as
imagens, apesar de fazerem parte do conjunto mais amplo de componentes
paratextuais do livro em foco, não serão analisadas neste artigo. Devido
à centralidade das imagens no pensamento de Denis Cosgrove e a
existência de um sistema iconográfico do livro, optou-se por não
analisá-las de forma rasteira, visto que este tema mereceria uma
abordagem cuidadosa. Como sistema iconográfico, compreendemos que há um
conjunto de imagens que estão ligadas entre si por um propósito
estruturante.
32[Páragrafo]
Finalmente, temos a última observação na análise do conteúdo textual do
livro: o desenvolvimento da narrativa nos capítulos. Considerando que a
estrutura do livro não é uma descrição inteiriça, e os textos que o
compõe também não são organizados cronologicamente, depreende-se que
haja um modo não-linear de ordenar a trajetória espaço-temporal do
próprio pensamento. De modo a atender ao interesse particular deste
artigo, as condições contextuais remetem a aspectos da biografia do
autor: formação acadêmica, mudanças institucionais, enfim, lugares e
momentos em que a troca de informações reverbera na ruptura com um
padrão estabelecido de pensamento.
33Em maio de 2008, praticamente dois meses após a morte de seu autor, o geógrafo britânico Denis Cosgrove, Geography and Vision: Seeing, Imagining and Representig the World foi publicado em Londres – no âmbito de um evento em memória ao próprio Denis Cosgrove na Royal Geographical Society. Esta obra é composta por seis partes, a saber: 1) Geographic and cosmological vision; 2) Landscape visions: Europe; 3) Landscape visions: America; 4) John Ruskin: vision, landscape and mapping; 5) Cartographic visions; 6) Metageographic visions.
Cada parte congrega dois ensaios, sendo apenas o último deles escrito
para o livro, e fundamenta o caráter essencial deste paratexto: ordenar o
significado central do conteúdo textual do livro; ou seja, como afirmou
Felix Driver (2008), o livro nos apresenta conexões entre as diferentes
fases do pensamento e trabalho de seu autor.
34Segundo
Jean-François Staszak (2009), o subtítulo do livro [ver, imaginar e
representar] descreve a essência da abordagem analítica de Denis
Cosgrove. Ver faz referência aos sentidos da percepção, que é um processo ativo inserido em um contexto cultural e social. Imaginar,
por seu turno, significa que ver é também um ato criativo, uma
elaboração a partir das imagens que a história da humanidade e da
cultura fizeram disponíveis. Finalmente, o representar completa
o circuito da comunicação, pois distingue o ato de materializar,
representar e disponibilizar para o imaginário coletivo imagens criadas
por um indivíduo psicológico. A visão seria a conjunção desses três
processos e a análise de imagens – incluindo paisagens e mapas – pelo
geógrafo teria como objetivo descobrir a lógica e o sentido de tais
imagens em uma sociedade.
35[Páragrafo] Apesar de a introdução não se configurar comumente como elemento paratextual, neste caso, a parte intitulada Introduction: Landscape, map and vision
foi criada para dar ordem ao conjunto de textos reunidos no livro.
Pressupõe-se, portanto, que o caráter ordenador de seu conteúdo seja
fundamental para a narrativa total da obra. Sua função no Geography and Vision não
é apenas de apresentação geral dos propósitos do livro, mas de
antecipação das críticas [elemento tradicional da sociologia dos textos e
da história do livro] e descrição de cada parte segundo o propósito
geral da obra. De acordo com Cosgrove (2008), a coleção de ensaios expõe
livremente as associações conceituais complexas entre paisagem e mapa;
para isso, o autor desenvolve conexões da geografia com a imagem
pictórica e a visão. A associação do conhecimento geográfico à visão
unifica os textos, afirma o próprio autor.
36O
objetivo do livro, ainda segundo o autor, é interrogar e analisar, por
meio das imagens gráficas do período moderno e da tradição ocidental,
algumas formas como a Terra ou partes dela foram conhecidas, imaginadas e
representadas como ecúmeno. Parece-nos que a organização do
livro segue uma organização temática do cosmográfico ao corográfico [de
imagens do planeta nas expedições espaciais do século XX às imagens do
período das descobertas iniciado no século XV], da paisagem e do
mapeamento às relações entre mapas e paisagens na comunicação e
interpretação de realidades geográficas e às formas de transmitir tais
geografias imaginativas. Não caberia à geografia simplesmente
transcrever os fatos e formas espaciais, pois há um modo de cognição
geográfica que desempenha um papel na organização da visão e da
representação material pela imaginação. A visão não seria um ato
passivo, mas configuraria uma forma de construir representações
imaginativas.
37No
mesmo texto introdutório, Cosgrove (2008) aponta duas abordagens
críticas na associação do pictórico e da visão à geografia: i) oriundas
da teoria social recente; ii) associadas à chamada “teoria
não-representacional”. O primeiro grupo, talvez personificado em David
Harvey (1935-), distingue a imagem do texto e desvia o foco da imagem
para as condições de sua produção, circulação e recepção; como
resultado, o texto se sobrepõe à imagem e esta, por sua vez, serve
apenas como ilustração à teoria na comunicação do conhecimento
geográfico.
38Em segundo lugar, levando em consideração que Cosgrove iniciou a organização do Geography and Vision
numa licença médica que tirou em 2006, a ciência geográfica recebia
desde meados dos anos de 1990 artigos de Nigel Thrift (1949-), que foram
organizados e publicados em um livro único (Thrift, 2008), sobre a
teoria não-representacional. Como nos informa o aspecto tradicional da
sociologia científica do livro, Cosgrove (2008) descreve críticas
esperadas ao livro, a saber: os laços cognitivos e afetivos não se dão
exclusivamente no âmbito da visão e, assim, o conhecimento seria
performativo; a visão é uma forma dominante de reflexão científica sobre
as relações humanas com o mundo material; o olhar e os modos de ver
seriam construções surgidas juntamente com a perspectiva geométrica no
século XV e, por isso, colonialistas, falocêntricas e dominadoras.
Cosgrove (2008), ainda que ciente da existência dessas críticas, não se
propõe a discuti-las, apenas se dedica à tarefa de oferecer exemplos de
como as imagens e a imaginação são centrais no modo de compreensão da
informação geográfica.
39Os ensaios da primeira parte, intitulados Geography and Vision (1) e Extra-terrestrial geography
(2), são aqueles de conteúdo teórico mais amplo e elaboram a base das
demonstrações da relação entre geografia e visão, ou da imaginação
geográfica, que o autor desenvolve no decorrer dos demais capítulos.
Cabe ressaltar que ambos os capítulos correspondem às conferências
inaugurais proferidas por Denis Cosgrove ao assumir, respectivamente, as
cadeiras na Royal Holloway – Univeristy of London (1994-1999) e na University of California, Los Angeles – UCLA (2000-2008).
40A
história institucional da carreira de Denis Cosgrove, portanto, é um
aspecto relevante para compreender o significado vertebrador dos
capítulos iniciais no conjunto do livro. Ao reconstruir as conexões
entre geografia e visão no próprio pensamento, um lugar de destaque é
dado por Cosgrove (2008) aos dois momentos de ruptura institucional da
sua carreira. Ademais, cabe ressaltar que o conteúdo dos textos também é
moldado para um fim e público específicos – nesse caso, as conferências
inaugurais aglomeram um público diverso e um texto amplo sobre a
geografia [e não sobre elementos específicos] geralmente é esperado.
Para Driver (2009), ninguém poderia ter previsto que a conferência Geography and Vision (1994)
moldaria a geografia cultural na Royal Holloway. No segundo capítulo,
por outro lado, o interesse na “geografia extra-terrestre” faz jus à
cadeira Alexander von Humboldt da UCLA. Afinal, o ensaio sugere
uma retomada da tradição cosmográfica da geografia a partir de uma
perspectiva cultural contemporânea; o século XXI, segundo Cosgrove
(2008), reatualiza o imperativo gráfico da cosmografia na tarefa de
tornar visível a ordem do mundo.
41O volume 42 do Historical Geography Research Series (Della Dora et all.,
2010), que foi resultado de um evento em 2008 na UCLA em homenagem a
Denis Cosgrove, sintetiza um modo de organizar o pensamento de Cosgrove
bastante análogo ao de Geography and vision. Ao congregar visões de Arcadia, wilderness, cosmopolis e modernity, a referida publicação oferece, sem referência direta, uma chave interpretativa para a Geography and Vision (Cosgrove, 2008), e está visceralmente ligada aos aspectos da trajetória do autor por distintas temáticas de pesquisa.
42Uma
das marcas indeléveis de continuidade no pensamento de Denis Cosgrove é
o crítico de arte e desenhista britânico John Ruskin (1819-1900), foco
de dois ensaios do Geography and Vision: The morphological eye (7) e Ruskin’s European visions
(8). Dessa constatação, dois aspectos são centrais no cruzamento da
trajetória de Cosgrove com a de John Ruskin, um deles retirado do
desenvolvimento do livro e outro que emerge de declarações
autobiográficas (Freytag & Jöns, 2005). Em primeiro lugar, a visão
compartilhada por John Ruskin e os geógrafos que desenvolveram os
currículos da “Nova Geografia” em Oxford, notadamente Andrew John
Hebertson (1865-1915) e Halford Mackinder (1861-1947), de que a
geografia era uma forma de ver e se envolver com o mundo (Cosgrove,
2008), fundou o programa da educação geográfica que Cosgrove viria a
trilhar parte de sua vida – o bacharelado no Saint Catherine’s College (1966-1969) e o doutorado na Oxford Polytechnic (1972-1975), atualmente Oxford Brookes University.
43O
próprio Mackinder fazia parte de uma geração de geógrafos que defendia a
perspectiva de que a geografia precisava de imagens para construir seus
argumentos (Mayhew, 2007a) e de que esta ciência seria uma forma visual
de pensar (Mackinder, 1942). Dessa maneira, conforme destaca o próprio
Cosgrove (2008), o currículo desenvolvido pela “Nova Geografia” em
Oxford foi aquele que ainda ressoou nos anos de 1960, período de
formação de Cosgrove em tal instituição. Mapeamento e paisagem eram a
referência metodológica para dar cabo não somente à geografia, mas à
visão educacional do período vitoriano.
44As
conexões metodológicas entre a geografia de Mackinder e as aulas de
Ruskin, sendo que este fizera diversas passagens e palestras em Oxford
no final do século XIX, eram o mapeamento, as observações e o
levantamento de campo. Portanto, por meio da morfologia e de suas
conexões com a história e cultura, operacionaliza-se o currículo de
Oxford do qual Denis Cosgrove viria a cursar. Não se deseja sugerir que
toda a compreensão de Cosgrove acerca da geografia e da visualidade seja
concernente à sua formação em Oxford, até porque o segundo momento de
encontro de sua trajetória com a de John Ruskin acontece no mestrado em
Toronto, lugar com atmosfera intelectual completamente distinta da de
Londres e no qual o autor aproveita para aprofundar seu interesse na
história da arquitetura.
- 2 Referência a Andrea Palladio (1508-1580), um dos principais arquitetos renascentistas da Itália. Su (...)
45São,
inclusive, os trabalhos de Ruskin que fazem Cosgrove (Freytag &
Jöns, 2005) compreender aspectos da paisagem inglesa conforme a paisagem
italiana, que culminou no doutorado sobre a paisagem palladiana2.
Nem mesmo a relação entre Oxford e Ruskin é direta. Afinal, quando
Cosgrove retornou de Toronto e desistiu da bolsa em Oxford para
desenvolver um estágio de pesquisa no Departamento de Arquitetura da Polytechnic of Central London (atualmente Westminster University, London)
sobre modelagem computacional para localização de centros de lazer, ele
teve acesso a uma biblioteca de arquitetura – onde aprofundou os
estudos em textos sobre história da arquitetura, o que supõe mais doses
da literatura de John Ruskin.
46Referências a Halford Mackinder também aparecem no ensaio Seeing the Pacific
(capítulo 11), mas, na ocasião, Cosgrove (2008) tem o objetivo de
examinar os desafios à imaginação geográfica americana na representação
do Pacífico como um espaço geopolítico dotado de unidade no âmbito das
potências imperiais até meados do século XX. Para isso, o autor faz uma
historiografia das representações do Pacífico na literatura geográfica, o
que inclui Mackinder, particularmente nos mapas da escola secundária e
jornalísticos.
47No
momento sensível de disputa pelo Pacífico no início do século XX, por
meio da análise dos materiais e com foco no artista-cartógrafo Charles
Owens (1880-1958), do Los Angeles Times, a projeção de Mercator é
substituída por uma visão que privilegia a unidade do Pacífico como
região mundial e objeto de disputa. Este capítulo fora apresentado
anteriormente como artigo e resulta, além de parceria com a geógrafa
Veronica della Dora (Royal Holloway, University of London), do
encontro de Denis Cosgrove com as ilustrações de Charles Owens no
arquivo da UCLA. Dois momentos de sua vida, que se caracterizam por dois
lugares [Oxford e Los Angeles], cruzam-se em um texto sobre a Segunda
Guerra Mundial, o imperialismo e a educação popular por imagens em
jornais e atlas escolares.
48No capítulo 12 de Seeing the Equator,
o último ensaio do livro, Cosgrove apresenta claramente a função de
sintetizar o propósito da obra, pois o Equador é concebido de modo
literal, representado por determinadas paisagens e locais reais da
superfície terrestre. No entanto, por outro lado, o Equador também é
projetado, imaginado e associado a gostos estéticos, sendo espaço de
medo, curiosidade ou descoberta; estas imagens e imaginações acarretam
consequências para os lugares e paisagens reais do Equador, quaisquer
que sejam. O objeto do conhecimento geográfico pode, portanto, ser
observado fisicamente no campo e representado graficamente no gabinete
(Cosgrove, 2008).
49Outros três ensaios do Geography and Vision (Cosgrove, 2008) distinguem o pensamento clássico de Cosgrove (Atkinson, 2010) na geografia do século XX: o Gardening the Renaissance world (3), que fora apresentado em Washington, no Dumbarton Oaks Annual Symposium in Garden History (1996); Mapping Arcadia (4) foi uma conferência apresentada no National Gallery of Canada, Ottawa (2001); Wilderness, habitable earth and the nation (6) apareceu como um capítulo do livro Wild Ideas,
organizado por David Rothenberg e publicado em 1995. Para Atkinson
(2010), poucos são os resquícios da imaginação clássica na geografia do
século XX, com exceção de alguns como o geógrafo Clarence Glacken
(1909-1989) e a geógrafa Ellen Semple (1863-1932), e Cosgrove representa
uma figura com modo clássico de pensar.
50Com formação em uma escola jesuíta [a Saint Francis Xavier’s College]
de Liverpool, Cosgrove aprendeu latim e grego e, apesar de não ter sido
educado nos ditames dos clássicos (Atkinson, 2010), entrou em contato
com trabalhos clássicos no mestrado em Toronto e, de forma aprofundada,
na sua tese de doutoramento – que envolvia o conhecimento sobre
arquitetos e cosmógrafos renascentistas. Segundo Atkinson (2010), a
própria infância de Cosgrove em Liverpool, cidade onde este havia
nascido em 1948, o expunha a uma atmosfera impregnada pela tradição
clássica nos monumentos e espaços públicos. Liverpool era uma das
grandes cidades e principais portos do Império Britânico e, desse modo,
um ponto de ebulição da cultura clássica.
51As
origens teóricas e metodológicas do que atualmente vem sendo chamado de
geografia do livro consistem: de um lado, na ênfase às condições do
lugar, do espaço e da materialidade informados pela geografia da ciência
que se delineia a partir da década de 1990; e, de outro, pela história
do livro e a importância dada às mentalidades, ao texto material, à
cultural impressa e às condições materiais da recepção. Com isso, a
geografia do livro que nos é contemporânea carrega consigo parte das
fragilidades de ambos os corpos de pesquisa. O foco de pesquisa na
recepção textual ou no circuito material e impresso da produção,
circulação e consumo de livros caracteriza parte significativa dos
estudos de geografia do livro.
52Dada
a orientação de tais investigações na geografia do livro, a abordagem
biográfica pode contribuir com a história disciplinar na produção de um
relato que valoriza a maneira como a trajetória pessoal do indivíduo
está imbricada em suas realizações profissionais. A geografia do livro
não pode ficar confinada, portanto, ao período de maior relevo da
cultura impressa e à recepção textual. Esta análise de Geography and Vision
sugere que a biografia não é uma cronologia linear de determinações, em
que uma causa gera imediatamente uma consequência, ou que uma escolha
gera uma mudança imediata na trajetória de vida de um autor.
53Nosso
propósito foi apenas o de destacar que o modo de contar a história [e
quem conta] pode reorganizar a trajetória do geógrafo, de modo a
privilegiar uma determinada representação. A história do livro ora
analisado, em linhas gerais, apresenta um geógrafo preocupado com a
história dos diversos modelos cosmológicos por meio dos quais os povos e
culturas ocidentais interpretaram a variedade da superfície terrestre.
Parece-nos fundamental destacar alguns pontos essenciais da análise da
organização do Geography and Vison como uma narrativa
biográfica. Em primeiro lugar, tem-se a importância dada pelo autor às
palestras proferidas em momentos de mudança institucional de sua
carreira. Tais palestras, além de serem os únicos ensaios essencialmente
teóricos, referem-se diretamente ao fio condutor dos propósitos
centrais do livro: o esclarecimento da tradição e as possibilidades
contemporâneas de pesquisa sobre a relação entre visão e geografia.
54Ligados
à formação acadêmica do autor, os aspectos institucionais,
epistemológicos e metodológicos da formatação do currículo do curso de
geografia em Oxford parecem orientar uma parte substantiva do eixo
organizador do livro. Em outras palavras, o imperativo gráfico da
geografia como princípio epistemológico, aliado à centralidade do
mapeamento e da paisagem na visão geográfica e pedagógica vitorianas,
constitui um elemento curricular fundamental do início da trajetória
intelectual de Denis Cosgrove na Inglaterra. Halford Mackinder e John
Ruskin são as figuras desse ponto da trajetória que “acompanham”
Cosgrove até o fim de sua trajetória.
55A variedade do Geography and Vision
oferece um panorama de temáticas que o autor investigou durante sua
vida e a riqueza empírica dos trabalhos selecionados, mais do que seguir
uma apresentação cronológica dos lugares que compõem a trajetória
intelectual do autor, demonstram a diversidade de lugares vistos,
imaginados e representados que serviram de base para suas pesquisas. Os
espaços da vida de Cosgrove – não apenas os materialmente vividos, mas
aqueles imaginados e representados – foram também primordiais no seu
pensamento. Finalmente, o livro, com uma coleção de textos de diferentes
momentos e lugares, a depender de suas condições de elaboração na vida
de um autor, pode caracterizar uma forma de contar a história da
geografia. O livro constitui, assim, parte da história e um modo de
contá-la.